Considerações iniciais
Este artigo objetiva discutir o cenário de inclusão da educação infantil (EI) no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e possíveis desdobramentos desta inserção no atendimento à faixa etária no cenário educacional gerado pela Covid-19. A EI foi incorporada ao SAEB em 2019 (Brasil, 2019), que passou a ter, como população alvo do sistema, amostra de turmas de creche e de pré-escola de instituições públicas e conveniadas com o setor público, em caráter de estudo piloto.
O SAEB é o principal sistema de avaliação da educação básica. Foi estabelecido pela Portaria n° 1.795 (Brasil, 1994) e modificado pela Portaria n° 931 (Brasil, 2005). Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), tem por objetivo avaliar a educação básica brasileira e (re)formular/monitorar as políticas públicas voltadas para esta etapa, contribuindo para a melhoria de sua qualidade. Até 2019, era composto por três avaliações externas e em larga escala, a saber:
a) Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB): avaliava, a cada dois anos, uma amostra dos/as alunos/as regularmente matriculados/as no 5° e 9° ano do ensino fundamental e no 3° ano do ensino médio, das escolas públicas e privadas localizadas em áreas urbanas e rurais do país;
b) Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC, também conhecida como Prova Brasil): avaliação censitária, também realizada a cada dois anos, dos/as alunos/as do 5° e 9° ano do ensino fundamental das escolas públicas municipais, estaduais e federais que possuíam, no mínimo, 20 alunos/as matriculados/as por escola;
c) Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA): inicialmente, se constituía em avaliação censitária dos/as alunos/as do 3° ano do ensino fundamental das escolas públicas do país, realizada anualmente. A ANA foi incorporada ao SAEB pela Portaria nº 482 (Brasil, 2013). Em 2018, passou a avaliar o 2º ano do ensino fundamental, através da Portaria nº 1.100, de 26/12/2018 (Brasil, 2018). Seu objetivo era avaliar os níveis de alfabetização e letramento em Língua Portuguesa e Matemática.
Em 2019, a Portaria nº 366 (Brasil, 2019), responsável pelas diretrizes para a realização do SAEB, estabeleceu duas mudanças: as siglas ANA, Aneb e Anresc deixaram de existir e todas as avaliações passaram a ser identificadas pelo nome SAEB. Em 2020, a Portaria nº 458, de 05/05/2020 (Brasil, 2020c), alterou o sistema, mais uma vez, ao tornar o seu caráter censitário, em todas as etapas da Educação Básica, tendo, como público alvo, todos os alunos de escolas públicas e privadas.
O artigo faz parte de uma série de encaminhamentos inseridos em uma pesquisa, em estágio inicial, que pretende acompanhar a entrada da educação infantil como público-alvo do SAEB e seus possíveis impactos para o trabalho pedagógico realizado nesta faixa etária em duas redes públicas municipais do estado do Rio de Janeiro [1] .
Revisão bibliográfica sobre a questão da avaliação na educação infantil
No primeiro semestre de 2020, como etapa inicial de pesquisa, foi realizada uma revisão bibliográfica na plataforma Scielo e no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) com as seguintes palavras chaves [2] :
Resultados encontrados na Plataforma Scielo
Foram encontrados os mesmos seis artigos utilizando-se das três palavras-chave avaliação da educação infantil, avaliação na educação infantil e avaliação em educação infantil. As informações estão organizadas, por ordem cronológica de publicação, na tabela 1, a seguir:
Numeração | Título | Autor | Periódico | Área | Ano de publicação |
---|---|---|---|---|---|
1 | O que as crianças sabem ao ingressarem na pré-escola na cidade do Rio de Janeiro? | Tiago Lisboa Bartholo, Mariana Campelo Koslinski, Marcio da Costa e Thais Barcellos. | Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação | Educação | 2020 |
2 | Avaliação e gestão da educação infantil em municípios brasileiros | Sandra Zákia Sousa e Cláudia Oliveira Pimenta | Educação & Realidade | Educação | 2018 |
3 | Promover a partir do interior: o papel do facilitador no apoio a formas dialógicas e reflexivas de auto-avaliação | Anna Bondioli | Educação e Pesquisa | Educação | 2015 |
4 | O uso de escalas de avaliação de ambientes na educação infantil | Thelma Harms | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2013 |
5 | Entre as políticas de qualidade e a qualidade das práticas | Maria Malta Campos | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2013 |
6 | Avaliação de programas, indicadores e projetos em educação infantil | Fúlvia Rosemberg | Revista Brasileira de Educação | Educação | 2001 |
Fonte: elaboração própria a partir de revisão bibliográfica.
Com a palavra-chave avaliação da educação infantil, foram encontrados 07 artigos [3] , organizados a partir dos mesmos critérios, na tabela 2:
Numeração | Título | Autor | Periódico | Área | Ano de publicação |
---|---|---|---|---|---|
1 | Avaliação de contexto na educação infantil: diferenciação e conflito na formação docente | Luciane Maria Schlindwein e Julice Dias | Pro-Posições | Educação | 2018 |
2 | Avaliação na e da educação infantil. Avaliação de contexto | Altino José Martins Filho e Joselma Salazar de Castro | Pro-Posições | Educação | 2018 |
3 | Avaliação do Ages and Stages Questionnaire-Brasil por profissionais de Educação Infantil | Ana Carolina Monnerat Fioravanti-Bastos, Alberto Filgueiras e Maria Lucia Seidl de Moura | Estudos de Psicologia | Psicologia | 2016 |
4 | Políticas de educação infantil e avaliação | Fúlvia Rosemberg | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2013 |
5 | Qualidade na educação infantil: revisão de um estudo Brasileiro e recomendações | Sharon Lynn Kagan | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2011 |
6 | Um estudo sobre creches como ambiente de desenvolvimento | Ana Beatriz Rocha Lima e Eliana Bhering | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2006 |
Fonte: elaboração própria a partir de revisão bibliográfica.
Com a palavra-chave avaliação na educação infantil, foram encontrados 07 artigos, organizados a partir dos mesmos critérios, na tabela 3:
Numeração | Título | Autor | Periódico | Área | Ano de publicação |
---|---|---|---|---|---|
1 | La evaluación de la calidad el juego em la educación infantil | Ângela Scabin Coutinho, Catarina Moro e Daniele Marques Vieira | Caderno de Pesquisa | Educação | 2019 |
2 | Avaliação institucional e formação docente como práticas dialógicas na educação infantil | Maria Nilceia de Andrade Vieira e Valdete Côco | Educar em Revista | Educação | 2019 |
3 | Avaliação do Ages and Stages Questionnaire-Brasil por profissionais de educação infantil | Ana Carolina Monnerat Fioravanti-Bastos, Alberto Filgueiras e Maria Lucia Seidl de Moura | Estudos de Psicologia | Psicologia | 2016 |
4 | Políticas de educação infantil e avaliação | Fúlvia Rosemberg | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2013 |
5 | Autoavaliação e gestão democrática na instituição escolar | Itamar Mendes da Silva | Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação | Educação | 2010 |
6 | Um estudo sobre creches como ambiente de desenvolvimento | Ana Beatriz Rocha Lima e Eliana Bhering | Caderno de Pesquisa | Educação | 2006 |
7 | Avaliação de ambientes educacionais infantis | Mariana Almeida de Oliveira; Rosângela de Assis Furtado; Tatiana Noronha de Souza; Mara Ignez Campos-de-Carvalho | Paidéia | Psicologia | 2003 |
Fonte: elaboração própria a partir de revisão bibliográfica.
Sobre a palavra-chave avaliação em educação infantil, foram encontrados 06 artigos, organizados por ordem cronológica de publicação na tabela 4:
Numeração | Título | Autor | Periódico | Área | Ano de publicação |
---|---|---|---|---|---|
1 | Avaliação de contexto na educação infantil: diferenciação e conflito na formação docente | Luciene Maria Schlindwein e Julice Dias | Pro-Posições | Educação | 2018 |
2 | Avaliação na e da educação infantil. Avaliação de contexto | Altino José Martins Filho e Joselma Salazar de Castro | Pro-Posições | Educação | 2018 |
3 | Políticas de educação infantil e avaliação | Fúlvia Rosemberg | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2013 |
4 | A qualidade da educação infantil: um estudo em seis capitais brasileiras | Maria Malta Campos, Yara Lúcia Esposito, Eliana Bhering, Nelson Gimenes e Beatriz Abuchaim | Cadernos de Pesquisa | Educação | 2011 |
5 | A contribuição da educação infantil de qualidade e seus impactos no início do ensino fundamental | Maria Malta Campos; Eliana Bahia Bhering; Yara Esposito; Nelson Gimenes; Beatriz Abuchaim; Raquel Valle e Sandra Unbehaum | Educação e Pesquisa | Educação | 2011 |
6 | Avaliação de ambientes educacionais infantis | Mariana Almeida de Oliveira; Rosângela de Assis Furtado; Tatiana Noronha de Souza; Mara Ignez Campos-de-Carvalho | Paidéia | Psicologia | 2003 |
Fonte: elaboração própria a partir de revisão bibliográfica.
Não foram encontrados registros que dissessem diretamente respeito ao estudo por meio das palavras-chave avaliação da aprendizagem na educação infantil, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, SAEB, Avaliação Nacional da Educação Infantil e ANEI.
Podemos observar que é possível encontrar o mesmo artigo nas buscas com diferentes palavras-chave, conforme organizado na tabela 1, assim como o nome de algumas pesquisadoras aparece mais de uma vez com artigos diferentes sobre a temática. Em relação ao material encontrado, para fins de organização, encontramos as seguintes categorias, descritas no quadro a seguir:
Resultados encontrados no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES
Foram encontrados muitos registros com as palavras chave avaliação da educação infantil (1.189.596 registros), avaliação na educação infantil (1.045.308 registros), avaliação em educação infantil (1.144.595 registros) e avaliação da aprendizagem na educação infantil (1.200.806 registros). Por conta desse contexto e da dificuldade encontrada nos mecanismos de refinamento de busca, foi necessário restringi-la até o 500º trabalho de cada palavra chave.
Foram encontradas as seguintes temáticas em relação às dissertações de mestrado:
Em relação às teses, as seguintes temáticas foram encontradas:
Sobre as palavras-chave Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, SAEB, Avaliação Nacional da Educação Infantil e ANEI, não foram encontrados registros que dissessem respeito ao estudo.
Entre os artigos encontrados na busca à Plataforma Scielo, um artigo em especial está diretamente ligado à pesquisa — “Avaliação da educação infantil: questões controversas e suas implicações educacionais e sociais” (Sousa, 2018). O texto em questão “apresenta e discute proposições e iniciativas de avaliação na educação infantil que se fazem presentes no debate nacional, difundidas por gestores públicos, trabalhadores, estudiosos e pesquisadores da área.” (Sousa, 2018, p. 65). A pesquisadora argumenta que os impasses presentes no cenário nacional remetem, sobretudo, à dimensão política da avaliação, uma vez que a avaliação carrega o potencial de induzir uma determinada concepção de qualidade para aqueles/as que estão envolvido/as no processo avaliativo.
Ainda para a autora, a noção de qualidade adotada acaba por condicionar o delineamento assumido para a avaliação, como as informações são produzidas e interpretadas e as escolhas que acabam se originando desse processo.
Tensões entre a visibilidade da educação infantil na educação básica e a questão das avaliações externas em larga escala
Para Sousa (2018), iniciativas para avaliar a educação infantil no contexto brasileiro são relativamente recentes. Desenvolveu-se um percurso de construção de sua inclusão nas formulações da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica, liderado pelo MEC, que contou com a participação de representantes governamentais e não governamentais, tendo esse processo culminado com a divulgação do documento “Educação infantil: subsídios para a construção de uma sistemática de avaliação (Brasil, 2012). Com o objetivo de dar continuidade à proposta contida no documento, estabeleceu-se um acordo entre o MEC, a Secretaria de Educação Básica e a Diretoria de Avaliação da Educação Básica (DAEB) do Inep, com o objetivo de “formular uma proposta de avaliação da educação infantil” (Sousa, 2018, p. 74).
A inclusão dessa etapa, no sistema nacional de avaliação, se materializou em 2016, com a criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB), com a Portaria nº 369 (Brasil, 2016a). O objetivo do SINAEB era substituir o SAEB, a fim de “assegurar o processo nacional de avaliação da educação básica em todas as etapas e modalidades, considerando suas múltiplas dimensões” (Brasil, 2016a, p. 1). O novo sistema incluiria a ANEI – Avaliação Nacional da Educação Infantil – etapa da educação básica não contemplada no sistema anterior, de ciclo bianual, com a primeira avaliação a ser realizada em 2017, com o objetivo de:
[…] realizar diagnósticos sobre as condições de oferta da educação infantil pelos sistemas de ensino público e privado no Brasil, aferindo a infraestrutura física, o quadro de pessoal, as condições de gestão, os recursos pedagógicos, a situação de acessibilidade, entre outros indicadores contextuais relevantes, além de fornecer subsídios aos sistemas de ensino para a construção de políticas públicas que possibilitem melhoria na qualidade da educação infantil. (Brasil, 2016a, p. 4).
O SINAEB, porém, não chegou a se materializar, sendo revogado pela Portaria nº 981 de 26/08/2016 (Brasil, 2016b), alegando que as revisões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ainda estavam em curso e que o próprio sistema a ser implementado precisava se pautar nas recomendações e orientações surgidas nesse processo. Sousa (2018) critica a justificativa de não implementação do SINAEB por conta da BNCC, uma vez que, para a pesquisadora, “ancorar a avaliação da educação infantil na Base Nacional Comum Curricular […] indica a opção por focalizar a avaliação nas prescrições relativas ao desempenho esperado das crianças de zero a 5 anos e 11 meses de idade.” (Sousa, 2018, p. 76). Para a autora, “as recentes iniciativas do governo federal permitem supor uma tendência de focalizar a avaliação no desempenho das crianças.” (Sousa, 2018, p. 76).
Consideramos a preocupação de Sousa (2018) pertinente. Em 2010, na Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, na primeira gestão de Eduardo Paes, tendo Claudia Costin como Secretaria Municipal de Educação, os questionários ASQ-3 – Ages and Stages Questionnaires (Squires et al., 2009) foram aplicados nas creches, por amostragem. Os questionários são formados por um conjunto de 20 que cobrem intervalo etário de 1 mês a 5 anos e meio, pretendendo avaliar o desenvolvimento infantil a partir de cinco dimensões: a) comunicação; b) motora ampla; c) motora fina; d) resolução de problemas; e) pessoal/social. Segundo Neves (2012), estes questionários têm o objetivo de detectar atrasos no desenvolvimento infantil, a partir de um padrão normativo de excelência de desenvolvimento referendado na classe média branca estadunidense.
Nos anos seguintes (2011 e 2012), os questionários foram aplicados em toda a educação infantil da rede, com a intenção de estender o uso dos questionários para outras redes públicas do país [4] . Alguns segmentos que representam a discussão sobre a Educação Infantil, porém, posicionaram-se publicamente contra esse cenário [5] , apresentando moção de repúdio ao MEC, ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e a diversos órgãos competentes (Louzada, 2017).
Além de termos vivenciado essa experiência na rede pública municipal do Rio de Janeiro, ter uma parte correspondente à educação infantil na Base Nacional Comum Curricular — BNCC (Brasil, 2017a) também pode apresentar um reforço à possibilidade de se promover avaliação externa em larga escala nessa etapa, embora o próprio documento defenda o acompanhamento, a observação e o registro como encaminhamentos avaliativos para a faixa etária. Em vídeo divulgado pela página da internet do Movimento Pela Base Nacional Comum [6] , a professora Magda Soares [7] defende a necessidade de definir as metas para as avaliações externas em larga escala produzidas pelo Inep por inúmeras secretarias municipais e estaduais espalhadas pelo país. Nas palavras de Soares: “Avaliação é o quê? Avaliar metas que teriam sido definidas previamente. Mas, no Brasil, nós fizemos a coisa na ordem inversa: têm sido avaliadas as escolas e os professores sem que as metas tenham sido definidas”.
Sobre o perigo eminente de se pensar iniciativas para avaliar o desenvolvimento infantil na perspectiva de se detectar atrasos, em 01/06/2020 foi publicada, na página da internet da ANPEd, um manifesto, escrito pelo Grupo de Trabalho 7 – Educação de Crianças de 0 a 6 anos – sobre “quaisquer iniciativas de avaliação em larga escala das crianças matriculadas na educação infantil, por meio de instrumentos que visem aferir domínios de competências e habilidades”, alertando para os riscos da Portaria nº 458 (Brasil, 2020c), que estabelece normas relativas ao SAEB sem, no entanto, explicitar como essa avaliação deve ocorrer na educação infantil, podendo resultar em proposições que desconsiderem as concepções de educação infantil e de avaliação presentes nos documentos que normatizam o trabalho pedagógico realizado com a etapa em cenário nacional.
Louzada (2017) argumenta que, inserido no contexto descrito até aqui, há interesse no trabalho pedagógico realizado nessa faixa etária, com o objetivo de melhorar o desempenho escolar futuro das crianças, uma vez que estudos sinalizam que há melhor desempenho de crianças pré-escolares se comparado com as demais (Campos et al., 2011). Intenciona-se antecipar a questão da alfabetização para a educação infantil, o que justificaria, por exemplo, a utilização de cartilhas e materiais pedagógicos na pré-escola (Louzada, 2017; Castelli et al., 2015). Iniciativas recentes confirmam essa hipótese: a) em 2017, ações de formação continuada para professores/as e equipe gestora de instituições inseridas no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) passaram a contemplar a pré-escola (Brasil, 2017b); b) em 2018, a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) passou a ser aplicada no segundo ano do ensino fundamental, em vez do terceiro (Brasil, 2018); c) em 2019, a educação infantil alterou o SAEB (Brasil, 2019); d) em 2020, a EI foi inserida no edital do Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD [8] .
Em nossos estudos, percebemos que fica difícil separar a questão da alfabetização do debate sobre aplicar avaliações externas em larga escala na educação infantil. Precisa-se estudar seriamente esse assunto e os seus efeitos nos cotidianos que atuam com essa faixa etária. A questão da alfabetização tem sido um grande desafio que se coloca para os/as educadores e pesquisadores/as de educação. Embora o acesso à escola tenha melhorado significativamente, tal acesso, porém, não tem garantido efetiva aprendizagem das crianças.
Avaliação, alfabetização e pré-escola: um tema polêmico
É indiscutível e legítima a preocupação com a questão da alfabetização no Brasil. Porém, temos diante de nós uma disputa de sentidos no que se refere à questão, uma vez que não é objetivo do trabalho pedagógico realizado na educação infantil antecipar os conteúdos que serão trabalhados no ensino fundamental (Brasil, 2010).
Para Sampaio (1993), o trabalho pedagógico realizado na pré-escola precisa oferecer às crianças o contato com a leitura e a escrita. No entanto, a autora adverte que esse contato precisa estar inserido em um contexto de aprendizagem em que a leitura e a escrita sejam utilizadas na plenitude de suas funções sociais.
Kramer e Abramovay (1985) defendem que a linguagem escrita se configure como uma das formas de representação e expressão no trabalho pedagógico realizado com a pré-escola, tendo como base o mesmo pressuposto defendido por Sampaio (1993): que a aprendizagem da leitura e da escrita tem, fundamentalmente, uma função social. As autoras também argumentam que as crianças das classes populares, muitas vezes, não têm, em seu cotidiano familiar, o mesmo convívio com o código escrito que ocorre nas classes médias; o que aumenta, e muito, a responsabilidade sobre a qualidade das experiências que lhes são oferecidas nas escolas públicas.
Garantir às crianças das classes populares a apropriação de novas linguagens, inclusive a linguagem escrita, que lhes possibilitem expressar suas formas de ser e estar no mundo, é um compromisso político. Nas palavras de Garcia,
[…] a função da educação infantil não é apenas de dar continuidade à aprendizagem da linguagem escrita, uma entre tantas linguagens, mas contribuir para que as crianças vivenciem as diferentes linguagens utilizadas na sociedade, aprendendo a ler estas linguagens e usá-las para se expressar – a linguagem corporal, a linguagem musical, a linguagem plástica, a linguagem televisiva, a linguagem cinematográfica, a linguagem fotográfica, a linguagem do vídeo, a linguagem da mímica, a linguagem teatral e, por que não, a linguagem da informática. (Garcia, 1993, p. 19).
Embora seja indiscutível a importância do trabalho pedagógico realizado na educação infantil para os processos formativos infantis, torna-se necessário alertar que a concepção de alfabetizar na pré-escola, que tem como ponto de partida a preparação das crianças para o ensino fundamental, empobrece as práticas pedagógicas e as relações vivenciadas nas instituições escolares. Em primeiro lugar, porque esse pressuposto tem como ponto de partida uma concepção universal de infância que enxerga crianças com o mesmo desenvolvimento e a mesma aprendizagem [9] . Crianças entendidas a partir de uma infância (no singular) que não aprendem por conta de justificativas individuais (isentando a qualidade da intervenção oferecida através do trabalho pedagógico realizado com elas). Em segundo lugar, um trabalho voltado para a alfabetização acaba por valorizar a linguagem escrita, o que pode acarretar um trabalho pedagógico restrito em relação às diferentes linguagens – inclusive a brincadeira, linguagem extremamente importante para potencializar o desenvolvimento infantil.
Aumentando a complexidade do debate sobre o uso da avaliação externa em larga escala nessa faixa etária, torna-se necessário sinalizar que não há consenso entre os pesquisadores da área de avaliação sobre o seu uso nas demais modalidades de ensino, tendo sido o assunto, inclusive, fruto de intenso debate (Bauer et al., 2015). Como discutido em seção anterior do texto, quando se pensou nessa possibilidade para a educação infantil, a intenção era avaliar as condições de oferta e de infraestrutura, não avaliar o desenvolvimento infantil.
Uma das críticas que surge a partir das avaliações externas em larga escala é que a “qualidade” do ensino tem sido usada como justificativa para ações que incentivam a terceirização da administração do sistema público, as parcerias público-privadas, os sistemas de apostilamento, entre outras (Louzada, 2017; Freitas, 2012), assim como produzem elementos importantes para a efetivação da regulação do trabalho docente (Louzada & Marques, 2015).
O cenário descrito até aqui se configurava, porém, antes da Covid-19. Diante das diferentes concepções e disputas sobre a avaliação na educação infantil, quais são os possíveis encaminhamentos a partir desse novo contexto?
E como fica a educação infantil no cenário provocado pela Covid-19?
De acordo com o site do Ministério da Saúde, a Covid-19 é uma doença “causada pelo Coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves [10] ”. Os sintomas da doença podem variar de um simples resfriado até uma pneumonia severa. A transmissão pode ocorrer por meio de: tosse, espirro, catarro, gotículas de saliva, aperto de mão e objetos ou superfícies contaminadas (como celulares, maçanetas e etc.).
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou pandemia [11] de Coronavírus. Diante de um cenário tão inusitado — pensamos que não seria exagero afirmar que nenhum de nós poderia imaginar algo parecido, talvez apenas os roteiristas da Indústria Cinematográfica de Hollywood — muitos desafios foram apresentados (e ainda se apresentam) à humanidade. No caso específico da área de educação, o principal desafio tem sido a impossibilidade de se manter aulas presenciais, levando em conta as formas de contágio da nova doença e a ausência de vacina ou medicamento efetivo para combatê-la. Tal cenário provocou a busca de alternativas para tamanho impasse, sendo uma dessas possibilidades o uso de aulas remotas para a educação básica e o ensino superior, em instituições públicas e privadas. A iniciativa, porém, tem sido alvo de acalorado debate, estando longe de alcançar consenso entre pais e responsáveis, crianças, estudantes, profissionais e pesquisadores da área.
Entendemos que enormes são os desafios que se colocam diante das instituições escolares no cenário da Covid-19, ainda mais levando-se em conta: a) as informações oscilantes sobre a doença, uma vez que até o final de 2019 era totalmente desconhecida; b) a não existência de experiências anteriores nesse quesito, considerando o seu ineditismo, que poderiam ajudar a buscar alternativas e soluções para o contexto; c) o futuro de incertezas. No caso da educação infantil, acrescentam-se a essa lista as especificidades do atendimento à faixa etária.
Até o momento de sistematização deste texto, dois documentos produzidos pelo CNE oferecem indicações para a educação brasileira no cenário pandêmico: o Parecer CNE/CP nº 5 (Brasil, 2020a) e o Parecer CNE/CP nº 11 (Brasil, 2020b).
O primeiro documento, aprovado parcialmente em 01/06, traz contribuições sobre a reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19. A redação do documento foi formulada, a partir de consulta pública, de edital publicado em 17 de abril de 2020 com essa finalidade. De acordo com o documento, “foram recebidas em torno de 400 contribuições provenientes de organizações representativas de órgãos públicos e privados de educação básica e superior, bem como de instituições de ensino e profissionais da área de educação, além de contribuições de pais e alunos da educação básica.” (Brasil, 2020a, p. 3).
O documento em questão salienta a necessidade de se “considerar as fragilidades e desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o cenário decorrente da pandemia em nosso país” ao se pensar ações e estratégias para o cenário educacional provocado pela Covid-19, assim como “as diferenças existentes em relação às condições de acesso ao mundo digital por parte dos estudantes e de suas famílias.” (Brasil, 2020a, p. 3), o longo período de suspensão das atividades educacionais em forma presencial e o impacto das medidas de isolamento social na aprendizagem dos/as estudantes.
Em relação à educação infantil, o documento destaca a inviabilidade de reposição de carga horária presencial no retorno às atividades escolares. Ressalta que algumas dificuldades encontradas nesse sentido se materializam na indisponibilidade de espaço físico, carência de profissionais para ampliação da jornada escolar diária e a impossibilidade de se quantificar em horas as experiências que as crianças pequenas terão em casa.
De acordo com o documento:
[…] sugere-se que as escolas possam desenvolver alguns materiais de orientação aos pais e responsáveis com atividades educativas de caráter eminentemente lúdico, recreativo, criativo e interativo, para realizarem com as crianças em casa, enquanto durar o período de emergência, garantindo, assim, atendimento essencial às crianças pequenas e evitando retrocessos cognitivos, corporais (ou físicos) e socioemocionais. Deste modo, em especial, evitaria a necessidade de reposição ou prorrogação do atendimento ao fim do período de emergência, acompanhando tão somente o mesmo fluxo das aulas da rede de ensino como um todo, quando do seu retorno. (Brasil, 2020a, p. 9).
Ainda de acordo com o documento, torna-se importante buscar uma “aproximação virtual” entre professores e familiares das crianças, com o uso de internet, celular ou mesmo atividades síncronas e assíncronas, para estreitar vínculos e viabilizar melhor orientação de pais e responsáveis na realização das atividades online com as crianças. Levando em conta que as mesmas aprendem e se desenvolvem, prioritariamente, brincando, tais atividades precisam estimular as crianças: a) de creche (0 a 3 anos): através de leitura de textos pelos pais, brincadeiras, jogos e músicas infantis; b) de pré–escola: através leitura de textos pelos pais ou responsáveis, desenho, brincadeira, jogos, músicas infantis e algumas atividades em meio digitais, além do estímulo para que elas possam estar envolvidas nas atividades rotineiras do espaço onde moram, transformando os momentos cotidianos em espaços de interação e aprendizagem.
Por fim, sobre a questão da avaliação, o documento se posiciona em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2010) e a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017a) na etapa da educação infantil, destacando que, nesse período, a avaliação deve ser “realizada para fins de acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”, assegurando-lhes “o direito de progressão, sem retenção.” (Brasil, 2020a, p. 10).
De acordo com o Parecer CNE/CP nº11 (Brasil, 2020b), aprovado parcialmente em 03/08, que oferece orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia, o retorno às atividades escolares demanda cautela e cuidados – não apenas em relação às questões sanitárias, mas também no que tange ao pedagógico. O documento salienta a especificidade do caso brasileiro no contexto pandêmico, uma vez que “[…] a pandemia surgiu em meio a uma crise de aprendizagem, que poderá ampliar ainda mais as desigualdades existentes.” (Brasil, 2020b, p. 3).
Em relação ao planejamento de ações para o retorno de atividades escolares presenciais, o documento argumenta que são necessárias ações de: a) acolhimento, para estudantes, familiares e profissionais, levando em conta o período extenso de isolamento social; b) avaliação diagnóstica, a fim de estabelecer intervenções a partir do que nomeia como “níveis de aprendizagem” dos/as estudantes; c) reorganização do espaço físico e adoção de medidas de higiene para evitar a contaminação comunitária da COVID-19.
Levando em conta que esse retorno precisará ser gradual e que um grupo de pessoas não poderá retornar com as demais quando o funcionamento escolar for viabilizado (profissionais, estudantes e familiares em grupo de risco e/ou com quadro de comorbidade), o documento prevê a continuidade das atividades remotas em conjunto com as atividades presenciais. Sinaliza que, entre as maiores dificuldades para a implementação das atividades não presenciais no contexto de pandemia, estão: a) indefinição das normativas dos respectivos sistemas públicos de ensino; b) dificuldades dos/as professores/as em lidar com as tecnologias e a falta de equipamento; c) inclusão digital. O documento ainda salienta ser necessária uma atenção especial às medidas de combate à evasão, como busca ativa de alunos/as e estratégias de avaliação, flexibilização curricular e recuperação de aprendizagens.
Sobre a questão da educação infantil, o documento apresenta as seguintes justificativas para que os/as estudantes mais novos sejam contemplados/as prioritariamente: a) liberar mão de obra para setores da economia formal e informal; b) a possibilidade de menor impacto nos serviços de transporte público, uma vez que as crianças menores costumam morar perto da escola; c) turmas menores, o que facilita a organização do espaço físico da sala de aula, levando em conta a necessidade de distanciamento; d) menor autonomia para desenvolver atividades não presenciais.
Cabe ressaltar que o posicionamento do CNE sobre a educação infantil é alvo de debate entre pesquisadores/as e profissionais que trabalham com as infâncias, pois há a preocupação com as seguintes questões: a) o contato físico entre profissionais e crianças, principalmente entre bebês e crianças bem pequenas; b) a restrição para o uso de telas na faixa etária atendida pela EI, de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria [12] ; c) o aumento da exclusão no que se refere ao atendimento às infâncias, uma vez que parcela significativa de crianças não tem acesso à rede e aos equipamentos digitais de qualidade. Em contrapartida, levando em conta que a entrada da etapa na educação básica é relativamente recente (Brasil, 1996), há a preocupação com a sua fragilidade diante do não atendimento remoto durante o período de suspensão das atividades presenciais.
Considerações finais
O cenário da educação infantil brasileira já se constituía como enorme desafio antes da pandemia. Diante do novo contexto, o desafio aumenta consideravelmente.
Existe o grande risco de se pensar a questão da pré-escolarização para a EI, ou seja, referendar o trabalho pedagógico na concepção de que é etapa preparatória para o ensino fundamental. Com a interrupção das atividades escolares presenciais, há a grande possibilidade de termos grandes problemas em relação à alfabetização, uma vez que esse já era um problema anterior ao contexto de pandemia — que tende a piorar por conta da impossibilidade de se ter encontros presenciais por um longo período, o que pode reforçar a importância da educação infantil como estratégia para enfrentamento do problema. Nesse sentido, fazemos nossas as palavras de Rosemberg sobre as políticas de avaliação pensadas para a infância: “[…] ao integrar a educação infantil, a política (ou sistema) de avaliação da educação básica deve adequar-se a especificidades dessa etapa da educação, bem como das crianças às quais se destina” (Rosemberg, 2013, p. 53). Mais do que nunca se torna necessário termos a clareza de quais são os objetivos e as finalidades para o trabalho realizado com essa faixa etária. Ainda não temos dados de pesquisa disponíveis sobre o período pandêmico para afirmar que isso acontecerá, mas não consideramos exagero afirmar que essa possibilidade existe, uma vez que já se colocava como uma questão antes que a Covid-19 despontasse no cenário internacional.
Precisamos aguardar as políticas que serão pensadas para dar conta da educação brasileira a partir de 2020. De antemão, pode-se afirmar que, mais do que nunca, será necessário promover uma ampla discussão coletiva para se pensar futuros encaminhamentos para todas as modalidades e etapas de ensino. Não há outra possibilidade para dar conta do enorme desafio que a doença coloca diante de nós que não seja uma ampla frente para se pensar a educação, formada por profissionais e pesquisadores da área, funcionários, familiares e estudantes.