1 Introdução
O Ensino Religioso é um tema extremamente polêmico na Educação brasileira. Carente desde a colonização de uma definição epistemológica e pedagógica, a disciplina, por vezes, tem sido considerada um instrumento de doutrinação, homogeneização e dominação da população. Sua oferta e modelo oscilaram historicamente, atendendo aos interesses dominantes.
Devido à sua trajetória de confessionalidade e imposição religiosa como forma de controle populacional, em vários momentos históricos, a disciplina foi simplesmente suprimida, por ser considerada uma violação da laicidade de Estado e dos direitos pessoais. Recentemente, porém, o Ensino Religioso foi reinterpretado a partir de seu potencial educativo, e considerado parte da formação básica do cidadão. Para garantir essa nova perspectiva, os órgãos reguladores das práticas educacionais no país, a ela concederam uma reformulação curricular, de acordo com os interesses de uma sociedade democrática, priorizando a diversidade religiosa e cultural e rejeitando o proselitismo.
Este texto discute sobre o desenvolvimento histórico do Ensino Religioso no Brasil, e sua relação com o modelo de laicidade experienciado. O método adotado para a produção de conhecimento foi a pesquisa bibliográfica, que tomou por fontes a legislação educacional e os documentos curriculares brasileiros. Também foram consultados autores que auxiliam na compreensão destes textos e da história da Educação brasileira.
As informações elencadas foram analisadas qualitativamente, e organizadas em quatro itens. O primeiro discute sobre a definição de laicidade, e as características e implicações da forma como é vivenciada no Brasil. O segundo procurou traçar uma breve trajetória do Ensino Religioso no país, ressaltando as transformações ocorridas no conteúdo da Colonização ao Período Militar. O terceiro discorreu acerca das definições legais para a disciplina após a promulgação da Constituição Federal de 1988. O último tópico discute sua mais atual perspectiva curricular, a saber, as definições da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
2 Conceituando laicidade: a experiência brasileira
Inicialmente, é necessário compreender o que significa o termo laicidade. Sua etimologia encontra raízes no idioma grego, derivando do substantivo laikós , que significa popular. Dessa forma, um Estado laico é um estado cujo titular é o povo ( GANEM, 2008 ). Considerando que as religiões fazem parte da cultura e tradição de um povo, em um Estado laico não existe espaço para a intolerância religiosa, sendo altamente necessária a liberdade de crenças e de sua expressão.
Para Cornejo (2016) , a definição de laico perpassa a independência de qualquer organização ou confissão religiosa. Um Estado laico, de acordo com esse conceito, deve reconhecer o direito de todos praticarem uma religião e se vincularem a uma confissão religiosa. Mas deve, também, zelar para que este direito se mantenha no âmbito privado, permanecendo o Estado alheio a qualquer fundamentação religiosa em suas consolidações.
A laicidade deve ser compreendida como uma posição de neutralidade do Estado perante as confissões religiosas, conforme afirma Blancarte (2008). Essa neutralidade nunca é completamente alcançada em virtude da influência social e política de grupos religiosos. Ainda assim, espera-se que a laicidade se desenvolva como um processo em que o Estado se torna cada dia mais neutro em relação às questões religiosas, ou seja, sem influenciá-las e sem ser por elas influenciado.
O Estado laico, de acordo com Ganem (2008) , não deve apoiar nenhuma corrente religiosa, mas também não deve ser contrário a elas. Cury (2008) acrescenta que, em um contexto de laicidade, o Estado não deve estar sob controle religioso nem intervir nas especificidades e crenças das religiões. A antirreligiosidade, ou seja, a negação das religiões e cerceamento de sua expressão, não é uma característica própria da laicidade.
No contexto da América Latina, muitas vezes o cristianismo católico insistiu em seu intento de moldar as políticas públicas, estabelecendo-se como um dos fundamentos de poder da sociedade. Por essa razão, foi necessário combater ativamente sua influência no Estado (BLANCARTE, 2008).
Cornejo (2016) denomina laicismo a esse combate. Seu propósito é construir uma sociedade em que os indivíduos possam usufruir de sua liberdade, sem qualquer coação ou imperativo externo. O laicismo, por vezes, pode assumir características de proteção do Estado às exigências dos grupos religiosos, mas também pode ser uma postura de hostilidade por parte do Estado para com todo tipo de religião, impedindo suas manifestações.
Atualmente, pode-se dizer que o Brasil é um país laico. Diniz e Lionço (2010) ressaltam vários fatores que garantem a laicidade de Estado, a saber: a separação entre a ordem secular e os valores religiosos nas instituições básicas do Estado, a ausência de uma religião oficial, as garantias constitucionais de liberdade de crença e consciência, a proibição de vinculação entre Estado e organizações religiosas, e os acordos internacionais, dos quais o Brasil é signatário, e que possuem conteúdo laicizador.
O texto da Constituição Federal de 1988 ( BRASIL, 1988 ) garante, em seu Artigo 5º, parágrafos VI e VIII:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias; […]
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; [...].
Para Ganem (2008) , esta versão da Carta Magna atribui um significado singular ao conceito de Estado laico. Esta afirmação, porém, não é consenso: Ranquetat Júnior (2016) considera o dispositivo constitucional sobre o tema genérico, abstrato e vago. Scherkerkewitz (1996) , analisando o mesmo documento, não percebe a existência de separação completa entre Estado e religião – embora reconheça que a mesma está quase sendo alcançada.
Após analisar todos os textos constitucionais promulgados ao longo da história brasileira, Teraoka (2010) conclui que a laicidade tem se desenvolvido no Brasil, nunca tendo retornado a estágios anteriores do processo. A forma como a neutralidade do Estado é trabalhada na versão mais atual do documento, confere valor positivo à religião, principalmente no que diz respeito à formação pessoal.
Embora o Brasil possa ser considerado um Estado laico, existem muitos paradoxos acerca dessa situação. Scherkerkewitz (1996) e Ranquetat Júnior (2016) apontam alguns, como a presença de símbolos religiosos em repartições públicas, a adoção de feriados religiosos, e a presença do Ensino Religioso na escolarização pública. A existência deste último tem sido alvo de intensas críticas, como por exemplo, as suscitadas por Cunha (2013) , que o considera uma ofensa à laicidade de Estado.
Apesar desses paradoxos, pode-se concluir que a forma de laicidade experimentada no Brasil está fundamentada no distanciamento do Estado às exigências religiosas associado à tolerância à diversidade. Tanto o distanciamento quanto a tolerância encontram-se em processo de aperfeiçoamento, variando eventualmente sua intensidade. O laicismo combativo, que impede qualquer manifestação religiosa, encontra mais espaço nas palavras dos críticos que nas práticas do Estado brasileiro.
3 Trajetória histórica do Ensino Religioso no Brasil
Conforme argumentado no tópico anterior, percebe-se que o processo de laicização brasileiro está em constante desenvolvimento. Considerando que, de acordo com Charlot (2013) , a Educação é fruto da ideologia política dominante, é natural que o nível de laicidade na escola varie em consonância com o governo que a institui e orienta. O Ensino Religioso, como todas as práticas escolares, tem sentido os efeitos da progressiva laicização no país. Os próximos parágrafos descreverão o processo adaptativo de essa disciplina ao longo da história da Educação brasileira.
O início da narrativa sobre a história do Ensino Religioso escolar no Brasil se dá por ocasião do processo de colonização, quando a ocidentalização e cristianização da população eram uma prioridade para a Coroa portuguesa ( JUNQUEIRA, 2002 ). Nesse primeiro momento, o projeto educativo da colônia foi colocado a cargo dos jesuítas, que estabeleceram um projeto que visava a atingir colonos e indígenas ( SAVIANI, 2010 ). O Ensino Religioso tinha maior ênfase em sua dimensão extraescolar, salientando-se a catequese e a função disciplinar ( CURY, 2010 ).
A expulsão dos jesuítas, seguida pelas reformas pombalinas, trouxe consigo um modelo laico de Educação para o país, inspirado em ideais iluministas. Porém, a proposta não contemplava escolas populares, reduzindo a Educação da maior parte da população à aprendizagem de um ofício, bem como de doutrina e disciplina através da Igreja Católica, que usufruía da posição de religião oficial do país ( SAVIANI, 2010 ). Embora o Ensino Religioso não existisse como disciplina nesse período, a formação da maioria das pessoas dependia diretamente da atuação do grupo religioso hegemônico.
A transferência da Coroa Portuguesa para o Brasil propiciou uma alteração política importante no que tange à religião. A monarquia necessitava da escolta inglesa para seus navios. Também era desejável que os comerciantes ingleses se estabelecessem no país. Como esses estrangeiros eram majoritariamente protestantes, tornou-se necessário criar leis de tolerância religiosa ( CUNHA, 2013 ).
Após a Independência, foi mantido o paradoxo: simultaneamente, a Constituição defendia a liberdade de culto e a oficialidade da religião católica. Pode-se interpretar esse fato como o fim da exclusividade do catolicismo, mas não de seu monopólio ( CUNHA, 2013 ). Esse período também é marcado, no campo educacional, pelo interesse em uma maior inserção das massas populares na escolarização pública. Porém, conforme ressalta Inácio (2003) , o Ensino de leitura e escrita tornou-se um método para a divulgação do catecismo católico.
A partir do final do século XIX, grandes transformações ocorreram na sociedade brasileira, conforme relata Veiga (2007) : a abolição da escravatura, o crescimento do ideário liberal, a Proclamação da República, a ampliação da industrialização e urbanização, o desenvolvimento das ciências e técnicas, a diversificação étnica e consequentemente cultural, e o rápido crescimento numérico da população. Essas transformações, de acordo com Cunha (2013) , desafiaram a hegemonia religiosa. A laicidade de Estado, um dos principais pontos do Republicanismo, bem como as influências liberais, protestantes e americanistas ameaçavam o monopólio católico no Brasil.
Após a mudança de regime de governo, a laicização foi uma importante característica da Educação pública no país, tendo como consequência o fim do Ensino Religioso ( CUNHA, 2013 ). No âmbito privado, os protestantes implantaram vários colégios, pretendendo influenciar a sociedade através da formação intelectual das elites ( MENDONÇA, 2008 ). Como reação a esse processo, a Igreja Católica também criou diversos colégios, com propósito semelhante ( PASSOS, 2008 ).
O Ensino Religioso escolar só retornou ao currículo das escolas públicas após a Assembleia Nacional Constituinte de 1933. A colaboração entre Igreja e Estado sob o governo de Vargas, bem como a expressiva bancada católica conservadora foram responsáveis por tal ato. Essa negociação tornou aceitável, aos olhos católicos, que o Estado fosse o principal responsável pela oferta educacional. Esta situação permaneceu até o fim do Estado Novo ( SAVIANI, 2010 ).
A Constituição de 1946 manteve o Ensino Religioso de oferta obrigatória, tornando, porém, sua matrícula facultativa. Também exigia que fosse oferecido de acordo com a confissão religiosa do aluno. Essa configuração não foi contestada pela Constituição de 1967, permanecendo até a redemocratização ( CUNHA, 2013 ).
Conforme relatam Oliveira et al. (2007), a única alteração importante para o Ensino Religioso experimentada durante o Regime Militar refere-se à Lei 5.692/71, que o inseria nos horários normais de aula, devido aos interesses do governo para a disciplina. Junto a Moral e Cívica, Artes e Educação Física, compunha um instrumento de formação que objetivava desenvolver um civismo e uma moralidade em conformidade com os interesses dos militares. Cury (2010) acrescenta que essa lei criava a possibilidade de remuneração dos professores de Ensino Religioso por parte do Estado, igualando sua carreira à dos demais docentes.
Em decorrência dessa legislação, muitas secretarias estaduais de Educação criaram equipes de estudo e orientação, que elaboravam o currículo do Ensino Religioso escolar. Em alguns estados, a disciplina assumiu um caráter ecumênico ou interconfessional ( CURY, 2010 ). Organizaram-se muitas entidades com o objetivo de discutir questões pertinentes ao conteúdo, como o Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa (Cier), em 1970; Ensino Religioso das Escolas Públicas (Erep), em 1972; Associação Inter-Religiosa de Educação (Assintec), em 1973; e a Comissão Interconfessional para o Ensino Religioso (Cieres), em 1975 ( JUNQUEIRA, 2010 ).
É importante observar que, ao longo da história brasileira, o Ensino Religioso escolar, por várias vezes, assumiu uma trajetória desconectada do processo de laicização. Interpretado como uma ameaça em momentos de maior ímpeto laicista, sempre foi suprimido, e nunca reinterpretado. Esse ciclo se repetiu até recentemente.
Ao contrário da linearidade percebida por Teraoka (2010) no processo de laicização do Brasil, a história do Ensino Religioso pode ser descrita em saltos. Sua ausência ou presença se dava em função das conveniências políticas, e não do convencimento de sua pertinência epistemológica ou relevância pedagógica. Isso ocasionou sensíveis consequências quanto às possibilidades de desenvolvimento teórico e epistemológico da disciplina.
Apenas durante o Regime Militar surgiram as primeiras movimentações em prol de um Ensino Religioso ecumênico ou interconfessional, contemplando a diversidade da população brasileira. Por ironia, em um período considerado politicamente autoritário, o Ensino Religioso deu os primeiros passos em prol de uma proposta pedagógica democrática, que contemplasse todos os indivíduos e as diversidades religiosas que lhe são inerentes. Assim, seria possível um melhor alinhamento à laicidade tolerante prevista na legislação do país. No próximo tópico, discorrer-se-á acerca do prosseguimento das formulações de um novo Ensino Religioso no período da redemocratização.
4 A legislação educacional pós-redemocratização e o Ensino Religioso
O fim do governo autoritário possibilitou a promulgação da Constituição Federal de 1988. O texto dedica um tópico especialmente à Educação, além de revisitar o assunto em outros temas. Considerada um direito fundamental, é apresentada como dever da família, sociedade e Estado, e direito prioritário de crianças e adolescentes. Sua função é propiciar o desenvolvimento do indivíduo, preparando-o para o exercício da cidadania e qualificando-o para o trabalho (GHIRALDELLI JUNIOR, 2006).
Embora movimentos tenham surgido, durante a Constituinte, exigindo a supressão do Ensino Religioso escolar ( CUNHA, 2013 ), a mobilização popular foi mais forte, inserindo quatro emendas no texto original, que garantiram a permanência da disciplina nos Ensinos Fundamental e Médio ( CURY, 2010 ). A Constituição de 1988 prevê que o Ensino Religioso seja ofertado obrigatoriamente nas escolas públicas, nos horários de aula, embora a matrícula seja facultativa ( BRASIL, 1988 ). Cabe observar que o Ensino Religioso é a única disciplina de oferta garantida pela própria Constituição Federal, ficando todas as demais a cargo das legislações educacionais propriamente ditas.
Devido à impossibilidade de discorrer acerca de detalhes dos processos educacionais, a Constituição prevê que seja promulgada uma nova LDBEN – o que foi feito no ano de 1996. Esta lei, sob o número 9394, promovia alguns avanços na democratização do Ensino e na garantia da oferta da Educação pública gratuita. A exigência de conteúdos mínimos estudados, porém, foi postergada até a promulgação de Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN ( GHIRALDELLI, 2006 ).
Inicialmente, o texto da LDBEN n o 9.394/96 ( BRASIL, 1996 ) previa a oferta de Ensino Religioso sem ônus para os cofres públicos, e sob o modelo confessional e interconfessional ( CUNHA, 2013 ). Após revisões no texto através da Lei nº 9.475/97 (BRASIL, 1997a), foi possibilitada a profissionalização do docente do conteúdo, em paridade de condições com os demais professores. Também foi apontada uma perspectiva curricular para a disciplina. Seu conteúdo seria definido através de diálogo entre os poderes públicos e uma entidade civil multirreligiosa que propusesse alguma forma de consenso entre as diferentes denominações religiosas, viabilizando a oferta no contexto de diversidade experimentado no país ( CURY, 2004 ).
Essa experiência dialógica foi possibilitada, em parte, pelo Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (Fonaper). Fundado em 1996, reúne docentes de Ensino Religioso vinculados a diversas confissões religiosas. Seu objetivo era garantir a oferta da disciplina em todos os níveis de Ensino, estabelecendo um conteúdo programático adequado e atuando em relação à formação docente e às condições de trabalho para a disciplina ( FONAPER, 1995 ).
Conforme previsto na LDBEN ( BRASIL, 1996 ), art. 9º, foram elaborados PCN, que estabeleciam diretrizes para a Educação no país. Trata-se de uma coleção de dez volumes, sendo o primeiro uma introdução ao documento; seis livros destinados às áreas de conhecimento, a saber: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Arte, Educação Física e Língua Estrangeira 1 ; e três volumes dedicados aos Temas Transversais – Ética, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual, Meio Ambiente e Saúde (BRASIL, 1997b).
Naquele momento, o Ensino Religioso e seu conteúdo não foram contemplados pelos PCN. Assim, em 1997, o Fonaper publicou uma proposta curricular para a disciplina, almejando a ela conferir uma identidade única em território nacional. O documento procurava superar as tradicionais práticas confessionais, direcionando ao estudo do fenômeno religioso e à reconstrução de seus significados (FONAPER, 2009).
Cabe ressaltar que o documento editado pelo Fonaper não possuiu caráter oficial, permanecendo os conteúdos da disciplina sem qualquer definição por parte das instâncias federais. Dessa forma, Cunha (2013) relata que as constituições estaduais complementaram o pouco que havia sido determinado em nível federal, estabelecendo modelos regionais. Quatro estados optaram pelo modelo confessional, um estabeleceu o estudo de história das religiões, e a maior parte, acrescida do Distrito Federal, definiu conteúdo interconfessional, determinado a partir das religiões hegemônicas no país. As opções regionais pelo modelo de Ensino Religioso encontram expressão na Figura 1 .
No ano de 2010 uma nova polêmica foi suscitada em relação ao Ensino Religioso no Brasil, com referência à Concordata Brasil-Santa-Sé. Por ser um Estado, é possível estabelecer acordos diplomáticos com o Vaticano de uma forma que não é possível fazer com nenhum outro grupo religioso. Conforme relata Fischmann (2009) , muitos defensores do texto constitucional brasileiro e da laicidade de Estado se opuseram à Concordata com intensidade, pois compreendiam que o acordo feria a separação entre Estado e religiões. Além disso, por ser a Igreja Católica a única que poderia usufruir desse benefício, compreendiam que se tratava de uma quebra da isonomia entre as religiões no país.
O Ensino Religioso escolar seria afetado pela Concordata devido a seu Artigo 11, que prevê o ensino da religião católica e de outras religiões nas escolas públicas. De acordo com Giumbelli (2011) , embora o Ensino Religioso esteja presente em todas as Constituições brasileiras desde 1934, o texto da Concordata era interpretado por muitos como uma alteração na legislação vigente, por adotar o modelo confessional de Ensino Religioso, pouco comum na realidade escolar brasileira. Além disso, a forma como o texto foi redigido dava a impressão de que a religião católica tinha autoridade para se manifestar em nome de outros grupos religiosos, a ela conferindo primazia ( FISCHMANN, 2009 ).
Apesar de todas as manifestações contrárias, o Congresso aprovou o texto da Concordata em fevereiro de 2010 ( CUNHA, 2013 ). Em julho do mesmo ano foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República uma Ação Direta de Inconstitucionalidade referente à oferta de Ensino Religioso confessional (PEREIRA, 2010). Em setembro de 2017, por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a oferta de Ensino Religioso confessional nas escolas públicas (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017).
Durante esse mesmo período, mediante intenções de reforma da Educação brasileira, propostas para uma BNCC estavam sendo desenvolvidas. Pretendia-se determinar conteúdos mínimos e nortear a construção de currículos para todas as escolas brasileiras. A promulgação desse texto é prevista desde a Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988 ), sendo reiterada sua necessidade na LDBEN ( BRASIL, 1996 ) e na Lei nº 13.005 de 2014, que estabelece o Plano Nacional da Educação ( BRASIL, 2014 ). Homologada em 2018, sua forma final afeta diretamente o modelo e o conteúdo do Ensino Religioso escolar no Brasil. O próximo tópico se ocupará desta questão pormenorizadamente.
5 A BNCC e o Ensino Religioso
Atendendo ao que já era previsto na legislação brasileira, em junho de 2015, a Portaria nº 592 do Ministério da Educação instituiu uma Comissão de Especialistas para a elaboração de proposta da BNCC. Cerca de dois anos depois, em abril de 2017, a versão final da BNCC foi entregue ao Conselho Nacional de Educação (CNE) pelo Ministério da Educação (MOVIMENTO…, 2017a). Este documento estabelece conteúdos mínimos para a Educação Básica no país (BRASIL, 2018a).
É importante destacar, acerca do processo de construção da BNCC, que a participação popular ocorreu em três instâncias: primeiramente, através de Consulta Pública, depois, Seminários Estaduais com participação de professores, e, por fim, Audiências Públicas regionais (MOVIMENTO…, 2017a). Essa participação, porém, deve ser criticamente interpretada. Autores como Aguiar (2018) ressaltam que a influência de atores externos ao governo teve maior premência que a opinião pública. Apesar disso, destaca-se o ineditismo da possibilidade de participação popular na construção de um documento curricular.
No caso específico do Ensino Religioso, deve-se destacar a importância do Fonaper na construção do texto. Membros de sua diretoria estiveram entre os redatores desde a proposição inicial, e se mantiveram até a comissão de redação final. Além disso, o Congresso Nacional de Ensino Religioso, promovido pela instituição, foi um importante espaço de debate com docentes do conteúdo de todo o país, a fim de apresentar uma proposta que representasse, de fato, os anseios dos educadores (FONAPER, 2021).
A BNCC deveria ser implementada em sala de aula até dois anos após sua homologação. Durante esse período, o Ministério da Educação estabeleceu diálogo com as redes de Ensino acerca das etapas de implementação e preparação necessárias (BRASIL, 2018a). Seguiu-se, portanto, um processo descrito em Movimento pela Base Nacional Comum (2017b): investimento em comunicação para alcançar o engajamento das redes, adaptação de currículos locais, formação docente, alinhamento de recursos didáticos e de avaliações.
Em termos práticos, podem-se citar ao menos três efeitos almejados com a implantação da BNCC. O primeiro diz respeito à garantia de direitos e objetivos de aprendizagem de todos os alunos da Educação Básica no país (BRASIL, 2018a). O segundo diz respeito à igualdade de oferta dos conteúdos em todas as escolas, proporcionando uma identidade de conhecimentos entre todos os estudantes brasileiros, independentemente da rede a que se vinculam (CURY; REIS; ZANARDI, 2018). O terceiro diz respeito à promoção de um projeto de sociedade mais democrático, alcançado através de uma educação integral, que promovesse o autoconhecimento e a alteridade (NEIRA; ALVIANO JÚNIOR; ALMEIDA, 2016).
A BNCC não se apresenta como um currículo obrigatório, mas como um conjunto de competências mínimas a serem desenvolvidas pelos alunos ao longo da Educação Básica. Cada conteúdo possui suas próprias a serem desenvolvidas, e são agrupados em prol de competências comuns. Essa organização é expressa no Quadro 1 .
Área | Conteúdo |
---|---|
Área das Linguagens | Língua Portuguesa |
Arte | |
Educação Física | |
Língua Inglesa | |
Área da Matemática | Matemática |
Área de Ciências da Natureza | Ciências |
Área de Ciências Humanas | Geografia |
História | |
Área de Ensino Religioso | Ensino Religioso |
Fonte: Elaboração própria a partir de Brasil (2018b)
Cabe ressaltar que nas duas versões preliminares da BNCC ( BRASIL, 2015 , 2016 ) o Ensino Religioso compunha a área das Ciências Humanas, compartilhando objetivos e competências comuns com os conteúdos Geografia e História. Pouco antes da promulgação da versão final, porém, a proposta para o Ensino Religioso foi suprimida do texto. Graças à mobilização do Fonaper nas audiências públicas, foi possível reverter a situação e defender a inédita proposta curricular em nível nacional para o conteúdo (FONAPER, 2021). A versão homologada (BRASIL, 2018b), porém, separou o Ensino Religioso em uma área de conhecimento à parte, e a ele conferiu todas as competências referentes à religiosidade e à sua influência na conformação social.
A versão final da BNCC define como objeto do Ensino Religioso o conhecimento religioso, a partir de pressupostos éticos e científicos. O documento reconhece como sua referência as Ciências Humanas e Sociais, com destaque para a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) (BRASIL, 2018b). Assim, a confessionalidade é abandonada, optando pela neutralidade científica ao estudar a religião. A Teologia, dogmática por natureza, não é apontada como possibilidade de saber de referência para o conteúdo. Essa escolha teórica demonstra intenção de tratamento igualitário entre as diferentes manifestações religiosas e filosofias de vida, sem preferência por qualquer denominação ou conjunto delas.
Acerca dos objetivos para o Ensino Religioso na BNCC, percebe-se seu desenvolvimento em quatro linhas principais, a saber: conhecimento religioso, liberdade de crença, diálogo na diversidade e construção de sentidos pessoais de vida (BRASIL, 2018b). Esses objetivos colaboram à formação de um cidadão apto à vivência em uma sociedade que experimenta um modelo laico conforme o previsto na legislação brasileira.
Ainda assim, é possível esboçar uma crítica quanto à relação desses objetivos com o objeto da disciplina, anteriormente definido. Considerando que os objetivos são uma forma de se alcançar a meta do estudo, percebe-se que a correlação entre os mesmos padece de certo desequilíbrio. Pois tanto o objeto quanto os objetivos citam o conhecimento religioso, embora estes últimos avancem no que diz respeito à liberdade de crença, diálogo na diversidade e construção de sentidos de vida. Resta, portanto, o questionamento: na concepção dos redatores do texto sobre o Ensino Religioso na BNCC, os três últimos objetivos receberiam uma importância secundária em relação ao conhecimento religioso? Em caso positivo, por que isso não é adequadamente expresso no texto? E, em caso negativo, por que o objeto da disciplina não foi formulado para contemplar com mais equidade todos os objetivos?
Com relação aos conteúdos do Ensino Religioso, os mesmos são agrupados na BNCC em Unidades Temáticas, a saber: Identidades e Alteridades, Manifestações Religiosas, Crenças Religiosas e Filosofias de Vida. Cada uma dessas unidades possui seus próprios objetos de conhecimento e habilidades a serem desenvolvidos. O Quadro 2 demonstra os objetos previstos para cada unidade temática.
Unidade Temática | Objeto de Conhecimento |
---|---|
Identidades e Alteridades | O eu, o outro e o nós |
Imanência e transcendência | |
O eu, a família e o ambiente de convivência | |
Memórias e símbolos | |
Símbolos religiosos | |
Espaços e territórios religiosos | |
Manifestações religiosas | Sentimentos, lembranças, memórias e saberes |
Alimentos sagrados | |
Práticas celebrativas | |
Indumentárias religiosas | |
Ritos religiosos | |
Representações religiosas na arte | |
Místicas e espiritualidades | |
Lideranças religiosas | |
Crenças religiosas e filosofias de vida | Ideia(s) de divindade(s) |
Narrativas religiosas | |
Mitos nas tradições religiosas | |
Ancestralidade e tradição oral | |
Tradição escrita: registro dos ensinamentos sagrados | |
Ensinamentos da tradição escrita | |
Símbolos, ritos e mitos religiosos | |
Princípios éticos e valores religiosos | |
Liderança e direitos humanos | |
Crenças, convicções e atitudes | |
Doutrinas religiosas | |
Crenças, filosofias de vida e esfera pública | |
Tradições religiosas, mídias e tecnologias | |
Imanência e transcendência | |
Vida e morte | |
Princípios e valores éticos |
Fonte: Elaboração própria a partir de Brasil (2018b)
Inicialmente, é necessário observar a falta de equivalência entre os objetivos anteriormente apresentados e as Unidades Temáticas propostas. Ao analisar seu conteúdo, percebe-se que o objetivo conhecimento religioso é atendido por duas das três Unidades Temáticas, a saber: Manifestações Religiosas, e Crenças Religiosas e Filosofias de Vida. Já os objetivos relacionados à liberdade de crença, diálogo na diversidade e construção de sentidos pessoais de vida se aproximam mais da unidade Identidades e Alteridades. Se esta interpretação está correta, reforça a percepção anteriormente citada de uma supervalorização do conhecimento religioso em relação aos demais objetivos para o conteúdo.
Também é possível perceber certa discrepância numérica quanto aos objetos de conhecimento das Unidades Temáticas ( Quadro 2 ). A unidade Identidades e Alteridades apresenta seis objetos; a unidade Manifestações Religiosas, oito; mas Crenças Religiosas e Filosofias de Vida apresenta dezesseis objetos. As habilidades a serem desenvolvidas pelo conteúdo repetem a mesma proporção dos objetos de conhecimento. Mais uma vez, as unidades que trabalham o conhecimento religioso saem em vantagem, em comparação aos demais objetivos para o conteúdo.
A análise, ano a ano, do Ensino Fundamental corrobora a discrepância entre as Unidades Temáticas. Identidades e Alteridades aparece no 1º, 2º e 3º anos, sempre dividindo espaço com Manifestações Religiosas, que aparece também no 4º e 7º anos. Nenhum ano é dedicado unicamente ao desenvolvimento das habilidades de apenas uma dessas duas unidades. Crenças Religiosas e Filosofias de Vida, por sua vez, aparece no 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º anos, dividindo espaço com outra unidade apenas no 4º e 7º anos. Desta forma, seus objetivos seriam desenvolvidos com exclusividade no 5º, 6º, 8º e 9º anos.
Conclui-se, portanto, que a unidade Crenças Religiosas e Filosofias de Vida recebe a primazia na organização das habilidades que se pretende desenvolver através do Ensino Religioso escolar, de acordo com a BNCC. Em certa medida, a análise das Unidades Temáticas, Objetos de Conhecimento e Habilidades do Ensino Religioso responde ao questionamento anterior, acerca dos objetivos do conteúdo. Tal observação confirma que o texto sobrevaloriza o conhecimento religioso em comparação aos objetivos relacionados à liberdade de crença, diálogo na diversidade e construção de sentidos de vida. Ainda assim, esses tópicos devem ser trabalhados.
Para além dessas questões, um avanço representado pela BNCC diz respeito à oficialização da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) como saber de referência para o Ensino Religioso escolar. Desde a promulgação da Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997 (BRASIL, 1997a), que alterou a formulação do Artigo 33 da LDBEN ( BRASIL, 1996 ), havia sido estabelecido que cada sistema de Ensino poderia determinar a formação necessária para a docência do Ensino Religioso. Essa determinação trazia, como consequência, a falta de unidade no exercício profissional e na construção epistemológica do conteúdo.
Mediante a inexistência de cursos de Licenciatura em Ensino Religioso 2 , os cursos de graduação e especialização em Ciência(s) da(s) Religião(ões) tornaram-se a opção de formação docente em muitos sistemas educacionais. Porém, há que se notar que até então não havia diretrizes curriculares nacionais para a graduação em Ciência(s) da(s) Religião(ões), conferindo aos cursos características notadamente regionais. Além disso, muitos sistemas educacionais optavam por outros modelos de formação, como a graduação em História ou em Teologia.
A definição de conteúdos mínimos para o Ensino Religioso escolar direcionou a formação docente necessária. Ainda no ano de 2018, o CNE, através do Parecer CNE/CP nº 12/2018 (BRASIL, 2018b), estabeleceu diretrizes curriculares nacionais para os cursos de licenciatura em Ciências da Religião. Tal fato fortaleceu a identidade docente para o conteúdo, promoveu a unificação teórica e prática, e apoiou a construção epistemológica defendida pela BNCC.
6 Considerações finais
Historicamente, o Ensino Religioso foi marcado, no Brasil, pelo viés da confessionalidade. Da colonização ao Período Militar, essa característica se manifestou como uma expressão das diversas alianças políticas, ou mesmo de intentos de controle ideológico da população. Porém, ainda durante este último período histórico, iniciaram-se esforços em prol de um modelo para a disciplina que atendesse a população brasileira em toda a sua diversidade, garantindo-lhe ao mesmo tempo a laicidade escolar e a liberdade de manifestação religiosa.
Após a redemocratização, o modelo de laicidade que se desenvolvia no país apontava em direção à valorização da diversidade cultural e religiosa, e da ampla tolerância com sua manifestação. A oferta do polêmico Ensino Religioso foi garantida no texto constitucional, sinalizando a necessidade de uma proposta curricular que fosse coerente com o direcionamento que o país assumia. Em consequência, tornava-se necessário repensar e reinterpretar o conteúdo, tomando distância de sua tradição impositiva.
Após muitas idas e vindas, a BNCC se tornou a responsável por essa tarefa, propiciando o desenvolvimento e a unificação epistemológica do conteúdo em nível nacional. Isso tornou possível que fosse estabelecida a Licenciatura em Ciências da Religião como modelo nacional de formação docente.
Apesar dos avanços promovidos pela BNCC, percebe-se uma falta de clareza da proposta na relação entre objeto e objetivos. Possivelmente, fruto da histórica carência de desenvolvimento epistemológico. Assim, a proposta do documento para o Ensino Religioso escolar sobrevaloriza o conhecimento religioso, em detrimento dos objetivos relacionados à liberdade de crença, diversidade e construção de sentidos de vida.
É necessário ressaltar que estes últimos objetivos citados estão presentes na proposta da BNCC, embora sejam menos desenvolvidos que aqueles que se aproximam do conhecimento religioso. É possível que o desenvolvimento epistemológico que se seguirá a esse documento supere essas dificuldades. Em outras pesquisas, seria interessante analisar as adaptações regionais da BNCC, se elas superam essa questão, e como o fazem.
Embora ainda haja muito a avançar, percebe-se que a BNCC apresenta um Ensino Religioso que se aproxima do modelo de laicidade experimentado no país, valorizando a diversidade religiosa e cultural, bem como a liberdade de expressão, igualdade de direitos e separação Estado-religiões. Essa é uma grande conquista para o conteúdo, pois o torna coerente e fundamental para a formação cidadã.
Espera-se que o desenvolvimento epistemológico alcançado seja mantido, e que o Ensino Religioso cada vez mais se distancie de seu passado confessionalista, direcionando-se à colaboração para a construção de uma sociedade mais justa, democrática, laica e valorizadora das diversidades.