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Reflexão e Ação

On-line version ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.3 Santa Cruz do Sul Sept./Dec 2021  Epub May 17, 2024

https://doi.org/10.17058/rea.v29i3.15997 

Entrevista

Sobre as meninices de Paulo Freire mais do que nunca e as nossas: entrevista com Walter Omar Kohan

About Paulo Freire's childhood more than ever and ours: interview with Walter Kohan

Acerca de las infancias de Paulo Freire más que nunca y nuestra: entrevista con Walter Kohan

1 Universidade Federal Fluminense - UFF - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.

2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.


Paulo Freire teve sua trajetória atravessada por cinco princípios levantados por Walter Kohan: a vida, a igualdade, o amor, a errância e a infância. Arrisco afirmar, que nosso entrevistado também tem seguido esses mesmos passos. Kohan é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutor em filosofia pela Universidad Iberoamericana, autor de inúmeros artigos e livros que destacam sempre a filosofia e a infância. Walter nasceu na Argentina e desembarcou em terras brasileiras cinco dias após a morte de Freire. Para fazer uma biografia filosófica de Paulo Freire, nosso autor se “exilou” no Canadá. Quem pensa que o livro é uma biografia comum, está enganado, já que esta obra procura ir além, procurando ser sensível à essência dialógica do pensamento de nosso “andarilho da utopia”.

Isabela Lopes - Primeiro, gostaria de te agradecer por essa “entrevista-conversa-diálogo”, como tu mesmo se referes ao entrevistar pessoas próximas de Paulo Freire. Dizer da minha gratidão por conhecer mais de ti e conhecer mais de nosso “andarilho da utopia”, através de ti, a partir da leitura de Paulo Freire mais do que nunca, da Editora Vestígio e Paulo Freire más que nunca, a versão em castelhano do livro, disponibilizado gratuitamente pelo CLASCO - Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais, em http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20200306042539/Paulo-Freire-mas-que-nunca.pdf. Como foi essa escolha, de um nome tão potente e convidativo para o livro?

Walter Kohan - Começamos bem, porque não sei responder a primeira pergunta! É engraçado, porque recebi muitas perguntas sobre o livro, sobre o título inclusive, mas ninguém tinha me perguntado como foi a escolha. E a verdade é que não me lembro. Espero não estar fazendo injustiça com ninguém, mas não lembro embora não tenha passado tanto tempo cronológico. Minha memória é muito seletiva. Alguns detalhes lembro muito claramente e outras coisas simplesmente apago. Tento lembrar, mas não consigo. Escrevi o livro durante meu pós-doc em Vancouver, entre setembro de 2017 e agosto de 2018. Fui, basicamente, fazer isso naquela cidade canadense que tem algumas coisas do Rio: escrever um livro sobre Paulo Freire. Levei livros para isso na mala e me dispus emocionalmente para isso. Agora, sinto que necessitei sair do Brasil para escrever o livro que, por outro lado, também senti que devia escrever em português. E fui escrevendo, lendo, pensando, conversando com pessoas ao vivo e por escrito, assistindo vídeos, entrando nos arquivos do Instituto Paulo Freire, apresentando as escritas parciais à colegas, em eventos (pouco tempo depois que cheguei em Vancouver, fui convidado a uma Jornada sobre Paulo Freire na University of British Columbia e conheci pessoas significativas). Escrevi primeiro o que depois iria ser o apêndice, partes da apresentação e do epílogo, o capítulo sobre a igualdade, depois o capítulo sobre a infância, o capítulo sobre a vida, sobre o amor. Acho que o último foi sobre a errância... e depois, claro, o epílogo e a apresentação... e quando tinha o livro pronto, mandei para Rejane Dias da Autêntica e acho que me ocorreu o título pelo momento que estávamos vivendo... mas não consigo lembrar o momento em que surgiu o título... lembro sim que a Rejane inicialmente me disse se poderíamos tirar uma palavra e acrescentar outra. Ela propunha tirar “filosófica” e deixar como subtítulo apenas “uma vida” e acrescentar “hoje”, antes de “mais do que nunca”. Mas eu argumentei com ela que era melhor não colocar hoje, porque isso colocaria o título numa dimensão cronológica do tempo que justamente o livro tentava relativizar e que “filosófica” era importante manter, porque, de fato, não é uma biografia stricto sensu e sim uma aproximação filosófica à vida de Paulo Freire, o que está justificado em um capítulo do livro. Então, era importante manter filosófica, inclusive porque a palavra “filosófica” tem um sentido positivo aqui no Brasil. Neste momento, o livro está sendo publicado em inglês (https://www.bloomsbury.com/paulo-freire9781350195981/) pela Editora Bloomsbury e foi bastante conversado o título. Finalmente, depois de várias idas e voltas tiramos o equivalente a “mais do que nunca” que em inglês (“more than ever”) dizem que poderia gerar alguma perplexidade e deixamos simplesmente “Paulo Freire. A philosophical biography”. Alguns avaliadores externos sugeriam tirar “philosophical” ou substitui-lo por “intelectual”, mas finalmente ficou. Na consideração do título em inglês surgiram coisas interessantes. Uma tradução literal seria Paulo Freire more than ever. Interessante porque em inglês em vez de mais do que nunca seria mais do que sempre. E isso nos levaria a outra dimensão do tempo, um tempo literalmente impossível porque não existe em khrónos mais do que sempre, já que sempre é a totalidade do tempo. Mas parece que é uma expressão não muito comum em inglês e alguns dos seis (sim seis!) pareceristas que avaliaram o livro sugeriram mudar esse título. Acabamos deixando Paulo Freire: a philosophical biography, mais seco, mas também forte. O subtítulo virou título. Gostei. Essa edição do livro sairá este mês (abril 2021) pela editora Bloomsbury que a mesma que publica muitas obras de Paulo Freire em inglês, tem um prólogo de Antonia Darder (que espero possamos colocar em eventuais próximas edições do livro em português porque oferece uma perspectiva singular do livro) e uma entrevista com Jason Wozniak, um dos tradutores do livro. Jason é o diretor da LAPES (Latin American Philosophy of Education Society). O outro tradutor é Sam Rocha, professor da University of British Columbia, Canada.

Isabela Lopes - Li intensamente dois livros teus, nos quais, segundo Carlos Skliar, tu fizeste “um gesto de hospitalidade com figuras educativas cruciais para a América Latina”: Simón Rodríguez (em “O mestre inventor: relatos de um viajante educador”) e “Paulo Freire mais do que nunca”. Por que Simón? E por que Paulo Freire? Como foram essas escolhas? Ou você fora escolhido por eles?

Walter Kohan - Seguimos bem: é uma ótima pergunta. Difícil de responder. Até que ponto escolhemos ou somos escolhidos pelos autores que lemos e por tantas outras coisas... sobre o Simón Rodríguez tenho uma resposta mais direta. Esse livro tem um grande responsável: meu amigo Gregorio Valera-Villegas, professor da Universidade Experimental Simón Rodríguez e da Universidade Central da Venezuela. Ele organiza Colóquios Internacionais todos os anos. Sempre participo e, frequentemente tinha apresentações sobre o grande Simón. Um dia perguntei para Gregorio se tinha como conseguir as Obras completas de Simón para poder ler diretamente alguém que muito me interessava e ele fez uma espécie de chantagem-desafio que eu achei super divertido e instigante: “consigo um exemplar das Obras - que estão esgotadas - se te comprometes a escrever um livro sobre ele”. “Trato feito” respondi, quase sem pensar. E depois fiquei bastante tempo, pelo menos durante um ano, para poder cumprir a promissa. E senti-me muito feliz, porque a leitura do Simón é muito instigante. O Maximiliano Durán, colega da Universidad de Buenos Aires e que é um grande estudioso de Simón Rodríguez também me estimulou muito de várias maneiras a escrever O mestre inventor. E você não me perguntou sobre esse título, mas é uma óbvia inspiração em O mestre ignorante que, nessa época, líamos muito e era muito inspirador. Também a forma da inscrita teve essa inspiração. Era uma espécie de biografia filosófica embora não o disséssemos explicitamente no título do livro. Essa seria uma razão mais evidente, direta, imediata para trabalhar Simón Rodríguez. Mas há outras menos visíveis, imediatas, mais de fundo, como a busca por figuras inspiradoras em nossa tradição de pensamento; uma busca por figuras, em certo modo, opacadas, perseguidas, desnotadas. Paulo Freire é uma figura singular e ocupa um lugar paradoxal. Por um lado, é um mito, uma personagem extraordinária, habita o coração de cada cantinho de América Latina, seu nome é sinônimo de amorosidade, esperança, resistência; e por outro lado, temos esse ataque grosseiro, absurdo, literalmente idiota (a palavra “idiota” vem do grego idios que significa o particular, privado, em oposição ao koinós que é o comum, público) ao seu nome por parte do atual governo brasileiro. Faz bastante tempo que quero escrever sobre Paulo Freire. Cheguei ao Brasil, 5 dias depois de sua morte, como professor visitante da Universidade de Brasília (UnB) em 7 de maio de 1997. Não tenho sido um “freireano”. De fato, a Faculdade de Educação da UnB era muito freireana e cheguei a orientar um trabalho de mestrado de crítica ao humanismo freireano desde uma perspectiva nietzschiana. Não gosto das unanimidades. Mas também não gosto das idiotices autoritárias; sempre percebi o grande valor de Freire e, em 1999, convidei Moacir Gadotti para um Congresso Internacional de filosofia para crianças, para ele oferecer uma perspectiva freireana ao movimento. Desde então que queria escrever sobre Paulo Freire e devo reconhecer que os mais recentes ataques sobre Paulo Freire me fizeram sentir essa escrita como uma exigência. Não para defendê-lo, porque não sou eu quem vai defender Paulo Freire e também não me interessa entrar nessa lógica de ataque/defesa, mas sim para explorar a imensa riqueza filosófica do seu pensamento e de sua vida e mostrar outras formas de afirmar seu pensamento e sua vida. Como ele tantas vezes diz, só vale a pena se meter com ele para recriá-lo ou para reinventá-lo. E isso tentei fazer no livro. Não sei se fui bem sucedido, mas sinto que precisamos demais pensar neste momento e Paulo Freire é um excelente interlocutor para pensar o presente. De modo que, como você sugere, de certo modo eu escolhi, mas de outro, e talvez mais significativo, fui escolhido por eles e também foi um certo tempo que nos reuniu.

Isabela Lopes - Walter, você precisou analisar diversos livros, entrevistas e conferências de Paulo Freire antes de “Mais do que nunca”. Quais eram suas leituras e proximidades/afastamentos com Freire? Segundo Carlos Skliar você cavou “um buraco no já sabido para dar lugar ao ignorado”. O que você encontrou de novo quando leu e releu Paulo Freire para sua biografia filosófica?

Walter Kohan - Então, menina, suas perguntas são muito difíceis e interessantes!!! Ou talvez difíceis e por isso mesmo interessantes. Difícil e em certo modo incômoda (ou talvez incômoda e por isso difícil) porque preferiria que sejam outros os que apontem o que o livro tem de novo, se é que ele tem alguma coisa de novo. Eu tinha lido até viajar ao Canadá para meu pós-doc as obras mais “conhecidas” de Freire, a Educação como prática da liberdade, Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança e Pedagogia da Autonomia, e alguma outra, para dar alguns exemplos. Lembro-me agora que depois de chegar em Brasília como professor visitante aos poucos meses abriou-se um concurso para o cargo de professor de filosofia da educação e eu tive a sorte de encontrar num sebo, uma biblioteca com muitas obras de filosofia da educação e, dentre elas, várias de Paulo Freire, entre elas um exemplar da primeira edição brasileira da Pedagogia do Oprimido, de 1974. Tinha as estudado para esse concurso na Unb e depois quando fiz concurso para professor titular da UERJ em 2002. Lembro agora que, antes, quando fiz meu doutorado, passei um semestre como assistente do Matthew Lipman na Montclair State University e ali dei a disciplina Philosophical Orientation to Education. E essa disciplina tinha três textos de leitura obrigatória: Emile de Rousseau, Democracy and Education de John Dewey e Pedagogy of the Oppressed de Paulo Freire. Estou falando de 1995 (você era muito menina, risos). Ou seja tinha dado aulas sobre a Pedagogia do Oprimido nesse momento, já fazem 25 anos. Mas o pós-doc é uma coisa extraordinária e ainda mais numa cidade como Vancouver: você tem todo o tempo do mundo para ler, pensar, escrever. Então levei meus livros, em papel e em arquivos, muitos vídeos e passei horas e horas lendo, assistindo e escutando a Freire em várias línguas. Li também alguns dos leitores de Freire, brasileiros e do exterior - que são muitos, muitíssimos - e tentei encontrar um lugar para não me perder nessa infinidade de páginas e páginas que se escrevem a diário sobre Paulo Freire. Tentei lhe escutar atentamente e ser fiel a sua ideia de tratar de reinventá-lo e não de segui-lo. Então, encontrei logo a infância, que está sempre comigo e, como a infância não é muito comumente associada a Paulo Freire (não que não seja, mas relativamente a outras ideias, digo) pronto, a infância não podia faltar... e tentei perceber em que outras ideias Freire podia ajudar a pensar... claro que apareceram muitas outras palavras... aí, o difícil foi escolher com quais ficaria para escrever o livro. E como Freire é tão escrito e reescrito, tentei escrever sobre algumas que não são tão comumente associadas a ele ou pelo menos desde outra perspectiva...

Isabela Lopes - Bonita essa coisa de “escutar” Paulo Freire, pois foi assim que te senti ao ler Paulo Freire mais do que nunca. Mas vamos prosseguir! Quero falar dos 5 princípios (ou inícios, ou começos, ou gestos filosóficos, ou ainda, razões para ler Paulo Freire hoje): vida, igualdade, amor, errância e infância. Como foi essa escolha? Qual deles você mais gostou de “navegar”? E para quem te conhece de outras frentes, parece ter um pouco da prática do “abecedário de infâncias” por estas escolhas?

Walter Kohan - Aqui também poderias me perguntar se fui eu que escolhi os princípios ou eles que me escolheram, verdade? Pois também duvido... Talvez, o único que não poderia não estar é infância, mas os princípios são, em certo modo, arbitrários, eventuais. E, quem sabe, também infância poderia ser outro. Também não me lembro muito como eles foram surgindo, tentei sempre fugir às palavras mais esperáveis para pensar com Paulo Freire, tipo opressão, solidariedade, esperança, autonomia, liberdade, criticidade... mas considerei outras... deixa-me ver se me lembro de alguma: hospitalidade, por exemplo, amizade, sim, duvidei bastante entre amor e amizade, (risos)... Claro, se vemos o livro, parece ser que infância é onde me sinto mais à vontade, é a parte mais volumosa, são quase como três capítulos em um e poderia ter continuado escrevendo... e o que dizes do abecedário de infâncias que fizemos com o CINEAD da UFRJ, coordenado por Adriana Fresquet, é interessante... não tinha pensado nisso antes mas, sim, parece que há algo de uma criação conceitual com cada palavra e Paulo Freire é uma espécie de intercessor, interlocutor, um companheiro para pensar, para viajar no pensamento e na vida.

Isabela Lopes - Quem ainda não conhece o “abecedário” que inclusive utilizei na minha tese (LOPES, 2019), recomendo espreitar em https://www.youtube.com/watch?v=NRNNlcNYImU&ab_channel=CINEADLECAV. Mas me diga uma coisa: Parece ter semelhanças na vida, na igualdade, no amor, na errância e na infância entre ti, Simón e Paulo Freire? As andanças pelo mundo e o fazer escola parece ser o que liga vocês. Estou certa? E o que mais liga vocês?

Walter Kohan - Meninaaaa!!! Isso é mais do que uma pergunta, é um elogio imenso... tomara seja assim... Maximiliano Durán me disse algo semelhante quando leu o primeiro manuscrito do livro antes de sua publicação. É claro que num sentido, eu me sinto muito pequeno diante dessas duas figuras gigantes. Mas em outro sentido, eu tento não dissociar o que penso do que escrevo, do que vivo, de modo que minha escrita desses autores não tem como não se refletir no meu pensamento e na minha vida. Alguém poderia pensar que é um pouco injusto ou exagerado não pretender dissociar o leitor do autor lido, mas eu penso que quando escrevemos mais atentos à experiência do que à verdade, para dizê-lo com Foucault, é algo não apenas inevitável quanto necessário. Por exemplo, eu não escreveria sobre um autor ou autora sobre quem não me sentiria inspirado ou não escolheria um princípio que não estivesse disposto a aceitar com um princípio para meu próprio pensamento e minha vida. Você sabe que minha formação de base é na filosofia e essa é uma discussão interessante que em parte atento no capítulo sobre a vida. Porque na filosofia tem gente que passa a vida estudando a obra de um autor sem se preocupar em nada com a vida dele. E na imagem dominante da filosofia que circula em nossas universidades, para se formar você precisa saber muitas coisas sobre os pensamentos dos filósofos (de modo também geral, brancos, europeus, homens) mas quase nada sobre a vida deles. As vezes é até mehor não misturar a vida com a teoria se você quer se dar academicamente. Considero problemática essa perspectiva da filosofia.

Isabela Lopes - Você percebe em suas pesquisas que as edições da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire em castelhano têm mais citações que a edição em português. E afirma falando sobre Freire que ninguém é profeta em sua terra. Você em seguida diz que essa é uma das questões que o livro busca pensar. Pensando em ti, foi esta questão que trouxe um filósofo argentino para o Brasil?

Walter Kohan - Você consegue fazer todas as perguntas difíceis! E eu tento ir para Freire ou Simón Rodríguez ou para a filosofia e você volta sempre sobre mim. Tento fugir de mim e você me traz de novo na pergunta seguinte... Freire é um caso interessante... por um lado, é verdade, a Pedagogia do Oprimido foi publicada primeiro em castelhano numa editora uruguaia e depois em inglês nos Estados Unidos e só mais tarde em português. Isso explica-se historicamente pela censura que a ditadura impus sobre Paulo Freire. Mas a errância da vida de Freire que o levou a andarilhar pelo mundo inteiro e em particular pela América Latina fez com que ele seja muito popular em muitas regiões do mundo, em algumas mais do que o Brasil. Na cerimônia em que ele recebe o doutorado honoris causa na UNICAMP em abril de 1988, Freire refere-se a isso com certa ironia: na época tinha recebido onze doutorados honoris causa no exterior e três no Brasil. Diz inclusive “sou muito mais conhecido fora do Brasil que dentro do Brasil”. E com muita alegria menina, sorrindo, acrescenta: “Mas sou muito conhecido no Brasil e sou muito querido. E eu gosto de ser querido. Eu preciso de ser amado e sou amado.” “Resgate - Paulo Freire recebe título Honoris Causa na Unicamp”. Vídeo no canal youtube da TV Unicamp: https://www.youtube.com/watch?v=lhGtsDPKKNo. No Brasil atual a situação é ambígua porque se é verdade que ele é odiado e reprochado como um dos responsáveis de todos os males da educação brasileira, ele é e continua sendo amado e venerado por centenas de milhares de educadores que sentem nele uma figura quase mitológica. Mas para não fugir de tua pergunta, eu ainda gostaria de saber porque vim ao Brasil... já fazem 23 anos. Ia ser por um ano... era 1997, eu tinha acabado meu doutorado, estava um pouco cansado da vida numa urbe como Buenos Aires e na UnB precisavam de um professor de filosofia da educação ao mesmo tempo. Havia oportunidade de um projeto de filosofia com crianças e formação de professores de escolas públicas no Distrito Federal. Brasília não parecia muito atraente como modo de vida, mas o projeto era muito desafiador, além de que era um contrato de professor visitante de um ano só, e pensei que valia a pena a experiência, e já fiquei por aqui. Brasília acabou sendo muito acolhedora; fiz concurso na Unb nesse mesmo ano e em 2002 fiz concurso na UERJ. Também não me perguntes porque saí de Brasília para o Rio.

Isabela Lopes - Como carioca e para sempre “uerjiana”, já que na UERJ fiz meu doutorado, fui sua aluna, só acho que fizeste uma excelente escolha, ao vir para o Rio, para a UERJ. (Risos) Os livros de Paulo Freire são traduzidos em mais de vinte línguas. Tua escrita biográfica filosófica já está se encaminhando para a terceira língua (português, castelhano e, em breve, inglês). Você diz que cada nova tradução é uma “viagem de aprendizagens”, já que foi uma nova oportunidade de pensar outra vez e de viajar entre 2 mundos. Sobre isso tenho duas questões: Se nessas novas viagens no livro, tens o desejo de mudar ou reescrever algo novo? E como foi a emoção de reescrever o livro em “tua língua materna”?

Walter Kohan - Essa pergunta, como todas as outras, é muito boa. Sim, nessas semanas vai ser publicado o livro em inglês. Foi uma experiência fascinante trabalhar na edição. Porque os editores queriam que as citações de Paulo Freire fossem das edições já publicadas e então isso me permitiu descobrir o mundo das edições de Paulo Freire em inglês que é muito curioso. Por exemplo, na edição em inglês da Pedagogia do Oprimido falta o último parágrafo da edição em português, que termina um parágrafo antes. E o último parágrafo aparece, levemente alterado, no prefácio do livro. Ainda não entendo a razão dessa mudança. Gosto tanto desse final do livro e de que esteja assim no final... é um final muito significativo para mim e que trabalho no capítulo sobre o amor. Bem, na edição em inglês esses parágrafos finais não aparecem como parte do livro, ou seja, se eu tivesse lido Paulo Freire em inglês sem ler o prefácio, nunca teria pensado as coisas que pensei com ele sobre o amor. Aconteceram coisas muito divertidas nesta revisão que me permitiram aprender muitas coisas. Por exemplo, trabalho bastante com uma ideia de Paulo Freire em Relatos a sombra de uma mangueira onde ele me inspira a pensar a infância como uma força re-inventora de mundo. E eu estava procurando na edição em inglês desse livro (que, entre parênteses, tem o título de Pedagogy of the Heart, ou seja, Pedagogia do Coração, deixo os comentários para você e para os leitores, os “anglofalantes” fazem pedagogias de tudo!) e não encontrava, estava com um PDF do livro e buscava as palavras em inglês e nada... até que descubro que na edição em inglês traduzem mundo por futuro e então aparece como “reinventora do futuro”. Imagina! Eu que faço toda essa abordagem para descronologizar a Paulo Freire, fiquei arrepiado quando li isso. Então, trabalhar com as traduções é fascinante, aprende-se muito. Claro que trabalhar na tradução de meu livro para o castelhano, minha língua materna, foi muito especial, por várias razões. Senti isso no lançamento do livro em Buenos Aires e em La Plata, na CTERA (Central dos Trabalhadores da Educação da República Argentina) e na Universidad Nacional de La Plata. Na CTERA com Miguel Duhalde, Carlos Skliar e Patricia Redondo, em uma das Jornadas Paulo Freire, em setembro de 2019 para comemorar o 98º natalício de Paulo Freire com representantes do sindicato de professores de toda Argentina. Foi muito especial: o livro ainda só estava em português e eu estava no lugar onde nasci, educadores e educadoras militantes do país inteiro lendo um livro sobre Paulo Freire e também lendo Paulo Freire numa língua que não é a deles nem a minha, mas com a qual já me encontro irremediavelmente comprometido. Na Universidad de La Plata apresentaram o livro Gabriela Dicker e Federico Brugaletta. Gabriela hoje é secretária de avaliação e informação educativa do Ministério de Educação argentino. Naquele momento, era reitora da Universidad Nacional de General Sarmiento. Fez um elogio muito bonito do livro, como um convite ao que significa ler. E Federico, que é professor na Universidad de La Plata foi o tradutor do livro. É um estudioso e um apaixonado de Freire. Fez seu doutorado sobre a recepção da Pedagogia do Oprimido. Aprendi muitas coisas com ele enquanto revisávamos a tradução. Traduzir é uma tarefa fascinante. E a tradução te abre o mundo de uma nova língua. No caso de nosso livro, Federico fez também o trabalho de colocar todas as citações de Freire segundo as edições dos livros dele publicadas em castelhano e descobrimos juntos que há livros de Freire em português que não existem como tais em castelhano e também o contrário. É algo do mais habitual. Com perdão da comparação, vejo isso passando com meus livros. Por exemplo, tem livros meus em português, como Infância, estrangeiridade e ignorância que é bastante diferente de seu equivalente castelhano (Infância, política e pensamento) ou italiano (Infanzia e filosofia) e por aí vai... tem a ver com o que te dizia antes: escrever se inspira em experienciar, então cada escrita é uma nova experiência e a escrita vai te levando por outros caminhos. Por isso, para mim é impossível se traduzir a si próprio: sempre sai um outro livro, porque traduzir não é colocar o mesmo livro em outra língua senão viajar novamente no pensamento e na escrita em uma outra língua. A edição em castelhano, além de estar disponível para acesso livre na Librería de Autores Latinoamericanos y Caribeños da CLACSO, tem algo que o original português não tem: um prólogo precioso de Carlos Skliar e uma apresentação que escrevemos para essa edição em castelhano com Federico Brugaletta. Um detalhe: No primeiro semestre de 2020 foi o livro mais lido dessa Biblioteca da CLACSO, com mais de 16.500 descargas, o que certamente mostra o interesse que gera Paulo Freire em toda a América que fala castelhano. Agora estou trabalhando com Silvia Bevilacqua na tradução do livro para o italiano que será pubicada pela editora Mimesis. Na verdade, é ela que está trabalhando, mas conversamos muito sobre dúvidas que lhe surgem e é uma aventura fascinante. Se eu pudesse trabalhar em outra coisa, acho que seria tradutor (risos).

Isabela Lopes - Uau! Parabéns! Sigamos... Você aborda no início do livro, o cenário sombrio em que o contexto político, educacional e ideológico se encontra. É impressionante notar como mesmo mais de 2 décadas depois de sua morte, Paulo Freire assusta. Demonstra o quanto seus escritos são de vanguarda para o momento atual que enfrentamos. Por que Paulo Freire ainda desperta tanto medo e usando suas próprias palavras, ainda é um ferro quente no atual momento do Brasil? A ideologia de Paulo Freire é uma ideologia do amor e também da pergunta. Não seriam isso os pontos que assustam um governo e uma política autoritária, como a que vivenciamos no Brasil?

Walter Kohan - Penso que sim. Nesses pontos que tu tocas, talvez seja mais evidente que em quaisquer outros a oposição radical entre Paulo Freire e seus inimigos: no amor e na pergunta, que é como dizer no amor e na infância. Os governos autoritários detestam a infância no sentido da curiosidade, a inquietação, as perguntas, o porquê, tudo isso perturba, atrapalha, incomoda, faz perder tempo. E pode provocar movimentos indesejados. Eu acrescentaria também a vida, porque Paulo Freire é alguém que sempre está do lado da vida, e sobretudo de uma vida digna, justa, bonita e os governos autoritários, como o que temos hoje no Brasil, estão do lado da morte, a naturalizam, a banalizam, a promovem através do que alguns teóricos, como Achile Mbembe (2018) chamam de uma necropolítica, ou seja, uma política da morte, que cuida da morte, que estimula e vive da morte e, ao mesmo tempo, despreza a vida, sobretudo, a vida dos e das mais pobres, dos excluídos e excluídas, que aqui no Brasil em sua maioria são negras e negros, dos oprimidos e oprimidas, para dizê-lo com Paulo Freire. E a morte entre nós tem cor, claro, porque é sobretudo morte das pessoas afrodescendentes que padecem a herança colonialista e escravista como ninguém. Então, claro, alguém como Paulo Freire que cuida de tudo o contrário e está ao lado dos que se trata de exterminar, gera uma combinação de ódio e medo porque ajuda a empoderar, acordar, mobilizar, chamar a atenção, insubordinar. Nada mais contrário a um governo autoritário que uma pedagogia menina da pergunta como a que afirmava Paulo Freire. Vou te dar um exemplo mais concreto. Se assistes aquele vídeo da TV UNICAMP sobre a cerimônia de entrega do doutorado honoris causa a Paulo Freire, vídeo aliás bem curioso e interessante, falam, além do Paulo Freire, Rubem Alves e Paulo Renato que era então Reitor da UNICAMP e depois foi ministro de educação de Fernando Henrique, verás que nos comentários desse video, hoje 31 de agosto de 2020 aparecem dois comentários que sintetizam os dois sentimentos que gera Paulo Freire. Um diz: “O maior pensador que tivemos. Parabéns Unicamp e ao professor (Post mortem).”. O outro afirma: “Um comunista que ajudou a destruir a educação do Brasil.”. O primeiro pode ser exagerado mas o segundo mostra uma atitude comum: o uso da palavra comunista como um insulto e o despropósito injustificado e inaceitável de responsabilizar a Paulo Freire pelo estado da educação no Brasil. Sobre a palavra comunista, que é tão bonita, enquanto palavra, porque justamente diz respeito à coisa comum temos nos explanado bastante com M. Durán em Manifesto por uma escola filosófica popular (Rio de Janeiro: NEFI, 2018; aproveito para dizer que esse livro como todos os que produzimos no Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da UERJ está disponível para descarga gratuita em filoeduc.org/editora). Chama a atenção que “comunista” seja usada como um insulto, como alguns também utilizam a palavra “infantil” para tirar importância ou valor de algo. É preciso muita má fé e desconhecimento para responsabilizar a Paulo Freire pelos problemas da educação brasileira. Se assim estamos tendo ele passado por aqui, te imaginas onde estaríamos sem ele?

Isabela Lopes - Você diz que chegou a cogitar, escrever conversas de ficção educativa com Paulo Freire, diálogos inventados. O que você gostaria de perguntar ou falar para Paulo Freire após “Mais do que nunca”? E o que você acha que ele te responderia?

Walter Kohan - Então, eu até tinha imaginado como seriam essas conversas. Quem sabe um dia as escrevo. As organizaria por temas, perguntas ou questões. E selecionaria alguns trechinhos dos livros, entrevista, palestras e depoimentos conservados de Paulo Freire e eu os conectaria através de perguntas. Acho que ainda vou trabalhar nesse livro sim, porque é uma maneira de revisitar, reapresentar e reviver o pensamento de Paulo Freire. Poderia colocar ou não as referências... talvez seja mais interessante não colocar assim, os e as leitoras têm que buscar... e algumas coisinhas vão surpreender mais de um... imagino alguém dizendo ou perguntando: “Paulo Freire disse isso? Onde?” O trabalho, que é desafiador e interessante tem basicamente três partes: escolher os “temas geradores”, palavras, selecionar textos potentes de Paulo Freire e inventar as perguntas que dialoguem com esses textos... parece fascinante, não parece? Preciso pensar se incluo ou não as palavras de Paulo Freire mais do que nunca. Por um lado, parece lógico e até que facilitaria a busca. Mas por outro, parece mais desafiador trazer novas palavras. Ou então, deixar alguma como a infância! Estou me empolgando, acho que começo esse livro semana que vem, (risos)! Obrigado por me lembrar da ideia.

Isabela Lopes - Olha, temos um novo começo de uma nova história entre ti e Paulo Freire? Amei! Mas voltando ao “Mais do que nunca”, Mauricio Langón registra muito bem que achou “particularmente suculento que você coloque seus dentes no Paulo Freire”. Por que teu estudo atribui ao “andarilho da utopia” um olhar outro para Paulo Freire. De onde veio esse desejo de mergulhar filosoficamente em Paulo Freire?

Walter Kohan - Bem, essa pergunta pela origem de um desejo é tão maravilhosa quanto irrespondível. E mais ainda de um desejo de mergulho filosófico. Quem sabe... deve ter tanta coisa aí no meio... uma psicanalista faria uma festa, uma socióloga, outra festa, uma filósofa outra... e assim... mas gostaria de pensar que tem algo para além do pessoal e que diz respeito a uma potência filosófica, pedagógica e política em Paulo Freire que excede e muito o lugar em que tem sido colocado. Porque quando se trata de pensar a educação, há que se ter uma visão muito curta para deixar de lado a quem é considerado quase unanimemente, no mundo inteiro, o maior educador latino-americano de todos os tempos. E o Brasil que teve a “fortuna” de vê-lo nascer diz que quer expurgar a sua ideologia da educação brasileira. É muito absurdo para ser real... Então, pensei que com o livro poderia contribuir a que se perceba que as contribuições de Paulo Freire para pensar a educação vão muito além de ser a favor ou contra um partido político e inclusive ter uma ideologia política específica. Tão pouco tem a ver com um partido ou uma ideologia política que os nomes para pensar a politicidade da educação são vida, igualdade, amor, errância e infância. Nada menos que infância numa coisa tão séria quanto a política, mas que usualmente é colocada fora desse mundo. Então, o que tentei fazer é alargar, desde uma perspectiva filosófica, o que entendemos pela politicidade da educação. Espero pelo menos ter estimulado a pensar de outras maneiras a relação entre infância, educação e política.

Isabela Lopes - Sei que muito de Paulo Freire mais do que nunca foi escrito em suas andanças pelo mundo, principalmente em Vancouver. Foi um exílio que escolheste? Isso te aproximava ainda mais de um Paulo Freire que também escreveu muitas de suas obras em exílios e/ou em viagens?

Walter Kohan - Sim, num sentido. Eu senti necessidade de sair do Brasil para escrever sobre Paulo Freire. Tinha intentado antes aqui e não tinha conseguido. E queria escrever em português. Porque era Paulo Freire, porque ele não tinha podido publicar algumas obras em português pela censura durante a ditadura e também como um modesto gesto de gratidão a este país que me deu tanto, dentro esse tanto, três filhas maravilhosas... Então, muitos dias ficava horas e horas lendo, escutando e assistindo palestras e entrevistas de Paulo Freire na aprazível e belíssima Vancouver, naquela biblioteca da mesma British Columbia University em que Paulo Freire tinha estado quase 50 anos atrás. Então, foi um “exílio” um pouco especial, nada forçado, ao contrário, um contexto privilegiado e extraordinário, estava só com minha filha Giulietta e muito tempo para dedicar à leitura e à escrita. Agradeço meus colegas do Departamento de Estudos da Infância da UERJ e ao CNPq que me deram o apoio para isso. Claro que também não fiquei tão quieto em Vancouver e já aprendi a me concentrar em aviões, aeroportos, e outros lugares semelhantes... de Vancouver fiz várias viagens e sempre lia e escrevia alguma coisa. Eu aprendi a fazer das viagens um modo de vida e elas não me interrompem o que estou fazendo. Ao contrário, propiciam novos estímulos. Ou seja, num sentido, um exílio escolhido e privilegiado, nada a ver com o verdadeiro exílio que alguém como Paulo Freire teve que passar pela ditadura. Mas, em outro, quem sabe...

Isabela Lopes - No princípio da errância, você nos alerta que o “andarilho da utopia” falava de sujar as mãos diante das barbáries do mundo, mas sem jamais perder a ternura. Escrever esse livro foi um ato como este? Sujar as mãos sem perder a ternura?

Walter Kohan - Você é uma menina danada! E, como boa menina danada, adora sujar as mãos. Eu confesso que também! Pelo menos foi o caso desse livro com Paulo Freire. Não sei em que você está pensando com “sujar” as mãos, talvez ter que dedicar energia e escrita à pessoas que não merecem o esforço, que pretendem sujar (num sentido bem menos interessante que nós estamos usando) um nome sem o mínimo respeito e cuidado que esse nome merece. Sim, nesse sentido, tenho tentado seguir o argentino mais famoso e mais estampado de todos. Aliás, outro menino danado!

Isabela Lopes - Diego Maradona?

Walter Kohan - Essa foi ótimo, menina! Estava pensando no Che Guevara a quem Paulo Freire cita várias vezes. Parece que Paulo Freire gostava de jogar futebol nas ruas de Jaboatão então certamente deveria gostar muito do grande Diego. Mas em que pese a imagem que a grande mídia tem construído aqui de Maradona eu sinto que caberia também ter dito Diego aqui, pois acho que, pelo menos nesse sentido (e não só!) ele tem sido bastante fiel ao ditado do Che: sem perder a ternura jamais .

Isabela Lopes - Entre os subtópicos dos 5 princípios onde tu navegastes por águas diferentes, naquele relativo à infância, é a única em que, você faz uma pergunta: “Paulo Freire e a infância?” Por quê?

Walter Kohan - Além de danada, você é uma menina muito esperta! E percebe coisas que quase ninguém percebe. Que eu saiba, ninguém tinha reparado nisso antes, nem eu! Mas é uma alegria que assim seja porque é uma força do livro: pois a infância é pergunta ou a pergunta é infância então se algum capítulo tinha que conter essa pergunta era o da infância. Também porque talvez seja o capítulo mais perguntador, mais questionador e que apresenta a meninice profunda de Paulo Freire, a sua pedagogia menina da pergunta. Então que bom que esse capítulo começa por uma pergunta, porque significa que começa meninamente, infantilmente. E o mais interessante é que foi sem querer, porque só agora percebo, com a sua pergunta.

Isabela Lopes - Reparei isso, pois o princípio da infância foi meu favorito, devo confessar. Tem ali um Paulo Freire desconhecido por mim, um Paulo Freire com a potência própria da infância. O modo como ele se refere à infância se aproxima de Manoel de Barros: “gargalhando zombeteiramente”, “peraltices das almas”, “passarinhos manhecedores” e “saudade mansa” e também num valor por coisas desimportantes, como observar a neve caindo. Eis o princípio mais filosófico dessa biografia?

Walter Kohan - Eu diria que é o princípio mais filosófico para aqueles e aquelas que consideramos a filosofia uma força infantil. E é também um princípio político, como podemos perceber quando afirmas o seu “valor por coisas desimportantes”. É também um princípio político pelo valor de afirmar e cuidar do pequeno, desimportante, frágil, precário, efémero, insignificante, menor. E é também um princípio educacional porque ele inspira não apenas uma educação da infância, mas uma infância da educação, um novo início para ensinar e aprender juntos. De modo que também é o princípio que eu mais gusto (risos). E sim, aproxima Paulo Freire de outros poetas e loucos que, como as crianças, dizem o que pensam de forma prístina e sem pré-conceitos. Recentemente, escrevemos com Rosana Fernandes um artigo para um dossiê organizado por Fabiana de Amorim Marcello na revista Educação e Pesquisa e colocamos a dialogar três figuras infantis: um educador (Paulo Freire), um filósofo (Gilles Deleuze) e um poeta (Gustavo Rojas) . Gustavo Rojas é um poeta chileno contemporâneo, muito infantil, que honra o tempo da infância em todas as idades, um tempo presente que é, também, o tempo da educação e da escrita poética. Por isso tua aproximação é muito feliz. Rojas inclusive inventou um conceito precioso em relação ao tempo da infância: “reniñez”: um tempo que não passa, durativo, atento e sensível à palavra do mundo.

Isabela Lopes - Você “termina” o livro, que segundo Carlos Skliar é “una oportunidade entre lo inacabado y lo inacabable” deixando que o próprio Paulo Freire “fale”. Gostaria de pedir para você fazer o mesmo aqui: trazer Paulo Freire para encerrar essa conversa e inaugurar outros começos entre quem vai ler esta entrevista.

Walter Kohan - Antes de terminar, quero te agradecer e te dizer que gostei muito dessa entrevista, menina. Adorei as tuas perguntas infantis, impróprias, inesperadas, pequenas. E lhe agradeço também que me permita terminar com Paulo Freire que é uma forma de terminar infantilmente, com esperança, alegria e um sorriso. E também, com uma pergunta ou melhor com um canto a uma pedagogia da pergunta. Tomei teu convite literalmente e o que transcrevo é uma fala de Paulo Freire numa outra entrevista na UNICAMP. O vídeo está disponível no Canal de YOUTUBE da TV Unicamp e começa dizendo “Video sem tratamento”. Nos comentários, afirma-se que a entrevista é de 1985, envolvendo o Instituto de Artes e a Faculdade de Educação da Unicamp, enquanto Paulo Freire era professor da Faculdade de Educação da UNICAMP. Eis o trechinho, que está no minuto 47 do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=5yRyAXPXHmA&feature=youtu.be (acesso em 29 de agosto de 2020):

“Para mim, uma das coisas terríveis da educação que nós estamos vivendo no Brasil - para falar só do Brasil, mas não é só aqui - é que ela vem sendo, sobretudo, uma educação da resposta e não uma educação da pergunta... da pergunta fundamental [...] a impressão que eu tenho é que, de modo geral, nós estamos entrando nas salas com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo e a gente nem sabe quais foram elas e a gente chega e dá a resposta ao educando e ele diz “Poxa, nem perguntei!”...

E como sou um menino danado, enquanto terminávamos esta entrevista, recebi este vídeo e senti desejo de presenteá-lo aos leitores. Não é de Paulo Freire mas me faz muito pensar nele: https://www.youtube.com/watch?v=EHaRdR98gt0.

Podemos terminar assim, com música coletiva, menina?

Referências

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. [ Links ]

Recebido: 24 de Novembro de 2021; Aceito: 23 de Julho de 2022

Isabela Pereira Lopes Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2019). Realizou doutorado sanduíche na Universidade do Minho (Portugal) sob orientação do Professor Manuel Sarmento, no Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), pelo período de um ano, possibilitada pelo Programa de Doutorado-sanduíche no Exterior (PDSE), através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014). Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (2006) e Especialização em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012). Foi Técnica em assuntos educacionais da Escola de Educação Infantil da UFRJ entre os anos de 2010 a 2019. Faz parte do grupo de pesquisa Infância e Saber Docente (UERJ). Foi Professora II na SEMED Nova Iguaçu, entre os anos de 2009 a 2020. Atualmente é Professora do Ensino Básico Técnico e Tecnológico, atuando na Educação Infantil do Coluni/Universidade Federal Fluminense (antiga Creche UFF). Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação infantil, infância, políticas públicas e formação docente.

Walter Omar Kohan Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

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