Cinema e infância: um diálogo fértil
O cinema abre-nos os olhos, os coloca na justa distância, e os põe em movimento. Algumas vezes, faz isso enfocando seu objetivo sobre as crianças. Sobre seus gestos, sobre seus movimentos. Sobre sua quietude e sobre seu dinamismo, sobre sua submissão e sobre sua indisciplina. Sobre suas palavras e sobre seus silêncios. Sobre sua liberdade e sobre seu abandono. Sobre sua fragilidade e sua força. Sobre sua inocência e sua perversão. Sobre sua vontade e sua fadiga, sobre seu desfalecimento. Sobre suas lutas, seus triunfos e suas derrotas. Sobre seu olhar fascinado, interrogativo, desejoso, distraído. O cinema olha a infância e nos ensina a olhá-la (TEIXEIRA; LARROSA; LOPES, 2006, p. 12).
Ainda que se deva manter a prudência, que ajudaria a evitar o deslumbramento, não há como negar a capacidade de sedução e enredamento que a imagem sonorizada e em movimento despertam. Não por acaso, o cinema entrou com força como recurso pedagógico anunciado já nas Exposições Universais da virada do século XIX para o XX e fomentou uma grande indústria, seja de produção de conteúdos, seja de fabricação de artefatos e componentes. Através da projeção, pode-se alcançar realidades distantes, compartilhar sentimentos, adentrar outros mundos, convencer, disputar, persuadir. Para além do cinema educativo, ao utilizar as películas (educativas, de arte, comerciais...) como fonte para o estudo da infância (ou de infâncias), é importante que se considere que “[...] o cinema, igual e talvez mais que a literatura, oferece um exemplo concreto de como uma forma de arte pode desenvolver e difundir em larga escala uma determinada representação social” (CECCONI, 2017, p. 13, tradução nossa).
Outra potencialidade desta linguagem artística, como fonte histórica, está naquilo que Simonetta Polenghi (2009) argumenta, o cinema como “[...] uma das ferramentas que permitem decifrar o imaginário de uma época e de um povo, um instrumento fundamental para a história do novecentos [...]” (POLENGHI, 2009, p. 25, tradução nossa) e, por que não também, para a história contemporânea.
Com o alargamento da compreensão e utilização de fontes no campo da história, com novas modalidades heurísticas, perspectivas investigativas sobre o enlace entre infância e cinema têm modificado - como indicamos na epígrafe – o que vemos e o modo como vemos as crianças e suas infâncias, assim como, o que elas nos dão a ver por meio da imagem em movimento.
Por meio do cinema, temos tido possibilidades de “narra” sobre as crianças e suas experiências de infância, sob registro de ficção, documentário e animação como fazemos aqui com o filme “O Menino e o Mundo”. Histórias de encontros, resistências, tristezas, descobertas, convivência e também de dor. Mas a dor não se refere exclusivamente à dimensão individual, como primorosamente esclarece Arlette Farge (2011, p. 19) “[...] a dor, sensação física e emocional – que não se pode separar da mágoa –, é uma forma de relação com o mundo. Nisso ela entra na paisagem cultural, política, afetiva e intelectual de uma sociedade”.
O menino e sua ação no mundo
Selva de pedra, menino microscópico
O peito gela onde o bem é utópico
É o novo tópico, meu bem
A vida nos trópicos
Não tá fácil pra ninguém
É o mundo nas costas e a dor nas custas
Trilhas opostas, ”La Plata” ofusca
Fumaça, buzinas e a busca...
(Emicida- Sob os olhos de uma criança, da trilha de “O Menino e o Mundo”).
Na tela branca um ponto – pequeno, colorido, central –, para onde converge uma série caleidoscópica de círculos concêntricos, que logo tomam a tela em uma profusão de pequenos e grandes olhos, mandalas, arabescos que lembram as caudas de pássaros, as corolas de flores, um universo de abundância tropical. Logo fica claro que é o olho do menino que nos permitirá esta mirada sobre as insignificâncias magníficas das plantas, das poças, dos pássaros, e que será o seu olhar a nos guiar pela história.
A exuberância de cores dos primeiros dez minutos do filme será gradativamente estancada quando, na estação o menino assiste à espera do pai, espera que apague todo o entorno, que lhe tira as referências da paisagem. Só resta o pai a esperar o trem num fundo totalmente branco, e o menino e sua mãe a olharem. O trem chega encobrindo a figura do pai e vai desaparecendo no canto da tela em seu movimento serpenteado até se tornar apenas um ponto. Mas é um outro ponto, em um lugar distante da segurança do quintal, do som da flauta e do pai e da mãe, levando o menino (e o espectador) a voltar seus olhos para a vastidão do mundo.
O menino, de traço tão simples que poderia ser qualquer criança, desliza pelo espaço da aldeia (idílico, amplo, lúdico) e sobressalta a cidade (atraente, louca, hostil). Em seu périplo em busca do pai, nos expõe ao feio e ao belo do Brasil que se produziu a partir do século XX e nos obriga a encarar os movimentos migratórios no país exatamente na perspectiva de Milton Santos (2011).
Santos (1982), analisando a mobilidade interna das populações no Brasil ainda na década de 1980, chegará à conclusão de que as migrações brasileiras são preponderantemente motivadas pela força dos movimentos do mercado e do consumo, como em toda a América Latina. Assim, à medida em que avançam, subtraem de grande parte das pessoas o acesso ao trabalho, à terra, aos bens mais básicos e, sobretudo, reduz os cidadãos a simples consumidores.
“Há cidadãos neste país?”, pergunta o geógrafo, no título de um de seus clássicos escritos. Em “O Menino e o Mundo” a pergunta se agudiza pois, na viagem do protagonista, um rol de tipos humanos destituídos das mais básicas prerrogativas sociais desfila pela tela. Em cores que não acobertam o ponto central da narrativa – que é nos colocar diante das vicissitudes da infância nesse processo –, lembram ao espectador que a ideia de cidadania – como uma espécie de herança moral que asseguraria a todos e todas o direito à existência digna – pode ser um cobertor bastante curto e que no Brasil – assim como em muitos países –, ainda custa a chegar a muitas crianças.
A roupagem ágil e onírica de “O Menino e o Mundo” sustenta uma narrativa que retomará a temática da violência, da migração e do desenraizamento, questão social preponderante no Brasil do século XX e que no século XXI segue como processo irrefreável sob novas e antigas formas de dominação. Nesse sentido, tanto as análises de Milton Santos, feitas em grande parte no período de um nascente neoliberalismo no século XX, quanto as discussões de Zygmunt Bauman (2009), pensando os movimentos de globalização na transição para o século XXI, nos auxiliam a aprofundar o olhar sobre as causas sociais e consequências humanas da errância dos indivíduos no espaço que, globalizado, parece sem fronteiras, mas que apresenta fronteiras subjetivas, de não pertencimento, um espaço sem cidadãos, nas palavras de Santos.
E se a temática da migração e da busca do pai ocupa o centro do filme, o diretor Alê Abreu2 não se furta a expor e esmiuçar delicadamente suas causas e consequências. A animação também é uma viagem pela evolução do capitalismo, de suas formas mais rudimentares, da exploração do trabalho nas pequenas fábricas e nas grandes lavouras, passando de sistemas correlatos à escravidão de trabalhadores rurais às formas globalizadas de expansão desordenada da produção e do consumismo. Esse consumismo que transfigura cidades, elimina fronteiras de pertencimento, apaga qualquer ilusão de segurança na ordem “universalização-civilização-desenvolvimento”3 e determina um ritmo de trabalho e de vida solitário, frenético e violento.
No entanto, “O Menino e o Mundo” faz o ”passeio pela violência e pelo desterro” com a sutileza de colocar uma criança como protagonista da história do herói trágico exilado, que vive o processo de sofrimento pelo esfacelamento de sua experiência de família e pertencimento, enquanto reconstrói sua visão de mundo a partir da força dessa experiência. Sabemos que “[...] as migrações territoriais, os atos de errância e nomadismo, não são maldição ou bênção, mas uma possibilidade do sujeito que, em seu movimento de exílio, regresso e solidão, pode estabelecer uma abertura radical e primeira ao Outro” (ROSA; BERTA; CARIGNATO; ALENCAR, 2009, p. 499). Cabe lembrar, como advertem as autoras, que essa possibilidade pode abrigar diferentes motivações que incluem uma ordem subjetiva e também sócio-política. Nesse sentido, Bauman (1999, p. 8) é incisivo ao afirmar que, se estamos todos “[...] a contragosto, por desígnio ou à revelia em movimento [...] nesta nova ordem (desordem) mundial “os efeitos dessa nova condição de mobilidade intrínseca são radicalmente desiguais [...]” e, nesse processo, a migração forçada e as formas de sobrevivência dos migrantes nas periferias das cidades são acompanhadas por marcas da exclusão e segregação espacial e simbólica.
A temática do consumismo e do papel da mídia nesses processos é explorada no filme à medida em que o menino adentra a metrópole: cartazes, propagandas, vitrines, containers e caminhões vindos de todo e de nenhum lugar, com produtos inúteis que se tornam essenciais. Telejornais e programas de televisão se sobrepõem à simplicidade dos traços do menino de giz de cera com as falas dos noticiários e folhetins da TV – seguem uma linguagem própria no filme, especialmente construída – que dizem muito sobre a massificação e a aculturação que afetam o migrante destituído de seu espaço, físico e simbólico, constituído por uma herança cultural, “[...] roubando-lhe parte do seu ser, obrigando-o a uma nova e dura adaptação em seu novo lugar” (SANTOS, 2011, p. 139).
A cena acima, do menino “camuflado” sob os reclames, na garupa da bicicleta do trabalhador que o ajuda nesta parte da jornada, ilustra bem o que Milton Santos já denunciou:
Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é instrumento da busca da ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário (SANTOS, 2011, p. 88).
A metrópole de “usuários”, onde parte significativa do filme se passa, é retratada como um misto das grandes cidades brasileiras: a configuração das favelas em morros lembrará o Rio de Janeiro, mas a presença sonora do rap alude à São Paulo e à ação ostensiva de forças policiais que, cerceando e contendo o movimento das periferias, remete a outras tantas cidades nas quais os estereótipos de violência e baderna ligados às periferias alimentam a hostilidade e a segregação dessas populações por parte de uma elite que, com medo, se encastela em espaços cada vez mais cercados, vigiados e isolados da vida viva das cidades.
E será justamente o medo o elemento a cristalizar simbólica e materialmente as muralhas, os apartheids cotidianos nas grandes cidades. “A dissolução da solidariedade representa o fim do universo no qual a modernidade sólida administrava o medo. Agora é a vez de se desmantelarem e ou destruírem as proteções modernas-artificiais, concedidas” (BAUMAN, 2009, p. 20). Assim, a sensação de vulnerabilidade, fomentada e construída pela mídia e pelo consumismo, alimentará a xenofobia, o individualismo e o isolamento na metrópole.
A chegada do menino à favela é tratada no filme a partir da reafirmação de elementos da violência e medo, certamente presentes nesses espaços urbanos, marcados pela segregação e distribuição desconfortável e precária do espaço. Na subida do morro, o menino passa pelo prostíbulo, pela igreja – de onde emanam vozes fanáticas e alteradas –, pelo bar – de onde sai pela porta uma garrafa que se quebra aos seus pés. No entanto, a continuidade da subida desconstrói delicadamente esse cenário hostil, pois o menino, exausto e assustado, é colocado nos ombros do trabalhador que, também exausto, sobe o morro. Nesse momento, os laços de solidariedade e resistência se estreitam de maneira muda e, aos olhos do menino, a cidade parece uma festa de luzes sob a noite escura.
O menino, a resistência cotidiana e a dimensão “errante do desejo”4
As imagens em movimento nos falam das pequenas resistências dos adultos com quem o menino se encontra nos lugares por onde circula – latifúndios rurais, pequenas cidades, metrópoles com suas indústrias fadadas a sucumbirem diante das forças globalizadas de produção. Neles, o menino encontra algum refúgio.
Esses adultos não sucumbem à fácil vitimização. Apesar da magreza extrema e olhares melancólicos, da precariedade de suas casas e condições de trabalho, eles insistem em colocar uma flor na lapela em farrapos, em cuidar de seu cão, em tecer com sobras industriais pequenas obras de arte manual e se dedicam à música, à dança e à invenção do cotidiano de maneira quase clandestina (CERTEAU, 1994). Nessa dimensão, percebemos mais uma vez no filme que é o olhar da criança que sobrevive à secura da realidade e que esse olhar nos direciona a ver nos demais personagens aquele “[...] menino interior que, em forma de resíduo um pouco bárbaro, todos conservamos [...]”, como diz Ortega y Gasset (1937. p. 47).
A teimosa resistência também remete ao contraste entre a organização comunitária e o individualismo egoísta, e ficará mais clara nas cenas em que um grupo de pessoas, que parece artístico e político, se reúne nos descampados ou nos lixões da cidade e caminha, dançando ao som de flautas-pan, com roupas coloridas e a guarida de uma grande ave colorida. Nessas manifestações, o menino reconhece a música familiar que seu pai tocava no lugarejo de sua primeira infância: a nota de fundo parece cantar humanidade.
Talvez a radicalidade da narrativa de “O Menino e o Mundo” esteja justamente no fato de desnudar essas resistências como parte do território da infância, incorporando à história a dimensão da “condição errante do desejo” (ROSA; BERTA; CARIGNATO; ALENCAR, 2009) do menino, o desejo de encontrar o pai, o desejo de não esperar parado, mas agir sobre o destino.
Por este personagem, perpassam as dimensões da carência e da potência, de imposições e contingências e da vontade de protagonizar a própria história, uma história que anseia ser contata pela subjetivação de um olhar infantil sobre o sofrimento. Mas, principalmente, conta uma história sobre a aventura de crescer e a coragem (dele próprio e de seus companheiros de périplo) de seguir sendo, apesar de tudo.
Os meninos, nós e o mundo: do que dele faremos...
O trágico heroísmo do migrante, frente aos processos de mobilidade forçada, do êxodo rural e do crescimento das metrópoles no Brasil teve um de seus momentos mais impactantes retratado no cinema brasileiro pelo filme “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a partir do livro homônimo de Graciliano Ramos. A trajetória da família agricultora pobre, errando pelo sertão em busca de um lugar para sobreviver, é dada a ver de maneira direta, dura, em tomadas sem filtro, sob o sol do sertão e a influência do neorrealismo do cinema italiano, caro ao diretor e à geração de cineastas do Cinema Novo que se constituía nesse período no Brasil.
Em “Vidas Secas”, no entanto, o protagonismo não recai preponderantemente sobre a experiência infantil. Os meninos sem nome e com poucas falas, filhos de Fabiano e Sinhá Vitória, estão presentes em grande parte das cenas do filme, mas sua presença é sutil e perturbadora, como se estivessem em cena como testemunhas do fracasso de uma existência, na qual a presença dos adultos nada pode garantir em termos de sobrevivência, acolhida e segurança. A aridez do cenário resseca também as relações familiares, expressas em diálogos abruptos, curtos, contidos.
Não obstante, há no filme fragmentos de resistência infantil ante o mundo adulto pouco receptivo, como no momento em que, mesmo agredido pelo pai para que siga caminhando pelo leito do rio seco e quebradiço, o menino se recusa a levantar e acaba sendo carregado nas costas do adulto, o que poderia ser lido como um pequeno triunfo da infância. A resistência também se impõe quando esse mesmo menino balbucia a palavra “inferno” inúmeras vezes, tendo apenas a cadela Baleia como ouvinte, numa cena que parece marcar a transição do personagem à “idade da razão” e à consciência de que o inferno poderia, sim, ser traduzido por sua existência na privação e no desenraizamento.
Outro menino migrante em busca do pai pelo Brasil nos impactou em 1998, em “Central do Brasil”, filme de Walter Salles Junior, que traz a amarga professora aposentada Dora e o teimoso menino Josué ao centro do drama da errância social:
A sina de Dora e Josué mostra que o desenraizado brasileiro é, no fundo, um migrante virtual, um exilado dentro de seu próprio país. [...] Embora o cenário não deixe dúvidas a respeito do momento no qual se passa a história, os desenraizados de Central do Brasil parecem-se mais com os desenraizados de todos os tempos e de todas as regiões do país [...] (SALIBA, 2006, p. 253).
A busca de Josué se dará num caminho reverso ao do personagem de “O Menino e o Mundo”, da cidade grande para os interiores do país, e será também o encontro entre Dora e o menino – cuja mãe foi de fato e da maneira mais bruta atropelada pela cidade – com a alteridade, com as possibilidades de se deixar tocar pela existência do outro e pela resistência de laços de solidariedade, apesar da dor que nos individualiza e endurece.
A experiência infantil nesses dois filmes tem toda a potência de nos ajudar a ampliar o entendimento da constituição das infâncias na cidade, na relação dessas infâncias com os adultos, com o espaço e com a violência
O que parece diferenciar “O Menino e o Mundo” nessa tríade de filmes sobre os pequenos migrantes brasileiros está não apenas na sua linguagem visual e na sua contemporaneidade. Está na coragem de colocar claramente na grande tela uma história que se quer apagar neste momento de profundas transformações no país. Uma história protagonizada por um menino, mas que transcende o drama pessoal de uma criança, extravasa a infância e finalmente diz respeito a todas e todos nós. A animação porta causas históricas, consequências sociais e ambientais que talvez gostaríamos de ignorar. Tudo isso dando-se a ver, paradoxalmente, em meio às mais delicadas relações que se estabelecem sutilmente e que nos convidam a acreditar de novo, com Bauman (2009, p. 90), que “[...] historicamente, a sociedade humana nasceu com a compaixão e com o cuidado do outro, qualidades apenas humanas”.