A importância da utilização de categorias geográficas para a interdisciplinaridade da Educação do Campo
Compreender a realidade local é condição sine qua non para os acadêmicos do curso de Educação do Campo. Embora sua habilitação seja em Matemática e Ciências da Natureza, observar, analisar e diagnosticar o seu território a partir de uma perspectiva de vivência quotidiana exige do sujeito do campo (o aluno enquanto educador torna-se um deles) conhecimentos de outras áreas do saber. Nestes termos, a Geografia tem muito contribuído para o aprofundamento de suas expertises, pois o ajuda na compreensão da realidade local e global. Destaca-se aqui a interdisciplinaridade, entendida no ensino como a estratégia unificadora não apenas da ciência ou de temáticas comuns dentro das disciplinas mas também da definição de um problema (complexo ou não), que deve ser entendido, analisado e experienciado por mais de um dos campos do saber. Também engloba as competências e habilidades que transcendem ou perpassam diversas disciplinas, como por exemplo, o senso espacial, a lógica, a racionalidade e a compreensão dos processos de análise e síntese. Esta compreensão do interdisciplinar se aproxima da tratada por Fourez (1994) e pode também ser percebida nas linhas dos Parâmetros Curriculares Nacionais das Ciências da Natureza (BRASIL, 1998, 2002a, 2002b).
A interdisciplinaridade, de papel importante para a ciência geográfica, serve como eixo norteador durante praticamente todas as fases do curso, mas, essencialmente no primeiro ano de estudo, no qual a análise e o diagnóstico do território (município), é tarefa principal do primeiro ‘produto’ avaliativo. Este ‘produto’ inicia-se com pesquisas realizadas a partir dos planos de estudos1 construídos a cada Tempo Universidade2 e voltadas ao conhecimento das condições socioeconômicas, político-culturais e ambientais do município de origem de cada estudante.
A partir das ciências humanas, a Geografia em especial, por seus objetos de estudos e fenômenos de análise, esta primeira etapa de pesquisa visa desenvolver no educando sensibilidade e competência para análises de um território (em geral, um município), entendido como um espaço geográfico cujas principais características são a ação antrópica, as relações sociais nele existentes, assim como as determinações que ambas geram; além de preparar paulatinamente um ‘levantamento’, voltado à ação em Educação do Campo, do território/município em questão.
Dentro dessa perspectiva, as possibilidades de utilização de categorias geográficas (território e paisagem) para o curso de Licenciatura em Ciências da Natureza e Matemática da Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) torna-se de suma importância, sendo o objetivo do presente trabalho apresentar as possibilidades de ensino e de utilização destas categorias geográficas.
Tomaremos de início breve descrição sobre a Educação do Campo, com o intuito de oferecer elementos para o conhecimento desta prática educativa e suas especificidades, aliada também às normativas federais; em seguida, trataremos das categorias geográficas envolvidas, partindo de regiões e territórios até chegar a paisagens e lugares. No transcurso, apresentaremos alguns dos elementos referentes ao curso de Educação do Campo da UFSC, as práticas desenvolvidas e, por fim, as perspectivas de ações para o ensino.
Breve comentário sobre a concepção de Educação do Campo
Para compreendermos o Campo como um território, temos que olhar a Educação, pensá-la em termos de elementos que contribuam para o seu desenvolvimento. Assim, a Geografia pode contribuir com este propósito trazendo reflexões teóricas e práticas acerca do debate em torno da temática Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial. Nessa lógica, abordamos a Educação do Campo como uma concepção de educação elaborada pelos trabalhadores e sujeitos ligados ao campo, formulada como resultado das lutas desses sujeitos, organizados em movimentos sociais populares, com a finalidade de constituir uma educação voltada ao contexto campesino. Para compreendermos o Campo como um território, a Educação precisa ser pensada para o seu desenvolvimento, a partir de sua realidade, de seu quotidiano.
Para Caldart (2002), a Educação do Campo tem sua gênese nas lutas dos movimentos sociais camponeses, contrapondo-se à Educação Rural. Cabe fazer um parêntese para explicar a distinção entre ambas. Melo (2011) concordar com os termos com que a questão é exposta ao afirmar que existe sim distinção entre Educação do/no Campo e Educação Rural. Para o autor, esta última é “responsável por formar o aluno em um agricultor voltado para um modo de ser – e educação no campo – responsável por levar ensino, recursos e/ou técnicas ao campo que não sejam necessariamente rurais” (MELO, 2011, p. 33-34). O autor baseia-se na análise de três elementos para tal diferenciação:
a. conteúdos: estão vinculados à concepção de rural, de um modo de vida específico, cujo objetivo é considerar a valorização e o uso da terra, reforçando práticas culturais como a religião, as festas caipiras, as relações de compadrio e a reprodução familiar, enquanto a educação do campo é aquela que aborda qualquer conteúdo, desde que seja no campo e tratado a partir de uma abordagem específica do campo;
b. localidade: na Educação Rural pode ser qualquer local, porque se fala de um tipo de educação e, nesse caso, ele pode ser praticado em todos os locais possíveis. No entanto, segundo o autor, “não teria sentido ter como base do currículo e do projeto pedagógico essa prática educacional em uma cidade global, como por exemplo, Nova Iorque” (MELO, 2011, p. 34); por outro lado, a localidade da educação do campo é o Campo/Zona Rural;
c. atores: na Educação Rural, os atores podem ser “qualquer pessoa que receba ou transmita a educação como modo de vida rural” (MELO, 2011, p. 34), ou seja, educador e educando que tenham algum vínculo com a agricultura familiar, o campesinato, as fazendas, os sítios, os quilombos, etc. Já para a Educação do Campo, os educadores e educandos não necessariamente devem ser do campo, caracterizados como representantes de uma cultura rural. A educação não precisa ser construída a partir do campo, mas também pode ter uma visão da cidade, da cultura dos agentes urbanos.
Retomando a concepção de Educação do Campo, Fernandes (2006) afirma que ela se originou das demandas dos movimentos camponeses na construção de políticas públicas para educação, principalmente para as áreas da reforma agrária. Dessa forma, o autor entende a educação na reforma agrária como parte da Educação do Campo, “compreendida como um processo em construção que contempla em sua lógica a política que pensa a educação como parte essencial para o desenvolvimento do campo” (FERNANDES, 2006, p. 28). Corroborando a análise de Fernandes (2006), Caldart (2002) aponta que o modelo de Educação do Campo nasceu vinculado aos trabalhadores pobres do campo, aos movimentos sociais ligados a trabalhadores sem terra dispostos a reagir, lutar e se organizar enquanto classes minoritárias tendo a educação como um de seus pilares, resistindo contra a situação em que se encontravam, ampliando, dessa forma, a esfera de atuação ao conjunto dos trabalhadores do campo.
A partir da análise dos autores, podemos dizer que a Educação do Campo se difere da Educação Rural porque foi construída para os diferentes sujeitos que compõem esses territórios, por práticas sociais e culturas diversificadas. Por conseguinte, ela se apresenta como uma estratégia importante para a transformação da realidade dos sujeitos do campo, nas mais variadas dimensões (sociais, ambientais, culturais, econômicas, éticas e políticas).
Se, na prática, a Educação do Campo se conceitua com base na análise descrita, por outro lado, somente com a entrada em vigor da Resolução n. 1, de 3 de abril de 2002, de iniciativa da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), ela passa a fazer parte do escopo da legislação educacional brasileira, mesmo que de forma distorcida em sua concepção básica. Nesse sentido, Arroyo, Caldart e Molina (2004, p. 176), explicam que:
A Educação do Campo, que tem sido tratada como Educação Rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana.
Diante dessa reflexão, entendemos a Educação do Campo como uma concepção de educação elaborada para os sujeitos do campo, baseada nos resultados das lutas desses trabalhadores organizados em movimentos sociais populares, com a finalidade de constituir uma educação voltada ao contexto campesino.
O fato de esse novo modo de trabalhar a educação em espaços geográficos específicos propor uma Escola no e do Campo nos moldes do que aponta Caldart (2002) 3, portanto, diferente da escola tradicional rural, idealizada e organizada pelos sujeitos com práticas nesses espaços, torna-a especial, o que vem sendo reconhecido por diversos atores no cenário nacional. Esse reconhecimento ultrapassa a noção de espaço geográfico e “compreende as necessidades culturais, os direitos sociais e a formação integral desses sujeitos” (SANTOS; NEVES, 2012, p. 3). Contudo, é necessário entender que, para garantir o direito de todos os cidadãos, a escola necessariamente precisa estar nos locus em que os indivíduos estão. Por isso, ela tem que ser construída e organizada no campo. O fato de estar no campo também interfere na produção dos conhecimentos, porque não será uma escola descolada da realidade dos sujeitos, como asseguram as referidas autoras. Chamamos a atenção, porém, para a questão de que, sobretudo, deva se tratar de um modelo de educação em sentido amplo, como processo de formação humana, por meio do qual se constroem referências culturais e políticas para a intervenção das pessoas em suas realidades.
Dentro dessa perspectiva, a Educação do Campo busca superar um dos paradigmas ou dualidades entre campo e cidade, que são tidos por algumas ciências como antagônicos. Nesse sentido, ambos passam a ser vistos como complementares e de igual valor, dependentes um do outro para sua sustentação. Ao mesmo tempo, considera-se e respeita-se a existência de tempos e modos diferentes de ser, viver e produzir, contrariando a pretensa superioridade do urbano sobre o rural e admitindo variados modelos de organização da educação e da escola (BRASIL, 2007). Desse modo, entendemos campo e cidade como duas partes de uma única sociedade, que dependem uma da outra e não podem ser tratadas de forma desigual.
Assim, estamos de acordo com Santos e Neves (2012) sobre a existência de dois elementos que fundamentam a Educação do Campo, qual sejam: a superação da dicotomia entre o rural e o urbano; e a necessidade de recriar os vínculos de pertença ao campo. A consolidação desses fundamentos reflete-se na implementação de políticas públicas que compreendem a Educação e a Escola do Campo a partir de alguns princípios aludidos nas Referências para uma Política Nacional de Educação do Campo4, a saber:
I. A Educação do Campo de qualidade é um direito dos povos do campo.
II. A Educação do Campo e o respeito às organizações sociais e o conhecimento por elas produzido.
III. A Educação do Campo no campo.
IV. A Educação do Campo enquanto produção de cultura.
V. A Educação do Campo na formação dos sujeitos.
VI. A Educação do Campo como formação humana para o Desenvolvimento Sustentável.
VII. A Educação do Campo e o respeito às características do Campo.
(BRASIL, 2003, p. 32 -34).
Assim, esse modelo de educação deve promover vínculos de pertencimento ao campo (político, cultural, ambiental, social, dentre outros). Decerto, faz-se necessário que ele possibilite a educação como formação humana, estimulando os sujeitos a criar em companhia de outros um espaço humano de convivência social desejável. E, nesta perspectiva, a educação apresenta-se como estratégia fundamental para o desenvolvimento sustentável do campo, devendo ser constituída a partir das políticas públicas como uma ação cultural comprometida com o projeto de reinvenção do campo brasileiro (BRASIL, 2003).
Por fim, temos a compreensão de que a Educação do Campo constitui-se como um modelo de educação contraposto à ideia de educação como mercadoria, afirmando-a como formação humana, na forma com que Santos, Paludo e Oliveira (2010) a concebem, cujo papel é também o de formar sujeitos críticos, capazes de lutar e construir outro projeto de desenvolvimento para o campo e para nação, à qual incumbe o dever de compreender o trabalho como produção da vida, base necessária para pensar a relação sociedade-natureza. É neste contexto que a relação educação e trabalho tem um significado ímpar e se diferencia da perspectiva do capital. Assim sendo, nossa concepção de Educação do Campo visa estabelecer relações entre a educação e o desenvolvimento de uma agricultura camponesa capaz de dar conta de projetos para o Brasil e das demandas de seus sujeitos, que nascem “no bojo do processo de resistência e luta dos camponeses e das camponesas que vivem no/do seu trabalho no campo e também na luta pelo direito à educação” (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2010, p. 51).
O território como ferramenta de análise da Educação do Campo
De suma importância é pensar a Educação do Campo para além dos simples conhecimentos básicos adquiridos nas escolas tradicionais, considerando outras dimensões, como a econômica, cultural, ambiental, política e de cidadania. Como mencionado anteriormente, o campo deve ser entendido como o lugar para o exercício de uma dinâmica socioeconômica e territorial em que as pessoas criam diversas alternativas econômicas, proporcionando uma saída às pressões do sistema econômico vigente. Portanto, um território que englobe essas dimensões é, sobretudo, conflituoso e deve possibilitar a complexidade do desenvolvimento territorial.
Atualmente está explícito que existem duas visões ou direções de desenvolvimento que se contrapõem: de um lado, a do agronegócio, que vê o campo ainda como um lugar de atraso, arcaico, de pouco interesse à agricultura capitalista (a não ser para a exploração imobiliária), cuja base se assenta sobre o trabalho assalariado, no tocante à mão de obra, e também sobre o controle do mercado; de outro lado, tem-se a agricultura camponesa e dos pequenos produtores, para a qual o campo é visto como o lugar de produção de vida, alimentos e cultura, e não meramente de produção econômica (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2010). Entender essas dinâmicas a partir das conformidades territoriais é papel que cabe à Geografia no contexto interdisciplinar subjacente ao curso de Educação do Campo, daí sua importância em âmbito curricular.
A educação não existe fora do contexto territorial, assim como a cultura, a economia e todas as outras dimensões da realidade. Dessa forma, as relações sociais, bem como os territórios, devem ser observadas e analisadas em sua complexidade, na maioria das vezes repletas de conflitos. De acordo com Fernandes (2012a), educação, cultura, produção, trabalho, infraestrutura, organização política, mercado, etc. são relações sociais constituintes das dimensões territoriais, logo não devem ser analisadas fora deste contexto.
Nessa perspectiva, os territórios são espaços geográficos e políticos em que os sujeitos sociais executam seus projetos de vida visando ao melhor desenvolvimento, organizando-se, por meio das relações sociais, a fim de desenvolvê-lo. É importante mensurar que, no campo, os territórios existentes (do campesinato e do agronegócio) são organizados de formas diferentes, pela ação de classes distintas e em meio a relações sociais diversas (FERNANDES, 2012b).
A ideia aqui apresentada vai ao encontro do que pensa Fernandes (2008), que, diante dessa conjuntura, afirma ser necessário considerar a conflitualidade existente entre o campesinato e o agronegócio ao pensar o território, uma vez quem ambos o disputam. Ainda em conformidade com o autor apregoa, é importante pensar o territorial como uma totalidade em cujo seio todas as dimensões – política, social, cultural, ambiental e econômica – se desenvolvem como um conjunto indissociável. Nesse sentido, compreender o Campo como um território requer que a Educação seja pensada em função de seu desenvolvimento.
Em ambos os casos, a dimensão territorial do campo torna-se um aspecto importante não apenas para a viabilidade da inserção de estudos sobre seus sujeitos. Há de se destacar, contudo, a dimensão que o autor dá para o contexto conceitual de território, principalmente no tocante à temática socioeconômica, no qual coexistem dois olhares distintos sobre o mesmo contexto.
Dentro desta linha de raciocínio, opõem-se dois olhares sobre o território: o que se baseia na lógica autóctone, em que a reprodução do grupo social está diretamente ligada aos modos de vida, à economia local, à produção material, à cultura, à identidade, aos saberes e ao tempo social que dão sentido à vida cotidiana e demarcam o território como “abrigo” (SANTOS, 2008, p. 112). A outra concepção de território é formada por uma lógica alóctone, marcada pela visão estreita e unilateral ligada à reprodução do capital, que por um lado limita a vida à produção de mercadorias e, por outro, entende o território como “recurso” (SANTOS, 2008, p. 108).
Aqui, no entanto, o território é compreendido como uma dimensão social, contrapondo-se à concepção tradicional advinda da Geografia clássica, que o concebe como um mero espaço-suporte de elementos naturais a ser utilizado e dominado por um Estado nacional soberano no processo de seu desenvolvimento político-territorial. Ou seja, nosso conceito de território vai ao encontro da visão autóctone de Santos (2008).
A abordagem territorial5 possui sua importância para qualquer análise que se dedique à realidade social, na medida em que, como afirma Haesbaert (2007, p. 20),
[…] o próprio conceito de sociedade implica, de qualquer modo, sua espacialização ou, num sentido mais restrito, sua territorialização. Sociedade e espaço são dimensões gêmeas. Não há como definir o indivíduo, o grupo, a comunidade, a sociedade sem ao mesmo tempo inseri-los num determinado contexto geográfico, territorial.
Nesse contexto, nosso entendimento sobre o território vai ao encontro do expresso por Haesbaert (2007), autor par ao qual sociedade, espaço e território estão alinhados à mesma perspectiva, portanto, são complementares, formando o que na Geografia identificamos como dimensão socioespacial. Dessa forma, contrapõe-se à concepção tradicional e clássica, para a qual o território é o “espaço-suporte de elementos naturais” usado pelo Estado, ou seja, apenas um elemento físico-natural. Nessa linha de raciocínio, pelo viés do social, o território é extremamente importante para a conformação daquilo que chamamos de territorialidade, ou seja, características culturais, sociais e físicas de determinada região.
O caráter do território enquanto dimensão social também é discutido por Santos (2005, p. 15) em seu ensaio O retorno do território, no qual o autor afirma que “é o uso do território, e não o território em si que faz dele objeto de análise social”, depreendendo-se dessa assertiva que o que faz com que o território passe a ser objeto de análise social é a maneira como ele é utilizado pela sociedade, o que atesta a indissociabilidade entre território e sociedade.
Diante dessa perspectiva, pensar numa conjuntura que se proponha a compreender as especificidades dos povos do campo é pôr em conflito as dimensões territoriais e as condicionantes de políticas e, ao mesmo tempo, confrontá-las com as problemáticas que perpassam as realidades dos sujeitos do espaço rural. Nesse sentido, o que nos leva a discutir as questões territoriais no contexto da Educação do Campo está atrelado às relações que esses sujeitos estabelecem entre o trabalho, o quotidiano, as riquezas culturais e o próprio território em que vivem. Nesse sentido, concordamos com Castro et al. (2013) e Oliveira Neto (2011) sobre a necessidade do diálogo com a realidade social, econômica, ambiental e cultural, na perspectiva em que estão inseridas as populações do campo num determinado território.
Apesar do avanço contextual e da sua importância na compreensão de alguns fenômenos geográficos, o território ainda precisa ser mais e melhor analisado, principalmente em relação ao seu uso por parte dos povos do campo, dentro da perspectiva da Educação do Campo. Ao mesmo tempo, entendemos que a Geografia, enquanto ciência, pouco fez para ir além da compreensão das relações que os povos do campo estabelecem em meio a esses espaços de convívio. Logo, é fundamental entender como a identificação das forças que disputam os territórios campesinos pode contribuir para uma prática científica emancipatória. Assim, cabe a seguinte indagação: quais os elementos da Geografia que a tornam uma ciência indispensável para a construção de uma outra sociedade, que seja capaz de garantir a esses sujeitos as condições ideais, materiais e imateriais para resistirem ao avanço do grande capital?
Diante de toda essa complexidade compreendemos que a Geografia tem papel fundamental no curso de Licenciatura em Educação do Campo, pois de forma interdisciplinar procura mostrar aos acadêmicos a importância de compreender os seus quotidianos a partir das relações sociais, econômicas, políticas e culturais que se entrelaçam num determinado território, formado, na maioria das vezes, localidades rurais e urbanas, ambientes opostos, mas complementares. A valorização da dimensão territorial nas ações de produção do campo é fruto da compreensão de que processos sociais e seus produtos são gerados a partir dessas relações, da estrutura fundiária e das funções que o campo apresenta previamente, de tal modo que elas são traduzidas nos quotidianos locais, ou seja, nas tradições, religiões, festas, alimentação, entre outras manifestações que são importantes no diagnóstico do município.
Oliveira Neto (2011) está de acordo com os termos da discussão, entendendo-a como algo que legitima o papel da Geografia na percepção do território a partir da dimensão educacional, partindo do pressuposto de que a educação é elemento fundamental na constituição do território rural em dupla dimensão: evita que os filhos dos trabalhadores do campo tenham que migrar para a cidade, a fim de acessar um direito básico que deveria assistir a todos, que é a educação; e porque a práxis educativa em si expressa concepções de desenvolvimento e de campo que, articuladas a outros elementos como o território, por exemplo, contribui para a desestruturação ou a reestruturação dessas formações socioespaciais.
Nessa conjuntura, torna-se importante a discussão sobre as comunidades do campo a partir da educação e da territorialidade6, de seus simbolismos e sua significância, haja vista seu potencial de suscitar debates sobre políticas públicas que podem vir a ser aplicadas visando à manutenção dessa realidade, vital ao camponês e importante à cidade.
Não há dúvida de que, do ponto de vista geográfico, discutir o conceito de território é questão de primeira ordem. Inúmeros são os autores que se dedicaram a esta tarefa árdua. Ele é uma dimensão, um objeto dessa ciência que nos ajuda a entender a realidade. Porém, mais importante ainda é compreendê-lo como ferramenta para a análise de contextos sociais. Inserido nessa lógica, Santos (2005) nos dá relevante ajuda na compreensão do termo ‘território’, apregoando ser muito mais útil analisá-lo a partir do uso que damos a ele, isto é, de quais elementos de identidade podem caracterizá-lo como referência para a sociedade. Estes elementos são identificáveis no quotidiano das pessoas, nos seus modos e costumes, nos atos de religiosidades e de festas, nos trabalhos e nas formas de como fazê-lo, na vida comunitária, individual, etc.
Assim, o ‘território’ enquanto base física é o que menos importa para uma teoria crítica de sociedade; na verdade, o que tem preponderância é o debate, por exemplo, sobre os diferentes usos que dele fazem o agronegócio e a agricultura familiar. Em outras palavras, o que é relevante, de fato, é a análise do território como construção dos coletivos, movimentos e classes sociais, levando em conta seus diversos usos e intenções. Este processo, no entanto, é dialético, pois a sociedade produz o território assim como o território é uma dimensão que influencia na formação de identidades sociais (HAGE; OLIVEIRA, 2011).
Paisagens, Identidades e Culturas no Diálogo Interdisciplinar com as Ciências da Natureza e Matemática
Com a prerrogativa de ação interdisciplinar dentro das disciplinas do curso de Educação do Campo, o produto do diagnóstico da realidade municipal não só se insere em uma única disciplina como dialoga com as demais disciplinas do primeiro ano de curso. Em especial, focaremos nas disciplinas específicas que tratam das Ciências da Natureza e da Matemática, de suas proposições de conteúdo programático e objetivo dentro da proposta pedagógica do curso. Este diálogo é mediado aqui pelas categorias geográficas de paisagem e lugar.
Entre os Fundamentos de Ciências, os componentes de Física se atêm curricularmente, no Tempo Universidade, à compreensão dos equilíbrios energéticos e do sistema Terra; os componentes de Biologia enfocam nas interações com o meio; a Química, no ciclo do carbono; e a Matemática, na geometria e nas medidas7. Há, de certa forma, uma busca por integração interdisciplinar entre componentes curriculares e, mais do que isso, por interdisciplinaridade além da temática, que é aquela que integra os saberes e as competências necessárias à formação geral. No curso, esta integração é feita não somente no que consta do projeto pedagógico mas também nos espaços de diálogo de que participam os professores que atuarão na fase.
Esse diálogo se aprofunda à medida que, ao longo das fases do curso, as referidas disciplinas deixam de ser vistas de forma compartimentada e passam a interagir dentro das disciplinas de Fundamentos das Ciências da Natureza e Matemática, nas quais, muitas vezes, há mais de um professor atuando em sala conjuntamente e o planejamento disciplinar é feito com os quatro professores de cada área do saber.
Durante o Tempo Comunidade, esses componentes se efetivam com o levantamento de dados e informações e com a aquisição de registros observacionais, relatos e demais ações qualitativas e quantitativas. Como exemplo, é possível averiguar os índices de saneamento básico, o processamento de dejetos, as condições ambientais e ecológicas, seu uso e manejo, tudo isto correlacionado aos conteúdos do Tempo Universidade e vivenciado nas localidades de cada educando no Tempo Comunidade. O espaço para esse desenvolvimento se dá na disciplina de Vivências, na qual educandos oriundos de diversos municípios, das mais variadas localidades, desde assentamentos e bairros rurais até centros urbanos, buscam socializar suas experiências, concretizando as ligações de ambos os tempos da alternância.
É em meio a esse movimento dos tempos universidade e comunidade, na perspectiva da interdisciplinaridade e em busca de compreensão sobre a realidade que as categorias geográficas podem ser vistas como ferramentas metodológicas úteis, dotadas de fundamentos epistemológicos para mediar as práticas de ensino-aprendizagem e a relação de compreensão dos contextos.
A categoria paisagem, de longa tradição na Geografia, pode ser trabalhada por diversos prismas, oferecendo possibilidades de correlação com as Ciências da Natureza e com a Matemática. De forma sintética, trataremos a paisagem pelos seguintes entendimentos: sistêmico, humanista e aberto a outras abordagens culturais (incluse as pós-modernas e críticas), estabelecendo as possíveis correlações entre os componentes das disciplinas supracitadas.
Debruçando-se sobre os componentes da Física para o trato da energia, é possível encontrar plena ressonância na visão de paisagem alicerçada nas escolas sistêmicas, principalmente nos moldes propostos por Christofoletti (1979). A visão de que o ambiente pode ser visto como um conjunto de diversos sistemas interagindo entre si e mantendo trocas energéticas uns com os outros permite abordar de forma interativa a termodinâmica, observando no sistema Terra como estas trocas se materializam em diversas escalas, da planetária à local. A incidência da energia solar e a transformação desta energia, que subjaz às variações climáticas e a todo desdobramento dos ciclos hidrológicos, à formação de solos e às coberturas vegetacionais, faz ligação com os biomas, a ecologia e o meio ambiente que circunda a vida dos educandos.
Nesse contexto, as ações humanas desenvolvem sistemas específicos, como os das práticas agrícolas, que não estão dissociadas dos sistemas naturais, o que leva a problematizações como o uso de agrotóxicos, as perdas de solos e a contaminação. Estas problemáticas obviamente se interconectam aos saberes da Biologia e da Química e compõem um tipo de paisagem que o educando passa a compreender. A Matemática entra como linguagem, a dar representações geométricas a novas percepções do espaço, e pensando em termos de teorias do caos e complexidades, pode inserir a representação fractal da realidade.
Partir desse arranjo do mundo físico instiga-nos a ingressar em um segundo nível ao olhar a paisagem. O educando passa a ver primeiro seu mundo imediato de outra forma, com novos olhares, dados pelas ciências naturais, e passa a se colocar nesta paisagem, abrindo o campo humanista de leitura da realidade.
A Geometria do espaço abstrato ganha a densidade do espaço geográfico, a intensidade da cor e das percepções sensórias, para iniciarmos aqui nos moldes postos por Dardel (1952). Pensando-se no universo das colocações em comum com os educandos, observa-se que a paisagem percebida pelo sujeito passa a se alimentar do discurso dos demais sujeitos, e o leque de percepção se amplia. Essas percepções compartilhadas, nas quais o real passa a ser consensual, seguem a linha de entendimento sobre a paisagem posta por Lowenthal e Prince (1965), permitindo uma nova forma de explorar a percepção ambiental, e daí derivam novos problemas, imperceptíveis anteriormente. Quais interações com o meio podemos começar a vislumbrar para pensar os componentes da Biologia neste sentido?
Seria impossível falar da abordagem humanista sem tocar em Tuan (1974) e em todo o ganho que poderíamos ter ao colocar os educandos em contato com a ideia de topofilia. Na obra do referido autor, é apresentada uma descrição do ideário do campo que nos permite não só abordar uma série de elementos como também destrinchar os elos de afetividade dos educandos e as gamas de paisagens que dele se abstraem.
Essas relações espaciais abrem espaço para diálogos com a Física e a Matemática. O lugar pode ser visto como localidade no espaço absoluto newtoniano e sua grade de coordenadas cartesianas, que leva a uma geometrização euclidiana. Em seguida, tem-se o espaço relativo de Einstein e toda a nova forma de percepção da união entre espaço e tempo. Na perspectiva do lugar, estes espaços são agregados do relacional, conforme propõe Harvey (2004), um tipo de espaço, de inspiração nas mônadas de Leibniz, que condensa as experiências do sujeito a todas as experiências que este sujeito carrega consigo, no qual a questão de identidade extrapola o espaço absoluto.
A representação desses lugares conformando as paisagens se funde às culturas dos educandos e às suas posturas ideológicas, e este é um outro ponto a se observar, conforme a linha dos estudos de Cosgrove (1978). A desmistificação das relações cidade-campo, recobrando o valor do campo, e não o tomando como sinal do atraso, passa por esta forma de leitura, na qual o que se soma ou se subtrai à leitura da paisagem é guiado pela ideologia de grupos dominantes, de acordo com a leitura paisagística de Lacoste (1977). Mais uma vez, destaca-se o espaço da colocação em comum dos educandos, em que todos estes elementos são trazidos também como espaço dos sujeitos agindo de modo ativo, dando ao simbólico seus significados. Lugar e paisagem, assim, seguem as linhas propostas por Collot (1986).
Muito têm a contribuir com este diálogo as leituras não formais da Matemática, da Física, da Biologia e da Química, quando se adentra na esfera dos conhecimentos oriundos das etnociências, das linguagens e símbolos atribuídos, que escapam ao formalismo acadêmico, mas também trazem elementos da realidade.
Considerações Finais
As aproximações que buscamos fazer entre as Ciências da Natureza e Matemática na Educação do Campo e as categorias geográficas têm o intuito de despertar as possibilidades da Geografia para além do ensino em seu campo do saber, fomentando o diálogo interdisciplinar entre saberes. Este diálogo interdisciplinar não se fundamenta meramente em temáticas ou na ação conjunta de disciplinas para enfrentar problemas da realidade; ele se estrutura na prática comum docente e na busca de competências gerais que perpassam todos os demais saberes e vão além das suas respectivas áreas, permitindo a formação crítica e autônoma para o educando.
Entendemos que na estrutura curricular da Educação do Campo ofertada pela UFSC este diálogo não só é possível como vem se efetivando em espaços disciplinares do curso. Na prática com os educandos, é notável a abertura de novos olhares para suas localidades e contextos, para ambientes em que eles conviveram a vida toda, mas que não eram percebidos e experienciados, ou então eram vividos sob outras lógicas, e passaram a ser ressignificados sob a luz das categorias geográficas utilizadas.
Também é possível iniciar um pensamento que transcenda ao cientificista, em que as disciplinas vistas como ‘duras’ ou ‘exatas’ das Ciências Naturais ganhem novas perspectivas, possibilidades de ensino e trabalho, vislumbrando assim novas problemáticas com a utilização das categorias da Geografia. Ciências da Natureza e Ciências Humanas têm aí seu papel conjunto na formação crítica e na autonomia intelectual.
Por fim, a leitura do município a partir de um diagnóstico do território, como produto final, permite ao educando um novo olhar sobre o seu locus, englobando num mesmo conjunto pensamento epistemológico e uma gama de disciplinas com teorias diferentes, mas com as mesmas finalidades, quais sejam, a integralidade da realidade vivida pelos povos do campo num mesmo espaço, formado por elementos territoriais, paisagísticos e locais.