1 INTRODUÇÃO
Presume-se que a relação entre desenvolvimento socioeconômico e equidade de gênero na área de educação esteja a ser superada. No entanto, pesquisas recentes mostram-se reticentes nessa direção (CHISAMYA; DEJAEGHERE; KENDALL, 2012; HIRATA; KERGOAT, 2007; LIMA, 2013; KHURSHID, 2017) e argumentam que, mesmo em países economicamente emergentes, regiões cada vez menos desenvolvidas podem variar em sentidos surpreendentes. Analisando oportunidades e resultados de estudantes da 12.ª série, na Etiópia, Tesema e Braeken (2018) observaram que as meninas tiveram maiores oportunidades e resultados mais elevados que os meninos, em regiões menos desenvolvidas economicamente.
As desigualdades de gênero nas aspirações de carreira e cursos de nível superior têm sido pesquisadas extensivamente em países altamente desenvolvidos e democráticos (WATT et al., 2012; CECH, 2013; LIMA, 2013). Charles e Bradley (2002, 2009) e Lima (2013) descobriram que a segregação horizontal de sexo existe em quase todos os países, por exemplo, maior número de homens na engenharia, tecnologias de informação (TI) e maior número de mulheres nas ciências sociais e humanas.
Por exemplo, em seu estudo “Equal but separate? A cross-national stady of sex segregation in higher education”, Charles e Bradley (2002) examinaram os contornos correlatos de segregação sexual no Ensino Superior (ES), usando dados de 12 países industrialmente avançados em duas dimensões: campo de estudo (segregação horizontal) e nível terciário (segregação vertical). Eles argumentam que os diferentes aspectos do status feminino no ES não covariam. Cada variável é afetada de maneiras distintas por características culturais e estruturais associadas à modernidade, por exemplo, nas matrículas gerais, representação em campos de estudo tradicionalmente dominados por homens.
Outro estudo de Charles e Bradley (2009) que se diferencia da análise anterior por explorar apenas países altamente industrializados foi realizado em 44 países, tanto em países considerados industrializados como nos em desenvolvimento, descobriu que a segregação sexual dos campos de estudo é mais forte em contextos mais desenvolvidos economicamente. Os autores combinam duas forças culturais de segregação sexual no ES: a “ideologia essencialista de gênero que provou ser extremamente resiliente, mesmo no mais liberal-igualitário dos contextos” e “os sistemas de valores autoexpressivos, que criam oportunidades e incentivos de eus de gênero” (CHARLES; BRADLEY, 2009, p. 924) com relação à matemática.
Nas áreas de tecnologia e informação, não poderia ser diferente. A participação feminina ainda é bastante reduzida, considerando a presença de mulheres em posições estratégicas da área tida como marcadamente androcêntrica. Em Moçambique, a literatura sobre relações de gênero e tecnologia revela-se incipiente ou quase inexistente, haja vista ideais de cunho social construídos pela associação simbólica e cultural entre tecnologia e masculinidade, porque estereótipos são produzidos e reproduzidos e, mais tarde, naturalizados em papéis e lugares mais apropriados para homens, balizando os campos de atuação feminina, validando a aplicação dos princípios que organizam e estruturam a divisão sexual do trabalho, considerados por Hirata e Kergoat (2007).
Todavia, descobertas intrigantes emergem das poucas pesquisas internacionais que incluem países menos industrializados: países em desenvolvimento tendem a apresentar mais lacunas de gênero nas áreas de matemática, tecnologias de informação, engenharia (CHARLES; BRADLEY, 2009; FRYER JR.; LEVITT, 2010).
Outro estudo utilizando índices de Estudo Longitudinal da primeira infância para lançar luz sobre a diferença de gênero na matemática, cobrindo uma amostra de mais de 20.000 alunos, nos Estados Unidos e entre outros 40 países, sugere que há lacuna no desempenho em matemática em todos os estratos sociais, em virtude do menor investimento das meninas na matemática, baixas expectativas dos pais e testes tendenciosos (FRYER JR.; LEVITT, 2010). Entretanto, quando os autores passam à comparação entre países, os resultados são sensíveis à inclusão em países muçulmanos, onde há pouca ou nenhuma diferença de gênero em matemática, apesar do baixo status das mulheres.
Em uma pesquisa semelhante e utilizando dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) de 2006 em 50 países, Sikora e Pokropek (2011) identificaram lacunas de gênero mais amplas nas carreiras tecnológicas entre nações de alta renda per capita e setores altamente industrializados. Analisando os dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na distribuição de gênero por área de estudo entre 44 países, Charles e Bradley (2009) concluíram que a segregação sexual era mais acentuada e visível nas economias industriais avançadas.
Nesse contexto, pesquisas de Spencer, Steele e Quinn (1999) e de Ridgeway (2011) avançam que estereótipos de gênero sobre a escolha de carreira podem ser mais fortes em países mais desenvolvidos, onde a seleção de carreiras e especializações universitárias podem ser uma forma de autoexpressão. Por outro lado, as apostas econômicas das escolhas podem ser maiores em países com economias emergentes (CHARLES; BRADLEY, 2009) e os países em desenvolvimento podem ser mais receptivos às mulheres que pretendem cursar a área de CNEAS.
Portanto, as pesquisas anteriormente apresentadas demonstram que existem variações para a escolha da carreira a seguir por homens e mulheres, assim como há muitos instrumentos para avaliar o contexto socioeconômico desses países. O que explicaria, então, a menor presença de mulheres na área de CNEAS num país em desenvolvimento como Moçambique?
Assim, compreender os contornos e as causas dessa segregação sexual revela-se importante, na medida em que o impacto econômico da incorporação feminina no ES depende, em grande parte, do acesso das mulheres às instituições de elite.
2 DESENVOLVIMENTO REGIONAL, GÊNERO E OPORTUNIDADE EDUCACIONAL
A participação das mulheres nas atividades científicas teve início na Idade Média, mediante a realização de atividades de suporte que se assemelhavam às funções do trabalho produtivo na esfera privada, tais como limpeza e organização de laboratórios, cuidados com coleções e ainda traduções de textos e experimentos, quando a ciência ainda era produzida no âmbito familiar, particularmente por homens entre pais e maridos.
De acordo com Leta (2003), apesar de serem consideradas incompetentes ao longo da história, situação que persiste nos dias atuais, algumas dessas mulheres desenvolveram pesquisas importantes e realizaram grandes descobertas. No entanto, elas nem sequer recebem menção, na maioria das vezes, mas, sim, invisibilizadas, recolhidas a suas funções de assistentes de seus mestres a quem eram atribuídos tais méritos.
Nas palavras da autora, com a formalização das ciências, os laboratórios e os observatórios foram transferidos do espaço doméstico para as universidades, às quais as mulheres não tinham acesso, nem mesmo como auxiliares, sendo, desse modo, excluídas da esfera da ciência por mais de um século. Mais tarde, por volta do século XIX, com a criação de colégios de mulheres na Europa, iniciou-se uma lenta e tímida jornada de volta às atividades científicas, quando a ciência, como atividade masculina, profissionalizava-se a todo o vapor. Leta (2003) explica que somente em meados do século XX, com o advento da ciência, do movimento de liberação feminina e da luta pela igualdade entre mulheres e homens, assim como da necessidade crescente por recursos humanos para atividades estratégicas, foi possível a elas o acesso cada vez maior à educação científica e a carreiras tradicionalmente ocupadas por homens e consideradas masculinas.
Nesse contexto, o livro Women in science, escrito em 1913 por um padre de nome H. J. Mozans, vai marcar de forma detalhada a participação e realização da ciência por mulheres. O livro convidava e sugeria às mulheres a atuarem no empreendimento científico e desencadeamento de energias da população do planeta (SCHIEBINGER, 2001), ao mesmo tempo que, segundo Leta (2003), foi um dos marcos para o crescimento da literatura sobre gênero e ciência, ainda que de forma incipiente até os anos 1970, tendo ganhado relevância no seio acadêmico, sobretudo nos anos 1980.
Portanto, a ciência e a tecnologia têm a ideologia de quem as domina e em um mundo dividido em classes e, por isso, o aparato e o desenvolvimento tecnológico estão a serviço da classe dominante, e não do grande contingente populacional. Sendo assim, o lugar que se ocupa no contexto do desenvolvimento tecnológico é um espaço de poder e o poder é desde muito tempo masculino. Como diria Schiebinger (2001), os problemas enfrentados pelas mulheres na ciência têm raízes históricas profundas, não sendo caracterizadas por uma marcha de progresso, mas por ciclos de avanço e recuo.
Por ocasião da Conferência Regional preparatória para Beijing (1995), realizada em Mar del Plata (na Argentina), em setembro de 1994, teve lugar uma reunião para discutir Gênero, Ciência e Tecnologia na América Latina e Caribe. Pesquisadores e cientistas de vários quadrantes do mundo e presentes na Conferência comprometeram-se a envidar esforços que motivem mais mulheres para carreiras científicas e tecnológicas, em seus respectivos países, assim como a estreitar o intercâmbio entre universidades e centros de investigação localizados na região (TABAK, 2002). Entretanto, mesmo com a crescente participação das mulheres em atividades de ciência e tecnologia, suas chances de sucesso e reconhecimento na carreira revelam-se reduzidas.
Contudo, a segregação sexual parece variar internacionalmente por desenvolvimento socioeconômico e equidade de gênero, tal como se observa em Moçambique. O país conheceu um aumento de matrículas no ES, particularmente nas duas últimas décadas (MEDH, 2014; LANGA, 2014; ZAVALE et al., 2017; MIGUEL; TAMBE; COSTA, 2021). Em 2010, havia 42 instituições do ensino superior (IES) contra menos de três existentes na década de 1980 até início de 1990 (MCTESTP, 2016). Langa (2014) notou um rápido crescimento de IES em Moçambique, no período entre 1995 e 2014, aumentando de 3 para 46 instituições, acompanhadas pelo crescimento do número de estudantes de ~4.000 a ~130.000, conforme relatório da UNInstitute for Statistics (UNESCO - MOÇAMBIQUE, 2015).
A rápida e recente expansão do ES foi apoiada, particularmente, por investidores internacionais, com o intuito de aumentar o desenvolvimento econômico nacional e melhorar a competitividade econômica e regional. É nesse contexto que estudos versando sobre a expansão do ES na África subsaariana (FARRANT; AFONSO, 1997; ZAVALE; MACAMO, 2016; MOHAMEDBHAI, 2014; BANCO MUNDIAL, 2010; LANGA, 2014) têm se ocupado em analisar as atenções prestadas pelas maiores agências financiadoras do campo educacional, desde a década de 1980 em particular e, mais recentemente, destaca-se a Declaração de Incheon, resultado do Fórum de Educação Mundial realizado pela UNESCO (UNESCOPRESS, 2015).
O documento do Banco Mundial (2010) sugere que a fortificação do ES na África subsaariana seja a chave para o alcance do desenvolvimento econômico, político e social. Também, os processos de consulta liderados pela UNESCO e UNICEF enfatizam que os objetivos educacionais e/ou metas “devem centrar-se na equidade, acesso e aprendizagem de qualidade” (UNESCO; UNICEF, 2013, p. 792). A ênfase dada por esses dois organismos internacionais reflete em todos os objetivos, no contexto da meta 4 da proposta de desenvolvimento sustentável até o ano de 2030. De acordo com as Nações Unidas (2015, p. 7), a meta 4 pretende “garantir a inclusão e educação de qualidade equitativa e promover a aprendizagem ao longo da vida e oportunidades para toda a pessoa humana, independentemente do tipo de ensino e como forma de expansão da educação”.
Portanto, as mudanças socioeconômicas acompanham esse boom pós-secundário e, apesar do recente desenvolvimento econômico, Moçambique é amplamente considerado um dos países mais pobres do mundo, ocupando a 181.ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano entre 188 países - indicando apenas um crescimento de 0,41% - e o rendimento per capita (USD 624 em 2014) continua baixo, mesmo considerando que o PIB tenha alcançado o crescimento de 7%, em média, entre 2010 a 2015 (FMI, 2015; PNUD, 2017). Em 2017, o crescimento do PIB foi de 3,7%, contra 3,8% em 2016. Não obstante, o crescimento econômico real médio per capita desde 1995 atingiu impressionantes 5,9% ao ano, pois esse período bem-sucedido de crescimento econômico não foi acompanhado por melhorias proporcionais em alguns dos principais índices econômicos e socioeconômicos agregados, levando a níveis elevados de pobreza (UNFPA, 2017).
O nível de pobreza em 1996/1997 foi de 69,7%; 52,8% em 2002/2003; e 51,7% em 2008/2009 (UNFPA, 2017). Isso significa que, após uma queda significativa entre 1996 e 2002, o nível de pobreza mal se alterou. Em 2014, cerca de dois terços da população viviam abaixo da linha da pobreza de USD 1,90 por dia (PNUD, 2017; INE, 2017. Por sua vez, o Inquérito aos Orçamentos Familiares (IOF) de 2015/2016 mostra que até 2014 a pobreza nacional ainda se situava em 46,1%. Esse valor representa uma queda substancial de 5,6% desde 2008 e uma queda substancial de 23,6% desde 1996. No entanto, tal acontece paralelamente a um aumento de mais de 200% no rendimento per capita, durante o período 1996-2014 (UNFPA, 2017; INE, 2016), corroborando a afirmação de que os frutos do crescimento econômico não se estão a traduzir em benefícios para muitas pessoas e que a desigualdade tem estado a aumentar nas diferentes províncias de Moçambique.
Essas condições têm uma dimensão de gênero, pois a pobreza afeta mais as mulheres que são, em média, mais pobres; têm níveis de educação mais baixos e piores resultados de saúde do que os homens. A população moçambicana cresceu de 16,5 milhões, em 1997, para 27,1 milhões, em 2017, portanto uma taxa anual de 2,8% (UNFPA, 2017). A taxa maior da população registra-se em indivíduos com menos de 15 anos de idade (44,5%). A maior parte da população vive em zonas rurais (67,7%); a taxa de crescimento da população urbana é de 3,5%; as mulheres apresentam uma taxa elevada de infecção por VIH/SIDA (14,2%) que os homens (10,2%); em 2016, a dívida externa do país era de 89,4%. Quanto à escolarização superior, em 2015, a taxa bruta de matrículas era 5,4% para mulheres e 7,4% para homens (UNESCO, 2018).
O crescimento da população moçambicana não foi uniformemente distribuído. A taxa de 46,1% obtida do IOF de 2014/2015 significa que há uma grande divisão rural/urbana, com a pobreza rural situada em 50,1%, enquanto a urbana é de 37,4% (UNPFA, 2017). Quando esses números são mais desagregados, revelam grandes variações nas diferentes províncias. Por exemplo, em 2014/2015, “a pobreza do Niassa situava-se ainda acima dos 60% da população e tinha aumentado acentuadamente em relação aos seus níveis de 2008 e 2002” (UNFPA, 2017, p. 25). O mesmo sucedeu em Cabo Delgado e Nampula, de tal modo que, relativamente às províncias do Norte como um todo, “a taxa de pobreza geral aumentou entre 2008/9 e 2014/15 de 45,1% para 55,1%”, portanto uma taxa superior à de 2003/3 (UNFPA, 2017, p. 25).
Contrariamente, a taxa de pobreza em Maputo cidade (capital do país) reduziu para 11,6% e em Maputo província, para 19,9%. A queda relativamente fraca na taxa de pobreza em muitas províncias, aliada ao aumento elevado da população, sugere que o número absoluto de pessoas na pobreza é aproximadamente o mesmo que em 1996/1997 (MINISTÉRIO DA ECONOMIA E FINANÇAS, 2016). Embora os números globais tenham reduzido, esse padrão de desigualdade regional é pouco modificado e em alguns aspectos pode ser mais divergente do que 20 anos atrás.
Outro elemento crucial de um padrão de vida condigna é o acesso à água potável e ao saneamento melhorado. Nas duas áreas, registram-se melhorias, mas há evidências enormes de divisão rural/urbano. Até 2015, o acesso ao saneamento melhorado era apenas de 10,1% nas zonas rurais, o dobro de 2000. Nas zonas urbanas, era de 41,1%, inferior a uma melhoria de 5% desde 1996. Quanto à água potável, as zonas rurais têm apenas um acesso de 37% às fontes de água melhoradas, contra 80,6% nas zonas urbanas (UNFPA, 2017). Portanto, o acesso à água potável é considerado um dos fatores que aumenta as oportunidades educacionais de meninas e mulheres que tendem a assumir a responsabilidade de transportar água para suas famílias (WATKINS, 2006), além de que afeta positivamente sua saúde e frequência escolar.
Além disso, as instituições educacionais de Moçambique e, consequentemente, sua população mais instruída permanecem concentradas na capital Maputo. Em parte, essa tendência decorre de uma pressão causada pelo rápido crescimento da população necessitando do ES, conforme observado por Marginson (2016), tendo em conta que a população moçambicana cresceu de ~16 milhões, em 2007, para ~27 milhões, em 2017. A pressão do aumento demográfico exige uma expansão do ES que, segundo Bloom, Canning e Chan (2006), é o fio condutor da competitividade econômica e a fonte de agregação de habilidades robustas em áreas específicas de desenvolvimento. No mesmo contexto, Chea (2019) observou que a expansão do ES favorece sua acessibilidade às massas na Cambodja, porém beneficia mais, e de forma expressiva, os estudantes provenientes das famílias da cidade capital.
Essa tendência foi observada neste trabalho pelo expressivo crescimento de IES na capital Maputo, com mais de 70% de IES (MINED, 2012) e, consequentemente, são as que contribuem de forma significativa para o aumento de matrículas em Moçambique. Por exemplo, até 2015, das 49 IES existentes no país, 26 localizavam-se em Maputo e as restantes distribuídas pelas demais províncias, portanto uma distribuição regional histórica da desigualdade na oferta de vagas nas IES em Moçambique e do benefício de mais instalação de IES de boa reputação nacional alocadas na região sul do país.
Essas desigualdades regionais foram discutidas em um fórum de debate abrangente de vários estudos clássicos de gabarito internacional (FERRÃO, 2014; ONWUAMEZE, 2013; SIBIANO; AGASISTI, 2013; AMUNGA; MUSASIA; JULIUS, 2010; MOK; WONG; ZHANG, 2009; NING et al., 2016). Nesse debate, testemunhou-se que as diferenças regionais dos níveis de desenvolvimento socioeconômico são fonte de variações regionais de desempenho de estudantes e a contribuição de práticas relacionadas a políticas para os resultados da aprendizagem dos alunos em diferentes regiões. Os dados do IOF realizado em 2016, por exemplo, permitem que essas dimensões sejam estimadas separadamente e desagregadas sob uma variedade de rubricas, particularmente por zona - rural/urbana e por província - por renda e por sexo.
Existem diferenças bastante significativas em todas as dimensões do acesso à educação entre as zonas rurais e urbanas, e as zonas rurais apresentam um desempenho significativamente mais baixo do que as urbanas em todas as categorias. Por exemplo, existem proporções muito elevadas de jovens e adolescentes fora da escola nas zonas rurais (66% e 41%, respectivamente). As taxas de conclusão referentes ao ensino pré-universitário são extremamente baixas nas zonas rurais e as urbanas uniformemente melhores (INE, 2017; UNFPA, 2017).
Os resultados da divisão rural/urbano refletem, em grande parte, os obtidos para o nível de pobreza, sendo a dimensão mais marcante da desigualdade educacional as disparidades regionais entre capital Maputo e o grande resto das províncias do país. No entanto, há também uma variação considerável entre as outras províncias. Por exemplo, as províncias de Cabo Delgado e Niassa apresentam um desempenho muito baixo em mais ou menos todos os indicadores, lembrando que essas províncias se encontram entre as que têm as proporções mais elevadas de população que vive na pobreza.
Outrossim, há uma divisão clara de gênero. Por exemplo, apenas 5% de meninas das famílias mais pobres concluem o ensino primário em comparação com 21% dos rapazes, e esse número reduz nitidamente no caso de famílias com melhores condições, mas não é eliminado; “mesmo entre os 20% mais ricos, apenas 68% das meninas completaram o ensino primário em comparação com 80% dos rapazes”, e para o ensino pré-universitário entre os agregados familiares mais ricos, os rapazes apresentam uma taxa de 29% de conclusão desse nível contra apenas 13% das meninas (UNFPA, 2017, p. 29). No ES, 74.861 de estudantes (61%) são homens e 48.918 (39%) são mulheres.
Nesse contexto, entendemos que a urbanização, geralmente, é associada às oportunidades e realizações educacionais de meninas e mulheres nos países em desenvolvimento (ZHI-FANG, 2001; COHEN, 2006). Mesmo nas áreas rurais, a participação de meninas e mulheres na escola aumenta o relacionamento direto com o acesso das famílias aos principais recursos de infraestrutura, incluindo transporte e energia (BANCO MUNDIAL, 2010; KANAGAWA; NAKATA, 2008; UNFPA, 2017).
Enquanto a cultura tende a dar atenção limitada ao acesso e sucesso das mulheres nos empreendimentos educacionais, seu acesso ao ES melhorou substancialmente nos últimos anos. Entre 2011 e 2017, o índice de paridade de gênero para Moçambique situava-se no intervalo 50%-80% para o ES (UNESCO, 2018), apontando mais homens no subsistema. As mulheres são vítimas de discriminação econômica, social e política em suas comunidades, o que freia de forma expressiva sua presença massiva nas áreas prioritárias de inovação e desenvolvimento econômico da região subsaariana de África (TESEMA; BRAEKEN, 2018).
Portanto, a segregação de sexo por campo de estudo pode se dever, também, à força cultural duradoira da ideologia essencialista de gênero (ou seja, crenças culturais em diferenças de gênero fundamentais e inatas), que provou ser extremamente influente na formação de experiências de vida, expectativas e aspirações, mesmo nas sociedades tidas como igualitárias e mais liberais (CECI; WILLIAMS; BARNETT, 2009; CHARLES; BRADLEY, 2009; ECCLES; JACOBS; HAROLD, 1990; ELSE-QUEST et al., 2006).
Como o gênero continua sendo um eixo tão central da identidade humana, argumentamos que os sistemas de valores autoexpressivos tendem a encorajar o desenvolvimento e a representação de afinidades culturalmente masculinas ou femininas na escolha de campo de estudo.
Prevalecendo nos dias atuais, a ciência moderna caracteriza-se mais por ser masculina, mesmo com a participação feminina em diversas áreas e profissões, excluindo as mulheres de várias formas, seja pela manutenção de redutos de homens, como acontece nas engenharias, na física, na matemática e na computação, seja pela invisibilidade de seus efeitos (LIMA, 2013). Esses obstáculos que atravessam a vida de muitas mulheres são concretos, apesar de não formais, e apresentam-se em dois tipos de exclusão: exclusão vertical e horizontal, referindo-se o primeiro tipo à sub-representação feminina em postos de trabalhos de prestígio e o segundo, ao número reduzido de mulheres em áreas do conhecimento em que são mais valorizadas.
De acordo com Lima (2008), a exclusão vertical ganhou a metáfora de “Teto de vidro” e sinaliza as barreiras não formais que impedem a ascensão na carreira das mulheres, a partir de determinado estágio alcançado. Portanto, é mais uma consequência de uma série de violências veladas, perpetradas contra os corpos e comportamentos femininos. São bloqueios visíveis, incutidos não apenas no ambiente externo, mas também embutidos culturalmente no modo de pensar da sociedade machista.
Por seu turno, Lima (2013) chama de “Labirinto de cristal” os obstáculos enfrentados pelas mulheres no transcurso de suas carreiras científicas e tecnológicas pelo simples fato de serem mulheres, ao mesmo tempo argumentando que as várias dificuldades dispostas na trajetória científica feminina, simbolizadas pelo labirinto, são permeadas por diversos desafios e armadilhas, predispondo à construção de uma carreira não linear, ao desperdício ou baixo aproveitamento dos talentos femininos, de modo a reforçar sua ausência ou baixa representatividade em espaços marcadamente masculinos
De maneira geral, esses dados sugerem que as desigualdades regionais e entre províncias veem-se refletidas nas diferenças de gênero e nas IES e, portanto, enfrentar a pobreza e gerar melhores condições de vida para essas famílias é um potencial caminho para aumentar a participação das mulheres na educação.
Entretanto, em vez de soluções regionais para colmatar o hiato de desigualdades regionais e de gênero na educação, o governo entendeu que o melhor era introduzir uma mudança estrutural no campo da Política Nacional de Educação, em 1995, consubstanciada à Lei 1/1993, de 24 de junho, Lei do Ensino Superior, mais voltada para a economia do mercado que cria IES privadas. Por conseguinte, embora a presença feminina tenha aumentado substancialmente no ES moçambicano em graus variados, persistiram as desigualdades regionais, porque essas IES beneficiam mais a população das cidades onde elas se localizam, sobretudo da capital do país. Muitas dessas mulheres são trabalhadoras formais e informais, diferentemente daquelas que residem em zonas rurais e/ou em outras províncias. Nesse contexto, as instituições privadas dominam o crescimento do mercado do ES moçambicano, pois a demanda por ele superou a oferta das instituições públicas.
Bourdieu e Passeron (1977) destacam que muitas mulheres que ingressam no ES privado são trabalhadoras, diferentemente daquelas que entram nas IES públicas. Nesse sentido, a formação ou o ingresso massivo de mulheres nas IES privadas constitui uma das exigências do mercado de trabalho no mundo contemporâneo. A busca por uma formação universitária passa a ser cada vez mais uma necessidade na procura por melhores condições de vida, mesmo com inflação de títulos, o que não deixa de ser contraditório, pois os salários continuam estáticos, mesmo sendo portador de um diploma de nível superior.
Os estudos de Oketch (2004), King e Martin (2000, apudROLLESTON; OKETCH, 2008) são consensuais em afirmar que as universidades privadas são uma resposta à demanda do mercado e da conquista dos certificados para conseguir um emprego.
Por essa razão, questionamos: (1) Até que ponto as condições socioeconômicas influenciam a participação das mulheres nas matrículas das áreas de CNEAS? (2) Até que ponto estereótipos de gênero influenciam a inscrição de mulheres em áreas relacionadas com CNEAS, nas IES moçambicanas?
3 METODOLOGIA
Este artigo enfoca as estatísticas do ES de nível nacional, em Moçambique. Adquirimos e mesclamos dados do Ministério da Ciência, Tecnologia, Ensino Superior e Técnico Profissional (MCTESTP) e do censo geral da população de Moçambique fornecido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE, 2007; 2015; 2017). Esses números foram verificados sistematicamente em outras instituições de validade, usando informações publicamente disponíveis em seus sites e relatórios, como o PNUD (2015), UNFPA (2005; 2017). Os dados em nível institucional detalham a matrícula agregada entre estudantes mulheres, homens e todos (total), por IES, área de formação (curso) em cada ano acadêmico. No entanto, para os anos 2010 e 2011, selecionamos os dados por universidade, olhando para a sua localização geográfica dada a lacuna deixada pela entidade competente (MCTESTP) na recolha e tratamento de dados estatísticos por instituição e província. Ademais, indicamos as respectivas matrículas, ingressos e graduações por área de formação dos estudantes ou mesmo proveniência e sexo, da mesma forma que em todos os anos não há detalhes ou informações sobre os estudantes bolsistas e as disciplinas mais específicas de cada campo das CNEAS.
Depois de criarmos variáveis no nível institucional a partir do MCTESTP, incorporamos as estatísticas provinciais a partir do censo de 2007 e 2017 e do IOF 2014/2015/2016. Nossa análise concentrou-se em todas as províncias de Moçambique e as respectivas IES no conjunto dos dados (Figura 1). Das 49 IES existentes em Moçambique até 2015, apenas 28 ofereciam cursos dos campos de tecnologia de informação, engenharia e saúde, sendo 15 na capital Maputo e 13 em todas as outras províncias, e as 21 foram excluídas por não ofertarem cursos do nosso estudo. Das 28 IES selecionadas, apenas 6 províncias disponibilizam campos de tecnologia de informação, 9 oferecem cursos do campo de saúde e os campos de engenharia estão cobertos em todas as províncias.
Para aprimorar a inclusão de universidade e programas, concentramos nossas análises nos estudantes femininos matriculados na graduação entre 2010 e 2015, num conjunto de 66 campi localizados nas dez províncias. O conjunto de dados analíticos finais descreve os padrões de matrícula: 20.822 estudantes, em média, por ano, localizados nas dez províncias moçambicanas. Como esses dados incluem apenas dados agregados por instituição, nossa principal unidade de análise é a instituição, com atenção aos efeitos no nível provincial. Nossa principal variável dependente é a participação das mulheres nos cursos de ensino superior.
Dividimos a lista de cursos principais ofertados nas IES moçambicanas, relatados em duas categorias mutuamente exclusivas (Tabela 2): Ciências da Natureza, Engenharias, Agricultura e Saúde (CNEAS), que inclui áreas de especialização nos seguintes grupos: ciências - da vida, físicas -, matemática e estatísticas, tecnologia da informação, engenharia, ciências agrícolas e ambientais, saúde (abrangendo medicina e serviços sociais); Ciências Sociais, Humanidade e Serviços (CSHS), que compreende os seguintes cursos: educação, artes e humanidades, negócios e direito, ciências sociais, serviço público, utilizando as denominações do MCTESTP (2016), enquanto reconhecemos que alguns desses cursos podem ter particular relevância para a economia moçambicana em desenvolvimento, bem como outras economias em rápida expansão. A discussão crítica dos dados obtidos foi baseada em análises estatísticas realizadas no MatLab package_2016a2.
Nossa hipótese é a de que a participação das mulheres nas áreas de CNEAS é maior nas cidades capitais em termos relativos, sobretudo na capital do país Maputo. Além disso, os indicadores de desenvolvimento socioeconômico e urbanização preveem distintamente a participação das mulheres nos principais setores de saúde, engenharia e tecnologia de informação.
Discutimos possíveis explicações e implicações para gênero e desigualdade no ES, dentro do país, no contexto de maiores debates teóricos sobre a natureza da segregação sexual com base nos estudos de Charles e Bradley (2009); Spencer, Steele e Quinn (1999); Oketch (2004); Tesema e Braeken (2018); Lima (2013).
3.1 Plano de Análise
A análise de dados obedeceu a três fases. Primeiramente, investigamos a distribuição de nossas variáveis nos níveis institucionais e provincial, com o intuito de examinar as relações entre a quantidade de mulheres e as condições sociais e econômicas em cada província. Depois, devido ao número de campi na capital Maputo, utilizamos a amostra média t-testes para avaliar diferenças de outras províncias em variáveis-chave de previsão e resultados. Por último, estimamos a proporção de mulheres em áreas específicas relacionadas a CNEAS, incluindo indicadores de desenvolvimento provincial e equidade de gênero.
Variáveis
Dependente: nossa variável dependente primária é a participação das mulheres nos cursos de ES.
Independente: a variável independente é a de que fatores econômicos e sociais influenciam as mulheres na escolha de cursos no ES, incluindo emprego.
Globalmente, de acordo com Frehill, Abreu e Zippel (2015), a tecnologia da informação (TI) é um campo em alto crescimento com desigualdade de gênero observada nos países ocidentais. Em Moçambique, a TI inclui ciência da computação, estudos ou redes, TI ou tecnologia da informação (algumas vezes seguida por sistemas ou para negócios ou para gerenciamento etc.). A engenharia corresponde aos seguintes cursos: arquitetura e construção, engenharia elétrica e informática, engenharia, transformação. A saúde compreende os seguintes cursos: medicina, enfermagem, técnico médico, obstétrica, enfermagem, odontologia e farmácia.
No que diz respeito à paridade de gênero e indicadores socioeconômicos, as matrizes de correlação e análises fatoriais foram adotadas para selecionar estimadores imparciais do desenvolvimento socioeconômico provincial, usando variáveis do censo populacional moçambicano de 2007 e 2017. O tamanho médio dos agregados familiares tem sido entendido como um dos fatores importantes que influenciam o investimento relativo de uma família na educação de seus filhos (MARALANI, 2008). Para o efeito, uma escala de densidade urbana foi desenvolvida usando componentes como: densidade populacional, estimada como pessoas/km² e urbanidade - porcentagem da população urbana.
A partir da análise dos componentes principais, criamos uma escala que nos pudesse auxiliar a indicar os níveis médios de desenvolvimento de recursos e acesso à infraestrutura entre os agregados familiares provinciais, que incluem: um indicador de ter um aeroporto, como umas das principais infraestruturas de transporte e medidas de acesso médio das famílias à infraestrutura e aos recursos associados ao desenvolvimento econômico: fontes de iluminação (cidade, gerador), combustível de cozinha (gás ou energia elétrica) e instalações sanitárias (esgoto ou fossa séptica). De igual modo, avaliamos o efeito independentemente da capital Maputo em comparação com outros campi no resto do país.
Três variáveis serviram como indicadores da equidade de gênero em cada província: a porcentagem de mulheres com 25 anos ou mais de idade com nível superior; taxa de alfabetização feminina, como da população com 15 anos de idade ou mais e a idade média do casamento para as mulheres, assim como a porcentagem de mulheres em cada província, medida pela proporção de mulheres economicamente ativas, portanto uma métrica comumente utilizada para medir as taxas de emprego das mulheres nos países em desenvolvimento (FUSE; CRENSHAW, 2006). Além disso, a partir dos dados oferecidos pelo MCTESTP (2016), contabilizamos a porcentagem de mulheres matriculadas nos cursos de graduação em todas as IES moçambicanas, independentemente do campo de formação.
4 GÊNERO NA DISTRIBUIÇÃO DO ES E VARIAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO EM MOÇAMBIQUE
Os dados estatísticos resumidos para as dez províncias (Tabela 1) indicam uma variação considerável nos indicadores socioeconômicos, incluindo componentes de nossas escalas padronizadas de densidade urbana e acesso a recursos médios entre agregados familiares. A urbanidade nas províncias varia de 4,3% a 35,2% com uma média de 16,4%. A porcentagem de domicílios com instalações sanitárias varia de 2,3% a 59,0%. A paridade de gênero também é deveras variável. A taxa de mulheres alfabetizadas acima dos 15 anos de idade varia de 11,0% a 60,2%; a proporção média de mulheres matriculadas no ES é de 36,7%, variação entre 26,3% a 42,4%. A porcentagem de mulheres empregadas varia entre 42,3% a 49,0%.
INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO | Mín. | Máx. |
---|---|---|
Tamanho médio do agregado familiar | 3,2 | 4,70 |
Densidade urbana (escala) | 15,7 | 30,0 |
Densidade populacional | 12,4 | 36,1 |
Urbanidade | 4,3 | 35,2 |
Aeroporto na província | 0,0 | 1,0 |
Habitação, água e gás | 18,6 | 31,2 |
Corrente elétrica | 3,6 | 22,2 |
Saúde | 0,5 | 2,0 |
Instalações sanitárias | 2,3 | 59,0 |
INDICADORES DE EQUIDADE DE GÊNERO | ||
Acesso educacional feminino (escala) | -36,4 | 0,8 |
% de mulheres com ES acima de 25 anos | 0,2 | 39,1% |
% de mulheres alfabetizadas acima de 15 anos | 11,0 | 60,2 |
Idade média de casamento para mulheres | 18,2 | 24,8 |
% de mulheres matriculadas no ES | 26,3 | 42,4 |
% de mulheres empregadas | 42,3 | 49,0 |
Fonte: Os autores, com base no censo populacional do INE (2007; 2017); INE (2015).
A Tabela 2 mostra as diferenças de matrícula entre os campi na capital Maputo e os campi das restantes províncias, indicando disparidades notáveis e significativas por gênero em todas as áreas. Curiosamente, as mulheres nas províncias fora de Maputo constituem uma parcela maior de estudantes matriculados no ES (30,2%) do que as da capital (28,3%), mas, quando desagregadas em cada campo, verifica-se o contrário, particularmente nos cursos de saúde (Maputo 56,2% e todas as outras províncias com 50,3%) e TI, em que todas as outras províncias têm 16,7% e Maputo 22,95% de mulheres matriculadas, entre 2010 a 2015. Esse padrão também se aplica, em parte, à nossa variável dependente: lacunas de gênero na participação de estudantes nos cursos relacionados com CNEAS.
A participação das mulheres nas áreas de TI na capital Maputo é quase duas vezes maior do que em todas as outras províncias. Examinando esses dados, os números indicam, igualmente, como a representação das mulheres nas áreas relacionadas a CNEAS varia dentro do país.
Matrículas nas CNEAS | Maputo | Todas as outras províncias |
---|---|---|
Mulheres matriculadas nas CNEAS | 22.681 | 13.588 |
Homens matriculados nas CNEAS | 57.295 | 31.372 |
% de mulheres matriculadas | 28,3% | 30,2% |
Homens matriculados nos cursos de tecnologias de informação | 10.275 | 5.120 |
Mulheres nos cursos de tecnologias de informação | 3.062 | 1.029 |
% de mulheres nos cursos de tecnologias de informação | 22,95% | 16,7% |
Homens matriculados nos cursos de engenharias | 37.811 | 18.022 |
Mulheres nos cursos de engenharias | 7.799 | 4.205 |
% de mulheres nos cursos de engenharia | 17% | 19% |
Homens matriculados nos cursos de saúde | 9.209 | 8.230 |
Mulheres nos cursos de saúde | 11820 | 8.354 |
% de mulheres nos cursos de saúde | 56.2% | 50,3% |
Fonte: Análise dos autores com base nos dados do Ministério da Ciência, Tecnologia, Ensino Superior e Técnico Profissional 2010-2015.
O grau de participação de mulheres nos cursos de graduação das CNEAS também pode ser explicado pela urbanização (densidade urbana, disparidades no contexto social da família e bairro) e acesso provincial a infraestrutura (recursos elevados). Enquanto encontramos efeitos nulos na saúde (56,2% em Maputo e 50,3% em todas as outras províncias), o desenvolvimento tem efeitos significativos nos campos de engenharia e mais profundas nas TI. Maputo tem 11,1% do total da população e as duas províncias mais populosas com 20,6% (Nampula) e 18,5% (Zambézia). Entretanto, a porcentagem de homens com acesso à internet e computador é de 8,1% nas zonas urbanas e 5,8% na zona rural contra 5,3% de mulheres nas zonas urbanas e 3,1% nas zonas rurais com acesso a internet e computador (INE, 2017).
À medida que se atingem níveis mais altos de escolarização, a porcentagem da população feminina que frequenta ou frequentou algum nível é menor. Entretanto, quando a área de residência se situa numa zona urbana, registram-se significativas porcentagens da população feminina que frequenta níveis educacionais mais elevados (como o médio e superior), enquanto a área rural continua dominada por ensino primário (INE, 2015).
Nesse contexto, argumentamos que os obstáculos de gênero são explicados pelas crescentes taxas de pobreza que respondem por disparidade no acesso à educação, resultados e oportunidades nos níveis primário, secundário e superior, afetando meninas e mulheres, assim como meninos e homens de maneira diferente. No contexto moçambicano, a pobreza explica por que as disparidades no acesso à educação, nos resultados e nas oportunidades variam significativamente de região para região.
Escobal e Torero (2005), em seu estudo, também constataram que o aumento da pobreza é atribuído a disparidades regionais em investimento de capital humano e desenvolvimento de infraestrutura pública na Uganda. Essa situação é similar a que se verifica em Moçambique, particularmente nas duas últimas províncias do Norte do país, onde grande parte da população foi deixada para trás e tem surgido conflito armado, apesar das recentes riquezas naturais descobertas.
Nossa amostra de saúde revela que a densidade urbana é um preditor positivo na participação das mulheres nos principais setores de saúde, e os altos recursos preveem as mulheres que se especializam em saúde. Em suma, pensamos que a densidade urbana e os altos recursos preveem saúde, engenharia e TI com resultados opostos.
Por outro lado, a participação positiva ou maior de mulheres no campo da saúde não possui as mesmas características de sua exclusão histórica, como nas áreas exatas. Historicamente, a participação feminina em alguns campos da saúde, como enfermagem, foi vista como feminina, reproduzindo o lugar do cuidar, fazer saber da enfermagem. “São as mulheres que ensinam e são responsáveis em casa pelas práticas saudáveis: higiene pessoal e ambiente e ainda a tutela de saúde de todos os membros da família. Crianças, velhos e doentes são personagens do cotidiano das mulheres” (LOPES, 1992, p. 34). Essa naturalização do cuidar da mulher tem sido foco de suas atividades, assim como tem influenciado a escolha profissional. Padilha (1994) acredita que a mulher reproduz as atividades de sua vida privada/doméstica relacionadas às atividades essenciais para a sobrevivência humana na espera pública/profissional, encobrindo, desse modo, que essas características ou qualidades a ela atribuídas foram e são social, cultural e historicamente construídas, estabelecendo-se um papel de gênero.
De modo geral, os achados apresentam um padrão complexo, mas consistente. As mulheres estão mais bem representadas no ES, sobretudo nos cursos tradicionalmente tidos como femininos da área das CSHS, particularmente na rede privada. Por exemplo, o percentual das mulheres matriculadas no ES privado moçambicano, no período de 2008-2015, quase alcançou a paridade e, embora não tenha ultrapassado as matrículas dos homens na área das CSHS com cerca de 120.583 (cerca de 49,81%) e os homens com 121.450 (cerca de 50,12%) de matrículas, o contrário não acontece na área da CNEAS, em que os homens continuam a liderar as matrículas com um registro de 25.791 (cerca de 60,59%) e as mulheres com apenas 16.772 de matrículas (cerca de 39,4%), mas sub-representadas nas CNEAS, com a exceção do campo de saúde, em que a relação é positiva. Mesmo que sub-representadas na área das CNEAS, sua participação nos cursos tradicionalmente considerados masculinos de TI e engenharia está direta e positivamente relacionada à densidade urbana.
Por um lado, as mulheres são comparativamente menos representadas em TI quando as famílias provinciais têm menos acesso a recursos e, por outro lado, mais representadas nas províncias mais densamente povoadas e urbanizadas. Entretanto há também um aspecto negativo correlato, o maior número de mulheres matriculadas na TI registrou-se na capital Maputo, onde a densidade urbana é elevada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo estuda a variação de gênero nas matrículas no ES na área de CNEAS em Moçambique. Usando dados nacionais e institucionais, examinamos a variação no desenvolvimento socioeconômico dentro do país e na equidade de gênero. Nossos achados sugerem relações distintas, mas sobretudo negativas, ou seja, uma menor participação feminina e regional entre um conjunto de indicadores de desenvolvimento socioeconômico selecionados e a representação das mulheres na área de CNEAS.
Em primeiro lugar, a participação das mulheres na área de CNEAS, particularmente no campo da saúde e TI, está negativamente ligada ao fato de estarem mais concentrados na capital Maputo. Portanto, a densidade urbana tem efeitos mistos na participação das mulheres nos principais cursos, incluindo um efeito positivo nas CNEAS, mas um efeito negativo ou menor participação na engenharia. Em segundo lugar, o acesso a recursos domésticos e de infraestrutura é preditor positivo à maior participação das mulheres nos cursos de saúde, mas preveem negativamente sua participação nos cursos de TI e engenharia.
Em terceiro lugar, entendemos que a relação entre o tamanho do agregado familiar e a participação das mulheres nos principais cursos de CNEAS é consideravelmente negativa/menor, quando significativa ou não. Portanto, as diferenças socioeconômicas entre províncias sugerem a importância de estudos de caso futuros mais aprofundados sobre a relação segregação sexual e desenvolvimento socioeconômico em Moçambique, sobretudo por ser um país pobre ou em desenvolvimento. Já dizia Charles (2017) que talvez pelo gênero das aspirações de carreira, alimentado pela internet, a segregação sexual nas aspirações de carreira de CNEAS seja mais ampla nas sociedades mais ricas do que nas menos ricas.
Desse modo, esta pesquisa sugere que a diferença de gênero nas CNEAS é maleável histórica, cultural e socialmente, pois o contexto faz com que muitas meninas e/ou mulheres desistam da carreira antes mesmo de terminarem a faculdade, pois, com frequência, escuta-se que aquele ambiente não é para mulheres, naturalizando, desse modo, papéis e espaços para homens e mulheres. No entanto, o que se considera natural é fruto de uma construção social, a partir de um modelo mental, histórico e cultural também imposto socialmente, em que meninas e meninos recebem estímulos e reforços desiguais em sua inserção mesológica. Logo, trata-se de argumentos falaciosos, segundo os quais as escolhas e as permanências ou a falta delas são resultado de suas preferências ou aptidões natas.