Introdução
Este texto apresenta um levantamento teórico sobre a presença/ausência do conceito de Território Educativo (TE) nos marcos legais da Educação brasileira. Procura contextualizar, no âmbito das políticas públicas brasileiras, em que momento o conceito de Território Educativo (TE) emerge, também buscando observar quais as possíveis lacunas, assim como as significações que se evidenciam a partir de então. Desta forma, procura identificar os silêncios, ruídos e reverberações que se relacionam com a concepção de Território Educativo e evidenciar o percurso histórico revelador da ideia de que o espaço urbano pode se constituir em Território Educativo e favorecer o desenvolvimento da Educação integral1.
O conceito de Território Educativo evocado neste estudo opera com a proposta de Leclerc e Moll (2012a), por considerarem ser esse um campo conceitual fundamental para reorganizar a educação escolar e propor novos formatos de aprendizagem, juntamente com a concepção de intersetorialidade. Nesta articulação, as autoras defendem que “o desafio da promoção de qualidade da educação, traduzida em educação integral, mantém-se associada diretamente à construção da perspectiva de Território Educativo como elemento organizador da intersetorialidade entre Educação, Assistência Social, Cultura, Esporte e outros campos” (LECLERC; MOLL, 2012a, p. 44).
Os marcos legais adotados, assim como os textos de referência produzidos pelo Ministério da Educação (MEC), os quais serão apontados adiante, estão situados no recorte temporal que envolve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF) até os tempos atuais.
A metodologia utilizada no estudo situa-se no âmbito da análise documental, seguindo os preceitos de Bacellar (2005). Os dados levantados foram pré-categorizados e organizados em quadros, cujo conteúdo aponta para a explicitação do trecho do documento que suscita a presença/ausência da concepção e/ou do conceito de Território Educativo, bem como para inferir em que dimensões ocorrem tais menções, ou seja, buscamos explicitar se há indícios da concepção/conceito de TE, se ele é simplesmente mencionado ou se é mencionado e desenvolvido.
A interpretação dos dados busca sustentação na abordagem de Stephen Ball (BOWE; BALL; GOLD, 1992; BALL, 1994) sobre o ciclo contínuo de políticas.
Além do exposto nesta introdução, o texto estrutura-se em duas partes, seguidas das considerações finais, a saber: A concepção de Território Educativo na legislação educacional brasileira; Caracterização do Território Educativo: silêncios, ruídos e reverberações.
A concepção de Território Educativo na legislação educacional brasileira
Na presente pesquisa, tomamos como base de análise os marcos legais que seguem: Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988), Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8069/1990 - BRASIL, 1990), Lei de Diretrizes e Bases (LDB - Lei nº. 9.394/1996 - BRASIL, 1996), o Plano Nacional de Educação (PNE - BRASIL, 2001) e o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE - BRASIL, 2007a) e, a partir deste, o Programa Mais Educação (Portaria Interministerial 17/2007 - BRASIL, 2007b e regulamentado pelo Decreto 7.083/10 - BRASIL, 2010), que prevê a ampliação da Educação em tempo integral no país, atuando como indutora de um programa de Educação integral para todas as escolas brasileiras, e que cumpre o papel de marco orientativo do presente trabalho.
Além dos marcos legais acima citados, no âmbito do Programa Mais Educação, analisamos os seguintes documentos produzidos pelo Ministério da Educação (MEC): Texto de Referência para o Debate Nacional (BRASIL, 2009a); Gestão Intersetorial no Território (BRASIL, 2009b); Rede de Saberes - Pressupostos para Projetos Pedagógicos de Educação Integral (BRASIL, 2009c) e Territórios Educativos para Educação Integral (BRASIL, 2009d). É importante frisar que não são as únicas publicações que trazem o tema do Território Educativo, mas são os textos que norteiam o debate neste campo das políticas públicas e educacionais.
Na última década, a implementação da Educação Integral passou a expressar-se por meio de uma legislação específica, o que não impede de lembrar que o legal não necessariamente corresponde ao real (BRASIL, 2009a).
A gestão democrática e integrada é uma diretriz que auxiliará a expandir cada vez mais a ação educativa do contexto legal, além da necessária articulação entre programas e serviços públicos para conferir uma característica integral à Educação situada no campo das políticas sociais, não desconsiderando sua especificidade no campo das políticas educacionais (BRASIL, 2009a).
Uma diretriz importante que se consolidou a partir da Constituição Federal de 1988 foi a descentralização na gestão das políticas sociais, sobretudo no que diz respeito à coordenação e execução. Isto nos distancia dos modelos centralizados, anteriormente aplicados pelo governo federal, e remete a maior autonomia para Estados e Municípios, a qual abre margem para inovações e experimentações mais próximas das especificidades locais e regionais, o que facilita considerar a perspectiva do Território Educativo como um espaço de aprendizagem (BRASIL, 2009b).
Embora a Constituição Federal não faça referência literal aos termos Educação Integral ou Território Educativo, ao apresentar a Educação como “o primeiro dos dez direitos sociais” em seu art. 6º (BRASIL, 1988) e, somado a isso, “direito capaz de conduzir ao pleno desenvolvimento da pessoa, fundante da cidadania, além de possibilitar a preparação para o mundo do trabalho”, no art. 205, temos a noção vívida de Educação Integral neste contexto.
Ainda na Constituição Federal, no artigo 206 há referência à noção de gestão democrática do ensino público, a qual dialoga com a relação entre escola e comunidade, sendo esta articulação indissociável da noção de Território Educativo e, no artigo 213, há referência aos recursos públicos destinados às escolas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, de acordo com o texto de referência do MEC Gestão Intersetorial no Território (BRASIL, 2009b), após a efetivação da Constituição, reforça e especializa uma nova perspectiva junto à infância e juventude: a doutrina da Proteção Integral, que coloca crianças e adolescentes no centro das políticas públicas, afirmando sua condição de sujeitos de direitos, prioridade no atendimento de suas demandas e indivisibilidade desses direitos.
Nesta perspectiva, a relação entre adultos, crianças e adolescentes não deve se restringir somente à referência do adulto, mas ser sustentada pela experiência das crianças e adolescentes, sendo destacados, neste processo, a relevância da escuta, discernimento e argumentação por parte dos envolvidos.
Além disto, ainda de acordo com o texto de referência, o ECA - Lei nº 8069/90, em seu Capítulo V, artigo 53, reforça a proposição de obrigatoriedade do acesso e permanência na escola, reconhecendo que há a necessidade de um sistema articulado e integrado que garanta os direitos desse público, já que infância e adolescência são fases do desenvolvimento que requerem uma forma específica de proteção, sendo a escola parte importante deste sistema (BRASIL, 1990).
No artigo 59º do ECA - Lei nº 8069/1990 (BRASIL, 1990) há correspondência ao conceito de Educação Integral e Território Educativo, à medida que propõe que os municípios, Estados e União devem facilitar o acesso das crianças e adolescentes a espaços culturais, esportivos e de lazer.
A LDB - Lei nº. 9.394/96 conta, em sua composição, com os artigos 34 e 87, os quais dizem respeito à educação integral, prevendo a ampliação progressiva da jornada escolar do Ensino Fundamental - EF para o regime de tempo integral, a critério dos estabelecimentos de ensino (BRASIL, 1996).
A LDB 9.394/96 prevê que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (art. 1º.), ampliando os espaços e práticas educativas vigentes. Ainda assim, é importante ressaltar que, quando a LDB nº. 9.394/1996 aborda a questão do tempo integral, ela o faz no artigo 34, que trata da jornada escolar. Neste estudo considera-se a jornada escolar como o período que a criança e o adolescente estão sob a responsabilidade da escola (em atividades dentro ou fora dela), remetendo ao fato de que a LDB nº. 9.394/1996 reconhece que a escola, em última instância, detém a centralidade do processo educativo.
Giolo (2012) associa uma concepção crítica dessa imprecisão contida no texto da LDB nº. 9.394/1996, com termos como progressivamente, e ao se referir, no artigo 34 (parágrafo 2º), que o EF será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino, sendo esta última colocação considerada evasiva pelo autor.
A concepção de Território Educativo aparece nesta questão, tendo como base as atividades que podem ser desenvolvidas fora da escola, pressupondo parcerias e articulações.
Guará (2006) aponta sobre a necessidade de a escola compartilhar o seu projeto político pedagógico junto às organizações sociais do entorno, caracterizando, assim, um trabalho colaborativo e complementar, no qual a articulação dos saberes contribui para a proposta da Educação Integral.
No contexto histórico da criação da LDB, fazia-se importante consolidar a existência de um Fundo que abrigasse o investimento de uma sólida estrutura de recursos, de modo que, em 1996, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), na Lei 9424/96 (BRASIL, 2009a).
Em 2001, a Lei nº 10.172, de 9 de janeiro, instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE) que, a exemplo da Constituição Federal de 1988 e da LDB, retoma e valoriza a Educação Integral como possibilidade de formação integral da pessoa. O Plano, contudo, avança em relação ao texto da LDB nº. 9.394/1996, quando propõe como objetivo da Educação Infantil (EI) e do Ensino Fundamental (EF) a Educação em tempo integral, além de ter como meta a ampliação da jornada escolar para o período de, pelo menos, sete horas diárias, incentivando a instituição de Conselhos Escolares e a participação das comunidades na gestão da escola (BRASIL, 2009a).
Giolo (2012) aborda a característica mais enfática do PNE (BRASIL, 2001) em comparação à LDB nº. 9.394/1996;
no entanto, enfatiza que ainda era necessário um conjunto de ações mais concretas.
Entende-se que, na perspectiva de conferir especialização às políticas educacionais, surge o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), com o objetivo de melhorar todas as etapas da Educação Básica no Brasil.
Lançado pelo MEC em abril de 2007, conforme descreve o Texto de Referência para o Debate Nacional (BRASIL, 2009a), o PDE2 articula ações para os diferentes níveis, modalidades e etapas da educação nacional, visando a constituir o que foi denominado de visão sistêmica da Educação.
Dentre as ações de melhoria inclusas no PDE (BRASIL, 2007), destaca-se o Programa Mais Educação, lançado no mesmo ano, que prevê a ampliação da Educação em tempo integral no país, atuando como indutor de um Programa de Educação Integral para todas as escolas brasileiras.
A criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), em 2007, inaugura, segundo Giolo (2012), um novo tempo na Educação pública brasileira, configurando um aparato legal e um projeto de Estado com previsão de recursos para a Educação integral, e que poderia abranger qualquer escola de Educação Básica do território nacional.
Outro marco legal importante, neste contexto, é o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, que também é um ponto de sustentação do PDE, instituído pelo Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007. O objetivo é conjugar esforços da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, famílias e comunidade para assegurar a qualidade da Educação Básica (BRASIL, 2009a).
O Programa Mais Educação (PME) cumpre a função de provocar o start para que comecem os investimentos a partir do Fundeb, e tem como objetivo fomentar a Educação Integral por meio do apoio a atividades socioeducativas no contraturno escolar (BRASIL, 2009b).
Caracterizado pela articulação Intersetorial, o Programa foi instituído através da Portaria Interministerial n° 17 de 24 de abril de 2007, entre os Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, dos Esportes, da Ciência e Tecnologia, da Cultura e do Meio Ambiente. Tal parceria, descrita no texto Rede de saberes mais educação: pressupostos para projetos pedagógicos de educação integral - caderno para professores e diretores de escolas (BRASIL, 2009c), consiste na formulação de projetos sociais por parte dos Ministérios envolvidos, destinados, inicialmente, a estudantes do Ensino Fundamental em escolas de baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
Além dos referidos Ministérios, consta no Texto de Referência para o Debate Nacional (BRASIL, 2009a) que há a participação e articulação da Presidência da República, além de ações promovidas pelos Estados, Distrito Federal, Municípios e por outras instituições públicas e privadas, desde que as atividades sejam oferecidas gratuitamente a crianças, adolescentes e jovens, e que estejam integradas ao projeto político-pedagógico das redes e escolas participantes (art. 4º, § 2º), conforme já citado no presente estudo.
Na perspectiva do Território Educativo, é importante ressaltar que, visando a transformar a escola em um espaço no qual a cultura local possa dialogar com os currículos escolares, torna-se fundamental (re)conhecer que as experiências educacionais se desenvolvem dentro e fora das escolas (BRASIL, 2009c).
A perspectiva da ampliação de tempos e espaços de aprendizagem coloca-nos em contato com a dimensão do Território Educativo, visto que
A educação não se realiza somente na escola, mas em todo um território e deve expressar um projeto comunitário. A cidade é compreendida como educadora, como território pleno de experiências de vida e instigador de interpretação e transformação (BRASIL, 2009c, p. 31).
No texto do Programa mais Educação (regulamentado pelo Decreto 7.083/10), em seu artigo 2º, deparamo-nos com o termo Território Educativo, concretamente colocado em seu segundo item, referente a espaços populares integrados à equipamentos públicos, como bibliotecas e praças (BRASIL, 2009d).
A Educação Integral e a perspectiva do Território Educativo constituem-se como importantes formas de desenvolvimento. Além das experiências internacionais destacarem a melhoria de desempenho escolar em virtude da ampliação de atividades cidadãs, existe uma histórica discrepância entre demandas sociais e recursos disponíveis. Como consequência, há maior exigência da qualidade dos gastos públicos na área social e o rompimento com a fragmentação, em contraposição às práticas assistencialistas das políticas públicas brasileiras (BRASIL, 2009a).
Esse processo de educação comunitária que a política educacional propõe, a partir da identificação de Territórios Educativos, visa a agregar a sociedade em torno do processo educativo. Neste sentido, de acordo com o texto Gestão Intersetorial no Território (BRASIL, 2009b), busca-se uma pactuação entre sociedade e educação comunitária e, nesta rede de relações, tornam-se essenciais as seguintes etapas: identificar referências e saberes comunitários; realizar diagnóstico do território; mapear oportunidades e parceiros; construir e gerir trilhas educativas.
Segundo Milton Santos3, conforme exposto no texto Rede de Saberes (BRASIL, 2009c), o território é um lugar no qual diversos atores sociais compartilham vida comum. Nesta perspectiva, cada um exerce uma função específica na vida social, se individualiza e, simultaneamente, desenvolve laços de dependência.
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo... todos os lugares são virtualmente mundiais. Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais (SANTOS apudRASIL, 2009c, p. 37).
Ainda em Milton Santos, destacado no texto de referência Territórios Educativos para a Educação Integral (BRASIL, 2009d), encontramos a percepção de que o território usado é o chão mais a identidade. Neste contexto, a identidade é o sentimento de fazer parte daquilo que nos pertence; e território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais, e do exercício da vida. Desta forma, noções de pertencimento e identidade constituem etapas fundamentais a serem abordadas no processo de aprendizagem, ressignificando e relacionando-o ao exercício da vida cotidiana.
Explorando o modo como o conceito de Território Educativo permeia a concepção do Programa Mais Educação, deparamo-nos com a importância de identificar os saberes comunitários do local onde atuamos.
Tais saberes comunitários representam o universo cultural local, ou seja, tudo aquilo que os alunos trazem para a escola, independentemente de suas condições sociais. Esses saberes conduzem para a aprendizagem conceitual: o desejo é que os alunos aprendam através das relações que possam ser construídas entre os saberes. É importante que os alunos sejam estimulados a usar seus saberes e ideias a fim de formularem o saber escolar (BRASIL, 2009c).
Neste sentido, a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas qualificam o processo educacional e melhoram o aprendizado dos alunos. Isto não significa, portanto, a criação ou recriação da escola como instituição total4, mas a articulação e integração dos diversos atores sociais que já atuam na garantia de direitos das crianças e jovens, partilhando de uma corresponsabilidade por sua formação escolar e integral (BRASIL, 2009b).
O contexto legal apresentado até aqui aponta, como um dos desafios para a Educação, a emergente necessidade de promover articulações e convivências entre programas e serviços públicos, visando a expandir sua ação educativa, o que requer um compromisso ético com a inclusão social, através da gestão democrática e integrada (BRASIL, 2009a).
Seguindo o trajeto histórico-político, é importante mencionar a aprovação do Plano Nacional de Educação de 2014, que além de trazer a diretriz da gestão democrática, reforça o direcionamento à Educação em tempo integral, colocando como meta a oferta dessa modalidade em, no mínimo, cinquenta por cento das escolas públicas, visando a atender pelo menos vinte e cinco por cento dos alunos da Educação Básica.
Outra discussão que cabe neste trajeto corresponde ao momento de tensionamento vivido nas Políticas Educacionais brasileiras a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e do novo direcionamento dado ao Programa Mais Educação, e lançamento em 2016, pelo MEC, o programaNovo Mais Educação, entrando em vigor em 2017. O primeiro trecho daportaria nº 1.144/2016, que permitiu sua criação, resume seu objetivo como “melhorar a aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática no Ensino Fundamental” (BRASIL, 2016). Ainda de acordo com a portaria, o programa deve dar prioridade a alunos que tenham mais dificuldades de aprendizagem e escolas com baixosindicadores educacionais.
De acordo com Moll (2018), os documentos que explicitam os princípios do Programa Mais Educação de 2016 apontam projetos que podem ser considerados antagônicos ao PME de 2007 a 2015, ao considerar que o programa antigo tece sua crítica justamente ao fato de que a reprodução histórica de programas que enfatizam apenas o ensino dos saberes básicos levará ao mesmo processo de exclusão que demarca a história da Educação no Brasil.
Com isto, ampliar o debate, considerando e aprofundando o campo conceitual e resgatando os marcos legais que fundamentam a proposta da Educação Integral e do Território Educativo cumpre a função de contextualizar historicamente e oferecer subsídios para o enfrentamento dos retrocessos, aprimoramento das práticas, a partir do significativo desafio exposto no início da presente seção. Em outras palavras, converter/traduzir o legal no real ou, ainda, trazer novamente a Educação Integral como pauta, tarefa da qual o cenário político distanciou-se nos tempos atuais.
Caracterização do Território Educativo: silêncios, ruídos e reverberações
Quais os silêncios, ruídos ou reverberações que caracterizam a tematização legal do conceito de Território Educativo? Tendo em conta essa problematização, além do apresentado na seção anterior e do processo de imersão na legislação educacional brasileira promulgada a partir de 1988, foram criados quadros com a finalidade de categorizar as aproximações e lacunas existentes entre os marcos legais, os textos de referência do Ministério da Educação (MEC) e o conceito de Território Educativo. De que forma esse conceito aparece ou se transveste nas publicações? Há noções e ideias precedentes que fertilizam o emergir desse conceito? Em que medida a nomeação da especificidade do foco (a partir do Programa Mais Educação) potencializa a tradução das concepções em práticas cotidianas?
Cada quadro a seguir está relacionado a um documento em específico e composto por três itens: na primeira coluna está especificado o marco legal analisado ou o documento de referência produzido pelo Ministério da Educação (MEC). A segunda coluna, nomeada objeto, destaca o trecho que fertiliza o emergir do conceito de Território Educativo (TE); e na terceira coluna, na identificação de como o TE é caracterizado, buscamos explicitar se há indícios da concepção/conceito de TE, se ele é somente mencionado ou se é mencionado e desenvolvido.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE está ou não caracterizado? |
---|---|---|
Descentralização | Descentralização na gestão das políticas sociais, conferindo mais autonomia aos Estados e Municípios, favorecendo inovações e experimentações mais próximas das especificidades locais e regionais. | Há indícios da presença da concepção de TE à medida que o princípio da descentralização favorece iniciativas de gestão local. |
Artigo 6 | Educação como o primeiro dos dez direitos sociais, direito este capaz de conduzir ao pleno desenvolvimento da pessoa. | O TE não está caracterizado explicitamente; porém, essa referência à Educação Integral fertiliza a sua emersão. |
Artigo 205 | Corresponsabilização da família, sociedade e Estado no direito de todos à Educação, incluindo a convivência familiar e comunitária. | O trecho suscita a concepção de TE, trazendo à tona a relevância da convivência comunitária, a qual ocorre no território. |
Artigo 206 | Faz referência à gestão democrática do ensino público. | Inspira a concepção de TE, à medida que este princípio pressupõe a articulação escola e comunidade. |
Artigo 213 | Recursos públicos destinados à Educação. | O TE não está caracterizado; porém, aponta para a relevância de um Fundo de investimento em Programas Educacionais. |
Fonte:Elaborado pelas autoras (2016).
O quadro 2 destaca trechos do ECA nº 8069/1990 mais significativos referentes ao estudo.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE está ou não caracterizado? |
---|---|---|
Doutrina da Proteção Integral | Doutrina da Proteção Integral, priorizando infância e adolescência. | O TE não está caracterizado explicitamente, mas a noção de proteção integral remete à Educação Integral. |
Artigo 53 | Obrigatoriedade do acesso e permanência na escola, reconhecendo a necessidade de um sistema articulado e integrado que garanta os direitos de crianças e adolescentes. | O TE não está caracterizado; porém, o trecho o suscita, pois, na articulação do sistema de proteção, pressupõe ações no território. |
Artigo 59 | Municípios, Estados e União devem facilitar o acesso das crianças e adolescentes a espaços culturais, esportivos e de lazer. | O TE é caracterizado em espaços culturais, esportivos e de lazer, apenas não recebeu a nomenclatura. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
A LDB nº. 9.394/1996, como política de referência do campo educacional, traz em si os elementos sintetizados no quadro.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE está caracterizado? |
---|---|---|
Artigo 1º | A Educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. | Há indícios da concepção de TE quando se refere aos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e manifestações culturais. |
Artigo 14 | Dispõe sobre a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. | O TE não está caracterizado, mas a articulação escola e comunidade pressupõe ações no território. |
Artigo 34 | O EF será ministrado em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino. | O TE não está caracterizado, mas a referência ao tempo integral remete à Educação Integral, elemento que fertiliza o aparecimento e nomeação do TE. |
Artigo 87 | Serão conjugados todos os esforços para a progressão das redes escolares públicas urbanas de EF para o regime de escolas de tempo integral. | O TE não está caracterizado, mas a referência ao tempo integral remete à Educação Integral, aproximando-se da nomeação do TE. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
O quadro 4 explicita a relevância do Fundo de Investimento.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE é caracterizado? |
---|---|---|
FUNDEF | Mudança na estrutura do financiamento para o EF, visando a conferir mais qualidade ao ensino, valorização e capacitação docente. | O TE não está caracterizado, mas o Fundo de Investimento em Programas Educacionais suscita a articulação com o TE. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
O PNE (BRASIL, 2001) desponta como a política que precede o Compromisso Todos pela Educação.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE é caracterizado? |
---|---|---|
PNE - Princípio da Valorização da Educação Integral | Propõe como objetivo do EI e EF a Educação em tempo integral, e objetivar a ampliação da jornada escolar para o período de, pelo menos, sete horas diárias, incentivando a instituição de Conselhos escolares e a participação das comunidades na gestão da escola. | O TE é suscitado, na alusão ao tempo integral, ampliação da jornada e na articulação escola e comunidade. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
O quadro 6 destaca o Fundo que incentivou a criação de projetos no âmbito do Programa Mais Educação.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE é caracterizado? |
---|---|---|
Fundeb | Trata-se de Fundo formado, na quase totalidade, por recursos provenientes dos impostos e transferências dos Estados, Distrito Federal e Municípios, vinculados à Educação. | O TE não está caracterizado, mas o Fundo de Investimento em Programas Educacionais suscita a articulação com o TE. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
O Plano de Metas, que contém o Programa Mais Educação, enfatiza os itens descritos.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE é caracterizado? |
---|---|---|
Princípios: controle social e articulação de parcerias. | - Acompanhar e avaliar, com participação da comunidade e do Conselho de Educação, as políticas públicas na área de Educação e garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a memória daquelas realizadas; - Firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando à melhoria da infraestrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e ações educativas; - Divulgar, na escola e na comunidade, os dados relativos à área da Educação, com ênfase no Ideb. |
Há indícios da concepção de TE quando se propõem articulações escola e comunidade, ou quando se fala na constituição de parcerias externas. O TE só não é nomeado como tal. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2016).
Princípios/Artigos | Objeto | Como o TE é caracterizado? |
---|---|---|
Princípio da articulação intersetorial. | Parceria entre os Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, dos Esportes, da Ciência e Tecnologia, da Cultura e do Meio Ambiente. | O TE não está caracterizado, mas a articulação intersetorial suscita ações no território. |
Ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva da Educação Integral. | Ampliação de tempos e espaços de aprendizagem: a Educação não se realiza somente na escola, mas em todo um território e deve expressar um projeto comunitário. A cidade é compreendida como educadora, como território pleno de experiências de vida e instigador de interpretação e transformação. | A concepção de TE está caracterizada e desenvolvida como projeto comunitário. |
Constituição deTerritórios Educativos - artigo 2. | Constituição de Territórios Educativos para o desenvolvimento de atividades de Educação Integral, por meio da integração dos espaços escolares com equipamentos públicos, como centros comunitários, bibliotecas públicas, praças, parques, museus e cinemas. | A concepção de TE está caracterizada, nomeada e desenvolvida como potencial recurso para o desenvolvimento de atividades de Educação Integral. |
Fonte:Elaborado pelas autoras (2016).
Por fim, nos textos de referência do MEC, a concepção de TE é nomeada e desenvolvida.
Princípio/Artigo | Objeto | Como o TE está caracterizado? |
---|---|---|
Texto: Gestão Intersetorial no Território - 2009. | Busca de pactuação entre sociedade e educação comunitária, em cuja rede tornam-se essenciais as seguintes etapas: identificar referências e saberes comunitários; realizar diagnóstico do território; mapear oportunidades e parceiros; construir e gerir trilhas educativas. | O TE está nomeado e desenvolvido como pactuação entre sociedade e educação comunitária. |
Texto: TE para a Educação Integral - 2009. | O Programa Mais Educação propõe pensarmos e praticarmos a Educação Integral a partir do binômio educação-território. | A concepção de TE está nomeada e desenvolvida como binômio educação-território. |
Texto: TE para a Educação Integral - 2009. | O conceito de Território Educativo, que remete a uma concepção abrangente de Educação, em que o processo educativo se confunde com um processo amplo e multiforme de socialização. A partir deste princípio/conceito, o Programa Mais Educação qualifica o território como educativo convertendo-o, assim, em território intencionalmente educador. | A concepção de TE está nomeada e desenvolvida, de modo que o Programa Mais Educação, partindo da concepção de Educação como processo multiforme de socialização, qualifica o território como educativo, conferindo a ele uma característica intencionalmente educadora. |
Texto: TE para a Educação Integral - 2009. | Compreender espaço/território, não apenas como mera estrutura física, mas como lugar de vida, de relações. Não como algo passivo, continente, mas como conteúdo e sujeito destas experiências, que as qualifica, interferindo na vida de quem os ocupa. | A concepção de Território Educativo está nomeada e desenvolvida, como tecido vivo de relações, conteúdo e sujeito de experiências que interfere na vida de quem o ocupa. |
Fonte:Elaborado pelas autoras (2016).
Com isto, partindo desse rastreamento na análise dos marcos legais e textos de referência do MEC apontados, compreendemos que a concepção de Território Educativo na política educacional brasileira vem sendo fomentada desde a Constituição Federal de 1988, tomando como base o princípio da descentralização, de modo que passa a ser nomeado como tal a partir do Programa Mais Educação, em 2010, vinculado ao conceito de Educação Integral.
A partir das caracterizações desenvolvidas nos nove quadros anteriormente apresentados, recorremos à teoria de Stephen Ball5, Richard Bowe e Gold, que se constitui como o ciclo contínuo de políticas, para uma análise pormenorizada da temática anunciada neste texto. Também nos valemos da estruturação conceitual citada em Ball e Mainardes (2011), a qual visa a ampliar os estudos, direcionando-se ao método das trajetórias políticas.
No Brasil, atualmente, acompanhamos um crescente significativo de pesquisas sustentadas nas políticas sociais e educacionais, estando este campo em busca de consolidação (MAINARDES; FERREIRA; TELLO, 2011). Neste sentido, o referencial teórico-metodológico desenvolvido por Ball guia na leitura dos quadros em questão.
A análise de documentos políticos não é simples e, portanto, de acordo com Mainardes, Ferreira e Tello (2011), a contribuição de pesquisadores que consigam identificar ideologias, conceitos empregados, embates no processo e vozes presentes e ausentes torna-se fator relevante no desenvolvimento do campo em questão.
O desafio proposto é o de identificar silêncios, ruídos e reverberações acerca da concepção de Território Educativo, visando a compreender o percurso histórico que traz à tona a ideia de que o espaço urbano pode se constituir em Território Educativo e favorecer o desenvolvimento da Educação Integral.
Como já citado, o contexto das políticas educacionais é relativamente novo no Brasil, e a abordagem de Ball, de orientação pós-moderna, emerge de uma crise de paradigmas nas ciências sociais e humanas. A ideia de Mainardes (2006, 2018) é, a partir da teoria de Ball, Bowe e Gold, apresentar um referencial teórico flexível que prevê a articulação de processos micro e macro nas Políticas Educacionais.
A teoria propõe a análise de três contextos não hierarquizados e contínuos, que são: contexto de influência; contexto de produção do texto político; contexto da prática; e, posteriormente, Ball acrescentou duas dimensões relacionadas: o contexto dos resultados e efeitos; e o contexto de estratégia política. Recentemente, o primeiro foi relacionado a uma extensão do contexto da prática; e o segundo pertence ao contexto das influências (LOPES; MACEDO 2011).
Nesta perspectiva, a política é abordada, inicialmente, em três dimensões que seguem: a proposta (é a política oficial, traduzida nas intenções de diferentes atores, como o governo, as escolas ou as autoridades locais), a política de fato (traduz-se nos textos políticos legislativos, os quais dão forma e são base para as práticas) e, por fim, as políticas em uso (práticas institucionais que emergem do processo da implementação das políticas pelos profissionais).
O ciclo de políticas visa a conferir menos rigidez, e surge como um desenvolvimento das ideias de Ball, Bowe e Gold, a partir dos contextos de influência, do texto de produção da política e da prática.
Mainardes (2006) atenta para o fato de que o foco da análise política deveria incidir sobre a formação do discurso da política/interpretação que os profissionais que trabalham no contexto da prática fazem para relacionar o texto à prática.
Com isto, os três ciclos ou contextos representam arenas/lugares, delineamento de conflitos e grupos de interesses. Não há dimensão temporal ou sequencial e não há linearidade entre eles.
Ball e Bowe, de acordo com Mainardes (2006), no desenvolvimento de suas ideias, consideram que não apenas implementamos as políticas. A Instituição costura outros elementos (sujeitos da prática e protagonistas), e os profissionais da escola, por exemplo, não são totalmente excluídos da formulação e implementação da política, usando, a partir de então, dois estilos de textos com base em Roland Barthes, como produto do processo de formulação em política: O texto prescritivo, que limita o envolvimento do leitor (consumidor inerte, com a produção de sentidos limitada); e o texto escrevível, que convida o leitor a ser um coautor que pode preencher suas lacunas, havendo, assim, uma participação mais ativa na interpretação do texto.
Neste sentido, o processo de formulação da política ocorre em vários contextos inter-relacionados. Os textos mantêm uma clara ligação com os contextos particulares em que foram elaborados e usados e, às vezes, o mesmo texto pode assumir os dois estilos; em outras ocasiões, o texto político inicial se diferencia do subsequente. A abordagem de Ball destaca a natureza complexa e controversa da Política Educacional, incluindo processos micro políticos no contexto local e articulação com o macro.
Fatores hegemônicos regulados pela lógica do mercado, em uma sociedade de classes como a brasileira, também podem ser compreendidos na lógica do contexto de influência referido por Stephen Ball.
Neste texto, optamos por desenvolver observações a partir do contexto de influência e da produção do texto político. Entende-se como contexto de influência os antecedentes e pressões que precedem a gestão de uma política específica, incluindo fatores econômicos, sociais e políticos. Somada a isto, a influência de movimentos sociais tem papel representativo (MAINARDES; FERREIRA; TELLO, 2011).
Nesse território conhecido como contexto de influência, conforme apontam Lopes e Macedo (2011), estão hegemonizados os conceitos mais centrais da política, havendo a criação de um discurso que visa a legitimar a intervenção proposta. À luz destes esclarecimentos básicos, podemos compreender que a Constituição Federal de 1988 integra o contexto de influência, surgindo como a representação legal do processo de redemocratização. Foi naquele momento que o Brasil passou por uma ampliação do provimento de programas sociais, que visam a garantir os direitos sociais em diferentes níveis e, também, a substituição de programas universais do Governo Federal (característicos do período da ditadura militar) por uma gestão descentralizada (SILVA; PERES, 2012).
Há, no entanto, outra perspectiva de análise, que condiz ao contexto de influência como espaço no qual os grupos hegemônicos, com seus distintos objetivos, agem. Quando as políticas educacionais são elaboradas, existe a discussão e articulação de diferentes grupos em torno de suas finalidades, tornando que a política seja um acordo possibilitado, atendendo tais interesses. Como exemplo, resgatamos o estudo de Camini (2013) a respeito da formulação do PDE em 2007, que tem como um de seus programas estratégicos o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (de onde surgiu o Mais Educação).
Os municípios e estados, aderindo ao Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, elaboram os seus respectivos Planos de Ações Articuladas (PAR). Camini (2010, p. 547) aponta que, dentre os programas identificados com a concepção de gestão democrática que constam no PAR, evidenciam-se
o incentivo à organização e qualificação dos conselhos escolares, conselhos municipais de educação, conselhos de alimentação escolar e do Fundeb; o incentivo à qualificação dos gestores das escolas, através do programa Escola de Gestores, cuja base teórica e prática têm como referência a gestão democrática historicamente referenciada.
No entanto, a metodologia de implantação do PDE Escola, por sua vez, atende à lógica gerencialista, que também pode ser interpretada como contexto de influência, vinculando metas, investimentos e resultados, havendo a provisão de ferramentas de gestão e de treinamento, tais como:
processos de desenvolvimento da escola, padrões mínimos de funcionamento, planos de gestão de secretaria, plano de carreira do magistério e mapeamento escolar que à época permitiu a mobilização e participação no seu processo de elaboração e implantação, com base no preceito da participação democrática, no entanto manteve ativa a busca pela participação da iniciativa privada como objetivo a ser alcançado (CAMINI, 2010, p. 548).
Nesta lógica identificamos, nas políticas que precederam o Programa Mais Educação, em 2007, no qual o termo Território Educativo foi nomeado pela primeira vez na política educacional brasileira, em 2010, um movimento ambíguo que, ao mesmo tempo em que conserva as instâncias de participação democrática, estrutura-se por uma lógica gerencialista que atende ao contexto de influência regulado pelo mercado.
Na análise do texto, que se traduz no que Ball denomina contexto de produção do texto político, torna-se relevante examinar os objetivos da política, organizando valores implícitos, explícitos e os silêncios (aquilo que é afirmado e aquilo que é deixado de lado). Podemos inferir que a descentralização político-administrativa é um dos conceitos mais centrais da Constituição, e que se desdobrou em outros marcos legais voltados às políticas educacionais e sociais.
Conforme podemos observar, o princípio da descentralização político-administrativa abre campo para novas experimentações em âmbito local e regional, evidenciando a força da localidade para o desenvolvimento de propostas educacionais ou sociais. Podemos entender que, mesmo quando a concepção de Território Educativo não está caracterizada, já emergem elementos que constroem um contexto de implementação de ações em Educação no território, como os Fundos de Investimento, ou as referências ao desenvolvimento de ações em Educação Integral, a doutrina de Proteção Integral destinada às crianças e adolescentes e à articulação escola-comunidade.
Quando há indícios da caracterização de Território Educativo, ou seja, essa concepção ainda não aparece nomeada, já identificamos nos textos e marcos legais a referência da composição de parcerias entre escola e outros equipamentos, articulação intersetorial e na ampliação da jornada para tempo integral.
Com o surgimento do Programa Mais Educação na política educacional brasileira, o termo Território Educativo ganha nome e passa a ser explicitado como projeto comunitário, pactuação entre sociedade e educação comunitária, binômio educação-território, de modo que o último pode ser entendido como um tecido vivo de relações, conteúdo e sujeito de experiências que transforma a vida das pessoas.
Podemos destacar, como objetivos da política, a questão de, a partir da descentralização da gestão, proporcionar uma experiência no âmbito da Educação Integral e agir de acordo com a realidade do entorno da Escola, considerando a relação escola-comunidade (que se vincula ao princípio de gestão democrática), e desbravando o território do entorno como forma de oferecer mais um recurso educativo e próximo ao cotidiano das crianças e jovens.
Considerações finais
Podemos compreender que o termo e a noção de Território Educativo surgem na política educacional brasileira seguindo uma série de iniciativas e concepções advindas do processo de redemocratização representado no texto constitucional.
A partir de aspectos como o processo de descentralização político administrativa, da doutrina de proteção integral direcionada às crianças e aos adolescentes, e da perspectiva da ampliação da jornada escolar para o desenvolvimento da Educação Integral temos, no Programa Mais Educação, a nomeação do termo Território Educativo; portanto, adotado formalmente pela política educacional brasileira.
Educação Integral pressupõe a ampliação de tempos e espaços de aprendizagem e, atendendo a esta demanda, o programa Mais Educação oferece a perspectiva de trabalhar a Educação no espaço urbano como alternativa para aprimorar a qualidade do ensino, em um país tão marcado pela desigualdade educacional.
Embora exista registro do termo Território Educativo em outros contextos e projetos educacionais, posicionamo-nos frente ao objeto de estudo ora apresentado, na tentativa de decifrá-lo no âmbito da política. Por isto, com as referências acessadas, propusemos análises a respeito do contexto de influência, destacando os princípios enquanto antecedentes históricos que fertilizaram a evidência da necessidade de ampliar tempos/espaços de aprendizagem.
No contexto de produção do texto político, buscamos evidenciar aspectos que convergiram para a adoção desse termo na política educacional, os momentos em que a caracterização estava implícita, explícita ou silenciada.
Um fator relevante no contexto da prática diz respeito àqueles que atuam neste nível, já que é preciso considerar que as políticas podem ser interpretadas de modos diferentes, uma vez que as consequências das políticas podem ser medidas ou avaliadas no que se refere à construção dos dilemas que motivaram sua criação, assim como sua efetividade para resolver esse problema (MAINARDES; FERREIRA; TELLO, 2011).
O Programa Mais Educação, que traz à tona o conceito de Território Educativo para as políticas educacionais, surge como uma tentativa de amenizar as desigualdades sociais históricas do Brasil, convertidas em desigualdades educacionais, como apontam Leclerc e Moll (2012b).
No presente estudo, optamos por evidenciar os contextos de influência e de produção do texto político, visto observarmos que, neste formato de proposição, há dificuldades em apreender um exercício analítico do contexto da prática. Também, de que forma a concepção de Território Educativo aparece nos relatos de experiências, considerando o tempo da política pública e a percepção que as pessoas que atuam com a ela constroem em seus percursos.