1 Introdução
Em 2020, o Brasil, em meio ao cenário pandêmico que se espalhou, rapidamente, pelo mundo, experimentou o aprofundamento de desigualdades sociais e de crises de diferentes ordens (sanitária, política, econômica e humanitária). Tal aprofundamento tem sido acompanhado, desde então, pelo desnudar das distâncias sociais e da vulnerabilidade a que determinados grupos e populações inteiras estão submetidos cotidianamente ( SANTOS, 2020 ). Se as condições de vulnerabilidade social são anteriores à pandemia, a literatura especializada sobre o tema tem mostrado que a segunda tem potencializado a primeira. Dessa forma, evidencia-se um elemento que havíamos, há muito, naturalizado e tornado quase invisível em nossa sociedade capitalista: os grupos sociais vivenciam de maneiras distintas os panoramas de época.
Para mulheres e negros/as, comunidades indígenas e quilombolas, trabalhadores informais, vendedores ambulantes, sem-teto ou moradores em situação de rua, moradores de lugares precários, refugiados, deficientes físicos, idosos, entre outros, a pandemia e o isolamento social ganharam outros contornos. Oliveira (2020) e Soto (2020) demonstram que, apesar de a pandemia configurar-se como um fenômeno global, os países e os grupos sociais são, distintamente, afetados por ela. Valemo-nos dessa compreensão das diferenças e das desigualdades como sustentáculos das formas como experienciamos a pandemia para tratar das regiões brasileiras, mais especificamente, da região Norte, e do estado do Amazonas, de forma particular. Cruzando os dados epidemiológicos das doenças respiratórias com os indicadores socioeconômicos e com as condições da assistência em saúde da região Norte, Mendonça et al . (2020) revelam que as sucessivas crises pelas quais a região tem passado, desde o início da pandemia, são frutos de um histórico de desamparo político, que se expressa no baixo número de médicos e de demais profissionais de saúde, leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e materiais e equipamentos hospitalares.
A questão regional, já consolidada na literatura sobre a formação social do Brasil, ganha centralidade frente ao cenário pandêmico e às desigualdades que acabam por transformar regiões, estados e municípios em verdadeiros epicentros da pandemia. A Educação mostrou-se um dos principais campos afetados pela pandemia e, nesse sentido, um vértice para as análises em torno das desigualdades sociais e educacionais. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ( UNESCO, 2020 ), mais de 190 países tomaram decisões ligadas à suspensão das atividades presenciais e ao fechamento das escolas, ainda em 2020, frente ao avanço do coronavírus. Os replanejamentos, a partir dessa suspensão, deram origem a uma governança educacional em cenário pandêmico ao redor do mundo ( GARCÍA; WEISS, 2020 ).
No estado do Amazonas, essa conjuntura desencadeou diversas decisões do poder público, que objetivavam a retomada do ensino na Educação Básica, as quais passaram a abarcar tanto ações diretamente ligadas à continuidade das aulas de forma remota quanto ações voltadas à assistência aos estudantes e às suas famílias, buscando garantir a sua permanência. Com base nesse preâmbulo, nosso objetivo geral consistiu em analisar o desenho da governança educacional para a Educação Básica, que se materializou no primeiro ano da pandemia de Covid-19 no estado do Amazonas. Para tal, o artigo retoma e analisa as tomadas de decisões do poder público sobre as redes municipal e estadual de ensino da capital e do estado, entre março de 2020 e fevereiro de 2021, a partir das ações da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (Semed-Manaus) e da Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do ensino do Amazonas (Seduc-AM).
2 A pandemia de Covid-19 e suas reverberações na Educação
Se entre o final de 2019 e o início de 2020 todo o mundo voltou sua atenção ao alastramento da pandemia de Covid-19, e suas consequências avassaladoras, a preocupação com os sistemas educativos e a necessidade de garantir o direito à Educação para crianças, jovens e adultos, nesse cenário, datam também do início da pandemia. Atrelado à garantia à vida, o direito à Educação passou a ocupar a centralidade dos debates no campo científico, por parte dos intelectuais da Educação, bem como no campo político, por parte do poder público e dos movimentos sociais. Isso deveu-se ao primeiro impacto da pandemia sobre os sistemas educativos: o fechamento das escolas e a suspensão de todas as atividades presenciais em diferentes países ( MACEDO, 2021 ; OZER, 2020 ).
A necessidade emergencial de pensar alternativas para os mais diferentes campos da nossa vida em sociedade compeliu governos de todo o mundo, em blocos ou de forma individual, a desenhar, de um lado, decisões de combate ao avanço da pandemia (como o distanciamento social, o lockdown , bem como a ratificação das recomendações da Organização Mundial da Saúde) e, de outro, decisões direcionadas para a continuidade das mais diferentes atividades e setores. Conforme assevera Minto (2021) , o campo educacional foi tomado por um senso de urgência determinante para que o chamado “ensino remoto emergencial” fosse compreendido como uma espécie de imperativo, com vistas a mitigar os impactos negativos, que seriam ocasionados pela suspensão das aulas presenciais nas escolas e nas Instituições de Ensino Superior (IES).
No Brasil, para além do aprofundamento da participação do setor privado, dos organismos internacionais e do terceiro setor nas decisões no campo da Educação, a pandemia escancarou uma forte onda anti-intelectualista, que nega as bases e as recomendações do campo científico (BELTRÃO et al ., 2020; FIGUEIREDO FILHO; SANTOS, 2021 ) – o negacionismo tem, portanto, desempenhado papel decisivo tanto no âmbito da saúde pública e do combate à pandemia propriamente dito (sobretudo com a multiplicação de grupos antivacina e de adeptos de tratamentos sem eficácia comprovada cientificamente), quanto nos demais campos sociais (a exemplo da Educação e da economia). Estamos diante de uma combinação de negação e de negacionismo. A primeira refere-se às estratégias de minimização dos fatos, desprezo e impossibilidade de crer na realidade (como as pessoas que deixaram de ver os noticiários no auge da pandemia), enquanto o segundo se refere a uma ação instituída, deliberada a partir do império das fake news produzidas pela máquina estatal e da negação da gravidade da pandemia – essas duas vias são altamente virulentas e atravessaram, simultaneamente, a realidade dos sujeitos, contribuindo para a consolidação de visões e de práticas descoladas da realidade (JORGE; MELLO; NUNES, 2020). Temos, então, esse período que acabou por acentuar falta de sintonia entre as políticas públicas de Educação e de saúde, ambos os campos diretamente influenciados pelo alcance desse cenário de negacionismo.
Na Educação, o ensino remoto e a recentralização das tecnologias ganharam um tom salvacionista. Porém, acentuaram, por outro lado, as limitações da universalização do modelo remoto emergencial, em função das desigualdades sociais e de acesso à internet e aos recursos tecnológicos necessários para que crianças, jovens e adultos, matriculados nas escolas e nas IES, em todo o país, pudessem, de fato, continuar a acompanhar as aulas ( CARDOZO, 2022 ; GOMES et al ., 2021).
A Educação passou a expressar as desigualdades educacionais de forma mais escancarada no cenário pandêmico. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) indica que pouco mais de 20% dos domicílios em todo o país, não têm acesso à internet – o que equivale a, aproximadamente, 15 milhões de lares. Nas residências em que o acesso à internet foi constatado (79%), o aparelho mais utilizado é o celular, que, em grande parcela, é compartilhado entre os membros das famílias (IBGE, 2018). Essa realidade incidiu, diretamente, sobre o campo educacional, a partir do alastramento da pandemia, obrigando o poder público a desenhar uma governança preocupada em equacionar diferentes polos que deveriam ser compreendidos de forma integrada, tais como: a necessidade de continuidade do ano letivo; o enfrentamento do acesso desigual às ferramentas necessárias para o ensino remoto; a formação continuada e a garantia das condições de trabalho dos/as professores e demais profissionais da Educação, e a preservação da vida, que se colocava como questão primeira e da qual todas as anteriores dependem.
Com base no Painel de Monitoramento da Educação Básica no Contexto da Pandemia ( BRASIL, 2021 )1 , 99,3% das escolas de Educação Básica de todo o país, entre públicas e privadas, suspenderam as atividades presenciais, em 2020, como medida de enfrentamento da pandemia de Covid-19. A média nacional de dias de aulas suspensas foi 279,42 e, quando analisamos, comparativamente, as redes pública e privada, temos o seguinte quadro: as escolas públicas brasileiras suspenderam as aulas por uma média de 287,47 dias, enquanto as escolas privadas o fizeram por 247,73 dias (BRASIL, 2021).
É, ainda com base nesse monitoramento, que podemos observar o quadro nacional de estratégias não presenciais adotadas nas escolas de Educação Básica2 . Cerca de 98% das escolas, em todo o país, adotaram estratégias desse tipo e, dentre as escolas públicas, a rede estadual apresentou maior percentual de utilização de estratégias não presenciais frente à rede municipal, embora ambas tenham desenvolvido estratégias junto aos professores e aos estudantes. As principais estratégias, junto ao corpo docente, são: i) as reuniões virtuais de planejamento, de coordenação e de monitoramento de atividades; ii) a reorganização/adaptação do planejamento; iii) o treinamento para uso de métodos/materiais dos programas de ensino não presencial; iv) a disponibilização de equipamentos para os professores (computador, notebook, tablets, smartphones etc.) e, por fim, v) o acesso gratuito ou subsidiado à internet em domicílio ( BRASIL, 2021 ).
As principais estratégias junto aos estudantes englobaram, por sua vez: i) a manutenção de canal de comunicação com a escola (e-mail, telefone, redes sociais e aplicativo de mensagens); ii) a disponibilização de materiais de ensino-aprendizagem impressos (livros didáticos impressos, apostilas, atividades em folha etc.) para retirada na escola pelos alunos ou responsáveis e/ou entrega em domicílio; iii) a disponibilização de materiais de ensino-aprendizagem na internet (vídeos, podcasts , publicações em redes sociais, plataformas virtuais, aplicativos para celular); iv) a realização de avaliações e de testes, remotamente, pela internet ou com envio/devolução de material físico; v) o atendimento virtual ou presencial escalonado com os alunos, os seus pais ou os responsáveis; vi) suporte aos alunos, a seus pais ou aos responsáveis para a elaboração e o desenvolvimento de planos de estudos/estudos dirigidos; vii) a realização de aulas ao vivo (síncronas) mediadas pela internet, além de viii) aulas previamente gravadas, treinamento junto aos pais e aos alunos para utilizar as ferramentas tecnológicas e a transmissão das aulas via internet, TV ou rádio ( BRASIL, 2021 ).
O desigual acesso à internet e aos recursos tecnológicos, com recortes decisivos de classe, raça e etnia, gênero e localização geográfica, desenhou experiências diversificadas ao longo dos anos letivos de 2020 e de 2021. Kenski (2015) , ao analisar os impactos da liberação da internet no Brasil, nos últimos 20 anos, já refletia sobre os limites próprios da experiência nacional: a desigualdade nas condições de acesso e o uso dos recursos e dos dispositivos disponíveis na internet. A autora demonstra que os estados brasileiros com baixa capacidade de acesso às tecnologias também são aqueles que possuem as piores condições para seu uso.
Nesse sentido, a capacidade instalada, as condições materiais, econômicas e políticas têm colocado-se como elementos fundamentais na governança educacional que cada estado tem consolidado nesse período. A região Norte é aquela que aparece com menores percentuais de aulas síncronas em 2020, o que significa que, nessa região, as crianças, os jovens e os adultos da Educação Básica vivenciaram um ano letivo muito mais solitário, sem mediação professoral em tempo real, sem condições de socialização síncrona com os colegas de turma e, por isso, com uma necessidade de autonomia escolar muito mais acentuada. No caso do estado do Amazonas, nosso lócus de estudo, a Figura 1 revela que as aulas síncronas tiveram baixa ocorrência, mesmo na capital, Manaus (50,6%), e, em muitos municípios amazonenses, os dados apontam a não realização de aulas desse tipo, em 2020.
Talvez uma das explicações para o apelo ao retorno presencial na região Norte e no estado do Amazonas resida, exatamente, no parco alcance do ensino remoto ao universo de estudantes matriculados, sobretudo quando consideramos o interior do estado – espaço para o qual os desafios amazônicos, de espaço e de tempo, apresentam-se ainda mais imperativos. No ano de 2020, a partir de uma mirada que engloba escolas públicas e privadas, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep ( BRASIL, 2021 ) aponta o seguinte quadro decrescente entre os cinco estados, mais o Distrito Federal, com maior percentual no que tange às escolas de Educação Básica que retornaram ao modelo presencial em algum momento daquele ano: Distrito Federal (25,67%), Rio Grande do Sul (22,76%), Espírito Santo (20,22%), Pernambuco (19,39%) e Amazonas (17,96%). Com sucessivas crises no seu sistema de saúde, transmutando-se em um dos epicentros da pandemia, o estado do Amazonas ganhou centralidade na cena pública e passou a ser o objetivo, por meio da governança educacional, em tempos de pandemia, em nosso estudo.
3 Nota metodológica: os caminhos para o mapeamento das ações públicas educacionais na pandemia
A partir da Sociologia da Ação Pública, de Lascoumes e Le Galès (2012b), e de uma abordagem de cunho qualitativo, o estudo que deu origem ao presente artigo se ocupou de mapear as tomadas de decisões do poder público para a Educação Básica no Amazonas, em cenário pandêmico. Para esses autores,
A sociologia do Estado e do governo se interessa há longo tempo pela questão das tecnologias de governo, entre estes os instrumentos da ação pública. Mas raramente esse tema é colocado no centro da análise. Os instrumentos de ação pública representam, portanto, um domínio ainda relativamente pouco explorado [...] A ação pública é um espaço sociopolítico construído tanto por técnicas e instrumentos quanto por finalidades, conteúdos e projetos de ator. A noção de instrumento de ação pública (IAP) permite ultrapassar as abordagens funcionalistas que se interessam antes de tudo pelos objetivos das políticas públicas, por considerar a ação pública sob o ângulo dos instrumentos que estruturam seus programas (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012a, p. 20-21).
Desse modo, o mapeamento que realizamos incidiu, exatamente, sobre a ação pública no estado do Amazonas, seus instrumentos, direcionamentos, agentes e concepções que sustentaram tais ações. O primeiro ano da pandemia foi, então, tomado como recorte temporal do estudo e as páginas eletrônicas oficiais da Semed-Manaus e da Secuc-AM serviram de lócus para esse mapeamento. O design metodológico foi operacionalizado a partir das seguintes etapas:
Revisão integrativa de literatura em torno dos temas correlatos à Educação na pandemia e ao cenário amazonense, em bases nacionais e internacionais – destacam-se três frentes de seleção de textos nessa etapa do estudo: i) publicações locais sobre a região Norte e o estado do Amazonas (com destaque para autores como MENDONÇA et al ., 2020; PALHARES, 2020 ; RATUSNIAK; MAFRA; SILVA, 2020; SANTOS, 2017 ); ii) publicações nacionais sobre a Educação no cenário pandêmico (a exemplo de BELTRÃO et al., 2020 ; GALZERANO, 2021 ; MACEDO, 2021 ; OLIVEIRA, 2020 ) e iii) publicações internacionais sobre a Educação no cenário pandêmico ( BATUBARA, 2021 ; GARCIA; WEISS, 2020 ; GOMES et al ., 2021; SANTOS, 2020 )3 ;
Levantamento das ações dos governos do estado do Amazonas e do município de Manaus, no âmbito da Educação e das respectivas secretarias estadual e municipal de Educação, no período de março de 2020 a fevereiro de 2021;
Organização e tratamento das informações e construção do banco de dados interativo do estudo, composto por 333 registros/notícias (170 levantados da página eletrônica da Seduc-AM; 93 mapeados a partir da página eletrônica da Semed-Manaus e 70 registros recolhidos dos veículos jornalísticos nacionais online );
Categorização dos dados;
Análise dos dados.
As três últimas etapas do estudo foram desenvolvidas a partir da Análise de Conteúdo, de Bardin (1995) , e, nesse sentido, os registros escritos das notícias divulgadas nos sites do Governo do estado, da Prefeitura de Manaus, da Seduc-AM e da Semed-Manaus foram explorados com vistas a possibilitar as inferências e as interpretações em torno da ação pública e da governança voltadas para a Educação no primeiro ano da pandemia no Amazonas4 .
O levantamento dessas ações levou-nos a refletir sobre as ações implementadas de enfrentamento da pandemia e de garantia do direito à Educação no campo educativo, espaço social altamente marcado por incertezas desde o início da pandemia. A análise da governança educacional na pandemia, portanto, considera o avanço do contágio, as crises que se somaram a ele e as respostas que o campo político foi desenhando para o campo educacional e, mais amplamente, para os direitos sociais (BERALDO; RISTER; PASSOS, 2020).
O fio epistemológico da Sociologia da Ação Pública permitiu-nos compreender não somente a ação governamental estrita, mas, também, os poderes, as lutas e os atores sociais, individuais ou coletivos, que compõem a arena política e os bastidores da construção das políticas públicas na sociedade contemporânea (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012b). Os desafios de consolidar uma governança para a Educação em tempos de pandemia foram, aqui, analisados à luz de toda a rede de relações que sustentaram as tomadas de decisões para as escolas, para os profissionais da Educação, para os estudantes e para as suas famílias, entre 2020 e 2021, no Amazonas.
4 Governança educacional e pandemia no Amazonas
No campo da Educação, o cenário pandêmico exigiu uma reorganização, às pressas, em meio às incertezas que se desenhavam no início do ano de 2020. A suspensão das atividades presenciais marcou os sistemas educacionais ao redor do mundo, os quais necessitaram, na sequência, de processos de replanejamento frente à configuração de combate à disseminação do vírus. García e Wiess (2020) demonstram como esse processo se deu nos Estados Unidos da América, onde, ainda no primeiro pico da pandemia, na primavera de 2020, mais de 55 milhões de crianças e de jovens menores de 18 anos ficaram em suas casas devido ao fechamento das escolas em todo o país. Na Turquia, o Ministério da Educação Nacional viu-se obrigado a agir, muito rapidamente, no sentido de fechamento das escolas e no incremento da infraestrutura da Educação a distância no país ( OZER, 2020 ). Baturaba (2021), por sua vez, apresenta-nos a realidade do país com o maior índice de pacientes de Covid-19 no Sudoeste Asiático, a Indonésia, que também precisou adotar o ensino remoto e tem sofrido, desde então, com questões ligadas ao acesso, ao preparo de estudantes e de docentes para as tecnologias digitais, bem como em relação à capacidade das famílias de acompanhar o processo em suas casas. No Brasil, Macedo (2021) demonstra como a necessidade de fechamento das escolas não foi acompanhada por políticas públicas capazes de garantir a conectividade e o direito à Educação para toda a população em idade escolar.
Organizações supranacionais, universidades e seus pesquisadores, bem como governos locais e nacionais, passaram a publicizar seus encaminhamentos para as instituições e os sujeitos escolares, com vista a garantir o direito à Educação nesse cenário. Contudo, a pandemia acabou escancarando os limites sociais desse processo, uma vez que as desigualdades de várias ordens passaram a ganhar centralidade no acesso e na permanência aos formatos remotos de Educação em várias latitudes.
Galzerano (2021) aponta que, ainda nos primeiros meses de 2020, organismos internacionais elaboraram documentos com recomendações para o enfrentamento daquele momento – com destaque para o Banco Mundial (BM), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Harvard Global Education Innovation Initiativee e a organização sem fins lucrativos HundrED –, demarcando as desvantagens de um longo período com as escolas fechadas e sem atividades escolares para as crianças e para os jovens. No cenário brasileiro, registramos iniciativas e posicionamentos expressos em documentos, a partir de uma rede de instituições públicas e privadas, dentre as quais destacamos: Conselho Nacional de Educação (CNE), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Movimento Todos pela Educação, Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), universidades, pesquisadores e associações científicas5 .
Isso desembocou na generalização do ensino remoto e na flexibilização curricular em todo o país, ao passo que, conforme asseveram Pletsch et al . (2020), os pareceres supracitados assentiram ações autônomas dos estados e dos municípios frente às suas especificidades. Nessa convergência, já se afigura a complexa teia de agentes envolvidos nas tramas e nas direções que as políticas públicas educacionais foram ganhando no contexto da pandemia. Essa antessala parece-nos apropriada para tomar à análise o caso do estado do Amazonas, na região norte do Brasil.
Em diferentes momentos, entre 2020 e 2021, o Amazonas tornou-se foco nacional e internacional, em função da disseminação do vírus, do colapso do sistema de saúde e também em função dos debates e das decisões em torno do retorno das aulas presenciais para a Educação Básica, a partir de uma onda ufanista de que “o pior já tinha passado”, que desencadeou comportamentos contrários às recomendações internacionais de combate ao vírus no Amazonas (ANDRADE et al ., 2021). Essa tensão entre as recomendações das agências internacionais e nacionais de saúde e as pressões para um retorno à pretendida “normalidade” ganhou centralidade no Amazonas, figurando entre os desafios enfrentados pelas secretarias municipal e estadual de Educação de Manaus e do Amazonas, no sentido da tomada de decisões para esse setor.
Com o primeiro caso confirmado no estado em 13 de março de 2020, a Figura 2 , abaixo, explicita a velocidade com a qual as primeiras decisões foram tomadas: tivemos a suspensão das aulas nas escolas municipais, estaduais e privadas de Educação Básica, a partir de 16 de março de 2020, seguida, imediatamente, pela adoção do Programa “Aula em Casa”, uma parceria entre Seduc e Semed, anunciada 4 dias depois (em 20/03/2020), e levada a cabo por meio de 3 canais da TV Encontro das Águas; a Semed-Manaus anunciou, nesse primeiro mês, a antecipação do recesso escolar como medida para o enfrentamento da suspensão das aulas presenciais e dos reajustes que o calendário escolar viria, certamente, sofrer; ainda em março, observamos anúncio do programa de merenda da Semed-Manaus (“Nossa Merenda”), que tinha como objetivo continuar a prover as crianças e os jovens com a alimentação que se encontrava presencialmente na escola – o “Merenda em Casa”, da Seduc, foi anunciado em abril de 2020.
Essas primeiras movimentações foram acompanhadas de dois elementos importantes para compreendermos os direcionamentos e os agentes que participaram das ações públicas para a Educação amazonense, em cenário pandêmico: formação de professores e especificidades da rede privada de ensino. Evidenciou-se uma preocupação com a formação continuada dos professores da rede pública de ensino, ainda em março de 2020, o que se justifica pela iminência de um ensino remoto para retomada do ano letivo que incidiria, fortemente, sobre o trabalho docente a partir de uma recentralização das tecnologias nos processos didáticos e comunicacionais entre professores, gestores, estudantes, famílias e comunidade escolar (PÔRTO JÚNIOR; SANTOS; SILVA, 2020). As iniciativas ligadas à formação continuada de professores ganharam corpo nesse primeiro semestre e continuam a ser desenvolvidas por meio de iniciativas como: parceria público-privada para acesso à Plataforma Saber+, que condensa materiais didáticos e cursos a distância com a certificação Escola Digital; promoção de lives e de rodas de conversa com grandes nomes de intelectuais locais, nacionais e internacionais, com o objetivo de discutir questões relativas aos desafios docentes trazidos pela pandemia; parceria com a Fundação Telefônica Vivo para formação docente, por meio da Plataforma Escolas Conectadas6 .
No que tange ao setor privado de ensino, o corpus de notícias analisado demonstra que as principais questões que se colocaram para essas instituições nos primeiros seis meses de pandemia referiram-se a três polos principais: i) evasão e redução de mensalidades; ii) retomada das aulas presenciais e iii) condições de trabalho dos docentes. Esses polos, no entanto, não são exclusivos da realidade amazonense, posto que a literatura especializada vem apontando preocupações em torno dessas questões em todo o país, frente à pandemia (LIMA; SILVA JÚNIOR; COUTINHO, 2020). A evasão cresceu nas redes pública e privada de ensino, em meio à pandemia, colocando em xeque o direto de crianças e de jovens à Educação formal. Os movimentos de redução dos valores das mensalidades das escolas particulares no Amazonas objetivaram mitigar essa situação e chegaram a envolver o Ministério Público do Estado para a fixação das porcentagens de redução desses valores.
As pressões para a retomada das aulas presenciais nos setores privado e público, e as lutas dos sindicatos dos professores com relação às suas condições de trabalho, nesse cenário, estão entrelaçadas. O indicativo de greve dos professores, em agosto de 2020, conforme nos indica a Figura 2 , é porta de entrada para o aprofundamento dos posicionamentos dos docentes com relação à retomada presencial das aulas, a qual foi compreendida pela categoria como precipitada e arriscada, posto que colocava todos os sujeitos escolares em risco de contaminação – importante destacar que os problemas enfrentados no retorno presencial do setor privado (julho de 2020) e do setor público (agosto de 2020, com o Ensino Médio) se relacionam com os números de docentes e de demais profissionais da Educação contaminados.
Outro aspecto que mereceu destaque na ação política-educacional no primeiro semestre de pandemia no Amazonas diz respeito às parcerias público-privadas. É preciso ter clareza de que esse tipo de parceria não se efetiva, exclusivamente, na pandemia, posto que tem sido a tônica do encaminhamento das questões educacionais no Brasil, desde a década de 1990, tendo se consolidado no cenário amazônico ( SANTOS, 2017 ), porém, é preciso reconhecer que, durante a pandemia de Covid-19, tais parcerias expressaram a necessidade de reunir Estado e sociedade civil em tempos atípicos. No caso do estado do Amazonas, identificamos parcerias com as seguintes empresas e organizações não-lucrativas, durante o primeiro ano de pandemia: Fundação Telefônica Vivo, Instituto Natura, Instituto Inspirare, Pro Futuro, Fundação Vanzolini e Fundação “la Caixa”.
O principal debate que marcou a governança educacional nesse cenário diz respeito à pressão pelo retorno ao ensino presencial na Educação Básica no Amazonas. As idas e as vindas com essa questão ganham corpo ainda no primeiro semestre da pandemia, especialmente com o retorno efetivado na rede privada e no Ensino Médio na rede pública. Observemos o segundo semestre da pandemia e as ações que o marcaram no âmbito da Educação, por meio da Figura 3 .
O início desse segundo semestre contou com um movimento de avaliação do retorno presencial experimentado entre julho e agosto de 2020. O intuito desse processo avaliativo consistia em analisar as experiências nas escolas públicas e privadas, com o objetivo de planejar um possível retorno generalizado para todos os municípios e todas as etapas e as modalidades de ensino. As formações de professores sobre o ensino híbrido tomam forma nesse período exatamente porque o replanejamento para o segundo semestre pandêmico contemplava a intenção de oferta dessa forma de organização da oferta, com fases presenciais e fases remotas, com o uso do “Aula em Casa”7 .
Figurando como um dos epicentros da pandemia no país, o estado do Amazonas continuou com o retorno paulatino das aulas presenciais e/ou híbridas no setor público – Ensino Fundamental (setembro de 2020) e no interior do estado (novembro e dezembro de 2020). Esse cenário foi, a exemplo do primeiro semestre, marcado por resistências das entidades representativas dos docentes frente aos perigos de um retorno presencial, ainda em um momento em que as vacinas não estavam disponíveis. A novidade, aqui, diz respeito à participação das famílias nesses movimentos de resistência. A segunda onda de Covid-19 no estado, entre final de 2020 e início de 2021, foi determinante para a suspensão desses modelos híbridos em janeiro de 2021 e para os desafios enfrentados no processo de planejamento do novo ano letivo – a abertura e o fechamento das matrículas nas escolas públicas foram expressões dessa problemática.
De modo geral, evidenciou-se, nesse primeiro ano de tomada de decisões sobre a Educação no Amazonas, uma governança pautada: i) nas relações entre as redes pública e privada de ensino e os setores empresarial e o terceiro setor; ii) nas idas e nas vindas com relação ao formato mais apropriado para a Educação, tendo sido experimentados os modelos remoto, a distância, híbrido e presencial, de acordo com as oscilações do avanço da pandemia no estado; iii) nas disputas em torno da formação e do trabalho docente, com especial atenção para a instabilidade entre ensino presencial e remoto e iv) no enfrentamento das contradições e das desigualdades sociais e educacionais, próprias do contexto amazônico que as crianças e os jovens matriculados nas escolas de Educação Básica enfrentaram.
5 Conclusões
Governança envolve relações, sujeitos, disputas políticas e redes para as tomadas de decisões. Em um país, onde o governo federal minimizou a pandemia de Covid-19 desde o seu início, a gestão pública no âmbito da Educação nos níveis nacional, estadual e municipal lidou, necessariamente, com os impactos dessa crise de saúde, Portanto, no âmbito nacional, a relevância de estudos e de investigações que tomem à análise a ação do poder público para a Educação no cenário pandêmico repousa na necessidade de compreensão dos diferentes caminhos que foram sendo desenhados para lidar com a questão educacional na pandemia, frente a uma rachadura na interdependência federativa entre União, estado e municípios.
De modo geral, evidenciou-se, no primeiro ano de tomada de decisões sobre a Educação no Amazonas, na pandemia, uma governança pautada em quatro eixos principais: i) nas relações entre as redes pública e privada de ensino e os setores empresarial e o terceiro setor; ii) nas idas e nas vindas com relação ao formato mais apropriado para a Educação, tendo sido experimentados os modelos remoto, a distância, híbrido e presencial, de acordo com as oscilações do avanço da pandemia no estado e com as pressões sucessivas para a retomada presencial; iii) nas disputas em torno da formação e do trabalho docente, com especial atenção para as condições precárias que esses profissionais passaram a enfrentar com a instabilidade entre ensino presencial e remoto e iv) no enfrentamento das contradições e das desigualdades sociais e educacionais, próprias do contexto amazônico, que as crianças e os jovens matriculados nas escolas de Educação Básica aqui enfrentam e que foram aprofundadas durante a pandemia.
Reconhecemos as dificuldades de desenvolver uma governança educacional coerente em tempos de incertezas, como tem sido o da pandemia. A complexidade dada frente à teia de sujeitos, de instituições e de projetos educacionais e de sociedade em disputa incidiu, diretamente, sobre as frentes de ação desenvolvidas pela Semed-Manaus e pela Seduc-AM, no período analisado. Compreendemos que a pandemia, ao escancarar as desigualdades sociais e educacionais, serviu de pano de fundo justificador de caminhos e de projetos, anteriormente “ensaiados” pela Educação brasileira e amazonense, tais como: redução de gastos, Educação mediada pelas tecnologias desde a Educação Básica, precarização do trabalho docente, descentralização da gestão educacional acompanhada de responsabilização unilateral entre os entes federados, entre outros.
Ademais, a tônica no retorno presencial, que marcou as tomadas de decisões dos setores público e privado de ensino no Amazonas naquele primeiro ano de pandemia, em detrimento das vidas de professores e estudantes, incluindo os municípios do interior amazonense com seus desafios ainda mais acentuados, permitiu-nos perceber o alcance da ideia do “novo normal” na Educação. Conforme Oliveira (2020 , p. 194-195) assevera, “[...] o conceito de ‘novo normal’ pode escamotear uma perspectiva conservadora de normalidade, que é também excludente” e, com isso, perde-se a noção das especificidades das formas de vivenciar a pandemia. Diferentes nações, regiões, estados, municípios e grupos sociais têm experienciado a pandemia de formas diversificadas e desiguais e, conforme vimos nesse artigo, a tentativa de homogeneização com o retorno presencial precipitado das aulas no Amazonas, sob o discurso de um “pioneirismo”, que desconsiderava os números oficiais do avanço do vírus, lamentavelmente, colocou a Educação e os sujeitos escolares a favor da disseminação do vírus.