Introdução
Não seria preciso sublinhar o reconhecimento internacional de Paulo Freire que, desde os anos de 1960, inspira ações em todo o mundo nas mais diversas áreas. No entanto, a obra e o legado do patrono da educação brasileira (BRASIL, 2012) precisam ser destacados, além de reinventados, frente aos ataques que sofrem, sobretudo a partir das eleições presidenciais de 2018, na esteira de uma nova onda conservadora no país (HADDAD, 2019) que também aflige outros países. Parte dela, produz e divulga conteúdos que não atendem à proposta de Freire (2001) no texto “Do direito de criticar – Do dever de não mentir, ao criticar”. A disseminação de fakenews contra Paulo Freire não seria apenas parte de projeto de poder envolvendo autoridades políticas do país (BRASIL, 2020), mas resultado do funcionamento de tecnologias que atendem aos interesses de empresas (SOUZA; AVELINO; SILVEIRA, 2018; CASTELLS, 2019; KWET, 2019). Ampliar o conhecimento do caráter ideológico de tecnologias digitais, também em suas relações com a educação, seria uma das ações de pesquisadores que atuam a partir de uma perspectiva crítica.
Tal como Freire denunciava há mais de 50 anos ([1968], 1987), ainda hoje a “[...] moldagem de mentalidades é a forma mais decisiva e duradoura de dominação” (CASTELLS, 2019, p. 29) e empresas de tecnologia vêm obtendo sucesso nessa direção. Aplicativos de mídias sociais, por exemplo, traçam perfis e tentam manter usuários interagindo em suas plataformas e fiéis a ela (SILVEIRA, 2018). A coleta de dados durante o uso dessas mídias impulsiona o desejo de ali permanecerem e podem contribuir com visões dos sujeitos acerca das realidades. Entre os variados conteúdos oferecidos e trocados, mídias sociais também têm sido espaço para atividades educacionais (PORTO; SANTOS, 2014).
Em grande parte, o sucesso de empresas de tecnologia deve-se ao aperfeiçoamento de algoritmos, procedimentos matemáticos que definem como devem funcionar artefatos digitais do dia a dia, tais como os computadores e os aplicativos, que são essencialmente “máquinas algorítmicas” (GILLESPIE, 2018, p. 97). Atualmente, existiria “[...] um marketing em torno desses algoritmos”. Segundo a pesquisadora O’Neil em entrevista (BONATELLI, 2018): “Dizem que eles estão ajudando a tornar o mundo mais justo por se basear em modelos matemáticos. Mas vivemos numa sociedade historicamente racista, sexista. Os [...] algoritmos podem estar apenas ajudando a reforçar esses estereótipos”. Algoritmos vêm sendo utilizados para “aperfeiçoar” mecanismos democráticos (MOROZOV, 2018), aumentar a vigilância (PERON, 2018) e orientar aprendizagens (WILLIAMSON, 2017). Nesse caso, tecnologias educacionais baseadas em dados têm apoiado um crescente mercado de sistemas educacionais e os discursos em torno delas podem estar contribuindo para “[...] a reprodução de problemas anteriormente existentes e apoiando novas formas de colonização” (FERREIRA et al., 2019, p. 46).
Não é de hoje a aposta de que as tecnologias poderão revolucionar positivamente a vida em sociedades, mas seria crescente a compreensão de que elas podem “solucionar” limitações e problemas antigos profundamente enraizados (MOROZOV, 2013, 2018). Não sendo exceção, parte da área de educação também adere a esse fascínio quase religioso (FELINTO, 2005) que impregna propostas e práticas pedagógicas, documentos de políticas públicas (BARRETO, 2009) e investigações de seus pesquisadores. Há, também, o outro extremo de rejeição às tecnologias na educação, tomando-as, por exemplo, como responsáveis por relações desumanizadoras e por cortes em programas educacionais, como expressão de políticas neoliberais de Estado Mínimo.
Essa polarização pode ser identificada na literatura acadêmica sobre educação e tecnologia, mas haveria um predomínio do discurso otimista nos trabalhos da área na atualidade. Internacionalmente, pesquisas de Selwyn (2016a, p. 2) apontam que grande parte da discussão “[...] tem tendido a se posicionar entre uma aceitação desinteressada e uma crença profundamente enraizada nos benefícios inerentes à tecnologia para a educação”. A despeito da relevância crescente de tecnologias digitais para escolas, universidades, museus, a maioria das investigações ficaria restrita a apresentar benefícios e/ou riscos do uso dessas tecnologias, muitas vezes abrindo mão de especificidades e apresentando limitações em termos de validação e rigor. Estudos críticos na área, obviamente, ainda são desenvolvidos, seguindo ao menos 30 anos de pesquisas em educação e tecnologia por vertentes críticas, decorrentes da tradição da teoria crítica, que vem mantendo a importância das “[...] ideias de Marx do século XIX em uma era subsequente de capitalismo gerencial, burocracia estatal, e aumento da manipulação corporativa do trabalho e da vida social. As preocupações da teoria crítica alinham-se ao surgimento da sociedade digital” (SELWYN, 2016a, p. 22).
No país, a literatura acadêmica recente da área de educação e tecnologia, segundo pesquisa de Carvalho, Rosado e Ferreira (2019), assemelha-se à internacional, com trabalhos que tendem a enfatizar o antes-depois do uso de tecnologias digitais para justificar o argumento da necessidade de mudança diante de uma educação “ultrapassada”. Carentes de historicidade, grande parte da produção atual acaba apresentando narrativas de “inovação educacional”, conferindo nova roupagem a velhas práticas. A justificativa para uma adoção de artefatos em contextos educacionais se relaciona à suposta inevitabilidade das tecnologias considerando sua intensa presença extraescolar.
A acelerada expansão de tecnologias digitais na educação, a partir da pandemia mundial provocada pelo COVID-19, teria tornado urgente a necessidade de mais estudos desenvolvidos sob abordagens críticas. Compreendem-se abordagens críticas, neste trabalho, como aquelas que exploram relações de poder, dominação e exploração, reconhecem a politicidade/não neutralidade do objeto em suas discussões, desenvolvem questões de controle, conflito e resistência, desvendam mecanismos que promovem valores e agendas de interesses dominantes para apontar caminhos e alternativas (APPLE; AU, 2015; SELWYN, 2016a, 2017). Em poucas linhas: fazem a “denúncia” e o “anúncio” (FREIRE, 1987) de usos e relações, no caso deste objeto de estudo, entre educação e tecnologia para diminuir desigualdades, manipulações, opressões e contribuir com a vocação ontológica dos sujeitos em “ser mais”.
Considerando esse contexto introdutório, apresenta-se um resultado de pesquisa exploratória sobre a literatura nacional da área de educação e tecnologia, em língua portuguesa. A amostra foi constituída por artigos que informam terem recorrido à obra de Freire como referencial teórico-metodológico. Como objetivo específico, a investigação buscou analisar se os trabalhos abordavam relações de poder, exploração e dominação – alguns dos elementos que caracterizam uma perspectiva crítica, à qual Freire tem sido vinculado. Como objetivo geral, este artigo apresenta um retrato aproximado da literatura em um intervalo de dez anos. A metáfora do retrato busca expor uma imagem que, em absoluto, pretende se apresentar como exaustiva, mas apresentar um conjunto de características genéricas para representar uma categoria de coisas.
Percursos e decisões de pesquisa
Nesta seção, será apresentado o percurso para a definição da amostra e os referenciais de análise. O estudo debruçou-se sobre 29 artigos publicados em periódicos classificados nos estratos A1, A2, B1 e B2 na área da Educação pelo sistema “Qualis Periódicos” (CAPES, 2019) no quadriênio 2013-2016. O recorte promoveria a seleção de trabalhos amadurecidos, considerando o estrato no qual foram publicados, e a constituição de uma amostra possível de ser tratada. A equipe composta por três pesquisadoras pertencentes ao grupo “Conexões: Estudos e Pesquisas em Educação e Tecnologia - CEPETec (CNPQ, 2021) trabalhou, antes de tudo, com os artigos do estrato A (PELLON, 2019) e, depois, com o estrato B (MARQUES, 2020), reunindo os resultados e conduzindo reanálises para que fossem apresentados os achados nesta publicação.
A organização da pesquisa envolveu a identificação e a organização dos dados para posterior interpretação a partir de diferentes níveis de leitura dos artigos. O estudo considerou contribuições da Análise de Conteúdo, a partir de Bardin (2001), para os trabalhos de categorização, e características da pedagogia crítica, assinaladas por Apple e Au (2015), para a análise de um recorte sobre abordagem crítica. Obras de Freire (1979, 1987, 1998, 2001) também contribuíram como o referencial teórico, buscando-se apresentar uma discussão coerente com seu pensamento.
Assim, a organização e os estudos foram conduzidos a partir de parâmetros e referenciais pré-definidos. O objetivo foi oferecer à comunidade tanto um retrato dos trabalhos sobre educação e tecnologia que anunciaram terem recorrido à obra de Freire quanto um recorte desse retrato, observando aspectos em relação ao discurso predominante na área.
Para a definição da amostra de revistas nas quais as buscas seriam realizadas, foram aplicados os seguintes critérios de exclusão à lista de periódicos extraída do sistema “Qualis Educação”: revistas impressas; em língua estrangeira; ISSN associado à outra revista; ISSN duplicado; revistas com site fora do ar e sem campo de busca. Como resultado, foram reunidas 51 revistas, sendo seis do estrato A1, 20 do A2, sete do B1 e 18 do B2.
As buscas por artigos no site de cada periódico contemplaram as palavras-chave “Freire” associada à “tecnologia” em campos e/ou os indexadores. Foram selecionados aqueles que continham “Freire” no título, no resumo e/ou nas palavras-chave. Esses mesmos artigos deveriam conter ao menos uma das seguintes expressões: “Tecnologia”, “tecnológico(a)” e/ou “CTS” no título, no resumo e/ou em palavras-chave. A escolha pela sigla CTS, referente à abordagem multidisciplinar Ciência-Tecnologia-Sociedade, deveu-se à identificação de que a abordagem, também considerada como movimento, também recorre e se aproxima do pensamento freireano, utilizando suas categorias para fundamentação, como atestam trabalhos de Strieder (2012), Roso e Auler (2016).
Após a realização desses procedimentos de seleção, as pesquisadoras realizaram uma leitura dos resumos para definição do corpus a ser analisado, recorrendo quando necessário à íntegra do artigo. Nessa ação, também foram aplicadas as regras de representatividade e homogeneidade (BARDIN, 2001), para a constituição de uma amostra coerente, cujo total se encontra na Tabela 1.
Os artigos foram publicados entre 2007 e 2017, atendendo ao período definido previamente pelo grupo de pesquisa. Uma das razões para esse intervalo é que dez anos tem sido um período frequentemente adotado em investigações dessa natureza. O outro envolve os 50 anos de publicação da “Pedagogia do Oprimido” em 2018. Considerou-se que, naquele ano, parte da comunidade dedicada ao estudo da perspectiva freireana realizou um esforço a mais para revisitar tanto a obra quanto o autor, resultando em um volume de publicações atípico, tal como se espera em seu centenário de nascimento em 2021. O ano de 2018 também foi de campanha presidencial no país, com ataques ao educador, o que mobilizou a comunidade a reforçar a importância da obra e de seu legado. Entende-se que os anos de 2018 e 2019 exigiriam uma análise específica que considerasse tais contextos.
Um retrato dos trabalhos sobre educação e tecnologia com referencial de Freire
Esta seção começa com a apresentação de características que possam contribuir com a composição de uma imagem dos trabalhos analisados (Quadro 1), para depois focar em um ponto desse retrato.
Título da Revista | Número de artigos | Ano da publicação do artigo | Universidade à qual a Revista está vinculada |
---|---|---|---|
Revista Ibero-americana de estudos em educação | 3 | 2016 2017 (2) | UNESP |
ETD. Educação temática digital | 2 | 2009, 2016 | UNICAMP |
Revista Experiências em Ensino de Ciências | 2 | 2012, 2017 | UFMT |
Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia | 2 | 2011, 2014 | UFSC |
Revista Contrapontos | 2 | 2007 (2) | UNIVALI |
Cadernos de pesquisa | 1 | 2014 | UFMA |
Ciência e Educação | 1 | 2016 | UNESP |
Educação (Santa Maria. Online) | 1 | 2016 | UFSM |
Educação e Pesquisa | 1 | 2016 | USP |
Ensaio: pesquisa em educação em ciências (online) | 1 | 2015 | UFMG |
Interface - comunicação, saúde, educação | 1 | 2011 | UNESP |
Revista e-Curriculum | 1 | 2017 | PUC-SP |
Revista Educação Especial | 1 | 2011 | UFSM |
Revista Comunicações | 1 | 2016 | UNIMEP |
Revista Enfermagem | 1 | 2016 | UERJ |
Revista Texto & contexto - enfermagem | 1 | 2009 | UFSC |
Revista Dialogia | 1 | 2013 | UNINOVE |
Revista Interfaces Científicas | 1 | 2017 | UNIT |
Revista Laplage em Revista | 1 | 2017 | UFSCAR |
Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia | 1 | 2010 | UTFPR |
Revista de Educação, Ciências e Matemática | 1 | 2013 | UNIGRANRIO |
Revista Pedagógica | 1 | 2017 | UNOCHAPECÓ |
Revista Scientia plena | 1 | 2009 | UFS |
Total: 23 | Total: 29 | -- | -- |
Fonte: Elaborado pelas autoras.1
O Quadro 1 exibe uma distribuição quase uniforme de artigos nas 23 Revistas que compuseram a amostra, sugerindo que a temática com referencial de Freire não é tratada com destaque por algum desses periódicos. Chama atenção a região Nordeste, onde Freire nasceu (Pernambuco) e deu início à sua prática-teoria, representada apenas com duas revistas de Sergipe e uma do Maranhão. Não há veículos de divulgação científica das regiões Norte e Centro-Oeste. No sul do país, está concentrada grande parte deles, sendo três no Rio Grande do Sul e quatro em Santa Catarina. O Sudeste, no entanto, concentra a maioria dos periódicos, provavelmente por ser a região com maior número de instituições de Ensino Superior (INEP, 2018). São Paulo concentra a maioria das Revistas (nove), Estado no qual Freire lecionou quando retornou ao país após 16 anos de exílio, em 1980, atuando na UNICAMP e na PUC-SP, que acolhe uma das cátedras espalhadas mundo afora a desenvolverem estudos e pesquisas a partir de sua perspectiva: a Cátedra Paulo Freire2. Na capital do Estado, Freire também foi secretário municipal de Educação (1989-1991) e realizou uma grande reorganização curricular na rede pública, de caráter popular e democrática, que inspirou outras pelo país e promoveu o movimento Escola Cidadã (GADOTTI, 2010).
Nos dois últimos anos de publicação dos artigos, houve um crescimento no número de trabalhos sobre educação e tecnologia que informaram recorrer ao referencial de Paulo Freire. Em 2016 e 2017, como mostra a Tabela 2, mais do que dobrou a quantidade de artigos em relação aos anos anteriores.
Ano de publicação | Número de artigos |
---|---|
2007 | 2 |
2008 | 0 |
2009 | 3 |
2010 | 1 |
2011 | 3 |
2012 | 1 |
2013 | 2 |
2014 | 2 |
2015 | 1 |
2016 | 7 |
2017 | 7 |
Total | 29 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Não foi possível descobrir, até a submissão deste trabalho, as razões para tal crescimento a partir dos dados. Teria sido a proximidade dos 50 anos da obra mais conhecida do autor? Assim sendo, é interesse das pesquisadoras continuarem o estudo a partir do levantamento de publicações de 2018 em diante, assim como aprofundar outros interesses de pesquisa.
Pode-se suspeitar, no entanto, que a expansão permanente de artefatos, da digitalização e da datificação da educação (WILLIAMSON, 2017) exigiria cada vez mais pesquisas. Tal expansão precisa ser compreendida como ideológica, dando forma a um conjunto de valores e interesses atrelados à performatividade, à competitividade econômica, ao atendimento a grandes empresas de tecnologia, entre outras questões. Como Apple (1986, p. 153) já alertava nos anos de 1980, “[...] no cerne do debate [sobre novas tecnologias na educação] estão as questões ideológicas e éticas sobre o que a [educação] deve focalizar e aos interesses de quem elas devem servir”. A mesma direção e também no mesmo período, Freire (1984) provocava: “A máquina está à serviço de quem? [...] Uma pergunta política, que envolve uma direção ideológica, [que] tem que ser respondida politicamente”. Essa discussão, a partir da amostra, será tratada mais adiante.
Como informado anteriormente, a literatura foi reunida a partir de combinações das expressões “Freire”, “tecnologia” e “CTS/CTSA”, o que implicou não “filtrar” trabalhos sobre a modalidade a distância que, em geral, empregam as palavras-chave “EaD”, variações da expressão “distância”, “on-line/online” e “virtual”. Por esse motivo, provavelmente a modalidade não tenha sido tema nesses trabalhos, mas outras investigações se dedicaram a tratar de ensino-aprendizagem a distância a partir da obra de Freire, tais como Oliveira (2020), Ramacciotti (2010), Cunha e Vilarinho (2009).
Na Tabela 3, as categorias “não identificado” e “não se aplica” contemplam trabalhos mais voltados a discussões teóricas, outros que não delimitaram um recorte – o que não seria de se estranhar, visto que a proposta político-pedagógica de Freire não se destina a uma modalidade específica. Como exemplo, três destes trabalhos discutem aproximações entre Freire e outros teóricos para apresentarem uma reflexão sobre a integração de tecnologias digitais à prática pedagógica, ou apenas considerar o atual contexto tecnológico: o artigo T16 trata de “O pensamento de Freire e Vygotsky no ensino de Física” e o T22 refere-se a “A identidade do educador sob a ótica de Anísio Teixeira e Paulo Freire”. O outro trabalho considerou o diálogo entre Freire e Seymour Papert (T7), muito conhecido na comunidade freireana, que também exemplifica as preocupações e as esperanças dos autores quanto a uma apropriação tecnológica que contribua com graus maiores de criticidade e transformação social com vistas à justiça social. O quarto trabalho (T9), categorizado como teórico, volta-se à proposta dos Institutos Federais de Educação, recorrendo a Habermas como referencial, além de Freire.
Modalidade | Número de artigos |
---|---|
Presencial | 11 |
EaD | 0 |
Semipresencial | 3 |
Não identificado/Não se aplica | 15 |
Total | 29 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Ainda que nem todos os artigos da amostra tenham focado a tecnologia (outra categoria sob a qual os trabalhos foram reunidos, tal como teórico), sobre esse tema trata a maioria deles. As investigações voltam-se à “inserção” (T8), à “inclusão” (T23) e à “invasão das Tecnologias de Informação e Comunicação” (T2) nas práticas pedagógicas, em geral, considerando-as como algo externo a ser introduzido (CARVALHO; FERREIRA, 2017).
Há autores que propõem e apresentam tecnologias específicas ao ensino-aprendizagem e seu acompanhamento, como o podcast (T12, T14) e o Sistema Transversal Ensino-Aprendizagem – STEA (T3) desenvolvido a partir de perspectivas teóricas distintas. No caso deste trabalho, as autoras afirmam que o STEA foi fundamentado, em sua abordagem pedagógica, nas “teorias socioconstrutivistas de Piaget e Vygotsky”, na organização prévia dos saberes dos alunos de Ausubel, na tipologia de conteúdos de Zabala e na andragogia de Knowles (T3, p. 398). Além desses recortes, as concepções de liberdade e autonomia de Freire contribuíram para a construção do sistema.
Tal como o trabalho citado, parte do referencial da literatura levantada ampara-se em outras perspectivas além da de Freire, mas há alguns deles, como o T4, com objetivo de “evidenciar que é possível usar a tecnologia em uma escola pública típica de forma freireana/construcionista, demonstrando especificamente o que poderia ser feito pelos alunos com uma grande variedade de mídias e tecnologias” (T4, p. 842). Na categoria tecnologia, foram, ainda, agrupados artigos sobre formação continuada de professores para uso, entre outras questões, de tecnologias com os estudantes (T6, T21, T27), acerca das práticas de professores “inovadores” (T11), sobre a percepção estética da “cultura digital” (T25) e jogos digitais a partir de temas geradores (T28).
A proposta de investigação temática de Freire para a elaboração de currículos, inclusive, tem inspirado o desenvolvimento de trabalhos na área da Educação sob a abordagem Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). É o caso dos artigos “Currículo temático fundamentado em Freire-CTS” (T10) e “Possibilidades curriculares para o desenvolvimento dos valores da sustentabilidade” (T26), agrupados na categoria CTS. Outro estudo recuperado (T1) analisou a “construção de currículos fundamentados em repercussões educacionais do movimento” CTS a partir de um recorte da literatura, por meio do qual foram identificadas (também) a apropriação da perspectiva freireana em Educação em Ciências e algumas limitações. A abordagem ocupa-se do desenvolvimento da capacidade argumentativa e crítica dos estudantes, de sua formação para a cidadania, preocupada com a transformação da realidade social; por exemplo, durante o ensino de polímeros (T20). Para além dos contributos pedagógicos, a perspectiva de Freire vem sendo apropriada pelo movimento/abordagem CTS para discussões sobre não-neutralidade, como na relação “Ciência, tecnologia e formação social do espaço” (T19), mas, em geral, para “problematizar o desenvolvimento científico e tecnológico e seus impactos na sociedade” (T24).
Os trabalhos restantes da amostra confirmariam a potência da obra de Freire para a ação crítica e transformadora que não se restringe à educação formal, caso de “A migração do software proprietário para o software livre como processo pedagógico” (T13), realizado em uma Organização Não-Governamental (ONG), e trabalhos relacionados à área da saúde. Uma “oficina de atividades”, fundamentada no diálogo freireano, é apresentada como tecnologia social para terapia ocupacional com jovens da escola pública (T5), outro artigo problematiza o excesso de peso entre crianças em fase pré-escolar e apresenta uma tecnologia (T15), tal como outro trabalho (T18) que propõe outra tecnologia para o acompanhamento do idoso hospitalizado relacionando “o saber técnico-científico (profissional) e o popular (senso comum)”. Por fim, um último integrante da categoria outros é “A representação social construída por licenciandos acerca do curso de física”. Embora anuncie que “lançamos mão, no plano teórico” de autores como Freire, a análise recorreu à “teoria das representações sociais” (T29, p. 1) e pouco de sua perspectiva aparece na discussão.
A análise dos trabalhos também buscou identificar os níveis de ensino acerca dos quais as investigações foram desenvolvidas. Metade da amostra contemplou especificidades: seis discussões envolveram Educação Básica, além de três sobre educação profissional de nível técnico; cinco, sobre Ensino Superior. Os outros 15 artigos não explicitaram a delimitação, tratando-se de trabalhos teóricos, desenvolvidos em ONG, com temáticas de saúde e tecnologias em contextos variados. De certa forma, confirmariam que a obra de Freire contribui com a discussão de diferentes temáticas que envolvem processos pedagógicos para além da educação escolar. Seria possível chegar a essa compreensão, também, por meio de categorias da obra do autor relativas às muitas dimensões da vida, como liberdade e diálogo, mapeadas nos trabalhos. O Quadro 2 a seguir apresenta as dez categorias mais frequentes na amostra.
Categorias | Total de artigos em que aparecem | Trabalhos |
---|---|---|
Diálogo e/ou Dialogicidade | 14 | T6, T7, T14, T15, T16, T17, T18, T19, T20, T21, T23, T24, T26, T28 |
Educação Problematizadora | 8 | T1, T3, T5, T6, T7, T8, T12, T14 |
Problematização | 8 | T2, T3, T4, T5, T6, T7, T10, T12 |
Tema Gerador | 7 | T1, T4, T10, T16, T20, T26, T28 |
Conscientização | 7 | T2, T3, T4, T6, T11, T12, T14 |
Leitura de Mundo | 6 | T2, T11, T13, T14, T18, T20 |
Autonomia | 6 | T3, T16, T18, T21, T25, T26 |
Criticidade | 5 | T15, T17, T20, T23, T28 |
Liberdade | 5 | T3, T5, T15, T16, T17 |
Emancipação | 4 | T4, T13, T9, T25 |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
No estudo da íntegra dos artigos, as pesquisadoras buscaram, ainda, identificar razões para a escolha deste referencial em discussões que envolvem tecnologia. Salvo exceções, a maioria dos autores não apresentou uma justificativa para recorrer a Freire. Contudo, a lista do Quadro 2 sugeriria a atualidade dessas categorias para tratar objetos e questionamentos na área. Uma resposta possível a “Por que recorrer a Freire para discutir tecnologias e educação?”, uma das questões deste estudo, seria o próprio uso daquelas categorias freireanas para inquietações e problemas atuais, mesmo que elas possam ter mais de 50 anos. Para Lima (2018, p. 30), Freire terá condições de “[...] resistir à erosão do tempo, porque aborda tópicos centrais e porque a sua obra mantém a capacidade de dialogar com os leitores de cada tempo histórico sobre problemas da sua condição humana e da sua educação”.
Diálogo, autonomia, liberdade, criticidade, como mapeados, seriam “tópicos centrais” à educação e à “condição humana” ao longo da história. Ainda que essas expressões também sejam caras a outras abordagens, inclusive as opostas à perspectiva freireana, e utilizadas em propagandas de ofertas de ensino com/por meio de tecnologias digitais, os sentidos e os compromissos conferidos pelo autor as tornam cheias de propósitos emancipatórios para orientar uma educação crítico-transformadora.
Além do vigor de sua obra, lacunas teórico-metodológicas nas discussões sobre educação e tecnologia também poderiam ser razão para a escolha do referencial de Freire. Um estudo realizado por Rosado, Ferreira e Carvalho (2017), de 193 artigos em língua portuguesa sobre educação e tecnologia, desenvolvido em 28 periódicos, sugere uma “[...] fragilidade teórico-metodológica de uma área de pesquisa que ainda não conseguiu firmar conceitos, metodologias e teorias suficientemente robustos” (ROSADO; FERREIRA; CARVALHO, 2017, p. 209). O levantamento apresenta abordagens teóricas e conceituais diversas oriundas de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento.
Na busca por compreender os porquês de recorrer-se a Freire, considerando que o autor não tenha dedicado sua obra à temática, as categorias do Quadro 2 foram relacionadas a trechos destacados durante o estudo dos artigos. Assim, acabaram sendo identificados, também, para que os autores da amostra de 29 artigos utilizam sua obra: para (1) tratar do uso não-instrumental de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) em processos de ensino-aprendizagem; (2) discutir docência, identidade e inclusão; (3) estruturar propostas de uso e produção de tecnologias; (4) discutir currículo ao problematizar o desenvolvimento científico e tecnológico.
A literatura reunida no grupo (1) tratar do uso não-instrumental de TDIC no ensino-aprendizagem considera a necessidade de apropriação crítica de tecnologias digitais (T25) pelos educadores para que não fiquem “sujeitos às práticas bancárias de educação” (T28). Os autores buscam em categorias como “diálogo” e “leitura de mundo” princípios para o ensino com e por meio de artefatos digitais que partam dos conhecimentos e das vivências dos professores para a reinvenção de práticas (T2, T3, T8, T21), como defendida por Freire (1987). E, assim, os artigos desse grupo se voltam para o trabalho do professor e sua formação continuada (T6, T27).
A totalidade da amostra analisada apresenta poucas pesquisas feitas com estudantes. Já Freire fundamentou parte de sua teoria a partir da prática com educandos para propor pedagogias (FREIRE, 1987, 1992, 1998) e cartas (FREIRE, 1978, 1997, 2003) aos educadores. Elas oferecem valores e princípios para os trabalhos sobre docência e seus desafios (T16, T22), que integram o grupo (2), junto ao artigo que recorre a Freire para discutir “inclusão” (T23).
As pedagogias de Freire não foram pensadas para uma educação com tecnologias, tampouco excluem essa possibilidade. Tanto que elas ajudam os pesquisadores a também (3) estruturarem propostas de uso e produção de tecnologias. O trabalho sobre a proposta pedagógica de migração de software proprietário para software livre (T13, p. 30) explicita que Freire contribuiu “pela sua concepção de práxis, que associada à tecnologia, fez emergir o que defendemos como ‘práxis tecnológica’” (FREIRE, 1984, 1992). Os autores afirmam, ainda, que Freire os levou a compreender que o processo de migração, além de se configurar como “infoinclusão”, integrava uma “luta política e ideológica contra uma concepção hegemônica que nos foi imposta ‘docemente’ sem que percebêssemos” (T13, p. 30). Também para promover a participação de acompanhantes nos cuidados de idosos hospitalizados, foi desenvolvida uma “tecnologia de processo” (T18) que parte dos conhecimentos prévios dos sujeitos. Outro trabalho valoriza o compartilhamento de questões via podcast como “mediatizadores do diálogo” (T14). Neste grupo (3), destaca-se o artigo que anuncia a “tecnologia como um agente de emancipação” (T4, p. 837), o que poderia sugerir uma perspectiva que toma “objetos enquanto sujeitos” em políticas e práticas da educação, como apontam pesquisas realizadas por Barreto (2017). Entretanto, o estudo da íntegra do T4 expõe que o autor focaliza a comunidade escolar como protagonista desse processo ao apresentar um “modelo de implementação com quatro componentes”, todo estruturado a partir de uma perspectiva freireana:
[...] primeiro, identificar um tema gerador relevante para a comunidade; segundo, partir da cultura e da experiência tecnológica da comunidade como base para a introdução de novas tecnologias; terceiro, deliberadamente usar uma abordagem de mídia mista, em que alta e baixa tecnologia coexistem; por fim, deslocar certos protocolos sociais e comportamentais considerados normais nas escolas, mesmo aqueles aparentemente irrelevantes para o ensino e a aprendizagem. Conclui-se que tal utilização de tecnologias expressivas pode ser um poderoso agente de emancipação à Paulo Freire e, em especial, em comunidades economicamente carentes. (T4, p. 837).
Figuras e fichas-roteiro sobre situações-problemas alimentares foram outra tecnologia produzida para o “levantamento do universo vocabular, escolha das palavras relacionadas, [e] criação de situações existenciais” (T15, p. 1). Essa prática de investigação temática é tratada no terceiro capítulo da Pedagogia do Oprimido (FREIRE, [1968], 1987) e, recentemente, Shor (2018, p. 1345) apontou que um dos elementos que integra o “conjunto notável” dessa obra é “[...] o envolvimento de teoria e prática em uma ‘pedagogia situada’, que pode ser reinventada em diversos contextos, com diferentes sujeitos e condições variadas”. Em particular, essa “pedagogia situada” oferece um “léxico de prática”, na qual Shor (2018, p. 1345) inclui o “[...] profundo respeito ao ‘universo vocabular local’; a busca do ‘tema gerador’ e da ‘palavra geradora’; o trabalho com ‘codificações’ e ‘descodificações’”.
Esse “léxico de prática” vem inspirando e sendo reinventado em trabalhos sob abordagem CTS com vistas a (4) discutir currículo ao problematizar o desenvolvimento científico e tecnológico. Uma das razões para que/por que usar a obra do autor seria que a “explicitação de objetivos educacionais” e “a investigação temática” são “dois contributos fundamentais [freireanos], ausentes ou frágeis no campo CTS”, de acordo com os autores do T1 (p. 381). Eles realizaram um estudo de 24 artigos sobre a construção de currículos vinculados ao movimento e apontaram que em metade deles há referências de Paulo Freire. Esse trabalho integra o grupo (3), que problematiza o desenvolvimento científico-tecnológico e recorre a Freire para discussões sobre como promover a criticidade e a participação dos sujeitos em decisões do campo científico, seja por meio da construção de currículos seja por investigações. O T23 (p. 247), por exemplo, dedica-se a discutir “a temporalidade das teorias científicas e [...] sobre o lugar em que conhecimentos científicos se originam”, sugerindo o processo de investigação temática freireana para a identificação das demandas locais. O T24 apresenta diretrizes para “intervenções pedagógicas voltadas para a problematização do desenvolvimento científico e tecnológico contemporâneo”, a partir de análises de uma ação realizada nesse sentido.
Em geral, como vem sendo exposto, a amostra apresenta artigos com contextos, sujeitos e condições variadas, confirmando a riqueza da “[...] pedagogia situada [...] que pôde ser reinventada”, como ressaltou Shor (2018, p. 1345) ao referir-se à Pedagogia do Oprimido. O caráter de reinvenção defendido pelo próprio Freire, no entanto, também pode levar a usos de suas contribuições teórico-metodológicas em desacordo com a totalidade de seu pensamento. No caso desta investigação, de fato, uma parte dos trabalhos recorre pontualmente a concepções desenvolvidas por Freire, reinventando-as em seus contextos, sujeitos e condições, mas que, na totalidade, não reverberariam uma perspectiva freiriana. Em outros casos, a articulação entre autores de diferentes correntes também fragiliza aspectos fundantes da obra dele.
Estas seriam algumas das apropriações da obra de Freire levantadas nos 29 artigos, indicando para que sua proposta teórico-metodológica tem contribuído e sugerindo também por que recorrer às suas categorias e à totalidade de seu pensamento em estudos sobre educação e tecnologia na atualidade. Não se trata de uma mostra homogênea quanto a essa apropriação, certamente. Ainda que os trabalhos tenham anunciado o referencial para análise do objeto de pesquisa e/ou para realização das propostas apresentadas, reitera-se que o grau de aderência à perspectiva mostrou-se bastante heterogêneo. Alguns autores apenas pontualmente mencionam algum elemento de sua obra para a discussão de uma questão, outros explicitam orientar-se por seu pensamento em todo o trabalho, mas a maioria situa-se no meio-termo, recorrendo à perspectiva de Freire para uma boa parte dos objetivos a que se propôs, mas não para a totalidade do artigo. De qualquer modo, seria indicativo da atualidade do seu pensamento o uso de categorias exibidas no Quadro 2 na articulação de questões que afligem os pesquisadores.
Aproximações e distanciamentos da literatura da área
Como sugere a seção anterior, discussões envolvendo tecnologias tendem a considerar questões de interação, práticas culturais, organização e identidade; enfim, o que as pessoas fazem com tecnologias, assim como arranjos e modos de organização envolvendo artefatos (SELWYN, 2016b; DUSEK, 2009). Contudo, coerentes com a perspectiva político-filosófica de Freire (1987), a maioria dos artigos foge a uma certa mistificação quanto à tecnologia muito presente na literatura acadêmica da área. Ao colocar no centro da discussão problemáticas antigas da educação, como a valorização dos saberes dos sujeitos, o diálogo (dialético-problematizador) e o desenvolvimento da autonomia com o uso e por meio do desenvolvimento de artefatos, a maioria dos pesquisadores considera a tecnologia como enredada nessas redes de relações, não atribuindo-lhe um caráter salvacionista (MOROZOV, 2013). Nesse sentido, os trabalhos expõem compromisso com a busca de graus maiores de criticidade (FREIRE, 1979) em suas experiências e propostas de formação que envolvem tecnologias. Ao problematizarem o ensino-aprendizagem e outras questões da educação, se aproximariam de uma perspectiva crítica.
Entre as perspectivas possíveis, a pedagogia crítica, na qual Freire pode ser situado, busca evidenciar relações de poder, desigualdades sociais, culturais, econômicas e os desdobramentos que surgem a partir dessas amarrações, ainda que essas e outras características abrangentes possam incorrer em diversos significados e uma generalização perigosa, segundo Apple e Au (2015). Os autores apontam cinco tarefas com as quais a análise crítica e os envolvidos no processo educacional devem se ocupar: 1) “testemunhar a negatividade”, que diz respeito a elucidar vínculos existentes entre a “política e da prática educacional com as relações de exploração e dominação na sociedade”; 2) expor contradições e espaços de ação possíveis; 3) redefinir o conceito de pesquisa, com a intenção de agir em favor de pessoas e movimentos sociais envolvidos em questionar desigualdade de poder; 4) dar continuidade à “tradição do trabalho radical. Diante de ataques organizados a memórias coletivas de diferenças e de lutas”; 5) atuar junto aos movimentos sociais progressistas (APPLE, AU, 2015, p. 416, grifo nosso).
O estudo da amostra indica que essas questões aparecem dispersas entre os artigos e pontualmente neles. Como tratado na introdução, um dos objetivos da investigação foi identificar se trabalhos de educação e tecnologia, que anunciavam recorrer a obras de Freire, se diferenciam da literatura hegemônica da área, que tende a uma abordagem pouco problematizadora de relações de poder, exploração e dominação (SELWYN, 2016a, 2017). Considerando apenas as características de uma abordagem crítica, foram identificados cinco trabalhos que as discutem em variados graus, mas sem diálogo com questões de tecnologia. Com Freire e Shor (1986), por exemplo, T10 problematiza o cumprimento de currículo padrão e outras práticas e premissas que podem levar a escola a perpetuar o “status quo”. T5 (p. 208) defende que relações de poder dentro da escola sejam assumidas e explicitadas para que possam ser transformadas, ainda que os autores reconheçam ser esta uma tarefa difícil por considerarem o que “Bourdieu denomina ritos da instituição”. Ressalte-se que esses artigos, assim como T2, T9, T22, tiveram trechos identificados em sua íntegra que mencionam relações de poder, exploração e/ou dominação, mesmo que parte deles não discuta esses elementos em profundidade. No entanto, essas categorias que caracterizam, mas não esgotam, abordagens críticas não foram relacionadas à tecnologia, somente a questões de educação.
Chama atenção o grande número de artigos sem menção a relações de poder, exploração e/ou dominação, quase metade da amostra: T3, T8, T11, T12, T14, T15, T16, T17, T18, T20, T21, T23, T26, T27. É preciso ressaltar que parte desses trabalhos recorre a alguma categoria e/ou princípio da obra de Freire pontualmente para discussão, sem tê-lo usado como referencial teórico-metodológico de fato, compondo o corpus porque assim anunciava no trabalho – critério de seleção adotado pela investigação. Em geral, ficam focados em apresentar e discutir processos e práticas, envolvendo ou não tecnologia, mas não mencionam essas forças que atravessam e pautam as relações humanas e a vida em sociedade.
Apenas oito trabalhos não dissociaram práticas e processos pedagógicos com/sobre tecnologias do “desvelamento” (FREIRE, 1979) de considerações sobre interesses, funcionamento de artefatos, mecanismos de manipulação e exploração, para além da necessária integração, reinvenção e formação de professores com/por meio de tecnologias. Denuncia-se, por exemplo, a aceitação passiva de tecnologias como uma forma de dominação e exploração de grandes empresas de tecnologia em sua trajetória crescente de poder. Ao exporem um processo pedagógico de migração para software livre, os autores de T13 o compreendem como parte de uma luta contra-hegemônica e expressam uma concepção de tecnologia pautada em princípios éticos que devem servir à felicidade humana, remetendo-se a Freire. A partir de Freire, além de Papert (1993), T4 (p. 841) pontua a existência de um currículo oculto no uso “tradicional” de tecnologias a “transformar os alunos em consumidores de software, não em produtores; aqueles que se adaptam às máquinas e não os que as reinventam; aqueles que aceitam os computadores como caixas-pretas que apenas especialistas podem entender, programar ou consertar”. É a premissa de neutralidade da tecnologia e da ciência, discutida em parte dos trabalhos sob abordagem CTS (T1, T19, 24) que tratam da importância de se problematizar objetivos, valores, agendas de pesquisa e da atividade científico-tecnológica. Os autores de T1 e T19 integrariam um conjunto de grupos de pesquisa nacionais que vem denunciando a importação desses elementos do Hemisfério Norte e buscam uma reorientação da atividade científico-tecnológica que atenda aos contextos e às necessidades locais, na esteira do Pensamento Latino-Americano em Ciência-Tecnologia-Sociedade (PLACTS), originado entre os anos 1960 e 1970 em função de grande transferência tecnológica na região de países centrais. Como explica T1 (p. 373), o PLACTS não repercutiu no campo educacional, mas atualmente essa construção vem sendo desenvolvida por grupos de pesquisa que aproximam princípios do CTS com o pensamento de Freire, em especial, por meio de “currículos temáticos, pela interdisciplinaridade e a construção de uma cultura de participação em processos decisórios”. Afinal, como escreveu Freire (1998):
O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perde a sua significação [...]. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o que fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro. (FREIRE, 1998, p. 147-148).
É marca do pensamento de Freire não dissociar a prática pedagógica dos condicionantes históricos, culturais e ideológicos. Ele defendia o uso de tecnologias digitais na educação, até para que a escola estivesse “à altura do seu tempo”. Todavia, a partir de uma postura crítica, indagadora e vigilante e, assim, “[...] nem, de um lado, demonologizá-la, nem, de outro, divinizá-la” (FREIRE, 1992, p. 133). Freire jamais defendeu uma posição de neutralidade e condenava qualquer forma de extremismo. Alertava para o progressivo culto da tecnologia como uma “nova divindade” e não como expressão da criatividade humana. Propunha a educadores e pesquisadores comprometidos com a justiça social e uma educação libertadora que tivessem o desenvolvimento tecnológico como objeto de análise, não atribuindo à tecnologia a responsabilidade pelos problemas causados à humanidade, o que seria tomá-la como uma “entidade demoníaca, acima dos seres humanos” (FREIRE, 1981, p. 68). Por extensão, entende-se que os estudos e as práticas alinhados à perspectiva freiriana não poderiam abrir mão de tratar politicamente relações entre educação e tecnologia.
Considerando que a tecnologia não é apenas necessária, mas parte do natural desenvolvimento dos seres humanos, o problema que se coloca à revolução é o de como evitar os desvios míticos a que nos referimos.
Este não é um problema tecnológico, mas político, e se acha visceralmente ligado à concepção mesma que se tenha da produção. Se esta se orienta no sentido do “consumismo”, dificilmente se evitará a mitificação da tecnologia, e a sociedade socialista repete, em parte, a capitalista. (FREIRE, 1981, p. 69, grifo nosso).
Coerentes com seu pensamento, os textos analisados neste trabalho não seriam dicotômicos, ou seja, nem “diabolizariam” nem “divinizariam” em seus discursos relações entre educação e tecnologia. No entanto, embora não apresentem aderência ao otimismo predominante na literatura da área, tratada na introdução, a maioria dos artigos não inclui em suas discussões questões caras a uma abordagem crítica diante das tecnologias; no caso desta pesquisa, relações de poder, exploração e dominação. As razões para isso não foram identificadas nesta fase da investigação, sendo interesse dos autores a continuidade dos estudos da amostra também com esse objetivo.
As apropriações da perspectiva teórico-metodológica de Freire, como a de qualquer outro teórico, é realizada a partir de interesses e focos de pesquisa diversos, não sendo a politicidade, necessariamente, um princípio tomado pelos autores. Entretanto, no escopo desta investigação, entende-se que recorrer a Freire em análises implicaria não desconsiderá-la. Freire (1987), ao conceber uma educação baseada no diálogo-dialético comprometido com uma pedagogia que partisse do oprimido, promoveu e enfatizou o questionamento das relações de poder, dominação e exploração em sua proposta.
Em entrevista que compõe o “Dossiê Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança”, para o qual este trabalho colabora, Henry Giroux (FIGUEIREDO; SIQUEIRA; SILVA, 2021) destaca que Freire era contrário a uma “educação politizada” que se assemelha a uma “pedagogia da doutrinação”, mas defendia a “aprendizagem do poder”, das relações entre conhecimento e poder, do diálogo crítico. Além de “agentes críticos individuais”, Giroux (FIGUEIREDO; SIQUEIRA; SILVA, 2021, p. 3, tradução nossa) lembra que “[...] Paulo queria que as pessoas fossem [...] capazes de trabalhar coletivamente com outras pessoas em torno de preocupações comuns que aprofundariam e tornariam mais significativas para elas a própria noção de democracia”.
Considerações finais
Estes últimos anos foram de grande tensão para aqueles que sonham com mais justiça social, menos exploração e dominação. Muitos educadores e pesquisadores progressistas enfrentam uma nova onda conservadora e as consequências do uso intenso de tecnologias digitais a partir da pandemia de 2020. Tudo muito rápido e desgastante, exigindo que se refaçam sujeitos desta história cotidianamente e mantenham vivos o sonho e a “utopia verdadeira”, que não existe fora da “tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente” (FREIRE, 1992, p. 91).
Sem desconsiderar os limites deste trabalho e a intenção de aprofundá-lo, esta pesquisa sugere a necessidade de mais denúncias das relações de poder, exploração e dominação que envolvem educação e tecnologia na literatura da área com referencial de Freire, sobretudo quanto a processos de ensino-aprendizagem com artefatos digitais. Seria ingênuo desconsiderar que tecnologias, mesmo empregadas a partir de uma concepção não-bancária de educação, não conformam práticas, promovem valores e agendas. Carregam em si visões de mundo e de homens daqueles que planejaram seus algoritmos, por exemplo. Assim, não dependeria apenas de saber “como usar” para educar com tecnologias em uma perspectiva emancipatória, mas de um permanente desenvolvimento de criticidade quanto às relações estruturais que impregnam essas práticas.
A maioria dos artigos analisada nesta pesquisa tenderiam a ofuscar essas relações enquanto tecnologias digitais vêm se expandindo na educação dentro de um contexto ainda mais desafiador para aqueles que atuam sob um horizonte de utopia. Provavelmente, trabalhos que “desvelam” muitas das “razões de ser” (FREIRE, 1987), para apontar possibilidades, estejam sendo produzidos com o referencial de Paulo Freire desde o recorte adotado – o que somente uma outra investigação poderia identificar. Este artigo termina com o “sonho” de que a tensão entre “denúncia” e “anúncio” seja fortalecida no ano do centenário de nascimento (1921-2021) de quem tanto a promoveu.