Introdução
O presente artigo tem como objetivo central analisar, a partir da categoria atletas militares,1 novos processos e formas de subjetivação esportivas. No limite, este artigo busca problematizar as instâncias simbólicas da alteridade entre corpos forjados no “espírito militar” (Celso CASTRO, 2004) e corpos que se orientam pelo ascetismo atlético profissional em voga. Uma vez que o processo de construção do corpo atlético de fato é produzido em outras esferas que escapam aos quartéis, em que por muitas vezes a atuação/apoio das Forças Armadas se desenvolve numa etapa mais avançada do processo de apuro desses corpos visando às competições, tal modelo de incorporação de ‘paisanos’2 poderia ser definido como um recrutamento ad hoc e exógeno aos princípios fundantes da hierarquia militar que orienta essa carreira profissional, sobre a qual se discorrerá mais adiante.
Cabe frisar que o objetivo deste artigo é indicar pontos de aproximação e dissonâncias entre os regimes do esporte e da caserna (expressão que define o ambiente da vida militar), a partir de algumas categorias comuns que resvalam em noções de corporeidade, bem como a disciplina e o nacionalismo. Não obstante, defendemos a necessidade de pensar os processos de “esportificação” (Norbert ELIAS; Eric DUNNING, 1985) e ‘militarização’ transversalmente, menos a partir de princípios hierarquizantes, para destacar pontos de intersecção.
Daí a importância de mobilizarmos a metáfora do corpo do atleta militar, que emula a ideia de virilidade impregnada numa arma de combate no campo de batalha, e a medalha no peito, que faz parte tanto da simbologia meritocrática de progressão na carreira militar quanto do sistema de aferição das escalas de mérito esportivo. Nesse caso, corpo e medalha evidenciam dois regimes simbólicos covalentes, que, embora distintos, se tocam em determinados pontos, sugerindo uma vez mais a relação intrínseca que se observa nessa interface esportivo-militar.
Ao se voltar o olhar para o ethos militar, o que se projeta são valores associados aos ethos de masculinidade (Gregory BATESON, 2008), que orientam práticas voltadas para a guerra, embora exemplos de recrutamento e participação ativa de mulheres em contextos bélicos sejam por demais evidentes. Tal participação, sobretudo no front, se dá em contextos de uma feminilidade quase sempre negociada e sobretudo negada, assim como podemos entrever nos relatos das snipers combatentes russas na Segunda Guerra Mundial (Svetlana ALEKSIÉVITCH, 2016).
Sendo assim, o corpo militar é concebido como um corpo masculino, viril, “vibrante” (CASTRO, 2004). Historicamente, verifica-se que as mulheres nas Forças Armadas, afora a incorporação tardia, tendem a ser ofuscadas, relegadas às esferas do cuidado e da burocracia administrativa, menos partícipes corpo a corpo nas atividades-fim, que seriam os enfrentamentos bélicos.3 Mas, retornando ao contexto esportivo, o que ocorre no esporte olímpico militarizado? Essa tendência da homossocialidade se mantém? No caso do Brasil, mais recentemente, a parceria entre a Marinha e o Flamengo no futebol feminino, por exemplo, pode constituir uma pista, a qual será analisada adiante.
Inicialmente, faremos um breve histórico contextualizando as atividades físicas generificadas no contexto conhecido por modernidade. Em seguida, e de maneira mais densa, nos concentraremos na associação entre esportes olímpicos e Forças Armadas, relação que ganhou relevância no cenário esportivo brasileiro, mas que, como se sabe, alcança projeção mundial (Eric HOBSBAWM, 1995). Será dado enfoque, com dados já sistematizados (Diego THOMAZ, 2019), ao Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR), a fim de compreender mais especificamente o fenômeno recente de mobilização de atletas medalhistas brasileiros(as) oriundos(as) desse programa. Em seguida retomaremos as relações entre gênero e os esportes, para finalmente alcançarmos as considerações finais do artigo.
A partilha dos corpos
A partir do século XVII, mediante enredamentos políticos, econômicos, culturais, emergem processos de modernização das sociedades ditas ocidentais, de suas instituições e, com isso, ocorre a conformação de Estados nacionais. Tal conformação implica necessariamente a produção de representações coletivas, de “comunidades imaginadas” (Benedict ANDERSON, 1989), as quais, por sua vez, precisam ser lastreadas na materialidade, e essa substância, por assim dizer, se encontra no corpo, na sua produção físico-psíquica, corpo este que se torna eminentemente social, lugar de inscrição ou investimento de um espírito, de um ethos, enfim, de constituição de uma “pessoa” (Marcel MAUSS, 2003a, 2003b; Marcio GOLDMAN, 1996). Em síntese, corpo e espírito, representação e materialidade, estariam intrinsecamente relacionados na constituição dos nacionalismos modernos.
Nesse contexto, os fenômenos esportivos modernos são tomados como copartícipes de um “processo civilizador” (Norbert ELIAS, 1994; ELIAS; DUNNING, 1985),4 que dará os contornos aos nacionalismos nas sociedades ditas ocidentais modernas, conexão esta observada inclusive na reprodução mimética e metafórica das guerras nos confrontos esportivos, apontando uma vez mais para a associação simbólica entre corpo, esporte, nação e guerra, representações, como se verá, ditadas por uma masculinidade hegemônica e potencializadas por um urbanismo industrial em franca expansão.
As transformações sociais na passagem do século XIX para o XX pautaram-se nos valores em grande medida ditados pelos signos das novas tecnologias, afinal, é o momento do uso ampliado de muitas invenções que ditarão os rumos do urbanismo tais como a eletricidade, o motor à explosão, os carros que entre as elites viraram signo de vida esportiva, o consumo de energéticos naturais como o café e o redesenho dos traçados urbanos que contribuíram para maximizar os fluxos e a agitação cada vez mais frenética nas nascentes metrópoles (Nicolau SEVCENKO, 1992; Victor MELO, 2001). Esse arcabouço de signos que enfeixam a modernidade fez com que fenômenos da corporalidade se acomodassem aos desígnios de um ‘novo homem’ e uma ‘nova mulher’, desigualmente generificados.
A discussão em torno da diferença entre os sexos encontra ecos no século XIX, durante o período vitoriano, como evidenciam os trabalhos de Michel Foucault (1988, 1984). Segundo o autor, a sexualidade como conhecemos hoje é fruto da modernidade (mormente a partir do século XIX), pois até o século XVIII havia a predominância de uma concepção monista da sexualidade na qual a fisiologia masculina era o referencial, sendo toda a fisiologia feminina nada mais do que a inversão do masculino. Como defende George L. Mosse (1998, p. 304), “[…] a masculinidade foi a rocha sobre a qual a sociedade burguesa construiu boa parte de sua autoimagem […]”.
Assim, os controles e o binarismo de gênero seriam replicados num binarismo esportivo que promoveria a partilha desigual das modalidades. Algumas delas seriam desestimuladas e até mesmo proibidas à condição feminina, sobretudo os coletivos e outros tantos de contato físico e de combate, tais como as lutas. Já aqueles esportes voltados genericamente à recreação, à ginástica, somados a outros tantos orientados pela masculinidade hegemônica, cumpririam a sina de servirem à modelagem cosmética dos corpos femininos. Tal processo esteve ainda associado aos exercícios físicos que se prestaram à forja medicalizada de uma condição feminina naturalizante associada à maternidade.
Os grandes conflitos mundiais que eclodiram no início do século XX, notadamente as duas grandes guerras, foram marcos decisivos do redirecionamento bélico dessas tecnologias colocadas à serviço de repactuações geopolíticas e de nacionalismos exacerbados. Há, portanto, alguma intimidade entre os fundamentos que fizeram das guerras palco dessas experimentações e os esportes como práticas corporais pedagógicas de adestramento físico e moral desses novos sujeitos generificados pelos processos sociais em curso. Não é raro ainda hoje observarmos ecos dessa sublimação fálica, porque também se trata de uma economia política e psíquica devotada à conformação desses corpos. Na falação esportiva corriqueira da mídia é comum o uso das metáforas da guerra e da virilidade quando retrata as competições ou promove rivalidades esportivas locais, nacionais ou internacionais.
Tal configuração, porém, e mesmo a despeito dela, não impediu que houvesse uma crise da masculinidade hegemônica. Com a saída das mulheres do espaço privado para o público, processo verificado ao longo do século XX, com a eclosão de movimentos feministas, estas paulatinamente trouxeram à baila discussões e redefinições dos papéis sociais e embates de gênero. Atualmente, muitos estudos sobre mulheres ou espaços existenciais de feminilidade na cena pública, privada, moral e sexual problematizam as formas desiguais dessa participação. Não obstante, algumas incrustrações marcadamente masculinizantes, observadas em instituições como as Forças Armadas, ou campos de práticas como aqueles definidos por esportivos, ainda se veem às voltas com um amplo e acirrado debate em torno das valências de gênero, como veremos.
Esportes e ethos militar
Nos Jogos Olímpicos de 2016, realizados na cidade do Rio de Janeiro, observou-se um fenômeno àquela altura tomado como novidade: atletas brasileiros prestando continência no pódio quando das cerimônias de premiação. A partir de então, da disseminação daquelas imagens, surgiram informações de que se tratava de atletas vinculados às Forças Armadas, denominados atletas militares. Esses atletas fazem parte de um programa firmado em 2008 entre os Ministérios da Defesa e do Esporte (atualmente uma Secretaria incorporada ao Ministério da Cidadania), o Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR), criado para incorporar atletas ‘paisanos’ de alto rendimento às Forças Armadas para a disputa de competições esportivas de representação nacional (THOMAZ, 2019). Entretanto, nos Jogos Pan-Americanos de Toronto (Canadá), em 2015, já se notavam atletas militares brasileiros prestando continência, do alto dos pódios e com a medalha no peito, nos cerimoniais de premiação.
O embrião dessa parceria encontra-se em 2003, quando a pasta do Esporte adquire status de Ministério e o governo à época lança o programa Brasil no Esporte de Alto Rendimento, uma ambiciosa agenda que previa amplo direcionamento de recursos para o esporte nacional (com participação efetiva do Ministério da Defesa a partir de 2008) com vistas a incluir o país, na esteira dos grandes eventos que seriam aqui sediados,5 entre as dez maiores potências esportivas do planeta. E o programa militar de fomento ao esporte de representação nacional, acima citado, teve papel fundamental nessa agenda.6
No entanto, as relações entre esporte e caserna, ou entre “práticas corporificadas” (Simoni GUEDES, 2011) e as doutrinas militares, isto é, entre práticas corporais enquanto processo e suas relações identitárias, ou ainda entre os usos racionais do corpo (uma pedagogia dos gestos e movimentos) e o ‘espírito coletivo’ engendrado pelos nacionalismos, remontam às origens da formação militar brasileira, em um período de modernização tardia sob influências europeias. Tais relações se transformam ao longo do tempo, mas, como se verá, a partir de um breve panorama, nunca cessam.
No Brasil, a formação do Exército nos moldes modernos remonta à segunda metade do século XIX. O caso brasileiro é interessante não só porque evidencia o caráter normativo/disciplinar que incide sobre os corpos, sobre a corporação, mas também porque demonstra que as organizações militares operam por um sistema estruturado de trocas entre exércitos nacionais (Piero LEIRNER, 2001). Nesse sentido, métodos ‘nacionais’ de ginástica e de educação física de orientação militar logo desembarcariam em terras brasileiras através da Missão Militar Francesa, no período entreguerras (CASTRO, 1997). A propósito, foi nesse período que o Brasil conquistou sua primeira medalha olímpica, nos Jogos da Antuérpia (Bélgica), em 1920, pelas mãos de um tenente do Exército, Guilherme Paraense, praticante de tiro esportivo, que também competiu por clubes como Fluminense e São Cristóvão.
A partir dos anos 1930 observa-se um movimento de centralização política e fortalecimento das instituições ditas nacionais, período a partir do qual há uma espécie de profissionalização das Forças Armadas (Marinha e Exército à época) e difusão de um ‘espírito nacional’ associado às pedagogias reformadoras das instituições médicas, religiosas, ginásticas, escolares, militares, as quais Foucault (1987, p. 120) iria definir, a partir do caso francês, segundo uma “anatomia política do detalhe”. As noções que aí vicejam são as de “Nação em Armas” (CASTRO, 1997), de “corpos eficientemente ordenados a serviço do corpo-nação” e de “civismo como mais uma metáfora da disciplina” (Meily LINHALES, 2009, p. 356), e, finalmente, do corpo como “expressão de civilização” (Carmen SOARES, 2009, p. 135).
Em pesquisa documental sobre as relações entre Exército, educação física e desportos no Brasil, feita nos arquivos da Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx), Renato Soeiro e Manoel Tubino (2003) apresentam um apanhado histórico dessas associações entre práticas físico-desportivas e as instituições militares, alinhadas às concepções positivistas da época, traduzidas na expressão de um ‘caráter brasileiro’ e na criação tardia de ‘métodos nacionais’ de ginástica e educação física por meio de intercâmbios e missões estrangeiras (SOEIRO; TUBINO, 2003; CASTRO, 1997).
E os desportos na caserna evidenciam-se não apenas como instrumento pragmático de fabricação do corpo físico do soldado, mas de suas subjetividades, ao promover a disciplina de orientação militar e o fortalecimento do ‘espírito coletivo’ da tropa. É nesse período, meados do século XX, que militares começam a se notabilizar no esporte de alto rendimento, no esporte de representação nacional, tanto em competições militares como ‘paisanas’. De acordo com Marcus Taborda de Oliveira (2009, p. 405), o esporte caracteriza-se como um “elemento da cultura potencialmente afeito à disseminação do nacionalismo”; mais do que isso, o esporte engendra esse caráter hierarquizante e generificado das pedagogias normalizadoras que incidem sobre corpos e subjetividades.
Dessa forma, se há uma ‘esportificação’ de “partes do treinamento funcional exigido pela atividade militar” (Karina CANCELLA, 2012, p. 59), a contraparte é a ‘militarização’ dos esportes por meio de uma disciplina ou pedagogia de orientação militar. As chamadas ‘artes marciais’ são um bom exemplo desse processo histórico de ‘esportificação’ de técnicas de combate (Edison GASTALDO, 2001; Lucas PIRES, 2018). Outro exemplo dessa transformação pode ser encontrado nas cavalhadas e procissões militares portuguesas que aqui desembarcaram, no século XIX, como festas e jogos de corte e posteriormente adquiriram ares desportivos nas práticas do turfe, polo e hipismo (Mary del PRIORE, 2009). Talvez o mais conhecido exemplo seja o da seleção brasileira masculina de futebol, que experimenta um programa militar na sua preparação física para a Copa do Mundo de 1970. Aquela seleção, exaltada principalmente por suas qualidades técnicas e estéticas, era tida também como disciplinada, formada por “atletas soldados” (Hilário FRANCO JÚNIOR, 2007apud Plínio NEGREIROS, 2009, p. 310).
Nota-se ainda uma crescente normalização médica nos ambientes militares que se verifica na aplicação constante de exames e testes físicos e psicológicos ao seu contingente, diríamos que enquadrados em uma “anatomopolítica” ou “tecnopolítica” (FOUCAULT, 1987), fabricando uma subjetividade calcada na norma, na sanidade e na retidão. Esse movimento encontra confluência institucional no interior da caserna a partir da criação, em 1991, do Centro de Capacitação Física do Exército (CCFEx), que abriga laboratórios de pesquisa sobre corpo, movimento, esporte, saúde etc. Há nessa (re)produção científica, ‘semiotécnica’, se poderia dizer, uma intenção normalizadora, que hierarquiza corpos e produz cisões na economia da fabricação físico-psíquica e política desses corpos, que passa também pelos processos de generificação.
Atletas militares
Quando se fala em atletas militares, fique claro que se está referindo a atletas ‘paisanos’ de alto rendimento temporariamente incorporados às Forças Armadas para representar Exército, Marinha ou Força Aérea em competições esportivas. Não são estranhas a essa associação as relações historicamente engendradas entre o advento da educação física, a popularização dos esportes ‘paisanos’ e a disciplina de orientação militar, ou entre os regimes corporificados castrenses e o ‘espírito nacional’ metaforizado nos confrontos esportivos, reativando signos e promovendo a confrontação entre Estados. No contexto atual, tais relações se expressam na mais recente associação entre militares e ‘paisanos’ por meio dos esportes olímpicos; a disciplina e o ideário nacionalista operam como denominadores comuns dessa relação, reiterando referenciais de longa data constituídos. Evoca-se aqui novamente as noções de “atleta soldado” (FRANCO JÚNIOR, 2007; NEGREIROS, 2009) e de “corpo-nação” (LINHALES, 2009). Nesse sentido, pergunta-se: é possível falar, nesse contexto mais recente, em produção de uma subjetividade ‘híbrida’, conjugada na figura dos(as) atletas olímpicos militares, que aí se constituiria? Quais as implicações de gênero verificadas nessa relação ou associação?
Em interlocução com atletas vinculados ao programa (THOMAZ, 2019), o que mais se evoca como denominador comum ou fator de convergência das carreiras esportiva e militar é a ‘disciplina’ (obediência, estoicismo, resiliência) e o ‘patriotismo’ (que pode adquirir contornos ufanistas). Além disso, e de modo mais pragmático, quase todas as falas colhidas e apresentadas na pesquisa supracitada enfatizam, principalmente, a questão da estabilidade profissional (ainda que temporária), exaltando o papel das Forças Armadas como arrimo desses projetos esportivos. Afinal, se há uma imagem positiva ou mesmo um gosto prévio, por assim dizer, pela vida militar, o que se observa entre esses atletas é a busca das condições mínimas de manutenção (porque já são atletas formados) na vida esportiva. Ademais, o vínculo com as Forças Armadas, ou melhor, com a carreira militar stricto sensu, é limitado no tempo e restrito ao cumprimento periódico de certos ritos e protocolos castrenses; em síntese, suas atribuições não são as mesmas de um militar ‘regular’. Conforme afirma a judoca Érika Miranda, citada por Frederico Guirra (2014, p. 58): “No Brasil, o atleta entra para a Força, mas não vive a vida militar. Sua única função é competir como militar. O que os atrai é esta relativa estabilidade […]”. No mais, é através da carreira esportiva que os(as) atletas se habilitam a ingressar no PAAR, que por sua vez assegura, por meio dos fomentos, a dedicação exclusiva ao esporte de alto rendimento, para que possam, enfim, ‘viver do esporte’.
E como apontam Castro (2004) e Leirner (1997), não há lugar para a ambiguidade ou transitividade no sistema classificatório castrense: ou se é militar ou se é ‘paisano’. Pode-se dizer que o militar é alguém que encarna a instituição na sua totalidade. Embora a lógica da caserna de certo modo ‘englobe’ os atletas, suas ‘consciências’ pertencem ao mundo esportivo. A propósito, nem sempre se evocará, nessa interface esportivo-militar, o discurso abstrato dos nacionalismos que tanto permeia o ethos militar.
Portanto, os regimes esportivos e militares, embora análogos em algum sentido, diferem nas suas percepções e efeitos, quando do mundo vivido, da experiência de um(a) atleta militar. Mesmo incorporados às Forças Armadas, atletas olímpicos militares são, no fundo, ‘paisanos’ e estão fundamentalmente sob a lógica esportiva e não a da caserna. Mas, como destacamos, não se trata de lógicas excludentes entre si; ao contrário, podem convergir em determinados contextos, inclusive no que concerne às valências de gênero e sexualidade e àquilo que se tem denominado masculinidade hegemônica, como veremos.
Se até aqui concentramos nossos esforços em pensar a relação entre desporto e Forças Armadas, no tópico subsequente analisaremos outro elemento central para a equação Forças Armadas + esporte, pois o corpo que resulta da soma desses fatores é um corpo masculino por excelência. As implicações do binarismo de gênero, que se mantêm em muitas instâncias sociais ainda hoje, hiperbolizadas no contexto militar, são frutos, como vimos anteriormente, de um processo iniciado com a modernidade e seus propalados estilos de vida regidos por novas tecnologias e fortemente arraigados em ideais de masculinidade.
A disciplinarização do corpo, portanto, ocorre também no campo do gênero e da sexualidade; constitui-se em face da mesma moeda. A busca por um corpo sadio, produtivo e reprodutivo configura elemento central da racionalização econômica e política da modernidade. As experimentações da sexualidade moderna e a consolidação de determinados papéis de gênero são resultados dos mesmos processos biopolíticos, para utilizarmos um termo foucaultiano (FOUCAULT, 2008), que fomentaram a consolidação da instituição militar e a retomada do olimpismo como fator de integração entre os Estados nacionais. Não sendo, portanto, fruto do acaso, quando pensamos no corpo que materializa um militar, assim como a imagem típica ideal de um atleta, que este seja um corpo predominantemente masculino.
Gênero e ethos militar
Para esta análise, o gênero não constitui um simples objeto investigativo, mas sim uma categoria analítica que ultrapassa a condição naturalizada de homens e mulheres como objeto de estudo. Miriam Grossi (2004) aponta, em sua revisão teórica sobre o conceito de masculinidade, a existência de três correntes analíticas quando o assunto é gênero. A primeira, de perspectiva estruturalista, implica pensar regimes de alteridade em que gênero se situa a partir do binômio masculino/feminino. Nessa perspectiva, a identidade se constituiria pelo reconhecimento das semelhanças e diferenças. O gênero se imporia sobre o corpo biológico sexuado; entretanto, o dualismo presente nessa definição não excluiria a possibilidade da construção de vários modelos de masculino e feminino. Na segunda, pós-estruturalista, o gênero se constituiria pela e na linguagem discursiva, como um conjunto de atos que levam aos significados e à orientação dos sujeitos no mundo (Joan SCOTT, 1990 apudGROSSI, 2004). Por fim, haveria uma terceira corrente a partir de uma abordagem pós-moderna na qual o gênero adquire aspectos mutáveis. Seguindo essa corrente, o ser ‘macho’ ou ser ‘fêmea’ seria uma questão contingencial que poderia ser performada ou alterada a partir da eclosão das novas tecnologias médicas que permitiriam a subversão da ordem ‘natural’. Desse modo, haveria a emergência de uma multiplicidade de gêneros para além do binômio masculino/feminino.
Grossi (2004) ainda adverte que um aspecto consideravelmente pervasivo nas culturas ocidentais e ocidentalizantes é o modo como elas se constituem a partir do masculino. Nesses contextos, espraiados mundo moderno afora, ser homem é ser ativo, tal como se replica no Brasil (GROSSI, 2004; Peter FRY, 1982; Roberto DAMATTA, 2010). Como aponta Grossi (2004), a masculinidade hegemônica na cultura brasileira não reduz a atividade apenas ao espectro da sexualidade de práticas consideradas ativas versus passivas,7 mas diz respeito também à uma percepção positiva da atividade como fator de agressividade. A formulação da autora pode ser resumida na equação: ser homem = ser ativo = ser agressivo.
Cabe frisar que essa formulação sobre aspectos da masculinidade hegemônica no contexto brasileiro pode ser encontrada em outras esferas para além do universo esportivo ou militar. Um exemplo pode ser encontrado nas coreografias sexuais presentes na pornografia com travestis brasileiras analisadas em trabalhos anteriores por Dionys Melo dos Santos (2021), assim como na etnografia de Osmundo de Araújo Pinho (2005) sobre a figura do “brau” em Salvador - jovens negros da periferia que reinventam uma visualidade/corporalidade negra a partir de releituras da “cultura” soul norte-americana, e ao mesmo tempo são estigmatizados pela classe média como violentos, de “mau gosto” e hipersexualizados, ou seja, excessivamente “negros” e excessivamente “masculinos” (PINHO, 2005). Mônica Conrado e Alan Augusto Moraes Ribeiro (2017) reforçam a necessidade de pensarmos a partir de uma perspectiva interseccional a questão da masculinidade contemporânea.
Não obstante, mesmo em ritualizações de produção de feminilidades, e pensamos naquelas atreladas às concepções de beleza e cuidados cosméticos de si, não se ausentam alguns processos críticos. Haja vista, por exemplo, a fabricação da ‘pessoa travesti’ no campo das feminilidades, em que uma série de intervenções químicas e cirúrgicas de autogestão dos corpos, muitas vezes severas, somadas às relações estigmatizantes que as expõem e as incorporam em ciclos continuados de violência física e simbólica, repõem ou mesmo embaralham a questão do exclusivismo dos territórios masculinos associados a uma agressividade natural.
De qualquer maneira, embora generalizantes, os apontamentos de Grossi (2004) relacionados aos jogos de gênero nos levam a pensar que algumas formas de violência engendraram ou gestaram os elementos constitutivos das masculinidades transfiguradas não somente em ordenamentos morais e de comportamentos ou condutas sexuais, mas também como fundantes dos ordenamentos jurídicos e políticos. O Exército, por exemplo, que capitaliza um discurso moral masculinizante a respeito de si mesmo e da sociedade, revela-se como a instituição abrigada no Estado que detém por excelência, em termos weberianos, o monopólio e a legitimidade para empregar o uso da força ou da violência (Max WEBER, 2015).
Emulações de violência ritualmente controladas, funções dos esportes que normatizaram a sociabilidade no domínio das esferas lúdicas e dos passatempos (ELIAS; DUNNING, 1985), decorrem da maior interdependência dos processos políticos que promoveram e consolidaram a forma dos Estados modernos e o modo como gerenciam a pacificação dos conflitos. Nota-se até hoje que os fundamentos que definem o campo esportivo, baseado na competitividade, na superação dos limites físicos, flertando com noções tais como desempenho e sacrifício, definem aquilo que Elias e Dunning (1985) expressam por “equilíbrio das tensões”, alicerçando o modo como se escoam as emoções e um gosto espraiado pelos esportes. Daí decorre toda uma pedagogia que se imporá sobre os corpos, masculinos ou femininos, na produção de uma moral esportiva estoicista baseada na meritocracia, apanágio dessas sociedades.
A presença de rituais de passagem, como aquele observado no mundo das lutas, em especial no jiu-jitsu brasileiro, no qual é comum impingir sofrimento físico aos neófitos num batismo através de ‘faixadas’ desferidas nas costas, é testemunho dessa pedagogia masculinizante e inculcadora de valores viris que transversalizam várias esferas sociais. Os trabalhos de Theodoro Almeida, Phillip Lima e Sebastião Almeida (2006) e Sebastião Almeida (2016) são incontornáveis para maior aprofundamento na relação entre artes marciais, identidades e masculinidades.
Geralmente esses rituais acontecem de dois modos: pelo ‘corredor polonês’, em que o graduando atravessa em quatro apoios um corredor formado pelos mais graduados; ou o ‘ataque soviético’, em que o graduando fica em quatro apoios no centro de uma roda formada pelos mais graduados e o ataque é feito simultaneamente por todos à sua volta.8 Outros exemplos de rituais de passagem que buscam tornar o atleta ‘cascudo’ por meio do sofrimento corporal podem ser vistos no judô e no rúgbi (Carmen RIAL, 2011).
Já as etnografias de Wagner Xavier de Camargo (2012) sobre competições esportivas mundiais LGBT formam um rico exemplo do espraiamento e de como uma masculinidade hegemônica opera no seio esportivo. Ao refletir sobre a materialização de corpos e produção de subjetividades articuladas com os construtos sociais e discursivos de masculinidade nas competições LGBT, Camargo (2012) evidencia uma produção simbólica de uma virilidade encenada, por parte dos homossexuais masculinos, através de atos e discursos. Porém, não é o objetivo do autor classificar formas ‘reais’ ou ‘imaginadas’ de masculinidades, mas, antes, apontar como que, mesmo entre atletas gays, a masculinidade esportiva pode ser evocada com base em rituais de dominação de gênero, nos quais as expressões de feminilidades são tomadas por condições mais frágeis e menos capazes física e emocionalmente de superar as hierarquias estigmatizadoras. No futebol, modalidade esportiva que recebe a maior atenção midiática no Brasil, é comum observamos, seja em jogos profissionais, seja em amadores, provocações e expressões jocosas que se metaforizam pela sociedade, tais como ‘joga como homem’ ou ‘futebol é jogo de contato, futebol é pra macho’.
Por tudo que já salientamos sobre a relação entre ethos militar e esporte, evidencia-se a predominância do modelo clássico da masculinidade viril, no qual o corpo é apropriado como instrumento de subjugação e imposição da condição masculina. O corpo militar, além dos aspectos já mencionados, também é colocado no plano moral como sede da honra. Eis aí outro elemento central para a masculinidade no seu sentido mais clássico burguês. O Exército enquanto uma instituição masculina clássica possui na honra um de seus esteios, e o trabalho de Cristina Rodrigues da Silva (2016) toca justamente nesse ponto. A autora, através de suas etnografias em vilas militares na fronteira do noroeste amazônico brasileiro, mostra como o homem do Exército é aquele que deve cultivar uma família honrada, composta pela seguinte equação: homem provedor + mulher virtuosa + filhos disciplinados.
Silva (2016) demonstra como o Exército Brasileiro apreende ‘família’ (e, consequentemente, o lugar das mulheres nela) como categoria nativa que expressa tanto o núcleo familiar como o coletivo da organização militar, calcada nos valores pétreos da instituição. A ‘família militar’ é alvo de cuidados constantes pelo Exército; a comunidade militar é composta por famílias ordenadas hierarquicamente e disciplinarizadas. A propósito, hierarquia e disciplina são dimensões estruturantes da organização militar (CASTRO, 2004; LEIRNER, 1997, 2001), mas, por trás dessa aparente uniformidade, tal como aponta Silva (2016), famílias são feitas e desfeitas, dinamizando e expondo tensões de gênero todo o tempo, a despeito do construto moralizante hegemônico que ela ostenta. O processo de familiarização, assevera a autora, não necessariamente detém um outro processo, o de generificação e afirmação de subjetividades que se instauram nas redes de relações construídas pelas mulheres militares e mulheres ‘de’ militares em contextos variados de sociabilidade (SILVA, 2016).
Como apontam Raewyn Connell9 e James Messerschmidt (2013) o conceito trabalhado aqui de uma masculinidade hegemônica, nesse sentido mais clássico pautado na força, altivez, honra, presente tanto no mundo dos esportes como na composição do ethos militar, encontra-se em disputa. Angela Davis (2016), seguindo a tradição do feminismo negro estadunidense, já fazia a crítica aos preconceitos raciais que incidem quando o poder é conceitualizado apenas em termos de diferenças de sexo. A autora questiona quaisquer reivindicações universalizantes sobre a categoria ‘homem’. Nesse sentido, Connell e Messerschmidt (2013) reforçam que há uma natureza social da masculinidade em que o conceito de masculinidade hegemônica não equivale a um modelo de reprodução social fechado em si mesmo. Na perspectiva dos autores, é preciso reconhecer as lutas sociais nas quais as masculinidades subordinadas influenciam formas dominantes.
O ethos militar é calcado em um modelo de masculinidade clássica e hegemônica por meio do qual a instituição castrense tende a apagar a presença feminina, relegando as mulheres às esferas do cuidado e do apoio administrativo (Suzeley MATHIAS, 2005). Todavia, quando adicionamos a questão do esporte, e consequentemente dos(as) atletas militares, o modelo clássico da masculinidade e do ‘ser’ militar sofre algumas torções. Em outras palavras, essa interface esportivo-militar, se, por um lado, reforça a ideia do corpo como uma arma, por outro, provoca alguma interferência simbólica, por assim dizer, no ethos militar, em consonância inclusive com o que se tem chamado de “crise da identidade masculina” (CAMARGO, 2014), isto é, da chamada masculinidade dominante ou hegemônica. O corpo do(a) atleta militar e a construção de uma subjetividade ‘híbrida’ tomada da caserna e do mundo ‘paisano’ oscilam entre o ser militar e o ser atleta, com implicações que podem matizar essa concepção perdurável, estrutural, de masculinidade.
A presença de atletas militares do sexo feminino dentro do Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) é um exemplo. Dos(as) 145 atletas militares classificados(as) para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, aproximadamente 47% (46,89) eram do sexo feminino; esse total corresponde a um número absoluto de 68 atletas, o que contrasta fortemente com a presença feminina nas carreiras militares, que gira em torno de 7% do efetivo militar brasileiro, segundo dados oficiais (BRASIL, 2014, 2016).10,11 Nesse sentido, a parceria firmada na segunda metade de 2015 entre o Clube de Regatas Flamengo e a Marinha do Brasil no âmbito do futebol feminino12 constitui um exemplo atual que evidencia as distensões provocadas no corpo militar clássico. Tal parceria com o mundo feminino e ‘paisano’ dessa modalidade, se não provoca rupturas no corpo hierarquizante e moralizante militar, ao menos sugere e explicita algumas ambiguidades produtivas que colocam questões tanto para a caserna quanto para um esporte masculino gregário como o futebol de espetáculo.
Outro exemplo das distensões provocadas no corpo militar a partir da associação com o esporte ‘paisano’ é o do 3º Sargento da Força Aérea Brasileira (FAB) e atleta da marcha atlética Caio Bonfim, que faz parte do PAAR para o ciclo olímpico que culminará nas Olimpíadas de Tóquio, adiadas para o ano de 2021 devido aos impactos provocados pela pandemia do Sars-CoV-2.
A questão da marcha atlética suscita um ponto importante, pois, se, por um lado, o termo faz parte do vocabulário militar, sendo o ato de marchar cultivado na caserna quase um sinônimo de atividade militar, por outro, a marcha atlética, devido ao fato de o competidor obrigatoriamente ter de manter um dos pés em contato com o solo, provoca algumas fissuras na performance da masculinidade, ainda que maliciosas e da ordem dos estereótipos presentes no senso comum, por proporcionar um movimento que se assemelha ao ‘rebolado’, algo que dentro de um modelo de masculinidade hegemônica clássica seria restrito ao âmbito feminino.
DaMatta (2010) e Grossi (2004) já apontavam, o que não deixa de transitar pelas esferas da jocosidade, como o homem brasileiro têm sua masculinidade associada à capacidade de proteger ou controlar suas nádegas para não ser violado ou penetrado. A questão do ‘rebolado’ acabaria por se transformar em um tabu para o homem genérico brasileiro. Desse modo, o caso de Caio Bonfim é rico para pensarmos as distensões provocadas no corpo masculino. Basta uma rápida pesquisa na internet para encontrarmos declarações do atleta reclamando ser alvo de ofensas durante os seus treinamentos. Diz Caio Bonfim ao portal Globo Esporte, em 12 de agosto de 2016, após alcançar o quarto lugar na prova dos vinte quilômetros durante a Olimpíada do Rio:
Não teve nem um dia que saí na rua e não fui xingado por fazer marcha atlética. Falam: “Vira homem”, “para de rebolar”, “viado”, “vai para casa trabalhar, vagabundo”. Todos os dias! São nove anos de marcha. (BONFIM, 2016).
E, mesmo investido do uniforme militar, o atleta ainda sofre ofensas constantes, provocando dissonâncias nessa relação, que passam inclusive pelos questionamentos em torno da condição e lugar ocupado por esses atletas ‘paisanos’ nas Forças Armadas, se seriam ou não militares ‘de fato’.
A despeito das ofensas homofóbicas durante seus treinamentos, sobretudo disparadas por cidadãos ‘comuns’ que ocasionalmente o interpelam nas ruas, ingressar no PAAR como 3º Sargento da FAB fez com que sua atividade atlética profissional servisse de reforço à sua masculinidade, justamente pela associação entre ethos militar e esportividade profissional, mesmo que os gestos da prática destoem da virilidade que se espera de uma marcha ou qualquer outra atividade física praticada entre militares. Searas tradicionalmente devotadas à masculinidade hegemônica e ao rigoroso binarismo de gênero, a neutralização do dito ‘rebolado’ advém da associação entre os valores da caserna e aqueles ainda dominantes nas esferas esportivas, e que mais amplamente respondem aos imperativos de uma ordenação desigual entre os sexos. Nesse caso, é como se a necessária técnica de mexer os quadris, condição imposta pela prática esportiva, sofresse um ajuste de gênero que só termina por reforçar a hierarquia entre os elementos que constituem o binarismo. Porém, deixa aí alguns rastros de tolerância se comparada à intolerância ou ignorância observadas no modo como essa modalidade esportiva ainda é pouco apreciada em termos populares.
Considerações finais
A aparente liberdade e universalização nas escolhas esportivas e os manejos que levam em conta demandas subjetivas, que poderíamos supor colocadas nas antípodas das carreiras militares, orientadas pela masculinidade viril presente na homossocialidade da caserna, não fizeram dos esportes, tomados como profissão, práticas de um território seguro de experimentações. Investidas pessoais tampouco transformaram os espaços esportivos rumo ao pleno reconhecimento dessas novas expressões de gênero que saltilharam em lutas solitárias pelo direito às diferenças. Por exemplo, a despeito de ser uma prática tão precoce quanto a masculina no contexto brasileiro (Fábio FRANZINI, 2005; Aira BONFIM, 2019), a proibição formal do futebol feminino no Brasil, que teve vigência de 1941 até 1975, é testemunha dessas trajetórias erráticas repletas de lutas contra preconceitos que se instalaram e se mantêm ativas nos esportes jogados em alto nível. Toda uma literatura biográfica (CAMARGO, 2021) aponta para a marginalização de atletas olímpicos de outras modalidades que sofreram com os obstáculos às carreiras esportivas normatizadas pelo binarismo de gênero.
O recrutamento de atletas de excelência pelo PAAR cumpriu uma meta voltada para a expertise técnica e atlética, sem aparentemente colocar obstáculos de outra ordem que levassem a uma crítica generificada do programa implementado pelas Forças Armadas. No entanto, silêncios também revelam posições políticas e subjetivas, e a posição ambígua ocupada pelos(as) atletas nas franjas da cultura masculinizante da caserna pode testemunhar tais estratégias de permanência no programa como atletas militares, condição fundamental, nesse caso, para que exercessem a profissão.
Para arrematar esse artigo, façamos um questionamento final a respeito do uso da continência entre atletas militares. Seria esse um gesto que neutralizaria o gênero ou poderia ser interpelado por implicações de gênero? Sabe-se que indistintamente a continência serve de rito secular de saudação e reconhecimento hierárquico caracteristicamente militar, e, como tal, guarda prescrições e interdições que incidem tanto sobre a forma precisa do movimento13 como ‘quem’ pode prestar uma continência e em que circunstâncias. E, embora o gesto reproduzido por atletas medalhistas, homens e mulheres, possa exprimir uma identidade incorporada ou mesmo reivindicada ao mundo militar, no mais das vezes é encarada como mero reconhecimento ou gratidão àqueles que os patrocinaram, aparentemente sem maiores implicações, conforme os casos observados das atletas militares de triatlo e tiro com arco em Thomaz (2019).
De fato, não há uma normativa vinda das Forças Armadas para que a continência seja feita do alto dos pódios esportivos, mas também não há reprimenda ou ordem para suprimi-la. Tolerada como um gesto respeitoso, e não enquadrada como manifestação política, ainda que em certa medida o seja, a continência passa a ser reconhecida ou ignorada pelo Comitê Olímpico Internacional, bem mais atento a outras gestualidades e atitudes que possam reencaminhar os esportes na direção das críticas explicitamente políticas. Motivações ideológicas ou mesmo de gênero são temas controversos que desnudam essas associações esportivas internacionais, as quais performam neutralidade política em nome de valores essencializados como o fair play e os binarismos de gênero.
O fato é que entre os(as) atletas do PAAR houve uma concertação e um encadeamento de ações que difundiram tal gesto. E, embora a lógica do regime hierárquico seja estrita, houve nesse caso um lugar ou espaço para a ambiguidade ou extensão para que ‘paisanos’, que ocupam um lugar em que ‘estão’ militares, pudessem publicamente, e num momento de forte emoção e apelo, exibi-lo. Tudo isso pode parecer pouco diante de modelos historicamente tão arraigados e permeados por rígidas normas de conduta (morais e pouco generificadas) e, conquanto que ainda o sejam, tal gestualidade constitui um indício paradigmático de um igualitarismo que se insinua e que resvala não só nos papéis ainda muito desiguais evidenciados na relação entre carreiras femininas e masculinas nas Forças Armadas, mas também diz algo a respeito das narrativas de gênero e dos processos de afirmação das subjetividades no interior ou no entorno imediato da caserna, como parece ser o caso ocupado por esses(as) atletas militares.
As várias modulações observadas neste artigo entre esporte e caserna, transfiguradas em masculinidades que perpassam das violências físicas às estatais, dos corpos aos nacionalismos, dos(as) atletas aos militares, permitiram aludir certas extensões simbólicas de gênero em espaços bem mais interditos como as Forças Armadas e em menor grau o universo dos esportes. A parceria entre Marinha e Flamengo no futebol feminino, assim como o caso pontual do 3º Sargento e atleta da FAB Caio Bonfim, atestam essas distensões ao fortalecer a presença do campo feminino nos esportes, locus da homossocialidade masculina, e ao retraduzir expressões menos endógenas ao universo da fisicalidade militar, tal como demonstra o caso associado ao atleta marchador.
A expressiva presença de mulheres entre as atletas militares classificadas para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, ápice da estratégia fomentada pelo PAAR, também é outro exemplo na direção de um distendimento do corpo militar marcadamente masculinizante, corpo atlético enrijecido pelas representações de gênero, forjado para as batalhas e metaforizado nas disputas esportivas. Embora mantidas as lógicas masculinizantes, afinal, tais modulações engendram a fabricação do corpo disciplinado, viril, ativo, ‘vibrante’, e o investimento de um ‘espírito coletivo’ associado às guerras e aos esportes competitivos olímpicos, os(as) atletas militares são marcados(as) e marcam ambiguidades que podem, ao mesmo tempo, levar à crítica processos de subjetivação oriundos da caserna e do mundo esportivo, seus interiores e entornos.