1 INTRODUÇÃO
São evidentes no Ensino Médio (EM) os efeitos cumulativos das lacunas criadas, ao longo do Ensino Fundamental (EF), na formação de bons leitores. Os profissionais daquela etapa de escolarização, com frequência, exaltam a pouca habilidade de muitos alunos para destacar a ideia principal do material lido, analisar e relacionar diferentes partes de um texto, fazer sínteses e inferências. Tal constatação é demonstrada pelos dados do último Indicador de Alfabetismo Funcional - INAF (2018) apontando que cerca de 30% dos brasileiros, entre 15 e 64 anos, são analfabetos funcionais.
O percurso de dificuldades na aquisição e desenvolvimento da leitura fica evidente nos censos escolares realizados desde os anos iniciais do EF, como a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA - 3º ano do EF) e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc - 5º ao 9º ano do EF) (BRASIL, 2015, 2018). Diante de tal cenário, faz-se importante dimensionar a complexidade que caracteriza a leitura, uma vez que esse entendimento colabora, em grande parte, para a compreensão dos desafios que essa habilidade impõe a muitos estudantes.
Por não ser uma competência única, mas resultante de vários componentes que se complementam, a leitura é uma habilidade mental bastante complexa que envolve grandes desafios: o reconhecimento de palavras (precisão, fluência) e a compreensão. Por um lado, a precisão e a rapidez no reconhecimento de palavras condicionam toda a atividade de leitura, pois um bom nível de automatização desses processos é indispensável para permitir que o leitor dedique o máximo de recursos cognitivos ao processo de compreensão (CORSO; SPERB; SALLES, 2013b; PERFETTI; LANDI; OAKHILL, 2013). Por outro lado, a leitura não se reduz à simples decodificação das palavras, pois é preciso dispor das capacidades cognitivas e linguísticas necessárias para compreender uma mensagem (BRAIBANT, 1997; DEACON; TONG, 2013). Portanto, a leitura engloba aspectos perceptivos, cognitivos, metacognitivos e linguísticos do leitor (SNOWLING; HULME, 2013). Logo, além das condições individuais, uma leitura eficiente pressupõe um conjunto de condições ambientais (ambiente mais ou menos estimulador) e escolares (ensino formal e práticas de leitura eficientes).
Vê-se, assim, que o processo de aquisição e desenvolvimento da leitura abrange diversas variáveis que precisam atuar de forma integrada. Neste artigo, o foco volta-se para a compreensão leitora (doravante CL) no EM. O estudo tem o objetivo de verificar a relação entre a CL e o desempenho acadêmico (DA) de alunos do 3º ano do EM. Destaca-se o número reduzido de pesquisas em compreensão nessa etapa da educação básica, visto que a maioria das investigações nessa área concentra-se no EF, em especial, nos anos iniciais. Acentua-se a importância de investigações nesse campo, uma vez que a falta de domínio da CL acaba por comprometer o rendimento escolar do adolescente, nas mais variadas áreas do conhecimento, dificultando até mesmo sua ascensão à Educação Superior e a melhores posições no mercado de trabalho (SHAPIRO et al., 2017).
2 DESAFIOS IMPOSTOS PELA LEITURA: ASPECTOS INTERNOS AO LEITOR
Para alcançar a compreensão - caráter comunicativo da leitura -, o leitor necessita, inicialmente, dominar a habilidade de reconhecimento da palavra. Isso porque, à medida que ganha acurácia e velocidade leitora, aspectos centrais à leitura proficiente, grande parte dos recursos cognitivos do leitor está liberada para que a compreensão ocorra (SNOWLING; HULME, 2013).
2.1 Reconhecimento de Palavras
O reconhecimento fluente da palavra é uma habilidade indispensável, mas não garante a compreensão, pois para alcançá-la, outras habilidades são igualmente requisitadas pelo leitor, como as de caráter linguístico (vocabulário, semântica, sintática), cognitivo e metacognitivo (memória de trabalho, atenção, funções executivas que possibilitam o monitoramento e planejamento da leitura, uso de estratégias inferenciais) (CORSO; CORSO; SALLES, 2019).
Um modelo para o entendimento de como ocorre o processo de reconhecimento das palavras é oferecido por Coltheart (2006), conhecido como o modelo de dupla rota. Este sugere que a leitura se dá por uma rota lexical e/ou rota fonológica. As palavras reais, familiares, podem ser lidas pela rota lexical, pois já estão armazenadas no léxico mental do leitor e, por assim ser, são, de modo rápido, reconhecidas e lidas. Tal rota é a que possibilita a leitura de palavras nas quais as correspondências entre fonemas e grafemas são irregulares (palavras irregulares). A rota fonológica, por sua vez, permite a leitura de palavras desconhecidas e palavras inventadas (pseudopalavras) por meio da conversão grafema-fonema. Portanto, ao ler e deparar-se com uma palavra nova, será necessário o leitor decifrá-la utilizando a rota fonológica. A experiência de decifração, por seu turno, torna o leitor familiarizado com a forma ortográfica da palavra, o que lhe propicia, na sequência, o reconhecimento imediato pela via lexical. Um leitor competente precisa dominar as duas vias: diante de palavras familiares, poderá usar indistintamente as duas, embora a lexical ofereça maior rapidez na leitura, mas diante de palavras não familiares necessitará empregar a fonológica.
Estudiosos da leitura lembram que é de esperar que o peso do reconhecimento da palavra na CL diminua com a idade/escolaridade, uma vez que habilidades cognitivas mais complexas passam a exercer importância crescente, como as habilidades de fazer inferências, monitoramento da compreensão e conhecimento da estrutura do texto (CORSO; SPERB; SALLES, 2013b; PERFETTI; LANDI; OAKHILL, 2013).
Sabe-se, no entanto, que um bom reconhecimento de palavras não necessariamente garante a compreensão e pode, até mesmo, mascarar uma fragilidade nessa habilidade (CORSO SPERB; SALLES, 2013a; SOUSA; HÜBNER, 2019). Por essa razão, Deacon e Tong (2013) usam a expressão “dificuldades inesperadas de compreensão” para enfatizar o fato de que, às vezes, os alunos conseguem ler com destreza, mas não extrair significado do que é lido. Considerando tal cenário, pesquisas brasileiras recentes (CORSO; SPERB; SALLES, 2013a; SOUSA; HÜBNER, 2019) reforçam a importância de controlar a decodificação ao se caracterizarem grupos de alunos com dificuldades em CL. De acordo com esses estudos, estima-se que de 11% a 17% de alunos brasileiros são maus compreendedores.
2.2 Compreensão Leitora
A dinamicidade contida nos processos de decodificar e extrair significado requer uma relação direta entre o leitor e o texto, o que sugere que o ato de ler envolve a construção de sentido entre o ler e o eu. O modelo psicolinguístico de CL de Kintsch (1988) aponta essa relação em sua base ao ressaltar que o resultado da leitura compreensiva não é uma cópia fiel do texto, e sim a representação mental que o leitor faz dos processos que englobam desde o nível linguístico mais elementar até o nível da integração de informações do texto ao conhecimento prévio do leitor (CORSO; SPERB; SALLES, 2013b).
O modelo de Kintsch (1988) indica que, durante a leitura, o leitor constrói tanto uma versão literal do texto, o texto-base, quanto uma versão mental deste, o modelo da situação. O texto-base evidencia o significado expresso no texto e organiza-se em dois níveis estruturais, a microestrutura (rede de proposições formada a partir da combinação do significado das palavras) e a macroestrutura (reconhecimento dos tópicos globais do texto e suas inter-relações). A versão mental do texto requer a integração de informações deste com o conhecimento prévio do leitor. Assim, a compreensão demanda ir além do texto-base até que se alcance o modelo mental - conexão da informação do texto, via percepção das palavras, com as estruturas prévias do leitor: memórias, conhecimentos, crenças (CORSO; SPERB; SALLES, 2013b). Corso, Corso e Salles (2019) destacam o caráter interativo inerente a esse modelo, na medida em que as unidades menores do texto são gradualmente integradas entre si e com o conhecimento prévio do leitor. Os processos ascendentes (bottom-up, do texto para o leitor) são complementados por processos descendentes (top-down, do leitor para o texto) - quando o leitor seleciona, abstrai, organiza uma estrutura global coerente - em busca da construção de uma rede de significados.
Ao atentar sobre a relação texto-leitor, percebe-se quão complexo é o entendimento das causas das dificuldades em CL. Problemas na compreensão podem estar relacionados à construção do texto-base, no que diz respeito, por exemplo, ao vocabulário ou à consciência morfológica (DEACON; TONG, 2013, FLETCHER et al., 2009). Podem também estar associados ao nível da construção do modelo mental do texto, que propicia ao leitor fazer inferências que conectam informações do texto com seu conhecimento de mundo, o que requer a ativação das memórias de trabalho, semântica, episódica e também a recuperação de informações da memória de longo prazo (FLETCHER et al., 2009; SNOWLING; HULME, 2013). Habilidades de natureza metacognitiva, que possibilitam o monitoramento da compreensão, são importantes tanto para a construção do texto-base quanto para o modelo da situação (SALLES; CORSO, 2016).
3 DESAFIOS IMPOSTOS PELA LEITURA: ASPECTOS EXTERNOS AO LEITOR
Apesar de o foco deste estudo voltar-se para aspectos internos do leitor, não se podem perder de vista os aspectos externos a ele, os quais, naturalmente, concorrem de forma decisiva para o sucesso na leitura. De longa data, pesquisadores reforçam a necessidade urgente de a leitura ser repensada na escola em uma tripla dimensão: como objeto de conhecimento em si mesma, como um instrumento de conhecimento e como um meio para o prazer (SOLÉ, 2003). As questões levantadas por Bourdieu e Chartier, em 1998, precisam ser constantemente revisitadas: Qual a funcionalidade das leituras feitas na escola? O que se lê? Para que se lê? Para quem se lê? O aluno lê aquilo que a escola quer que ele leia, da forma como ela dita, lê coisas que muitas vezes não fazem sentido para a vida fora da escola (SOLÉ, 2003).
Quanto aos aspectos ambientais ligados ao ensino da leitura, pesquisadores lembram a inabilidade da escola em lidar com o ensino da CL para a formação de leitores críticos e ativos (CORSO et al., 2019). Há problematizações acerca dos métodos utilizados (SOLÉ, 2003). Observa-se um descompasso entre as práticas escolares e as rápidas modificações espaciais e temporais da contemporaneidade, ou seja, a escola está “desencaixada da sociedade” (VEIGA-NETO, 2003). Sabe-se que vários aspectos contribuem para tal desencaixe, uma vez que ele não pode ser entendido a partir de um único fator, entre os possíveis: métodos, recursos, escola, professor, sistema, pois as causas para o desencaixe podem estar em vários desses elementos ao mesmo tempo (DORNELES, 1999).
Merece destaque o frequente descompasso entre os estudantes e os programas escolares, o que concorre para agravar quadros de dificuldades na leitura e CL. Smith (1985) realça que, quanto maior a congruência entre as características dos alunos e as particularidades do programa oferecido, maior será a probabilidade de sucesso escolar. No entanto, por vezes, os programas escolares são feitos para alunos que não existem, contendo objetivos ambiciosos, de forma que muitos estudantes são colocados em situações de fracasso (PERALVA; SPOSITO, 1997). Nessa mesma direção, Patto (1996) faz lembrar que a produção do fracasso escolar se dá no cotidiano da escola, pois é na dinâmica do fazer e do viver o pedagógico que se percebem as razões do fracasso escolar dos estudantes provenientes de realidades socioculturais mais pobres. Naturalmente, os jovens que contam com um ambiente sociocultural privilegiado têm oportunidade de suprir as lacunas originadas no sistema escolar, mas a maior parte dos alunos para os quais a escola pública é o único recurso educativo acaba tendo suas aspirações frustradas (GOLBERT, 2002).
Sem sombra de dúvida, os pontos anteriormente levantados tornam-se fatores estressores que atingem sobremaneira aqueles alunos mais vulneráveis (sejam por fatores internos ou externos) às dificuldades de aprendizagem. O conhecimento e as experiências do leitor são o resultado de sua interação com o ambiente social (VYGOTSKY, 2001) e com os materiais de leitura com os quais ele interage, o que acaba por formar as experiências e o conhecimento prévio do leitor. Desse modo, o ambiente sociocultural em que o aluno está inserido, mais ou menos letrado e desafiador, tem um impacto direto na preparação para a aprendizagem da decodificação e CL (CORSO; SPERB; SALLES, 2013b; MORAIS; LEITE; KOLINSKY, 2013). Por exemplo, um modelo de linguagem parental com características de vocabulário restrito, poucas sentenças complexas e linguagem mais concreta interfere no desenvolvimento do vocabulário, conhecimento prévio, conhecimento sintático e morfológico da criança. Posteriormente, tais aspectos influenciam a qualidade da CL que o aluno vai desenvolver (CONNOR, 2016).
Portanto, a fragilidade dos alunos oriundos de níveis socioeconômicos desfavorecidos, com relação ao aprendizado da CL, reforça o papel fundamental da escola no sentido de fazer uma busca refletida de reformulação de suas práticas de leitura, agindo de forma intencional e coerente com as forças e fraquezas dos estudantes. De igual modo, é urgente que as políticas públicas se voltem para a diminuição da desvantagem no desenvolvimento da habilidade de compreensão textual de estudantes de baixo nível socioeconômico (CORSO; CORSO; SALLES, 2019). Trata-se de um debate necessário, tendo em vista que o domínio da CL também funciona como um instrumento de superação de vulnerabilidades sociais e condição para o exercício pleno da cidadania.
4 MODELO DE COMPREENSÃO DE LEITURA DE CONNOR
Corso et al. (2019) destacam o modelo de rede de Connor (2016) por exaltar os fatores internos e externos ao leitor, atuando de forma recíproca, em uma perspectiva de interdependência entre os fatores. Tal modelo, segundo as autoras, marca um avanço teórico importante. Connor (2016) frisa a complexidade da CL por requerer a coordenação simultânea de: a) processos específicos do texto (decodificação, ortografia, fluência de palavras e textos e estrutura de texto); b) processos linguísticos (vocabulário, sistema semântico, gramática, morfologia e compreensão de linguagem oral); c) processos socioemocionais e cognitivos (sistema único que abrange a motivação, as habilidades sociais relacionadas à aprendizagem e os processos regulatórios de controle de esforço, funcionamento executivo, autorregulação); e d) ensino (prática da habilidade em busca de proficiência leitora).
Corso et al. (2019) lembram que os três primeiros aspectos interagem entre si, desenvolvem-se ao longo do tempo, apresentam um efeito impulsionador recíproco, ao mesmo tempo que sofrem o efeito do ensino (na escola e em casa). Por conseguinte, as interações entre as características do estudante e o ensino propiciam o desenvolvimento da compreensão. Fica evidente, portanto, que o modelo de desenvolvimento da compreensão em rede traz implicações educacionais valiosas. Entre elas destaca-se a premissa de que, quanto maior a congruência entre as habilidades de leitura dos estudantes e as características do ensino ofertadas, maior a probabilidade de sucesso. Logicamente, a diversidade existente nas competências e fragilidades dos alunos põe em pauta a necessidade de fazer acomodações didático-pedagógicas para desenvolver o potencial do aluno (CORSO; CORSO, 2017). São muitas as demandas que, para serem alcançadas, requerem inicialmente um bom acompanhamento e monitoramento da leitura. Para tanto, uma ferramenta indispensável é a avaliação periódica desta dessa habilidade, ponto que será discutido no item que segue.
5 AVALIAÇÃO DA COMPREENSÃO LEITORA
A afirmativa de que uma avaliação precisa e cuidadosa possibilita uma intervenção adequada parece não gerar controvérsia, a qual gira em torno de quais instrumentos de avaliação utilizar. Por envolver uma série de habilidades e exigir do leitor competências distintas, a tarefa de avaliar a CL também é bastante complexa. A literatura aponta a limitação do uso de um único instrumento para mensurar domínios complexos, como é o caso da leitura (BRAIBANT, 1997; CORSO; SPERB; SALLES, 2013a), que englobam tanto habilidades de domínio específico como de domínio geral. Nesse sentido, a adoção de instrumentos padronizados/normatizados (apresentam indicadores globais de desempenho com relação a uma população de referência) e de instrumentos informais, do tipo tarefas de pesquisa elaboradas pelo pesquisador (evidenciam o caráter processual da aprendizagem), de forma complementar, pode contribuir para um diagnóstico mais preciso. A associação de instrumentos viabiliza a abrangência da complexa interação de fatores que compõem a CL.
Testes padronizados de leitura são muito utilizados no exterior, mas no Brasil ainda há um número reduzido de instrumentos que englobam os diferentes níveis de escolaridade, o que acaba por representar um desafio para a pesquisa brasileira (CORSO; CORSO, 2017; SOUSA; HÜBNER, 2019).
Fica evidente na literatura que, quando se trata de avaliar a CL, diferentes resultados podem ser encontrados, considerando os instrumentos em questão. Os resultados das avaliações podem variar levando em conta a natureza da tarefa de leitura (preenchimento de lacunas, resposta aberta, múltipla escolha), as demandas do material (texto narrativo, expositivo), o nível de complexidade linguística e as demandas cognitivas envolvidas (memórias, inferências) (FLETCHER et al., 2009). Infere-se assim que, quando se contemplam as diferentes variáveis implicadas, leitores com perfis cognitivos bem distintos podem ser encontrados. Por consequência, a variabilidade de instrumentos usados nas pesquisas da área acaba por dificultar a generalização de dados (CORSO, 2018).
Entre os instrumentos de avaliação da CL, a tarefa Cloze é bastante utilizada. Esta consiste em retirar, aleatória ou sistematicamente, as palavras de um texto para que o leitor, à medida que lê e amparado pelas palavras existentes, possa repô-las segundo sua interpretação. É considerada uma medida de CL on-line, pois a compreensão é investigada durante a leitura. Nesse tipo de avaliação, o leitor é capaz de fazer inferências de previsão. De forma diferente, nas medidas off-line, a compreensão é avaliada após a leitura. Tarefas desse tipo avaliam o produto da compreensão, isto é, a representação mental construída pelo leitor, por exemplo, o reconto (recuperar informação do texto) ou a resposta a questões inferenciais (em que as informações não podem ser resgatadas diretamente a partir do texto, por exigirem algum tipo de inferência) (CORSO et al., 2013a).
A técnica Cloze tem como base o pressuposto interativo entre o leitor (padrões de linguagem e de conhecimento prévio) e o texto (pistas semânticas, gramaticais e de vocabulário). Consequentemente, o instrumento se mostra muito apropriado para a avaliação e o desenvolvimento da CL (GUIDETTI; MARTINELLI, 2007; SANTOS; SUEHIRO: OLIVEIRA, 2004; SILVA, 2013), além da adequação de sua utilização com textos de diferentes conteúdos. Bastante usada nas pesquisas da área, é uma medida considerada de fácil elaboração e correção, de baixo custo, além de apresentar alta correlação com o DA (OLIVEIRA; BORUCHOVITCH: SANTOS, 2008; SILVA, 2013). Considerando todos esses aspectos, a técnica Cloze foi o instrumento eleito para avaliar a CL neste estudo.
Há algum tempo pesquisadores têm investigado as relações entre competência em CL, avaliada com a técnica Cloze, e o desempenho em conteúdos curriculares de diferentes áreas. Oliveira, Santos e Primi (2003) verificaram que alunos universitários, do 1.º ano dos cursos de Letras, Psicologia e Matemática, obtiveram os escores de CL no teste Cloze correlacionados ao desempenho nas disciplinas cursadas. Também com alunos universitários, os resultados de Santos, Suehiro e Oliveira (2004) indicam que a CL e o DA, de alunos do curso de Psicologia, mostram-se associados.
Investigações nessa linha, com o EF, apontam que alunos com melhor CL têm desempenho escolar mais satisfatório. A pesquisa de Guidetti e Martinelli (2007) indica que, quanto maior a CL, melhor o desempenho em escrita de 148 alunos entre 8 e 12 anos de idade. Resultados que vão na mesma direção são apresentados por Oliveira, Boruchovitch e Santos (2008) ao evidenciarem que os escores de leitura no teste Cloze de 434 alunos do EF, de 5ª a 8ª séries de escolas públicas, mostram-se associados ao desempenho dos alunos nas disciplinas de Português e Matemática. Os dados de Silva (2013), com 26 alunos do 7.º ano do EF, indicam que aqueles que compreendem bem, avaliados pela Cloze, são os que alcançam um bom desempenho na disciplina de História.
5.1 Qual a Relação entre Compreensão Leitora e Desempenho no Enem?
O interesse em investigar tal questão é o foco dessa pesquisa, uma vez que o Enem é o sistema avaliativo que tem maior destaque e proporção no Brasil. O exame mensura o desempenho dos estudantes brasileiros ao término da escolaridade básica, de forma a aferir o desenvolvimento de competências essenciais ao exercício pleno da cidadania (BRASIL, 2002).
Como assinalam Viggiano e Mattos (2013), o Enem vem ganhando espaço nas pesquisas científicas nos últimos anos e, seguindo essa linha, este estudo elaborou uma tarefa de pesquisa a partir de questões de interpretação das Provas de Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias das provas do Enem, do período de 2012 a 2016, como uma medida de DA. São nove as competências originalmente propostas que caracterizam a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Entre estas, salientam-se três (compreender e usar os sistemas simbólicos das variadas linguagens como meios de organização cognitiva da realidade; confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas; e compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade) por destacarem habilidades específicas levadas em conta nos critérios adotados para a escolha das questões incluídas nessa tarefa de desempenho.
Diante do exposto, este estudo objetivou investigar as associações entre a CL (tarefa Cloze) e o DA (prova de Linguagens do Enem) em alunos concluintes do EM. Apesar de as investigações nesse campo estarem em evidência há algum tempo, raras são as que têm como público-alvo a última etapa da escolaridade básica e, portanto, o estudo busca contribuir para o conhecimento científico acerca da CL no EM. Do mesmo modo, merece destaque a validade ecológica dos instrumentos empregados nesta pesquisa. Considerando a discussão apresentada, tem-se como hipótese que a CL se correlacionará ao DA dos participantes deste estudo.
6 MÉTODO
6.1 Participantes
Participaram da pesquisa 80 alunos, entre 16 e 23 anos, do 3º ano regular do EM de uma escola pública estadual do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A amostra contemplou estudantes de quatro classes. Portanto, estar cursando o último ano do EM, na respectiva escola, foi o critério de inclusão para essa amostra, além da apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi solicitada a assinatura dos pais para os alunos menores de 18 anos e, para os demais, o TCLE era assinado pelos próprios estudantes. Não havia sujeitos com laudos ou registros de deficiência ou comprometimento cognitivo. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o número 2008016. A Tabela 1 traz os dados de caracterização da amostra.
6.2 Instrumentos
Tarefa de Desempenho Acadêmico - Enem: Adaptada de questões de interpretação das provas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, das provas do Enem, referentes aos anos de 2012 até 2016. É composta de dez questões: duas da prova de 2012, duas de 2013, duas de 2014, duas de 2015 e duas de 2016. Em busca de um consenso sobre quais questões seriam adequadas para a elaboração da tarefa, foram adotados os seguintes critérios: 1) questões não atreladas a figuras, charges, ou gráficos; 2) questões consideradas, majoritariamente, de interpretação de texto; 3) questões envolvendo textos nem muito longos nem muito curtos, como anúncios, placas e avisos; 4) questões extraídas das edições da prova cinza do Enem. A correção da tarefa considerou o número de acertos de um (mínimo) a dez (máximo). O número de erros também foi contabilizado para compor a amplitude do teste (INEP, 2017).
Tarefa de Compreensão Leitora - Técnica Cloze: O instrumento utilizado para avaliar a CL foi um texto, adaptado à técnica Cloze, intitulado “Ötzi, o homem do gelo” (MOOJEN et al., 2017, no prelo) e cedido para fins desta pesquisa. A tarefa foi criada dentro dos padrões tradicionais da Cloze (TAYLOR, 1953). O texto possui 451 palavras, e o primeiro e o último parágrafo foram mantidos intactos. A partir do 2.º parágrafo, omitiu-se uma palavra a cada 5º vocábulo, totalizando 63 espaçamentos. Para fins de correção, adotou-se a palavra original tal como se encontra no texto. Um ponto foi dado para cada lacuna preenchida corretamente.
Tarefa de Leitura de Palavras e Pseudopalavras (TLPP): A proposta foi usada com o intuito de controlar a variável reconhecimento de palavra (condição necessária, mas não suficiente para a compreensão). Composta por 72 estímulos: 48 palavras (24 regulares e 24 irregulares) e 24 pseudopalavras. A tarefa foi utilizada na pesquisa de Rodrigues et al. (2015) e compreendeu 35 crianças e 54 adultos, os quais foram divididos quanto ao nível de escolaridade: até 10 anos de estudo e 11 ou mais anos de estudo. Ao comparar os grupos, observou-se que os adultos com menor escolaridade obtiveram desempenho inferior aos adultos com maior escolaridade e às crianças. A tarefa foi apresentada como sugerida pelos autores, sendo permitida a autocorreção, de forma que, se o estudante lesse uma palavra de modo incorreto, o avaliador solicitava que a repetisse e, caso ocorresse falha novamente, considerava-se como erro. Um ponto foi dado para o número de respostas corretas, incluindo as autocorreções.
6.3 Procedimento
A aplicação dos instrumentos se deu nas dependências da escola, em horário preestabelecido entre pesquisadora, alunos e direção. As tarefas de CL e DA foram realizadas coletivamente, o que resultou em dois encontros com cada turma (total de oito encontros). A TLPP foi aplicada individualmente pela pesquisadora. A primeira tarefa administrada foi a do Enem. Os estudantes receberam duas folhas com dez questões de múltipla escolha, em formato de prova, com o tempo de uma hora de duração. A pesquisadora lia as orientações, alertando que apenas uma das cinco alternativas era a correta e que o uso de qualquer tipo de consulta não era permitido.
A segunda tarefa proposta foi a tarefa Cloze. Os estudantes tinham a orientação de ler o texto silenciosamente sem preencher as lacunas e, após uma leitura completa, passavam à releitura e, então, podiam completar os espaços em branco. O tempo estabelecido foi de uma hora, não sendo permitida a consulta de nenhum material. A TLPP foi o terceiro instrumento aplicado sem a estipulação de tempo para sua realização.
6.4 Análise de Dados
As análises descritiva e inferencial dos dados foram realizadas. A estatística não paramétrica foi utilizada para a análise dos dados, uma vez que estes não seguem uma distribuição normal. Foi rodado o teste de Spearman para averiguar as correlações entre as variáveis. O nível de significância adotado é de 5%.
6.5 Resultados
A Tabela 2 apresenta a estatística descritiva das variáveis investigadas.
INSTRUMENTOS | N | M | DP | AM | MI | MA |
---|---|---|---|---|---|---|
Enem (escore máximo = 10) | 80 | 3,9 | 2,2 | 10 | 0 | 10 |
Cloze (escore máximo = 63) | 80 | 35,84 | 7,38 | 32 | 15 | 47 |
TLPP - Palavras Regulares | 80 | 23,98 | 0,16 | 1 | 23 | 24 |
TLPP - Palavras Irregulares | 80 | 23,85 | 0,42 | 2 | 22 | 24 |
TLPP - Pseudopalavras | 80 | 19,39 | 2,88 | 18 | 6 | 24 |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2020).
Legenda: N - Número Total. M - Média. DP - Desvio Padrão. AM - Amplitude. MI - Mínimo. MA - Máximo. TLPP - Tarefa de leitura de palavras.
Ao se observarem os resultados globais nas tarefas, alguns aspectos chamam a atenção. A média obtida na tarefa do Enem foi de 3,90, o que pode ser considerada baixa para alunos prestes a concluir o EM. O rendimento evidenciado nesse teste varia em proporção considerável de um estudante para outro, visto que alguns gabaritam a prova, enquanto outros não são capazes de obter uma resposta correta (amplitude igual a 10). A mesma situação pode ser verificada na tarefa Cloze, em que se vê uma grande amplitude nos resultados, revelando-se, assim, a variabilidade de desempenho entre os estudantes. O desvio-padrão alcançado nessa tarefa é alto (7,38), ou seja, há uma elevada dispersão dos valores em torno da média, apontando a variação do desempenho em CL.
O estudo mostrou uma correlação significativa entre a tarefa do Enem e a tarefa Cloze (r = 0,4328; p-valor = 0,001). Quanto ao reconhecimento de palavras (TLPP), a Tabela 2 indica que a leitura de palavras regulares e irregulares não ofereceu problemas para os alunos. Destes, 97% leram com êxito todas as palavras regulares e 88% tiveram sucesso na decodificação de todas as palavras irregulares. Já para as pseudopalavras apenas 2 alunos gabaritaram essa subtarefa da TLPP (24 acertos), 5 alunos acertaram 23 questões e 36 alunos acertaram menos de 80% das pseudopalavras da prova. Sem dúvida, a leitura de pseudopalavras apresenta dificuldade maior do que a leitura de palavras regulares e irregulares. O desempenho mais baixo na leitura de pseudopalavras acabou rebaixando a média total da tarefa (67,21), o que representou 27% da amostra com desempenho abaixo da média (menos de 67 acertos), dos quais 15 alunos (18,75%) evidenciaram 1,0 desvio-padrão abaixo da média, o que não aponta risco de déficit (para tanto caracterizado por 1,5 desvio-padrão), mas representa alunos regulares, com média baixa. Resultados semelhantes estão presentes na literatura e revelam que as pseudopalavras proporcionam maior dificuldade em relação às demais palavras da TLPP (RODRIGUES et al., 2015; SOUSA; HÜBNER, 2019), uma vez que não há efeito de frequência ou familiaridade dessas palavras (são palavras inventadas). Apesar da consideração desse aspecto, pode-se também hipotetizar que tal resultado demonstre uma fragilidade na rota fonológica de alguns alunos da amostra.
6.6 Discussão
O estudo teve o propósito de investigar a relação entre CL e DA em alunos prestes a concluir o EM. De acordo com o esperado, foram verificadas associações positivas e significativas entre as duas variáveis, de modo que uma melhor CL associa-se a um melhor DA. Resultados que apontam relações semelhantes são evidenciados na literatura (GUIDETTI; MARTINELLI, 2007; OLIVEIRA; BORUCHOVITCH; SANTOS 2008; SANTOS; SUEHIRO; OLIVEIRA, 2004; SILVA, 2013). Importante lembrar, no entanto, que as escolhas metodológicas desses estudos podem diferir com relação a alguns aspectos: instrumento de medida, idade dos participantes, nível de escolaridade ou, ainda, as áreas acadêmicas avaliadas, o que acaba por dificultar algumas generalizações. Ainda assim, acredita-se que os resultados do presente estudo, somados aos demais, colaboram para reforçar que a CL é uma competência fundamental, que dá sustentação para a aprendizagem em diferentes áreas acadêmicas.
A amostra do estudo obteve uma média baixa de desempenho na tarefa do Enem (média que não alcançou 40% de acertos). Diante dessa realidade, tornam-se pertinentes vários questionamentos sobre ensino, formação de professores, currículo proposto para as escolas públicas brasileiras e as tarefas de avaliação utilizadas nesta etapa de escolaridade. Sabe-se que o EM brasileiro teve sua base curricular modificada, muito fortemente, pelas mudanças promovidas pelo Enem. Tal alteração focou aspectos como a interdisciplinaridade, as relações, a contextualização, a tecnologia, a valorização da linguagem e a construção do conhecimento (INEP, 2018). Entretanto, cabe questionar: como são promovidas as competências necessárias para que se alcance um bom desempenho no EM e como as bases teóricas e curriculares para esse nível de ensino são atendidas? Estas são, sem dúvida, questões que merecem reflexão cuidadosa e, apesar de não serem o ponto central deste estudo, colaboram para o entendimento dos resultados aqui evidenciados, que parecem indicar que as competências e a habilidades necessárias para um desempenho eficiente no Enem não estão sendo alcançadas por muitos estudantes do EM.
Verificou-se também a habilidade de decodificação dos participantes. Tal avaliação foi feita não para a classificação entre bons e maus leitores, mas para constatar o desempenho deles no reconhecimento de palavras, pois espera-se que nessa etapa da escolaridade tal competência esteja intacta, de forma que o leitor possa canalizar seus recursos cognitivos para compreender o que lê. De modo geral, os participantes do estudo, todos leitores proficientes das palavras regulares e irregulares, obtiveram mais de 85% de acertos na TLPP, desempenho também encontrado em outras pesquisas brasileiras, mas que avaliaram alunos do EF (SALLES; PARENTE, 2007). Observou-se, contudo, que a média alcançada nessa tarefa foi rebaixada pela leitura das pseudopalavras. Como já mencionado, as pseudopalavras, por não oferecerem uma representação de sua forma ortográfica no léxico mental do leitor, necessitam ser lidas por estratégias de conversão grafofonêmica, ou seja, por meio da rota fonológica. Esse resultado parece indicar a necessidade de atenção também com as habilidades de decodificação nessa etapa, pois, quando uma rota de leitura se mostra menos hábil, o leitor tende a compensar tal fragilidade com o apoio da rota mais preservada, o que pode representar uma decodificação não tão fluente e precisa, como a que caracterizaria um padrão elevado de decodificação leitora.
Com o intuito de dirigir esforços de pesquisa para alcançar objetivos práticos e aplicados, acredita-se que a discussão acerca das implicações educacionais inerentes às associações entre CL e DA é bastante pertinente. Uma primeira implicação diz respeito à necessidade de promover estratégias de ensino que possam aprimorar a competência leitora dos alunos em todos os níveis de escolaridade. O desenvolvimento das habilidades de CL não é automático e, como já destacado, não depende apenas das competências básicas de decodificação. Importante assinalar que, tendo como foco diferentes componentes da CL (vocabulário, estratégias leitoras) e utilizando uma abordagem de ensino explícito, pesquisas de intervenção nessa área têm indicado bons resultados. Para uma revisão no tema, ver Corso, Corso e Salles (2019). No entanto, preocupante é notar que investigações desse tipo são desenvolvidas desde a década de 1990 (BAKER; BROWN, 1994), porém ainda parecem distantes do contexto escolar.
Tratando-se de competência leitora, não se questiona a necessidade urgente de ampliar a capacidade de compreender dos alunos de EM para que possam lidar com os desafios e exigências do mundo atual e suas novas tecnologias. Uma grande quantidade de informação sendo produzida, e de forma muito rápida, exige do leitor habilidades que vão muito além de memorizar o conteúdo. Nos tempos atuais, saber buscar, selecionar, classificar e ordenar a informação relevante, e convertê-la em conhecimento, são habilidades básicas. Tais ações requerem, acima de tudo, leitores hábeis, autônomos, estratégicos, capazes de pensar criativa e criticamente, de levantar hipóteses, de fazer relações e descobertas.
Outro aspecto a considerar, também ligado ao anterior, é o peso que alunos com dificuldades na leitura carregam. Pelas suas experiências escolares anteriores, o aluno de EM já tem sua imagem como leitor construída, ou seja, alguém que é hábil ou que enfrenta dificuldades para compreender o que lê, o que acaba por influenciar sua maior ou menor motivação para dedicar-se a essa tarefa. Assim, o professor do EM tem o difícil papel de recuperar a confiança do aluno em si mesmo, mediante experiências bem-sucedidas e prazerosas com a leitura. Para alcançar esse papel, muitos desafios precisam ser vencidos, os quais envolvem: um planejamento didático cuidadoso, adaptações didático-pedagógicas, a flexibilização na forma de conduzir o ensino, a construção de situações didáticas sob medida, o acompanhamento e monitoramento do trabalho do aluno. O enfrentamento de tais desafios requer, naturalmente, uma formação profissional sólida, que capacite o docente em nível de conhecimento, reflexão e práticas. Os professores necessitam de uma atenção maior porque eles constituem, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da escola. Atenção que requer não apenas formação sólida, mas também “dispositivos de acompanhamento e reflexão” que pressupõem amparo, escuta, acolhida e estímulo (MÉNDEZ, 2003).
Acredita-se que uma estratégia potente para fazer frente a esse desafio é o entendimento de que a leitura precisa fazer parte de um projeto político-pedagógico de toda a escola. Se esta é uma competência essencial a qualquer área do conhecimento, nada mais natural do que entender que a leitura, em especial a compreensão, precisa ser cuidada e valorizada por todos os professores. Ainda mais ao considerar que um atraso nessa área oferece risco de provocar atrasos acadêmicos gerais que podem se tornar difíceis de reverter.
Uma segunda implicação educacional a ser exaltada diz respeito à avaliação da leitura, nos aspectos que salientam a necessidade de avanço nessa área, bem como a ênfase em uma abordagem que privilegie avaliações múltiplas. Com relação ao primeiro aspecto, ressalta-se a importância de investimento em pesquisa dedicada à construção ou adaptação de instrumentos de avaliação da CL para a população brasileira, com destaque para o EM, pela escassez de ferramentas avaliativas padronizadas que alcancem essa população. Quanto ao segundo ponto, insistiu-se nesse artigo acerca da complexidade da competência leitora, logo, é natural o entendimento de que não se pode avaliar uma competência tão complexa com o auxílio de apenas um instrumento, pois, como diz Braibant (1997), isso seria uma ilusão psicométrica. Um único recurso de avaliação é incapaz de revelar todos os aspectos envolvidos na CL, sem mencionar o fato de que tarefas distintas sugerem diferentes mecanismos cognitivos e linguísticos sendo avaliados (CORSO; SPERB; SALLES, 2013a). A abordagem de avaliações múltiplas sobre a leitura tem o potencial de reduzir as dificuldades encontradas com o uso de somente uma avaliação em um só momento (FLETCHER et al., 2009).
Ainda sobre a avaliação leitora, não se pode perder de vista que o objetivo de toda a avaliação é guiar o planejamento do ensino, ou seja, o modelo de avaliação utilizado é responsável por garantir a qualidade das decisões pedagógicas que o docente vai tomar. Hattie (2017) lembra que a principal razão para aplicar testes na sala de aula é para analisar quem o professor atingiu (a aprendizagem do aluno) por meio do ensino. Portanto, exalta-se a avaliação na perspectiva de verificar, ao mesmo tempo, a eficácia do ensino do professor e a aprendizagem do aluno, ou seja, usar o resultado da avaliação do aluno para auxiliar o planejamento de ensino do professor.
7 CONCLUSÃO
Este estudo buscou contribuir para a literatura que investiga o impacto da capacidade de compreender sobre o DA de alunos do EM e encontrou uma associação significativa entre essas variáveis. Espera-se que os resultados apresentados possam impulsionar novas pesquisas com o intuito de melhor compreender tais temáticas no EM. De fato, cabe destacar a urgência de mais investigação nesta que é a última etapa da escolaridade básica. Além disso, há muito a ser descoberto no que concerne à CL e a todos os aspectos neuropsicológicos, pedagógicos e cognitivos que entram em jogo na composição de um compreendedor hábil.
Discutiu-se neste artigo a impossibilidade de simplificar uma realidade, que é complexa, e buscou-se com essa reflexão alertar para a necessidade de desenvolver um olhar amplo sobre a CL, o que sugere uma abordagem de avaliações múltiplas, como antes referido, e também de intervenções multinível em leitura que possam promover habilidades, competências e eficiência leitora (CARVALHO; ÁVILA; KIDA, 2017). A amplitude de olhar sobre a CL auxilia no entendimento do comportamento leitor do aluno, que não pode ser separado da totalidade do indivíduo. Portanto, é preciso levar em consideração o sujeito em seu meio escolar, familiar, suas competências e fragilidades e conservar a ideia de que não se avalia a leitura, e sim uma pessoa que lê ou que aprende a ler. Por assim ser, acredita-se que um rumo promissor para as investigações é que estas possam se apoiar em um modelo em rede, como o de Connor (2016), citado neste estudo, uma vez que é preciso contextualizar os diferentes fatores subjacentes à CL que podem atuar no sentido de promover ou dificultar tal aprendizagem. O modelo em rede amplia o entendimento do fenômeno pesquisado, ao mesmo tempo que prioriza a busca de ações remediativas e preventivas nessa área.
Para finalizar, cabe lembrar algumas limitações que se fazem presentes neste estudo. A associação de outros instrumentos de medida, tanto de CL como de DA, enriqueceria a geração de dados do estudo. A inclusão de outros anos escolares ofereceria um cenário mais abrangente da associação entre compreensão e desempenho no EM. O estudo não avaliou inteligência (QI), memória de trabalho, velocidade de processamento, atenção, vocabulário, entre outras habilidades linguísticas e cognitivas que exercem influência sobre a CL e o DA em diversas áreas do currículo. Por fim, com relação aos instrumentos de medida utilizados, estes foram testes informais de pesquisa adaptados pelas pesquisadoras. Como apontado no trabalho, no Brasil, até onde se tem conhecimento, não há testes padronizados que avaliem a CL direcionados aos estudantes do EM. Destaca-se também a ausência de uma avaliação entre juízes na escolha das questões de compreensão textual, retiradas das quatro edições das provas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do Enem, que compuseram a tarefa de DA.