Das experiências de mulheres encarceradas para a criminologia
Estudiosas e militantes feministas, de Mary Wollstonecraft1 à Judith Butler, de Heleieth Saffioti2 à Simone de Beauvoir, de Angela Davis à Ana Flauzina,3 contribuíram e contribuem para que seja possível enxergar a parcialidade que envolve grande parte dos trabalhos de pesquisa (senão todos) até hoje realizados. Nesse aspecto epistemológico, inicialmente, os maiores alvos das críticas feministas foram os estudos pautados na lógica positivista, pensada para as ciências naturais, mas que se espraiou para as sociais, e que possuía ideais de objetividade, neutralidade, separação radical entre sujeito e objeto e busca pela universalização de conceitos e conclusões.
Dentre as epistemólogas que mais atacam tais noções, temos Susan Bordo, Margareth Rago e Sandra Harding. Esta última será utilizada mais profundamente ao longo deste trabalho. Autoras como estas, ao identificarem o problema da falsa imparcialidade, somam esforços para minar as bases da ideia de cientificidade comumente propagada pelo positivismo, atacando as noções de neutralidade, objetividade e da existência de verdades únicas no campo dos estudos da sociedade. Diante disso, as formulações produzidas por elas e pelos feminismos têm sido cada vez mais atrativas à criminologia, uma vez que esta busca dar respostas mais consistentes aos problemas atualmente colocados diante dela. Isto porque, no que diz respeito às questões criminais, é comum que exista uma multiplicidade de fatores concorrendo para a configuração da realidade tal como ela se encontra, desde questões de gênero, raça e classe, como também questões geográficas, morais ou do Sistema de Justiça Criminal.
A própria criminologia, com profundas raízes positivistas, não escapou das críticas feministas. Um autor importante a reconhecer isto e a defender a imprescindibilidade de um repensar constante sobre esta área do conhecimento é Vincenzo Ruggiero (2008). Ao falar sobre a necessidade de se exercitar a anticriminologia, Ruggiero expõe as insuficiências existentes em diversas correntes criminológicas, explicitando que tanto criminólogos positivistas4 quanto os interacionistas,5 compelidos por um ideal de conhecimento advindo das ciências naturais, constantemente tentam identificar uma teoria geral sobre o crime. Todas as supostas teorias gerais sobre o crime até hoje formuladas, em maior ou menor medida, puderam ser falseadas, sendo este um dos motivos pelo qual se tem alargado a insegurança da disciplina (RUGGIERO, 2008, p. 10). Para ele, nesse aspecto, o papel dos pensamentos feministas foi essencial ao identificar diversas carências dentro da criminologia, como a ausência de autorreflexão que atinge os criminólogos, de modo que estes não se percebem como dotados de gênero, preconceitos, pontos de vista, o que os leva a considerarem a si e suas pesquisas como cientificamente neutras (RUGGIERO, 2008, p. 4).
Tendo este pano de fundo, dividimos o presente trabalho em dois blocos. Em um primeiro momento, a partir da epistemóloga Sandra Harding (1987), será exposto como a exclusão das mulheres e de seus relatos da produção dos saberes está ligada à forma de encarar ou não encarar certos fenômenos sociais, tal qual o encarceramento feminino. Nesse ponto, mostraremos a importância de abordagens que levem em conta a experiência feminina como instrumento de análise, com vistas a retirar os problemas encarados pelas mulheres, especialmente pelas mulheres presas, da invisibilidade. Ainda neste ponto, a contribuição de Eugenio Zaffaroni (1988) será essencial. Para este criminólogo, um conceito central para a criminologia latino-americana deve ser o da necessidade. A partir deste conceito, como veremos, será possível identificar situações que demandam análises criminológicas específicas da nossa margem do mundo.
Na segunda parte do trabalho, partindo das experiências de mulheres encarceradas fornecidas, principalmente, mas não apenas, pelas obras de Nana Queiroz e Debora Diniz, identificamos e selecionamos situações problemáticas recorrentes que serão abordadas a partir de uma perspectiva feminista e criminológica. Os pontos tratados serão: a condição socioeconômica das mulheres presas, a maternidade, o abandono afetivo e a sua relação com o tráfico de drogas.
1 Por que a experiência feminina importa para a criminologia?
A epistemóloga norte-americana Sandra Harding, ao teorizar sobre a exclusão sistemática das mulheres do ponto de vista da produção do conhecimento, parte de uma reflexão que, inicialmente, pode parecer óbvia, mas que impacta a lógica de qualquer saber, incluindo o criminológico. Ela afirma que não existem problemas sem indivíduos, ou seja, um problema só é assim definido quando é um problema para alguém (HARDING, 1987, p. 6). Isso quer dizer, por exemplo, que no caso das mulheres encarceradas uma situação problemática só é assim reconhecida na medida em que é uma experiência vivida por essas mulheres e que pode ser, de alguma forma, comunicada por elas. Disso se segue que somente quando algo pode ser enunciado como um problema - que demanda solução - é possível refletir sobre ele e, posteriormente, atenuá-lo ou extingui-lo.
De acordo com Harding (1987), as pesquisas sociais tradicionais baseiam suas análises somente nas experiências masculinas. Ou seja, geralmente são levantados questionamentos sobre a realidade apenas dentro daquilo que é considerado problemático na perspectiva dos homens (que, não raro, também são brancos e ocidentais), o que gera uma consequência facilmente observável: comumente foram realizadas perguntas que os homens gostariam que fossem respondidas (HARDING, 1987, p. 6). Por outro lado, as mulheres experienciam outros tipos de obstáculos sociais, mas, pelo fato de muitas vezes não poderem enunciar suas experiências, as perguntas feitas por elas ficaram sem resolução.
Os pensamentos feministas, portanto, desafiam o olhar científico tradicional ao revelar que os questionamentos feitos e, principalmente, os que não o são, são determinantes para as respostas que poderão ser encontradas. Definir o que precisa de explicação apenas do ponto de vista das experiências masculinas nos leva a um conhecimento parcial da vida social. Por esse motivo, a incorporação de análises sobre as experiências das mulheres como uma das principais características distintivas dos estudos feministas faz com que tais dados sejam reveladores da realidade social. Nesse sentido, as conclusões obtidas pelas feministas também constituem conteúdo de análise e de verificação das hipóteses de teorias consideradas científicas (HARDING, 1987, p. 7).
O que aparece como uma consequência inevitável da exposição de problemas feita por mulheres com preocupações relacionadas à vivência feminina é que as pesquisas passam, assim, a ser feitas para elas. Ou seja, nelas busca-se responder perguntas que as mulheres necessitam e querem que sejam respondidas (HARDING, 1987, p. 8).
Para Harding, a atenção dada às experiências das mulheres e o fato de as pesquisas estarem voltadas às necessidades e interesses das mulheres são os dois grandes fatores que distinguem as análises feministas das demais. Isso não quer dizer que a autora defenda a existência de um método de análise feminista propriamente dito, mas apenas que esses dois aspectos exemplificativos possam ser utilizados como ferramenta metodológica para a compreensão da estrutura social. Ainda, também podem ser considerados como ferramentas epistemológicas, pois implicam teorias do conhecimento que se diferem das demais. Porém, Harding defende que, antes de se discutir sobre se os feminismos produzem uma nova epistemologia ou metodologia de pesquisa, seria mais interessante discutir e expor aquilo que há de importante e inovador nestes trabalhos (HARDING, 1987, p. 8).
Levando-se em conta a importância da crítica realizada por Harding e com vistas a inserir esta discussão ainda mais no âmbito criminológico, acreditamos que a contribuição de Zaffaroni para uma criminologia latino-americana, atenta às relações entre saber e poder, é essencial. Zaffaroni (1988) produz uma reflexão acerca da produção do conhecimento e de sua parcialidade em sua obra Criminología desde un margen. Diferentemente de Harding, seu contraponto não se faz entre mulheres e homens, mas por meio da oposição entre países centrais e países marginais. Para o autor argentino, as dificuldades na produção do saber criminológico nos países latino-americanos são cinco: a) a classe das quais provém grande parte dos pesquisadores, que muitas vezes estão desconectados da maioria da população de seus respectivos países; b) a noção de “universalidade” que ainda domina as academias e que tende a se pautar na indiferenciação entre centro e periferia; c) como existem diversas margens, há uma pluralidade de conhecimentos marginais, de modo que estes também serão parciais; d) a não aceitação de que a criminologia é um saber (como todos os outros) não isento de valorações, ou seja, não é um saber neutro e, por fim; e) há sempre uma escassez de instrumentos teóricos e metodológicos, pois os existentes estão empregados na análise de fenômenos que nem sempre se conformam com a realidade latino-americana, de modo que nossas produções são comumente encaradas como “heterodoxas”, “pouco científicas”, “intuitivas” etc. (ZAFFARONI, 1988, p. 1-5).
Acreditamos que a análise de Zaffaroni, para fins deste trabalho, é complementar à de Sandra Harding. Isto porque, no sentido de Harding, ele acredita que entrar na questão sobre a existência ou não de cientificidade nos saberes produzidos pelas periferias do globo faz desviar de situações materiais mais importantes, como a própria contribuição dos trabalhos realizados para compreensão e melhoria da vida das pessoas de nossa margem. A espinha dorsal do trabalho de Zaffaroni é a noção de que o poder, em sua forma mais ampla, perpassa toda a produção de conhecimento - de modo que todos os conceitos de ciência e suas classificações resultaram de diferentes momentos do poder nas sociedades centrais e, consequentemente, na transposição mais ou menos vertical desses conceitos aos países periféricos. Portanto, se pretendemos produzir um olhar a partir da periferia para o centro, não podemos seguir os enquadramentos dos últimos, pois estaríamos reembalando suas próprias perspectivas. O que não significa que vamos inventar novas ciências e novas formas de definir a ideia de ciência, mas vamos manejar esse conceito a partir de um critério mais ingênuo, como diz Zaffaroni, que é o da necessidade (ZAFFARONI, 1988, p. 13-14). Nas palavras do próprio criminólogo: “desde nossa margem, o importante é estabelecer se existem ordens de saberes necessários para transformar nossa realidade; e quais são eles, sem entrar em disputas ideológicas vinculadas aos conceitos de “ciência” que vêm condicionados pela estrutura de poder mundial” (ZAFFARONI, 1988, p. 14).6
A ideia de necessidade claramente passa por critérios de valoração e, ainda na perspectiva de Zaffaroni, é necessário aquilo que resulta útil para que as pessoas de nossa margem possam desenvolver suas potencialidades humanas. No caso específico do saber criminológico, ele se torna necessário para explicar a estrutura dos nossos sistemas penais, como funcionam, que efeitos geram, por que e como esses efeitos são mascarados, que relações eles estabelecem com o restante do sistema de controle social e com o poder, que alternativas existem às situações que estão postas etc. A importância em se averiguar as possibilidades de transformação de aspectos da realidade que constituem esses sistemas tem como finalidade a melhora de nossa coexistência, com um nível menor de violência (ZAFFARONI, 1988, p. 20-28), de modo que as pessoas atingidas pelo Sistema de Justiça Criminal possam desenvolver cada vez mais suas potencialidades humanas e sejam cada vez menos vitimadas por ele.
Tal critério de necessidade, apesar de, como dito, ser valorativo, não é estranho para os estudos feministas. Mesmo com a existência de grandes diferenças entre as mais diversas correntes feministas, existe algo em comum entre elas: tanto intelectualmente, quanto politicamente, o que lhes dá sentido é refletir sobre a vida das mulheres a partir do que está dado e daquilo que poderia ser e, dessa forma, propor modos para melhorar a vida das mulheres, a fim de que elas possam desenvolver suas potencialidades da maneira mais plena possível e livre de opressões.
Nesse sentido, uma definição interessante de necessidades reais aparece também na obra de outro grande criminólogo, Alessandro Baratta (2004), segundo o qual necessidades são potencialidades de existência e da qualidade de vida das mulheres, dos homens, dos povos, de modo que correspondem a um dado grau de “desenvolvimento e da capacidade de produção material e cultural em uma formação econômico-social”, sendo que os direitos humanos são a projeção normativa de tais potencialidades e a história de violação dos direitos humanos é a história da repressão das necessidades reais das pessoas e dos povos (BARATTA, 2004, p. 337).
Como se deriva das ideias de Harding e Zaffaroni, o exercício de epistemologias feministas e latino-americanas está diretamente ligado ao que se impõe como necessário também na materialidade da vida. E essas necessidades têm sido cada vez mais visíveis e teorizáveis por causa dos depoimentos de mulheres, pois estas experiências particulares comumente desembocam em fenômenos coletivos e fazem com que o conhecimento feminista possa se opor aos esquemas abstratos e excludentes do positivismo masculinamente universalizante. É especificamente por este motivo que a experiência das mulheres importa para a criminologia, já que contribui para a compreensão da criminalidade feminina, suas consequências e possíveis enfrentamentos.
Portanto, o movimento proposto entre a teoria e a prática é esse: a partir de pesquisas criminológicas, que se centram na experiência das mulheres encarceradas, é possível que diagnostiquemos fenômenos sociais problemáticos cujas respostas e soluções são necessárias para que haja uma melhora na vida das mulheres atingidas pelo sistema penal - partindo-se de uma perspectiva que tem como horizonte a abolição do cárcere como o único meio de acabar com o sofrimento causado por esse sistema seletivo e opressor. A teoria não é dispensável à prática, antes de tudo, a primeira permite desnudar situações problemáticas, que comumente estão naturalizadas, dando sentido à segunda.
2 As experiências de mulheres encarceradas aplicadas à criminologia
Como uma das formas de compreender, portanto, a relação do feminino com o sistema de justiça criminal, serão utilizadas experiências de mulheres encarceradas como forma de desnudar situações problemáticas. Não só porque a questão das mulheres autoras de delito foi historicamente negligenciada pela criminologia, mas também porque, atualmente, vivemos um crescimento exponencial da população carcerária feminina.7
As principais fontes de experiências vividas por mulheres encarceradas foram os livros Presos que Menstruam, da jornalista Nana Queiroz (2015), e Cadeia: Relatos sobre mulheres, da antropóloga Debora Diniz (2015). No entanto, outras fontes bibliográficas, inclusive de testemunhos, também foram utilizadas, bem como dados estatísticos, a exemplo do INFOPEN, que ajudaram a consubstanciar os relatos. Estes trabalhos permitem localizar alguns traços comuns que perpassam a experiência de vida e prisão da maior parte destas mulheres. Os aspectos escolhidos para serem trabalhados, por serem considerados mais necessários, recorrentes e/ou negligenciados, são as condições socioeconômicas, a maternidade, o tráfico de drogas e o abandono afetivo. Estes quatro pontos, sem dúvida, não cobrem toda a complexidade deste universo prisional, porém, são capazes de ilustrar as principais situações encaradas por estas mulheres.
Marcando a diferença das pesquisas feministas daquelas de cunho positivista, ao se aproximar de seus “objetos de análise”, Queiroz (2015) estabelece ter adentrado o mundo das prisões “lembrando ser uma mulher falando com outras mulheres. Trouxe meu olfato, meu paladar, minha visão, minha audição e meu tato” (p. 18). O conhecimento produzido no marco dos feminismos, ao trazer consigo a crítica da neutralidade científica, mostra a importância de que tanto sujeito quanto objeto sejam sempre localizados em contextos sociais, históricos e geográficos. Como afirma Pierre Bourdieu (2014) no livro A dominação masculina, o olhar daquele que busca conhecer algo não é um poder universal e abstrato, mas sim um poder simbólico, cujo resultado alcançado - aquilo que efetivamente se enxerga - dependerá da posição relativa tanto do observador quanto do objeto (BOURDIEU, 2014, p. 94).
Assim, tanto Queiroz quanto Diniz não ignoram suas posições de mulheres que escutam outras mulheres. Pesquisadoras feministas, como elas, fizeram e fazem com que as autoras de delitos se tornem visíveis, não só criticando os saberes acumulados até hoje, mas também evidenciando o sexismo institucionalizado na teoria e na prática criminológica (ou de política criminal).8
2.1 Vulnerabilidade social: perfil socioeconômico das mulheres presas no Brasil
A pobreza fez com que a cabeça amadurecesse tão logo as curvas tomaram forma. Começou a trabalhar desde quando pôde, ajudando nas tarefas de casa, inicialmente, depois em pequenos trabalhos informais [...] seu primeiro emprego com registro profissional foi aos 14 anos (QUEIROZ, 2015, p. 23).
Esse excerto retirado do livro de Queiroz é um, dentre muitos, que evidencia a condição de extrema pobreza e vulnerabilidade social às quais estão submetidas as mulheres encarceradas. Esta realidade, a princípio, não as afasta da grande massa carcerária masculina, que também faz parte dos setores mais marginalizados do país, cujo aprisionamento funciona como uma forma de controle social dos excluídos, desempregados, favelados, “perigosos” etc. Porém, em conjunto com outros fatores a serem vistos adiante, as peculiaridades delas ficarão mais evidentes.
A prisão no Brasil tem funcionado, então, como local propício para retirar de circulação pessoas, geralmente, já excluídas do mercado formal de trabalho e/ou consumo (Vera Regina P. de ANDRADE, 2012, p. 164-166). O aumento massivo do número de mulheres presas está ligado, dentre outros motivos, à paulatina inserção da mulher na vida pública. Isto porque, mesmo com o suposto ganho de autonomia, elas ainda se encontram em uma posição subalterna tanto no mercado de trabalho, quanto em outros setores da chamada “vida pública”. A entrada da mulher no mundo do trabalho assalariado está marcada por características de emprego mais precarizadas (part-time jobs), trabalhos informais e com desnível salarial em relação aos homens (Ricardo ANTUNES, 2001, p. 108).
Além das mulheres estarem mais ligadas aos empregos informais (mal pagos e com mais dificuldades de acesso às garantias trabalhistas), um dado importante é que, dos trabalhadores informais que realizam suas atividades em casa, 82,8% são mulheres (Denise CARREIRA, 2004). O que se deriva disso, dentro do sentido da divisão sexual do trabalho ainda existente em nossa sociedade, é que as mulheres continuam economicamente mais vulneráveis e responsáveis pelo cuidado doméstico. O dever de cuidar dos filhos em casa, enquanto ganham algum tipo de sustento para a família, está entre os fatores que atraem as mulheres para a economia informal, seja ela legal ou ilegal. Há nessa situação a concretização da dupla jornada de trabalho das mulheres, que além de se responsabilizarem pelos trabalhos domésticos, ainda precisam compor - parcial ou completamente - a renda da família.
Nesse sentindo da pobreza estrutural, o critério de necessidade trabalhado por Harding e Zaffaroni pode ser encarado em duas ordens, a da necessidade material, de manutenção familiar, imposta às mulheres, que muitas vezes recorrem ao crime como meio de supri-la, e da necessidade teórica imposta à criminologia para que esta compreenda esse fator de criminalidade como possuidor, também, de efeitos genderizados. Ou seja, diferentes para homens e mulheres.
A dificuldade de encontrar trabalho - seja pela escassez da crise atual, pelo preconceito que elas ainda enfrentam nessa seara, seja pela impossibilidade de “terceirizar” o cuidado de seus filhos - supostamente faz com que muitas mulheres em situação de vulnerabilidade social realizem pequenos delitos para complementação de renda, como o furto e tráfico de drogas. Estes dois crimes são responsáveis por 71% do aprisionamento feminino, hoje, de acordo com o INFOPEN Mulheres, informativo produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional (BRASIL, 2018).
O perfil socioeconômico traçado pelo levantamento do DEPEN confirma parte daquilo que é afirmado por Debora Diniz (2015): as mulheres do presídio são muito parecidas entre si,
uma em cada quatro viveu em reformatórios na adolescência, muitas sofreram violência, usaram drogas e sobreviveram perambulando pelas ruas. São mulheres jovens, negras, pobres e com filhos. Comumente chegam à Penitenciária Feminina do Distrito Federal pelo confuso crime de tráfico de drogas (p. 9).
Os dados socioeconômicos mais marcantes são os seguintes: 50% das mulheres privadas de liberdade possuem entre 18 e 29 anos; 62% delas são negras; 62% são solteiras; 5% não possuem qualquer educação formal, 45% possuem ensino fundamental incompleto, 15% têm apenas ensino fundamental completo e apenas 15% concluíram o ensino médio (BRASIL, 2018, p. 37-45).
Infelizmente, o INFOPEN não traz informações sobre suas rendas ou se trabalhavam antes da prisão, mas sem dúvida o que foi apresentado já ilustra a situação precária em que as mulheres privadas de liberdade se encontram mesmo antes da reclusão. A entrada na criminalidade é marcada por todo esse contexto de pobreza e visa ao acesso à renda que a economia formal lhes nega.
Por fim, uma última situação, que demonstra a relação da vulnerabilidade social com a aproximação da criminalidade, é das estrangeiras presas no Brasil. Da mesma forma que as presas brasileiras, as estrangeiras têm sido presas por tráfico de drogas, grandes redes de tráfico internacional costumam aliciar mulheres miseráveis para fazer serviços arriscados - pagando muito pouco. Em geral, são contratadas para atravessar fronteiras transportando as substâncias proibidas em seus corpos. Esse tipo de conduta é a mais comum entre as presas estrangeiras; 97% respondem pelo crime de tráfico de drogas nessas condições (QUEIROZ, 2015, p. 160).
Parte das estrangeiras, utilizadas como “mulas”, também é portadora do vírus da AIDS e morava em locais onde o tratamento não é fornecido gratuitamente pelo governo ou é fornecido de forma precária. Sabendo disso, os aliciadores utilizam o fato de o Brasil fornecer os medicamentos necessários, mesmo às pessoas presas, para convencê-las de que até a prisão no Brasil é uma alternativa melhor do que ficar doente e pobre em seus países de origem (QUEIROZ, 2015, p. 160).
A vulnerabilidade dessas mulheres é tão extrema que alguns estudos, ainda bastante tímidos, têm percebido uma relação entre o tráfico internacional de drogas e o tráfico internacional de pessoas, que tem vitimado essas “mulheres-mulas”.9 Um caso marcante, mas não isolado, trazido por Nana Queiroz (2015), é o de Romina:
Romina aprendeu, então, que tinha servido de “mula” - o mesmo nome dado ao animal sem inteligência que transporta os pesos da roça. Como mula, não tinha questionado a carga, trabalhara quase em troca de comida e água e tomar a chicotada em silêncio para não sofrer ainda mais (p. 158).
2.2 Tráfico de drogas: mais uma face da divisão sexual do trabalho
No ano de 2006, entrou em vigência a atual Lei de Drogas - 11.343, que possui penas bastante elevadas para o crime de tráfico de drogas, além de possuir uma redação bastante ampla e nebulosa. Seu principal artigo - aquele que mais prende - é o 33:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Nesse artigo temos dezoito verbos, que remetem a atividades bastante diferentes entre si, mas que redundam na mesma pena. Além disso, é uma norma penal em branco, heterogênea e, portanto, para realmente entender em que consiste o crime de tráfico de drogas, há a necessidade de verificar-se a Portaria n. 344/98/MS e sua lista de substâncias com uso proscrito no Brasil.
O próprio enquadramento de determinada atividade ao art. 33 é extremamente arbitrário, haja vista que o art. 28, da mesma lei, que dá tratamento penal ao usuário ou usuária, possui cinco verbos que se repetem: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo, cabendo ao magistrado definir se aquela acusada responderá pelo crime de tráfico de drogas ou se será encarada como usuária e, por isso, terá consequências reduzidas.10 Essas nebulosidades existentes na lei são chamadas pelo criminólogo Salo de Carvalho (2014) de dobras de legalidade, que por seus silêncios e excessos deixam na mão de juízes uma grande margem para interpretação (p. 115). O parágrafo 2º do art. 28 deixa ainda mais evidente o poder discricionário que possui o magistrado, pois permite que ele decida se a droga era destinada ao uso pessoal considerando questões como a natureza e quantidade da substância, bem como o local da apreensão e as condições sociais e pessoais da pessoa que portava a droga.
Diante do atual cenário do cárcere no Brasil, é seguro dizer que se tem interpretado esses vazios a partir do olhar do punitivismo. O judiciário condena mulheres como traficantes, quando, em muitos casos, elas são apenas usuárias e, por esse motivo, carregavam consigo pequenas quantidades de drogas. Um estudo realizado na Penitenciária Madre Teresa Pelletier,11 com entrevistas a 287 presas para verificar a relação das internas com o uso de drogas, revelou que quase 40% delas preenchiam critérios que caracterizam a dependência química (Irani ARGIMON et al., 2010, p. 124). Em suas entrevistas, Queiroz (2015) também se depara com esta realidade:
Os dentes eram judiados, a pele, marcada por anos que não vivera. Se não tinham culpa da loucura, ao menos as drogas não haviam colaborado com a conservação do seu corpo mirrado. Gardênia fazia rir do estereótipo de que traficante não era usuário. Ela encarava qualquer coisa que fizesse a rotina ficar mais leve (p. 33).
Dentre os fatores que ajudam a compreender o aumento assombroso do encarceramento feminino temos, então: a) a nova Lei de Drogas demonstra ter adotado uma política criminal mais intensa contra as drogas (“guerra às drogas”) e as populações marginais associadas ao tráfico destas, a exemplo das penas bastante elevadas e à tipificação do tráfico de drogas como crime hediondo; b) além do tratamento severo já dado por esta lei, as dobras de legalidade ainda dão uma grande margem decisória e punitiva para o judiciário.
Quando nos referimos às mulheres que realmente trabalham com o comércio de drogas ilícitas, a perspectiva antes mencionada da divisão sexual do trabalho é importante. O papel que a mulher desempenha dentro das redes de tráfico tem seguido a lógica de funcionamento da divisão sexual do trabalho lícito, que se pauta na manutenção das atividades femininas em serviços subalternos e das masculinas em papéis de liderança. De acordo com Barbara Musumeci (2001, p. 4-5), dentre as mulheres presas por tráfico de drogas, temos as: buchas,12 consumidoras, mulas,13 vendedoras, vapor,14 cúmplices, fogueteiras,15 distribuidoras, traficantes, gerentes, donas de boca e caixas/contadoras. No entanto, não é comum que elas estejam nas posições de liderança, como “donas da boca”. Debora Diniz menciona que, durante seus quatro anos de pesquisa na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, nunca conheceu uma traficante semelhante à de líder de facção criminosa.
De forma geral, elas desempenham papéis inferiores e mais desprotegidos, embalando, armazenando ou transportando drogas, o que as deixa mais suscetíveis a flagrantes, enquanto os verdadeiros chefes do tráfico geralmente são homens altamente protegidos. Quando responsáveis pelas vendas de drogas no varejo, acabam auferindo lucros mínimos se comparados àqueles percebidos ao final da cadeia de produção. A opção por lidar com a questão das drogas através de políticas criminais (e não de saúde) incide, principalmente, sobre os indivíduos mais desprotegidos da cadeia do tráfico - aqueles que realizam tarefas de pouca relevância e pouca remuneração no mercado transnacional de drogas - e tem redundado no encarceramento em massa que se vive hoje no Brasil (Raquel da Cruz LIMA, 2015a).
Outra questão importante, que se liga diretamente à divisão sexual do trabalho, são as motivações que levam as mulheres a “optarem” pelo tráfico de drogas. Os poucos trabalhos oferecidos a elas, muitas vezes, as retiram do cuidado de seus filhos e dos afazeres domésticos, além de serem mais exploratórios, com baixa remuneração e de menor prestígio (Luciana de Souza RAMOS, 2012, p. 109). Assim, o comércio de substâncias ilícitas, apesar de não necessariamente apresentar maior prestígio, dadas as posições que assumem, ao menos lhes dá maior retorno financeiro e mais flexibilidade para lidar com suas outras “obrigações” do lar (RAMOS, 2012, p. 109-110).
Por estarem, então, em funções menos privilegiadas, mais precárias e de maior exposição, as mulheres acabam ficando mais suscetíveis às abordagens da polícia. Ainda, pela situação de vulnerabilidade e baixa remuneração, possuem menores poderes de barganha com as autoridades, seja ilegalmente, por meio de subornos, ou legalmente, fazendo o uso de delações premiadas e outros benefícios processuais capazes de reduzir suas penas (RAMOS, 2012, p. 110). Essas também podem ser razões que expliquem a alta taxa de aprisionamento feminino por tráfico de drogas.
Um dos locais em que parte considerável das mulheres é presa, e que ilustra muito bem a sua posição no tráfico de drogas, é no presídio masculino, em dias de visita. No procedimento da revista vexatória ou por bodyscan muitas mulheres são presas em flagrante transportando pequenas quantidades de drogas para os homens que estão presos. Essa apreensão dentro do sistema prisional resulta, ainda, em um aumento de pena.
Aos poucos, vai se delineando como o testemunho das mulheres - sem prejuízo de outros tipos de pesquisas, como as quantitativas ou outras formas de pesquisa bibliográfica - tem auxiliado a criminologia a operar conceitos que há pouco lhe eram estranhos, como o gênero, o sexo, a divisão sexual do trabalho, a maternidade e o afeto, como veremos a seguir.
2.3 A maternidade e a prisão
De acordo com o INFOPEN Mulheres, 74% das encarceradas possuem filhos, sendo que 18% delas possuem um filho, 20% dois filhos e 37% possuem três ou mais (BRASIL, 2018, p. 52). Portanto, logo se vê que a maternidade é uma questão central para se pensar o aprisionamento feminino e aqui não existem respostas fáceis. Se é inegável, pois, que para a criança os cuidados de sua mãe são imprescindíveis, por outro lado, não há como se ignorar que as penitenciárias, mesmo que possuam estrutura de berçário e creche, não estão entre os locais mais adequados para crianças. Os pequenos também sofrem restrição de liberdade e de contato com a pluralidade do mundo e das pessoas, o que não deixa de ser uma pena sem culpa. Nesse sentido, apontam Diniz (2015) e Queiroz (2015):
O menino é sorridente. Como todos os nascidos em presídio, estranha homem e não se oferece à mulher de preto. É o mais adulto dos bebês da Ala A, há onze meses tem uma banheira de plástico como berço (DINIZ, 2015, p. 130).
Grades e jaulas fazem parte do pequeno mundo de Cássia, são tudo que ela conhece. Sua mãe, Francisca, foi detida ainda grávida [...] Cássia nasceu presa, como centenas de outros bebês brasileiros (QUEIROZ, 2015, p. 115).
Relatos como estes têm o poder de trazer sensibilidade aos números e às leis, dão cara, nome e até cheiro ao sofrimento que é contado por elas. Não devem, portanto, ser encarados como uma forma de manipulação sensacionalista, mas como uma forma de negação do dever positivista de afastar as emoções das pesquisas, pois o sentir é parte constitutiva da vida e, portanto, da teoria feita sobre ela.
Ao enfrentar o tema das crianças encarceradas, o legislador constituinte, no art. 5º, inc. L, optou pela permanência da criança no cárcere durante o período de amamentação. Em respeito a esta disposição, a Lei de Execuções Penais, art. 83, §2º, estabeleceu que os estabelecimentos penais, destinados às mulheres, devem possuir berçários para que as mães possam amamentar seus filhos pelo período mínimo de seis meses. No art. 89 da mesma lei estabelece-se que as penitenciárias femininas devem ser dotadas de seção para gestante e parturiente, além de creche para abrigar crianças maiores de seis meses e menores de sete anos (BRASIL, 1984). Ainda, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, na Resolução nº4 de 2009, postulou que:
Art. 2º Deve ser garantida a permanência de crianças no mínimo até um ano e seis meses para as(os) filhas(os) de mulheres encarceradas junto às suas mães, visto que a presença da mãe nesse período é considerada fundamental para o desenvolvimento da criança, principalmente no que tange à construção do sentimento de confiança, otimismo e coragem, aspectos que podem ficar comprometidos caso não haja uma relação que sustente essa primeira fase do desenvolvimento humano; esse período também se destina para a vinculação da mãe com sua(seu) filha(o) e para a elaboração psicológica da separação e futuro reencontro (CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, 2009).
Apesar de estes três documentos garantirem o direito das crianças de permanecerem com suas mães em locais adequados nos presídios, a prática tem sido diferente. Nos dados trazidos pelo INFOPEN Mulheres das Unidades Femininas, 50% não possuem dormitórios adequados para gestantes e lactantes, apenas 14% dos estabelecimentos possuem berçário ou centro de referência materno-infantil e somente 3% possuem creche (BRASIL, 2018, p. 31-33). Ou seja, há um completo descaso - inconstitucional e ilegal - com o direito tanto das mães quanto dos bebês de permanecerem juntos por um período mínimo e em condições dignas.
São duas as principais consequências deste descaso nas estruturas dos presídios; ou as mães ficam com as filhas e filhos de até seis meses (período mínimo de amamentação) em locais despreparados para o cuidado de recém-nascidos; ou elas são transferidas para presídios que possuam estrutura de berçário e/ou creche. Neste segundo caso, o que ocorre é que as mães, ao serem transferidas, acabam afastando-se dos(as) filhos(as) que estão fora da prisão, diminuindo ou acabando completamente com o contato entre eles(as). Algumas mulheres preferem não ficar com a criança recém-nascida nem mesmo pelo tempo mínimo, justamente para não ficarem tão afastadas das outras crianças.
Os filhos que ficam fora da prisão também são fonte de grandes angústias e incertezas para as mães, pois elas nem sempre possuem parentes que possam cuidar das crianças. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em entrevistas com as presas do estado, realizou um estudo chamado “Mães em Cárcere”. Nesse estudo vê-se que, quando não há familiares aptos ao cuidado, as crianças têm sido encaminhadas para a adoção, abrigos ou Fundação Casa. Em alguns casos, as mães não souberam informar onde estavam seus filhos ou informaram que estavam em situação diversa das supracitadas (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2015). Queiroz enfrentou casos como estes diversas vezes em suas entrevistas:
O destino das mães é decidido em varas criminais e das crianças, em varas de infância e juventude. Esses dois departamentos da justiça brasileira não estão conectados, ainda, por nenhum sistema informatizado. Assim, cada causa segue tramitando como se a outra não existisse [...] Durante o processo, os fóruns enviam intimações para o endereço dos pais que tem registrado em seus arquivos. Essas cartas chegam às antigas casas das presas e ficam mofando nas caixas de correio. Elas nunca descobrem que foram convocadas a depor e manifestar interesse por manter seus filhos e faltam às audiências. O Estado entende ausência como desinteresse e mergulha a criança no burocrático e ineficiente sistema de abrigo de adoção (QUEIROZ, 2015, p. 95).
Ainda, se boa parte das mulheres decide cometer delitos patrimoniais para conferir aos familiares melhores condições de vida, seu aprisionamento gera impactos devastadores na economia familiar, deixando crianças e outros dependentes em condições de miserabilidade ainda piores, gerando um círculo vicioso de pobreza e criminalidade. De acordo com Renato Freitas (2017), para além da prisionização primária16 já tratada por vários criminólogos e criminólogas, ainda existe a prisionização secundária que “recai sobre os familiares, amigos e conhecidos dos presos; todos aqueles que fazem parte do núcleo de sociabilidade do egresso são mais ou menos afetados pelos valores culturais e pelos influxos de toda ordem que tem no egresso seu vetor” (FREITAS, 2017, p. 40). Assim, a prisionização secundária busca expor como o núcleo afetivo de pessoas presas também é afetado pelos valores apreendidos no cárcere e ao pensarmos na situação das crianças (em especial, aquelas que permanecem presas com suas mães) essa ideia parece ainda mais evidente.
A formulação sobre a prisionização secundária, trazida por Freitas, propõe que, mesmo sem nunca terem sido presos, os indivíduos que pertencem ao campo17 cuja prisão faz parte conhecem as normas e estão familiarizados com o ambiente prisional (FREITAS, 2017, p. 59). Conhecer tais normas significa absorvê-las e agir de acordo com elas (“aculturação”), incorporá-las ao habitus.18 Esses comportamentos são identificados pelos agentes de polícia como estigmas e, muitas vezes, redundam no aprisionamento dos atingidos pela prisionização secundária. Testemunhos sobre os efeitos da prisionalização secundária também são identificados por Queiroz (2015):
Quando a polícia finalmente pôs as mãos em Gardênia, ela já estava com a gravidez avançada. Não que isso, em momento algum, tenha lhe rendido tratamento especial. Quando foi detida, Gardênia foi jogada com violência dentro da viatura e teve uma bolsa pesada atirada contra sua barriga.
- Ai!
- Tá reclamando do quê? Isso é outro vagabundinho que vem vindo no mundo!
[...] A ninguém importava Gardênia ou com o bebê que carregava. Eles eram o resto do prato daquela sociedade. O que ninguém queria comer. E seu filho já nascia como sobra (p. 71-72).
Não parecem satisfatórias - e nem atendem ao superior interesse da criança19 - nenhuma das principais possibilidades até hoje traçadas: a prisão com a mãe ou o afastamento entre mães e crianças. Uma terceira opção, que ainda tem sido pouco autorizada pelo judiciário, é a prisão domiciliar - com ou sem monitoramento eletrônico. A prisão domiciliar parece ser a alternativa que melhor atende tanto aos interesses do Estado, no cumprimento da pena pelas sentenciadas, quanto aos interesses das mulheres presas e de suas famílias. Até 2015, o art. 318 do Código de Processo Penal era mais restritivo com relação às pessoas para as quais a prisão domiciliar poderia ser concedida.
De acordo com a redação antiga do art. 318 do CPP, naquilo que concerne às mulheres-mães, o magistrado poderia decretar prisão domiciliar quando imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos ou com deficiência (inc. III) ou quando elas estivessem grávidas a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo a gravidez de risco (inc. IV). Com as alterações feitas pela Lei 13.257 de 2016, o juiz poderá conceder prisão domiciliar às gestantes (inc. IV) e mulheres com filhos de até doze anos incompletos (inc. V). Portanto, vê-se que o art. 318 tornou-se mais permissivo à possibilidade de concessão de prisões domiciliares.20 Porém, não se pode olvidar de que esta ainda é uma faculdade do juiz, não estando ele obrigado a realizar qualquer mudança no regime prisional no que diz respeito às domiciliares. Cabe nesses casos - como em outros vistos neste trabalho - o juízo de valoração do magistrado, que supostamente analisa a adequação, necessidade e suficiência da substituição, mas que muitas vezes decide pautado em preconceitos de raça, classe e gênero. Desse modo, é possível que, na prática, essas mudanças legislativas não tragam muitos resultados.
2.4 Abandono afetivo: a solidão das mulheres presas
Maria Aparecida tem 57 anos, 20 filhos, 19 netos, 5 bisnetos e nenhuma visita - nem sequer um Sedex - nos últimos dois anos e oito meses. Parece ter se acostumado ao isolamento (QUEIROZ, 2015, p. 179).
Assim como Maria Aparecida, a maior parte das mulheres que são presas se depara com uma enorme solidão, solidão que ultrapassa aquilo que se espera da própria pena de privação de liberdade. Esse quadro é evidenciado, principalmente, pela escassez de visitas que as apenadas recebem. Elas passam a ser progressivamente abandonadas e este abandono está muito ligado às frustrações de expectativas (dos papéis de gênero) que a sociedade nutria com relação a elas. Esta transição da mulher-mãe para a mulher-criminosa vem combinada a um desarrimo intenso por parte do judiciário, dos funcionários e funcionárias do presídio e, especialmente, da família (LIMA, 2015b).
Nos presídios masculinos a fila de visitas costuma ser bastante expressiva, inclusive com muitas visitas íntimas. Por outro lado, nas femininas, este número é sempre baixo. Além da frustração de expectativas, outras causas para tal desamparo são: a) dificuldades financeiras para que os familiares se desloquem até os presídios, isso porque, como há um baixo número de presídios femininos - se comparados aos masculinos -, é comum que as presas estejam cumprindo pena em locais distantes da cidade de origem;21 b) os dias e horários das visitas, em várias penitenciárias, são em dias de semana, o que impede que pessoas que trabalham ou as crianças e jovens que estudam possam visitá-las com frequência;22 c) a existência de revistas vexatórias; d) várias presas consideram o ambiente prisional degradante e inadequado para seus familiares e, por isso, abrem mão das visitas (Gisetti BRANDÃO et al., 2015, p. 20).
O descaso por parte dos antigos companheiros também é uma constante. É bastante comum, no relato das mulheres, a narrativa de terem sido abandonadas por eles pouco após terem sido presas. Quando um homem é preso, a história é completamente diferente; basta ir a uma penitenciária masculina em dia de visita para notar a imensa fila de mulheres que esperam do lado de fora para serem autorizadas a adentrar o estabelecimento. Após a prisão do homem, as mulheres da casa (mãe, filhas, irmãs, esposas e companheiras) costumam comparecer toda semana para dar o apoio emocional para o apenado; são mulheres que se mantêm fiéis e despendem dinheiro e tempo para estarem naquele local (Brenda DAVIM; Cátia LIMA, 2016, p. 143). É o cuidado feminino, culturalmente gestado, que se estende do lar para a prisão. De uma forma geral, os homens não se sentem pressionados a assumir este papel de cuidado após a prisão de suas companheiras (ou mães, irmãs, filhas etc.), pois é um papel historicamente exercido por mulheres, assim, eles não tendem a considerar a prisão delas como um problema familiar, mas como um problema individual (DAVIM; LIMA, 2016, p. 143). Constatação semelhante é feita por Diniz (2015):
Quinta-feira, dia de visita, o pátio não é mais todo branco. Os brancos puros minguam, a massa é laranja. Só agora vejo a raridade dos visitadores. Eles têm gênero na gramática da sobrevivência: são mulheres visitando mulheres. Pensei que as visitadoras eram parentes, mães, irmãs ou filhas de presas. Descobri que a estatística do presídio traía minha percepção [...] As preferidas são aderentes, as amigas de presas (DINIZ, 2015, p. 101).
Nesse cenário, é possível deduzir que, por si só, as visitas íntimas já seriam bastante raras, no entanto, a administração de vários presídios agrava ainda mais essa situação de abandono. A Lei de Execuções Penais, em seu art. 41, inc. X, define que é direito do preso a “visita do cônjuge, companheiras, de parentes e amigos em dias determinados”, no entanto, o artigo não faz menção à visita íntima. Isso faz com que em vários estabelecimentos prisionais, em especial nos femininos, a visita íntima não seja considerada um direito, mas sim uma regalia (Mariana Costa GUIMARÃES, 2015, p. 68).
Em pesquisa realizada no Presídio Feminino de Piraquara, na região metropolitana de Curitiba, que também colheu diversos relatos, constatou-se que quase nenhuma mulher recebia visitas íntimas. Ao serem indagadas sobre como se sentiam, muitas responderam que se percebiam como “lixos” ou como “animais” pela forma como eram tratadas na prisão (Katie ARGUELLO; Mariel MURARO, 2015, p. 389- 417).
Pelo fato de a visita íntima não constar expressamente na LEP, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária produziu a Resolução nº 1 do ano de 1999, que “recomenda aos Departamentos Penitenciários Estaduais ou órgãos congêneres que seja assegurado o direito à visita íntima aos presos de ambos os sexos, recolhidos aos estabelecimentos prisionais” (CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, 1999). Já, no ano de 2011, o CNPCP editou a Resolução nº 4, que recomendava que o direito às visitas íntimas também fosse garantido às pessoas LGBT (CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, 2011). Todavia, como estas são apenas recomendações, em muitos locais ainda são colocados diversos obstáculos para que as visitas íntimas às presas ocorram, sejam eles burocráticos, morais ou físicos (como falta de local adequado para os encontros).
A falta de norma expressa faz com que as decisões com relação à visita íntima fiquem nas mãos da administração dos presídios e, enquanto nos presídios masculinos esse tipo de visita é a regra, haja vista ser considerada um fator que diminui a tensão do local (GUIMARÃES, 2015, p. 70), nos femininos é ainda visto como um tabu. O que fica bastante claro é a existência de um paternalismo discriminatório em relação à sexualidade feminina. Por meio da burocratização, as mulheres presas acabam sendo desestimuladas a possuírem uma vida sexual. Ainda, não há uma coerência na aplicação das penas no Brasil, de modo que cada presídio funciona de determinada forma e há necessidade de adaptação constante das presas às crenças dos novos diretores ou diretoras prisionais (Samantha BUGLIONE, 2000).
Uma consequência de não se receber qualquer tipo de visita é que algumas mulheres passam seu tempo de prisão sem as chamadas “sacolas”,23 portanto, possuem apenas aquilo que é fornecido pela instituição prisional e, geralmente, não é o suficiente. Um exemplo dessa precariedade chamou atenção, no ano de 2015, quando veio a público a falta de absorventes íntimos em diversas prisões femininas do país. Em Curitiba, o projeto Mulheres pelas Mulheres, com apoio da OAB/PR, fez uma campanha de arrecadação de absorventes que foram destinados às prisões femininas localizadas em Piraquara/PR, numa tentativa de colaborar com a falta do item. Sobre as sacolas, diz Queiroz (2015):
Itens de higiene se tornam mercadoria de troca para quem não tem visita. Algumas fazem faxina, lavam roupa ou oferecem serviços de manicure para barganhar xampu, absorvente, sabão e peças de roupa (p. 182).
Além disso, uma segunda consequência da destruição dos vínculos de afeto que as mulheres presas possuem é o desenvolvimento de uma grande dependência das presas com relação à instituição prisional, seja para com as outras internas ou para com o corpo de funcionárias e funcionários. O documentário O Cárcere e a Rua, da diretora Liliana Sulzbach (2004), conta parte da história de três presas e nos mostra, exatamente, a relação de dependência que elas criam com o ambiente prisional, o que resulta em um grande temor em sair do regime fechado. É possível perceber que, com afastamento de todas as pessoas com as quais elas eram ligadas antes da condenação, a rotina e amizades do presídio acabam se tornando uma nova fonte de segurança para elas, de modo que pensar no mundo extramuros lhes causa diversos receios, dentre eles, o de mais solidão (BRASIL, 2004).
No cárcere, todas as condições de vida se deterioram, mas, para as mulheres, esta destruição parece ser ainda maior. De acordo com Arguello e Muraro (2015), quando presas, as mulheres sofrem com a intensa falta de comunicação com seus familiares, com o abandono forçado do exercício do papel de mãe, além das sanções disciplinares características desta instituição total e das disputas de poder. A elas também são impostas atividades que reproduzem duplamente o papel que lhes foi socialmente designado, em primeiro lugar como mulheres e em segundo como membros de setores empobrecidos. Suas tarefas costumam ser, portanto, de limpeza, cozinha e costura, o que reproduz neste microcosmo papéis de subalternidade de gênero e classe ainda comuns no restante da sociedade (ARGUELLO; MURARO, 2015, p. 407).
Importante notar que, para além do sofrimento que o aprisionamento gera indistintamente às pessoas, há, no caso do encarceramento feminino, um plus de dor em diversas situações. Sejam elas geradas pela posição de maior vulnerabilidade social e econômica em que as mulheres se encontram, pelas questões de maternidade ou abandono afetivo mais profundo pelo qual passam.
3 Conclusão
O relato de experiências vividas por mulheres como uma das principais marcas das produções feministas deve cada vez mais fazer parte das pesquisas acadêmicas pois, como vimos com Sandra Harding (1987), por meio dele é possível que tenhamos acesso a questões que antes estavam silenciadas, justamente, por não se enquadrarem em modelos científicos tradicionais. Os relatos trazidos em obras como as de Queiroz (2015) e Diniz (2015) possuem mais do que valor literário (sem dúvida também louvável); eles denunciam problemas sociais de raízes históricas profundas e isto não pode ser olvidado ou considerado menos academicamente relevante.
Trazer as experiências das mulheres presas para dentro da criminologia é acender uma luz para que a disciplina deixe de mantê-las na escuridão. Assim, aos poucos, graças, também, aos relatos de pesquisas feministas não conformados aos padrões positivistas, foram trazidos para o seio da criminologia novos fatores a serem levados em consideração. Neste trabalho, os fatores apresentados são o próprio conceito de gênero e sua relação com o sistema de justiça criminal, as questões de maternidade, da divisão sexual do trabalho e os impactos afetivos causados pela divisão social dos papéis exercidos pelos gêneros. Todos esses pontos, e tantos outros, são essenciais hoje para que o pensamento criminológico seja capaz de encarar a conformação social e o fenômeno criminal de forma mais completa e complexa.
A função tanto da criminologia, como do feminismo, naquilo que diz respeito às mulheres encarceradas, é principalmente atuar a partir do critério de necessidade trazido de maneira mais marcante por Zaffaroni (1988). Deve ser considerado como necessário aquilo que é útil para que as presas no Brasil possam desenvolver melhor suas potencialidades humanas. Ou seja, explicando como os sistemas penais se estruturam, quais efeitos produzem, como e por que esses efeitos são escamoteados, quais as relações com outros tipos de controle social, sem perder de vista os conceitos e relatos trazidos pelos pensamentos feministas. Só assim será possível esquadrinhar quais são as possibilidades de transformação, não só do Sistema de Justiça Criminal, mas também daquilo que o precede e o sucede. Sempre em busca de novos caminhos capazes de gerar um menor grau de violência.
Por fim, é de se esperar que, sendo um microcosmo de algo muito maior, o Sistema de Justiça Criminal reproduza padrões discriminatórios sexistas tal como o restante da sociedade. A princípio, falar sobre divisão sexual do trabalho, por exemplo, poderia parecer tão somente a repetição de diversos outros trabalhos já escritos sobre gênero. No entanto, a forma pela qual esses conceitos são articulados dentro da criminologia para compreender o fenômeno criminal feminino é particular desse campo do saber. Mesmo que as causas da opressão sexista sejam semelhantes em muitos setores da vida compartilhada, as consequências dentro do estudo sobre o crime são específicas. Desse modo, as experiências das mulheres encarceradas e/ou autoras de delitos são fontes de conhecimento muito potentes e relevantes para a compreensão desse fenômeno e para o aprimoramento da criminologia.