Introdução
A violência apresenta diversas faces, dentre elas a violência contra a mulher, que ocorre nas mais variadas comunidades e em todos os países do mundo. Compreendemos a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, causando morte, dano ou sofrimento de ordem física, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER, 1996, p. 6).
A violência contra a mulher se configura como uma das expressões mais cruéis e dilacerantes da desigualdade entre os gêneros (Fernanda Marques de QUEIROZ, 2008). Dentre essas, se encontra a violência obstétrica, termo equivalente à “violência na assistência ao parto”, já descrito na literatura e que engloba qualquer tipo de violência que venha a ocorrer durante o período da gestação, do parto e do pós-parto, incluindo a assistência ao aborto Ana Flavia Lucas D’OLIVEIRA; Simone Grilo DINIZ; Lilia Blima SCHRAIBER, 2002). Esses atos de violência podem ser praticados por pessoas íntimas, estranhas, profissionais ou até mesmo por instituições e podem contribuir para complicações ou efeitos indesejáveis ao binômio mãe-filho (Priscyla de Oliveira Nascimento ANDRADE et al., 2016).
Destaca-se que, no Brasil, ao contrário de outros países como a Argentina e Venezuela, ainda não existe uma lei específica que caracterize a violência obstétrica (Carolina Neiva Domingues Vieira de REZENDE, 2015). A partir da legislação argentina, pode ser compreendida como: a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expressa em um tratamento desumanizador e um abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, trazendo consigo a perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (ARGENTINA, 2009; DINIZ et al., 2015).
Embora o termo violência obstétrica seja relativamente recente ou um novo campo de estudo, este, por sua vez, trata-se de uma prática comum e corriqueira nas salas de hospitais-maternidades e clínicas, públicas e privadas, por todo o país há décadas (DINIZ et al., 2015). Pois, como afirma a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência durante o parto, ou seja, 25% destas (Gustavo VENTURI; Vilma BOKANY; Rita DIAS, 2010). E ainda a Pesquisa “Nascer no Brasil”, estudo de base hospitalar realizado nos anos de 2011 e 2012, corroborando os achados de Venturi et al. (2010), revela dados bastante expressivos no que se refere à violência obstétrica. Foi observado que houve predominância de intervenções e procedimentos excessivos e não recomendados pela OMS, os quais provocam sofrimento e dores desnecessárias em mulheres que tiveram parto normal, evidenciando um modelo rotineiro de atenção à gestante bastante medicalizado e não humanizado. Nesse contexto, o presente artigo traça então um panorama do parto e nascimento no Brasil para a sociedade, a fim de sensibilizar profissionais, gestores, gestantes e seus familiares para a necessidade de mudanças no atual modelo de atenção obstétrica (FIOCRUZ, 2014).
Em 2013, a pesquisa intitulada “Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde” revelou que essas práticas não são geralmente percebidas pelos profissionais como violentas, mas sim como um exercício de autoridade em um contexto “difícil”. É essa banalização da violência institucional que contribui para a sua invisibilidade e, por conseguinte, para sua recorrência (Janaina Marques de AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013).
Portanto, este artigo tem o objetivo de analisar a violência obstétrica e suas diversas expressões sob a ótica de puérperas e, a partir dos resultados, contribuir com estratégias capazes de amenizar o problema atual presente no cenário obstétrico.
Métodos
Estudo qualitativo, desenvolvido com as puérperas acompanhadas que realizaram o pré-natal em uma Unidade Básica de Saúde situada no nordeste brasileiro, mais especificamente na região do semiárido potiguar.
As entrevistas foram realizadas entre outubro e dezembro de 2016, com mulheres que tinham sido acompanhadas no período de janeiro de 2015 e junho de 2016. É pertinente afirmar que todas fizeram o acompanhamento pré-natal na Unidade Básica de Saúde, mesmo as que tiveram seus partos na rede privada.
A UBS foi selecionada por ser o local onde já são desenvolvidas atividades inerentes à Residência Multiprofissional em Atenção Básica/Saúde da Família e Comunidade em curso no período efetivado, por assim ter um contato e acesso facilitado com as participantes. As puérperas selecionadas foram as que realizavam o pré-natal na UBS e que aceitaram participar do estudo.
Foram realizadas, no total, doze entrevistas, a partir de roteiro semiestruturado. Dessas, dez (10) foram gravadas, após obtenção de consentimento das participantes, porém duas participantes não aceitaram a gravação. Assim, suas respostas foram transcritas manualmente, concomitante ao diálogo durante a aplicação do instrumento de coleta de dados. As entrevistas se deram majoritariamente durante as visitas domiciliares ou dentro do serviço de saúde, durante as consultas da Enfermagem concernentes ao programa de acompanhamento do C & D (Crescimento e Desenvolvimento) das crianças.
Os dados foram tratados segundo a análise de conteúdo de Laurence Bardin (2011), conforme os seguintes passos: pré-análise (transcrição das entrevistas, leitura exaustiva, flutuante e interrogativa dos dados); em seguida, leitura detalhada e categorização dos dados de acordo com os eixos temáticos que nortearam o roteiro, pautados no referencial teórico; e, por último, após agrupadas as palavras em unidades de registro ou categorias, procede-se à interpretação.
Visando preservar a identidade das participantes do estudo, durante a coleta, elas foram identificadas de forma alfanumérica e, em seguida, foram atribuídos nomes fictícios homenageando mulheres que marcaram a história da humanidade nacional e/ou internacionalmente por meio de lutas e de suas estórias de vida.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, conforme protocolo nº 1.746.329, seguindo as normas definidas pelas Resoluções nº 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012; 2016).
É importante destacar que, por se tratar de uma pesquisa qualitativa, embora seus resultados coadunem com outros estudos, não permitem maiores generalizações, tendo em vista que retratam a realidade vivenciada por puérperas residentes na área de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde do nordeste brasileiro.
Resultados e Discussões
Perfil das entrevistadas
A idade das entrevistadas variou entre 18 e 40 anos. Predominantemente, as entrevistadas se autodeclararam pardas (oito); enquanto quatro se denominaram brancas; a renda mensal individual variou entre 0 a 3¹/² salários mínimos e a renda familiar variou de 1 a 4¹/² salários. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o salário mínimo nesse período variou entre R$ 788,00 à 880,00 (na época, cerca de U$S 198 à U$S 220 dólares) (IBGE, 2006). Seis entrevistadas exerciam alguma atividade remunerada e, em alguns casos, esta era a única fonte de renda para a subsistência da família; sete também eram usuárias do Programa Bolsa Família, visando, desse modo, minimizar as dificuldades financeiras e sociais.
No que se refere às experiências de parto, seis eram primíparas; duas secundíparas; três tercíparas e uma quadrípara. No que tange ao local de realização do parto, a maior parte (nove) ocorreu em instituição pública, e três ocorreram no setor privado. Apenas quatro foram normais e oito foram cesáreas.
Desvelando a violência obstétrica
Quanto à percepção acerca do termo violência obstétrica, quatro revelaram não conhecer e oito tinham apenas um conhecimento superficial sobre o assunto, como representado na fala da entrevistada: Eu entendo como alguns maus-tratos, por assim dizer, que a paciente passa na hora do parto, na hora que tá sendo atendida (Marie Curie).
Isso vem reforçar que a falta de informação das mulheres e o silêncio destas acabam favorecendo a continuação desta prática, pois se calam mediante a falta de informações ou não reconhecimento de seus direitos (REZENDE, 2015).
As mulheres em trabalho de parto e parto não reclamam e não emitem opinião, seja por medo, por opressão ou, mesmo, por estarem vivenciando um momento muito especial de suas vidas: o nascimento de seu bebê. Após finalizado o parto, a alegria se sobrepõe aos maus-tratos que, de certo modo, são esquecidos (Leila Regina WOLFF; Vera Regina WALDOW, 2008). Nesse sentido, ocorre a “conspiração do silêncio”, pois quando não é feita a denúncia da violência, impossibilita-se que os dados, tanto de forma qualitativa como quantitativa, sejam revelados, contribuindo, portanto, para a invisibilidade e gravidade do fenômeno (Heleieth SAFFIOTI; Suely Souza de ALMEIDA, 1995).
Apesar das entrevistadas não terem clareza do termo técnico violência obstétrica, no decorrer do diálogo, as mesmas relataram situações de violência que vivenciaram ou afirmaram conhecer alguma mulher que tenha vivenciado alguma situação de constrangimento ou maus-tratos em maternidades. Tal situação pode ser visualizada na seguinte fala: [...] inclusive teve até uma discussão com um médico, eu disse a ele que eu não deixava ele fazer exame de toque em mim, porque eu que mandava no meu corpo, então ele me negou atendimento (Joana D’Arc).
Vivemos em uma sociedade marcadamente patriarcal, que converte as diferenças entre os gêneros masculino e feminino em desigualdades, reforçando a subordinação da mulher ao homem nas mais variadas esferas da vida (Heleieth SAFFIOTI, 2004). Soma-se a esta realidade o modelo de assistência ao parto, onde também predominam a hierarquia e a dominação do saber médico sobre o corpo da mulher, ferindo diretamente a autonomia com relação a seu corpo, fazendo com que a mesma deixe de ser protagonista desse momento crucial de sua vida (AGUIAR, 2010).
Muitos procedimentos são realizados sem que as mulheres sejam informadas ou esclarecidas de sua necessidade e sem requisitarem seu consentimento. O Ministério da Saúde contraindica práticas utilizadas de modo inadequado, como toques vaginais frequentes e realizados por vários profissionais, em intervalos de tempo pequenos, o que pode prejudicar a evolução fisiológica do trabalho de parto e parto, que causam desconforto e edema de vulva (BRASIL, 2014; OMS, 1996).
As mulheres, desde a tenra idade, são ensinadas a agradar, a fazer-se objeto, e não se perceberem como sujeitos; a perda de sua autonomia lhes é imposta socialmente (Simone de BEAUVOIR, 1949). Como afirma Joana D’Arc: Porque eles acham que você não tem direito a nada, que nós não podemos questioná-los que é o que eles dizem e ponto final [...].
No momento do parto, a autonomia feminina é barrada pela tentativa histórica de inferiorização da mulher. Paralelamente, há ainda o fato de alguns profissionais se colocarem num patamar hierárquico superior, inquestionável e soberano, detentor do saber (AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013). O Ministério da Saúde afirma que é necessário considerar os desejos e valores da mulher e adotar uma postura sensível e ética, respeitando-a como cidadã e eliminando as agressões verbais e não verbais, o que vai ao encontro a uma assistência humanizada no parto (BRASIL, 2014).
Expressões da violência obstétrica
O processo de parturição é um momento único e inesquecível na vida de qualquer mulher, no qual o cuidado despendido pelos profissionais deveria ser pautado no protagonismo da parturiente, tornando-o mais natural possível, uma vez que esse processo é fisiológico, normal e necessita essencialmente, na maioria das vezes, apenas de apoio, acolhimento, atenção e, fundamentalmente, de humanização (BRASIL, 2014). No entanto, esse momento às vezes é marcado pela violência obstétrica institucional, cometida justamente por aqueles que deveriam ser os cuidadores (AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013).
Podemos denotar, na fala, [...] e as enfermeiras ficaram soltando piadas, dizendo assim: ‘Na hora de fazer tenho certeza que você não chorou, né’! [...] (Cora Coralina), uma das faces mais cruéis dessa violência, a psicológica, que não deixa marcas físicas, mas emocionais, por isso colabora mais ainda para sua invisibilidade (Danúbia Mariane Barbosa JARDIM; Celina Maria MODENA, 2018).
A violência obstétrica que, na maioria das vezes, ocorre num ambiente institucionalizado, é condicionada por questões de gênero, que transformam as diferenças de ser mulher, mediadas pela condição socioeconômica e a raça/etnia, em desigualdades, numa relação hierárquica na qual a usuária é tratada como um objeto de intervenção profissional, perdendo a autonomia e a liberdade sobre seu próprio corpo (AGUIAR; D’OLIVEIRA, 2010).
Reforçando a ideia da subordinação, fruto do sistema patriarcal, que oprime e violenta as mulheres, está a violência obstétrica. Saffioti (2004), que traz a ideia do “nó analítico”, afirma que as relações patriarcais de gênero se articulam nas dimensões de raça/etnia, classe e gênero, sendo impossível a compreensão de uma destas “contradições” isolada das demais. Nessa perspectiva, esses componentes são indissociáveis, visto que possibilitam a compreensão da situação de dominação-exploração das mulheres. Vale ressaltar que uma mulher que sofre discriminação, pelo fato de ser mulher, tem essa discriminação mais acentuada se for pobre e negra. Isso, no entanto, é decorrente de raízes históricas que legitimaram a escravidão social no Brasil que, sob a perspectiva de um viés racial implícito, pode ainda se manifestar em todas as áreas da vida social, sobretudo na má qualidade e desigualdade de acesso aos serviços de saúde maternos (Maria do Carmo LEAL et al., 2017; Jussara Francisca de ASSIS, 2018).
Constatamos, nas falas das participantes, que o patriarcado vem imprimindo forças contra o corpo e a sexualidade das mulheres, pois, por meio da violência psicológica, sutilmente quer castigá-las por vivenciar sua sexualidade, como se essa não lhes fosse um direito, então a dor no momento do parto seria uma forma de puni-las (AGUIAR; D’OLIVEIRA, 2010). Como podemos visualizar, Acho que, às vezes sim, se a mulher, por exemplo, der trabalho, ficar gritando, se for aquelas bem escandalosas, as enfermeiras e os médicos deixam sofrer mais, entendeu (Cora Coralina).
Nesse sentido, os profissionais valorizam a paciente que aguenta calada, que é obediente e “colabora”, enquanto a que faz “escândalos” não é bem vista, nem bem tratada, por conseguinte, logo escutará: ‘Na hora de fazer não chorou’. Isso vem explicitar a banalização da violência obstétrica institucional que, muitas vezes, é vista como uma brincadeira pelos envolvidos e até esperada pelas puérperas (AGUIAR, 2010; AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013).
Percebemos, em vários depoimentos, situações de não cuidado às puérperas, quando os profissionais se mostram indiferentes, insensíveis à sua dor, negligenciando o cuidado e desrespeitando esse momento. [...] Eu dizia pra eles que eu tava sentindo dores e a médica disse pra enfermeira que eu tava só com piti, que eu não tava sentindo dores [...] (Joana D’Arc).
Nesse sentido, conforme a Política Nacional para Enfrentamento à Violência contra as mulheres, a violência institucional se configura como a violência praticada por ação ou omissão na prestação de serviços públicos de instituições. Isso é perpetuado por profissionais que não asseguram um cuidado humanizado, preventivo e reparador de danos (BRASIL, 2011).
Outra expressão de violência descrita nos relatos foi a privação alimentar e hídrica. No entanto, segundo a OMS (1996), a privação alimentar e hídrica durante o trabalho de parto é desnecessária e caracteriza-se como violência obstétrica. Porém, podemos visualizar, na fala abaixo, que a paciente teve seu direito violado:
[...] comecei a passar mal de fome, porque eu passei o dia todinho sem se alimentar, tive perda de sangue, aí minha mãe disse: “chega, ela tá passando mal”, aí a técnica de enfermagem jogou o pacote de bolacha na minha cara, aí minha mãe disse: “O que é isso”, ela disse: “é pra ver se ela tá passando mal mesmo” (Joana D’Arc).
Podemos identificar, na fala acima, além da privação de comida, a submissão da puérpera à violência física, fato esse indiscutivelmente injustificável. Pois, é nessa perspectiva que a violência obstétrica institucional decorre de relações sociais marcadas pelo descaso com os aspectos humanos do cuidado, da rigidez hierárquica nas relações dos profissionais de saúde com os pacientes, das falhas no processo de comunicação, da mecanização do cuidado, do uso inadequado de tecnologias e o não comprometimento dos profissionais de saúde com o processo de cuidar (Karina Junqueira de SOUZA, 2014).
Ainda no que se refere à restrição alimentar e hídrica prolongada, alguns autores afirmam que esta poderá causar desconforto para a puérpera, além de que, desde quando foram publicadas as recomendações pela OMS (1996), orienta-se que as mesmas tenham liberdade para ingerir líquidos e outros alimentos leves durante o trabalho de parto - o que notavelmente não vem sendo cumprido (Mandisa SINGATA; Joan TRAMER; Gillian GYTE, 2013).
Outra violência citada foi a negação de se ter um acompanhante, apesar de ser assegurada na Lei nº 11.108/2005, que afirma que o serviço de saúde deverá permitir a presença de um acompanhante, de livre escolha da mulher durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato; a negação desse direito torna esse momento solitário, inseguro e doloroso (Estela AQUINO, 2014; BRASIL, 2005). Percebemos, na prática, que esse direito não se efetiva na sua plenitude, uma vez que o acesso ao direito a um acompanhante em todas as etapas do trabalho de parto foi cedido apenas a 5 (cinco) das 12 participantes, e 3 (três) participantes só tiveram direito após o parto, quando a mulher vai para o setor de Alojamento Conjunto com o recém-nascido e que necessita de auxílio nos cuidados; como visualizamos na fala a seguir: Tive direito a acompanhante só no pós-parto, não me permitiram antes e durante e não me informaram o motivo (Frida Kahlo). As outras 4 (quatro) tiveram esse direito negado.
Raras exceções ocorreram com 3 (três) mulheres atendidas no setor privado, que tiveram seu direito concretizado. Isso se deve ao fato, na maioria das vezes, das limitações físicas dos serviços, pois as estruturas são precárias, não permitindo a permanência de outra pessoa devido às inadequações do espaço, de tal forma que isso também poderá interferir na privacidade de outras puérperas, sentindo-se constrangidas com a presença de acompanhantes do sexo masculino, por isso, alguns serviços, quando permitem acompanhante, restringem apenas do sexo feminino, ferindo, desse modo, o direito de livre escolha da mulher (Diego Pereira RODRIGUES et al., 2017). Dados da Pesquisa “Nascer no Brasil” apontam que as mulheres que têm um acompanhante presente, consequentemente, são menos vulneráveis à violência, considerando ainda que o apoio e a participação do acompanhante são fundamentais para melhorias nos resultados perinatais, sendo ainda um direito das mulheres e uma alternativa de baixo custo (DINIZ et al., 2014).
Preocupa-nos, também, ouvir depoimentos como o de Anita Garibaldi: [...] porque assim, nos meus três filhos eu fui cortada e nos três ficaram em cima de mim, e eu fiquei até pensando e é proibido, aí eu não entendi direito como era, né. Observa-se, assim, práticas desaconselhadas pela OMS, como é o caso da manobra de Kristeller, na qual o médico ou seu auxiliar pressiona a barriga da gestante de modo a forçar a saída do bebê em direção à vagina, mecanismo que pode causar danos à mãe e ao bebê, e da episiotomia, um procedimento cirúrgico pelo qual é realizado um corte na região do períneo com objetivo declarado de facilitar/apressar a passagem do bebê (Cariny CIELLO et al., 2012).
A episiotomia, apesar de não ser proibida, tem recomendação para que seu uso seja restrito a situações de sofrimento fetal ou materno. No entanto, essa é uma prática bastante recorrente no Brasil. A Organização Mundial de Saúde recomenda a taxa entre 10 e 30% (LEAL et al., 2014b).
O Brasil é conhecido mundialmente pela elevada incidência de cesarianas (CIELLO et al., 2012). Nos partos normais, continuam a ser utilizadas intervenções desaconselhadas pela Organização Mundial de Saúde, como episiotomia e manobra de Kristeller, seja por falta de evidências científicas que comprovem seus benefícios superiores aos riscos ou por causarem iatrogenias graves. Destaca-se que, em 1996, a OMS desenvolveu um documento classificando as práticas obstétricas a serem utilizadas no parto normal, dividindo-as em recomendadas e que devem ser mantidas; além das que necessitam de cautela devido à falta de comprovação de seus benefícios; informando, também, as que são consideradas danosas ou prejudiciais que devem ser evitadas; ademais, há as práticas que frequentemente são realizadas de modo inadequado (OMS, 1996).
Dentre os doze partos realizados no presente estudo, nove foram na rede pública de saúde, dos quais cinco foram cesáreas e quatro normais; enquanto os três realizados na rede privada foram todos cesárea. No depoimento das entrevistadas, foi possível perceber a preferência pela cesárea, e um dos fatores que estimulam essa decisão é a falta de informações acerca dos benefícios do parto normal e dos riscos de uma cesárea. Assim, as mulheres introjetam a cesárea como a melhor alternativa e muitas delas, atendidas no setor privado, já têm suas cirurgias cesáreas previamente agendadas (DINIZ et al., 2014).
Alguns autores associam os altos índices de prematuridade à indução e à realização de cesáreas desnecessárias (Hannah H. CHANG et al., 2012). Deve ser por essa razão que, no setor privado, há maior presença de prematuros leves, o que pode estar relacionado com os altos índices de cesáreas eletivas agendadas (Aluísio BARROS et al., 2006; LEAL et al., 2014a; OMS, 2012).
Aquino (2014) vem corroborar esses pressupostos, afirmando que vivemos uma “epidemia” de cesáreas, pois esta ainda é a forma mais utilizada de nascimentos no Brasil, sendo que a realização da cesariana eletiva se tornou prática recorrente no Brasil. Segundo dados da “Pesquisa Nascer no Brasil”, 52% dos partos realizados ocorrem via cirúrgica, ultrapassando a taxa de 15% recomendada pela OMS (LEAL et al., 2014b).
É importante considerar que também temos como problemática a disseminação da mercantilização da assistência à saúde, na qual os procedimentos são permeáveis aos interesses do mercado, cuja lógica pode se sobrepujar às razões de interesses sanitários, pois essa tentativa de alcançar saúde via medicalização da vida mostrou-se altamente lucrativa (LEAL et al., 2014b; Charles Dalcanale TESSER et al., 2015). Esse obstáculo é reforçado no depoimento de uma das entrevistadas: [...] porque ele tava fazendo a cesárea, mas só dizendo as coisas comigo, dizendo que tava doido pra terminar, queria terminar logo aquele parto e se ver livre logo de mim pra fazer outro parto [...] (Carlota Joaquina).
Essa lógica influencia os/as profissionais a optarem por determinados procedimentos que lhes demandam menos tempo e ainda são mais lucrativos, como é o caso das cirurgias cesáreas, que são mais rápidas do que, muitas vezes, o parto normal, no qual o trabalho de parto pode durar horas. É importante ressaltar que a cirurgia cesariana, quando necessária, salva vidas e diminui morbidades para a mulher e o bebê (LEAL et al., 2014b; TESSER et al., 2015). Torna-se fundamental, nesse sentido, repensar a formação desses profissionais, pois os mesmos têm papel decisivo nesse cenário, o qual tem como causa a formação profissional acrítica, além da incorporação indiscriminada e sem regulação adequada de tecnologias (Sérgio Adriany Santos MOREIRA; Patrícia Peterli PARTICHELLI; Adriana Aparecida Oliveira BAZANI, 2018; Michele PEDROSA, 2005).
A literatura vem afirmar que os cuidados despendidos à mulher durante o trabalho de parto e parto são fundamentais para o estabelecimento de vínculo mãe/recém-nascido, e, desse modo, experiências estressantes de parto estariam associadas ao menor sucesso na lactação. De tal modo, é fundamental que os serviços de saúde estejam organizados de forma a criar condições para um atendimento digno e respeitoso (Heloisa de Oliveira SALGADO; Denise Yoshie NIY; DINIZ, 2013) para as parturientes (ou) gestantes (ou) puérperas.
Embora o Brasil tenha atingido uma elevada cobertura na assistência pré-natal e a taxa de parto hospitalar tenha sido maior que 98% em 2010, paradoxalmente, ainda persiste elevada a razão de mortalidade materna e perinatal, evidenciando, desse modo, que a necessidade do modelo de atenção ao parto e nascimento seja revisto (LEAL et al., 2014b).
Assistência à gestante na maternidade
Atendimento
A maioria das entrevistadas mencionou a agilidade e a rapidez como pontos positivos para o bom atendimento, mas várias delas também apontaram uma necessidade de profissionais mais sensíveis, mais humanos que as acolhessem melhor, como podemos ver na seguinte fala: Eu me senti satisfeita na questão da rapidez e os profissionais de limpeza, da alimentação eles eram mais humanos comigo do que os profissionais médicos e enfermeiros. Mas, eu não vou dizer que foram todos, porque teve muitos que me ajudaram bastante (Princesa Isabel).
É nessa direção que a Política de Humanização da Assistência Hospitalar e o Programa de Humanização do Parto e Nascimento do Ministério da Saúde são exemplos de respostas à insatisfação dos usuários com um tratamento denunciado como desrespeitoso, violento e o uso indiscriminado de tecnologias que resultam em altos índices de cesarianas e a dor iatrogênica (BRASIL, 2000; DINIZ, 2005).
Logo, o documento “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde” vem corroborar a necessidade do atendimento humanizado às parturientes a fim de evitar violências obstétricas, afirmando que: “Toda mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso” (OMS, 2014, p. 1). Portanto, resgatar a humanidade do atendimento é ir contra essa violência, já que esta representa a antítese do diálogo, a negação do outro em sua humanidade (Suely DESLANDES, 2004).
Percebemos, nos depoimentos, que é bastante comum os profissionais de saúde se dirigirem às puérperas por termos como “mães”, “mãezinhas”, e isso se configura numa perda de identidade (AQUINO, 2014): Alguns me chamavam pelo meu nome e outras não, às vezes diziam: “mãezinha, olhe, ele tá bem”, eu achei legal porque quando a gente é tratada com carinho a gente se sente melhor, né (Princesa Isabel). Muitas mulheres veem esse fato como positivo, como uma forma de carinho, se sentem acolhidas. Trata-se do mito que envolve a maternidade na sociedade marcadamente patriarcal, em que foi incutido que o papel social da mulher se resumia à esfera privada, a ser mãe, fato esse que se vem desconstruindo com a inserção e atuação da mulher nos mais diversos espaços (Elisabeth BADINTER, 1985). Acerca da nomenclatura, no entanto, é importante esclarecer que é direito de qualquer usuário ser identificado e tratado pelo seu nome ou sobrenome e não por números, códigos ou de modo genérico, desrespeitoso ou preconceituoso (BRASIL, 2007).
Estrutura Física da Maternidade
Nos depoimentos das entrevistadas, eram visíveis a insatisfação quanto aos aspectos físicos e estruturais da maternidade: Foi muito difícil, eu me senti muito humilhada, muito mesmo, depois eu fiquei num quarto podre uma semana com mais três pessoas dentro e o chão imundo [...] (Joana D’Arc).
A violência institucional em maternidades públicas tem sido apontada como resultado da própria precariedade do sistema de saúde e assim entendida como ligada à falta de investimentos no setor, o que vem propiciar um ambiente desestimulante, favorecendo, desse modo, a ocorrência da violência (AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013). Como afirma Carlota Joaquina: [...] eu acho assim, colocando mais médicos e mais enfermeiros pra atender a gente no parto, porque eles estão ali, às vezes eles vêm e tratam os pacientes mal, mas não é culpa deles, é o dia a dia, a rotina que estressa eles (Carlota Joaquina).
A insuficiência de recursos humanos na assistência ao parto foi um fator bastante apontado pelas entrevistadas, impactando negativamente o atendimento prestado no parto. Vale ressaltar, também, a necessidade de melhores condições de trabalho para os profissionais, pois a rotina de trabalho deles é realmente desgastante, no entanto, isso não pode ser justificativa para tratar usuários/as de forma desrespeitosa e agressiva.
Dentre as violências identificadas, podemos citar ainda o direito ao atendimento com sigilo e privacidade violados: Aí ele disse que eu tinha sífilis, na frente das outras pessoas que estavam [...] Ele da porta falou em alto e bom tom que eu tinha sífilis, aí eu fiquei desnorteada [...] (Princesa Isabel).
Nesse sentido, sem justificativa plausível, o profissional de saúde violou o Código de Ética Médica, que afirma que está vetado ao profissional: “Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente” (Edmilson de Almeida BARROS JÚNIOR, 2019, p. 550).
É nessa perspectiva que a confidencialidade e o respeito à privacidade constituem preceitos morais tradicionais das profissões de saúde. Os profissionais têm como dever a guarda e confidencialidade das informações em relação a terceiros, pois disso depende a base da confiança que deve nortear a relação profissional-paciente (BARROS JÚNIOR, 2019). Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º-X, prevê que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988, art. 5º, p. 13).
Observa-se que os retratos da violência obstétrica são inúmeros e variados e não se restringem apenas ao campo físico e sexual, como a prática indiscriminada da episiotomia, a manobra de Kristeller, o uso abusivo da ocitocina, imobilização no leito, posição litotômica no parto, entre outras (FIOCRUZ, 2014). Além disso, as mulheres também são submetidas à violência psicológica, por meio de piadas, ameaças, ofensas. Fato este comprovado na pesquisa que afirma que 23% das entrevistadas já ouviram, de algum profissional, frases como: “Não chora que ano que vem você está aqui de novo; Na hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe; Se gritar eu paro e não vou te atender” (VENTURI; BOKANY; DIAS, 2010).
Nesse sentido, o movimento feminista muito tem contribuído na visibilidade da mulher, (re)descrevendo a assistência a partir de conceitos de direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos, reconhecendo-a como sujeito de direitos. E esse movimento contra a violência obstétrica no Brasil - que envolve diversas instâncias da sociedade e profissionais de saúde - é um movimento em prol da humanização do parto e nascimento que visa à participação ativa da mulher e de seu protagonismo no processo de parto (DINIZ, 2005).
Considerações Finais
Das 12 entrevistadas, 7 (sete) não conheciam o termo violência obstétrica, o que as impossibilitava de identificar, com clareza, as possíveis violências sofridas. Das participantes, 8 (oito) avaliam o atendimento nas maternidades de forma positiva no que se refere à agilidade no tempo de espera. Entretanto, apesar da satisfação explicitada, observou-se, nas suas falas, elementos de não cuidado que se configuram em diversas expressões da violência obstétrica, e todas elas afirmaram ter vivenciado ou conhecer alguém que já tenha sofrido uma situação de violência na assistência ao parto.
Dentre as expressões da violência obstétrica identificadas, podemos citar: violência física, negligência e frieza, privação de alimentos, negação de ter um acompanhante em todas as etapas do pré-parto, parto e pós-parto, realização de exames de toques repetitivos e dolorosos, violação do direito ao sigilo e confidencialidade, negação do direito à informação, realização da manobra de Kristeller e da episiotomia, violência psicológica por meio de jargões discriminatórios e humilhantes, entre outros.
A violência obstétrica é recorrente na assistência hospitalar e expressa desigualdades e opressões nas relações de gênero e entre profissionais e usuárias dos serviços de saúde. O enfrentamento da violência obstétrica demanda atribuir maior visibilidade a esta problemática, incluindo-a nos processos de formação e nos espaços de trabalho destes profissionais, bem como entre as mulheres, na busca de propiciar a identificação e o enfrentamento desta forma de violência. Deste modo, ressalta-se a importância de dar visibilidade à violência obstétrica praticada nas maternidades, visando construir estratégias ao seu enfrentamento.
Ao reconhecer a existência desse grave problema que afeta mulheres em todo o país, deve-se buscar também estratégias de enfrentamento, incluindo, por exemplo, imposição de penalidades àqueles que praticam a violência obstétrica, uma vez que, ao criminalizar essa prática, a busca por soluções para essa problemática pode aumentar.
Além disso, é importante sensibilizar os profissionais de saúde a fim de que eles atuem de forma a garantir o direito das gestantes a um atendimento de qualidade, respeitoso e digno em um dos momentos de maior importância na vida dessas mulheres, as quais, por diversas razões, podem estar se sentindo extremamente vulneráveis, sensíveis e fragilizadas.
Assim, esses profissionais precisam estimular o empoderamento feminino no momento do parto, para que a mulher sinta confiança em seu próprio corpo e passe a entendê-lo melhor durante esse momento, podendo, assim, até superar a dor física. A mulher é a protagonista no ato de parir, sua vontade e dignidade precisam ser respeitadas!