O texto a seguir traz uma análise de como Itália [1] e Brasil [2] atuaram na crise sanitária que afetou o mundo em 2020, e também faz menção às crises que afetaram seus sistemas de educação infantil na história recente. Nosso objetivo é apresentar e examinar, com base em normas e leis nacionais produzidas pelos 2 países até o primeiro semestre de 2020, como esse processo ocorreu e conjecturar algumas das consequências na vida das crianças. E por que nos pareceu importante tratar dessa questão?
A Itália conquistou um lugar de destaque na comunidade internacional na educação da primeira infância, fruto de um específico contexto histórico, sociopolítico e econômico das regiões do Norte, principalmente na Emilia Romagna, onde se localiza a cidade de Reggio Emilia. Esta região desenvolveu o Reggio Approach, uma abordagem que deve ser entendida como uma inspiração, mas não um modelo, para se pensar a educação infantil, considerando suas instituições como “um atelier em que muitos aprendizes são bem-vindos não para copiar, mas para estudar, para entender e colocar em prática sua própria arte” (Mantovani, 2020, p. 17). São locais com sentido de comunidade, um trabalho pedagógico organizado a partir das experiências individuais e coletivas das crianças. As diretrizes educacionais, no lugar de disciplinas, são organizadas a partir de campos de experiências educativas como, por exemplo, corpo e movimento; discursos e palavras; espaço, ordem e medida; coisas, tempo e natureza; mensagens, formas e mídia; eu e outro (Faria, 2007).
A abordagem tem origem com o pedagogo Loris Malaguzzi, fundador do Gruppo Nazionale Nidi Infanzia (GNNI[3]), e com o centro internacional Reggio Children Approuch. Nesses 40 anos de atividade, o GNNI se consolidou como uma referência importante e colecionou experiências e saberes alimentando o debate pedagógico sobre a infância, criou alianças entre profissionais e pesquisadores, o que trouxe significado e valorização para as práticas pedagógicas através de pesquisas conduzidas em sinergia com o mundo acadêmico e os centros nacionais de pesquisa (GNNI, 2020a). São ideias e ações que ganharam corpo e movimento na sociedade italiana após a 2º Guerra Mundial, que passou a reivindicar direitos e respostas efetivas às necessidades individuais e coletivas na estrutura dos serviços existentes (Sgritta, 1990).
A experiência italiana de isolamento e de convivência com o vírus recolocou em pauta os desafios de manter em funcionamento sua educação infantil com qualidade – em que pese essa qualidade não ser a mesma nas regiões do Sul – considerando as crianças como sujeitos de direitos, como seres ativos, criativos e participativos.
No Brasil, pelos noticiários, acompanhamos as medidas de prevenção e controle da COVID-19, assim como as restrições impostas pela Itália na circulação de pessoas e no fechamento das escolas italianas, que rapidamente foram implementadas aqui, sobretudo nos grandes centros urbanos. Desde a retomada democrática, e a duras penas, a educação infantil brasileira vem reivindicando e conquistando direitos. Por aqui, as ideias italianas se difundiram a partir do reconhecimento da criança como sujeito de direito e da valorização da cultura da infância. Porém, com o golpe institucional que culminou na deposição da presidenta e ascensão de seu vice em 2016, a situação econômica, a crise política, a espetacularização moral e da luta contra a corrupção tomaram a cena nacional, aprofundando a polarização na sociedade (Henriques & Vasconcellos, 2020). Em 2019, foi eleito um governo de extrema-direita que, de forma aberta, tomou a infância como um dos pontos da disputa política. Sabemos que essa geração está mais exposta às misérias que assolam a sociedade brasileira, porém tem sido usada a partir de um viés ideológico reacionário, o qual aponta as crianças carentes de normas que protejam sua inocência e candura, rejeitando e retirando seu papel sociopolítico (Olarieta et al., 2020). Certamente, o debate aqui proposto, com base em leis e documentos oficiais de entidades nacionais, não se esgotará neste artigo, mas possibilitará outras e novas análises sobre momentos de crises que acometem as crianças, a infância e sua educação.
Pandemia com lockdown: como a Itália enfrentou os desafios de emergência sanitária e pedagógica
Inicialmente, para entender a situação vivida pela Itália, é necessário reconhecer que nesse país ocorreu, de fato, um verdadeiro lockdown (confinamento) no primeiro semestre de 2020, um rigoroso isolamento social com a proibição de livre trânsito de pessoas e o fechamento de grande parte do sistema produtivo, de serviços culturais e das escolas em todos os níveis.
A emergência sanitária da COVID-19 atingiu a Itália nos dias em que as instituições educacionais e escolares estavam fechadas devido à tradicional festa de Carnaval. Em relação à contenção e à gestão da emergência epidemiológica, em 23 de fevereiro de 2020, um primeiro Decreto Lei[4] (Itália, 2020a) estabeleceu, entre outras medidas, a suspensão temporária das atividades didáticas em todo o país. Posteriormente, seguiram-se outros 06 Decretos do Presidente do Conselho dos Ministros sobre a evolução da situação sanitária e, de acordo com o parecer do Comitê técnico científico do governo, determinou que se prolongasse, gradualmente, o fechamento dos serviços e das escolas em todos os níveis, devendo ser mantido até o final do ano letivo[5]. O que caracterizou a suspensão dos serviços educativos foi um grande clima de incerteza, agravado nas primeiras semanas pela perplexidade e pelos temores gerais do lockdown que abateram famílias e instituições, forçadas a enfrentar uma situação inédita do ponto de vista organizativo.
A suspensão das atividades educativas gerou graves problemas para as famílias, que se mantiveram no mais total confinamento para a gestão cotidiana das atividades dos próprios filhos. Para muitas delas, isso significou conciliar atividades escolares e trabalho a distância; para outras, cuidar de crianças com deficiência e dispensar atendimento diferenciado; para outras ainda, as condições de pobreza social, educativa e econômica determinaram evidentes problemáticas e riscos para os sujeitos mais frágeis. Vale ressaltar que a situação imposta agravou-se, ainda mais para as crianças, pois como um grupo social que é historicamente invisibilizado da cena pública – invisibilidade similar à exclusão –, incide sobre a infância a ausência de consideração sobre os impactos das decisões políticas (Sarmento, 2007). À emergência epidemiológica, então, se adicionava uma emergência pedagógica.
Entre a primeira e a segunda prorrogação do decreto de fechamento dos serviços educativos para a infância, foram tomadas as primeiras iniciativas por parte dos profissionais da educação voltadas à retomada dos contatos com as famílias e crianças em reclusão forçada. Essas iniciativas produziram uma sintonia com o que estava acontecendo em nível nacional, expressa, sobretudo, no desenho de um arco íris feito pelas crianças com a frase andrà tutto bene [6]. Nesse momento, de certa forma, as crianças se tornaram protagonistas na cena pandêmica ganhando “voz”, confirmando a ideia de que são agentes sociais ativos e criativos. Além disso, com sua participação inovadora e criativa na sociedade, elas não se limitaram a internalizar as normas socioculturais, mas ao se apropriarem das informações e dos conhecimentos do mundo adulto, contribuíram, ativamente, para a reprodução e as mudanças culturais (Corsaro, 2011). As crianças, assim, saíram do silêncio do interior de suas casas para o palco de suas sacadas e janelas a fim de difundir uma mensagem positiva que evidenciou a necessidade coletiva de símbolos para conter o medo e o desânimo de um país que, como o primeiro no Ocidente, encontrava-se enfrentando uma pandemia completamente desconhecida contra um vírus letal. Elas criaram e difundiram um símbolo para instigar coragem, para dar e se dar a indispensável força para combater a adversidade.
Superado o choque inicial, os profissionais da educação testaram múltiplas modalidades para atingir as famílias e as crianças, como por exemplo, utilizando o Whatsapp [7] para chamadas de vídeo, chat, email de grupo, páginas no Facebook [8], plataformas e/ou, simplesmente, contatos telefônicos. Os primeiros meses da pandemia foram caracterizados pelo empenho e pela vontade de coordenadores e professores realizarem atividades com os instrumentos e as competências que cada serviço podia dispor. Assistimos a um florescimento de propostas educativas: saudações personalizadas, diálogos com pequenos grupos, recordações de experiências contadas em vídeos ou imagens, canções e rimas infantis, inúmeras sugestões para atividades expressivas e criativas com o envolvimento dos pais, compartilhamento de vivências, criação de redes e atenção às necessidades das crianças, inclusive para aquelas que não puderam ser alcançadas com a conexão telemática. O confinamento induziu milhares de professores a enfrentar o desafio da relação com a tecnologia e desenvolver competências informatizadas para não deixar as crianças e as famílias sozinhas em um momento difícil e inquietante. Uma experiência de massa foi escrita, nascida de baixo e pela necessidade, um rico patrimônio de aprendizagem profissional que não será perdido. Fantasia e paixão se revelaram ingredientes fundamentais e, como escreveu eficazmente Raffaele Losa (2020), se não houvesse computadores, alguns professores teriam utilizado pombos correios.
A partir de então, pesquisas passaram a ser realizadas com pais, professores e crianças para analisar esse processo, que tem também seus pontos de crítica. Em carta aberta, professoras de pré-escolas da região da Ligúria relataram as inúmeras possibilidades de uma Educação a Distância (EAD), mas também apontaram problemas como, por exemplo, o fato de que no caso da educação infantil, a gestão e interpretação das atividades ficou a cargo das escolas e, muitas vezes, sob responsabilidade individual dos professores. Relataram, ainda, que nas escolas com uma reflexão pedagógica rica e tecnologia difundida, as respostas ao trabalho com EAD também eram ricas, entretanto, ao contrário, em escolas com contexto educativo menos ativo, foram encontradas respostas mais pobres (GNNI, 2020b).
A cobrança por mais atenção às questões relacionadas à educação infantil foi também pauta permanente do GNNI que, desde o início da pandemia, destacou que a difusão da COVID-19 foi geradora de grande dificuldade social e relacional, além de sanitária e econômica. A associação, através de sua página na Internet, manteve contato com a comunidade da educação para a primeira infância por meio de comunicados, documentos e contribuições, chamando a atenção para o fato do não cumprimento do direito à educação das crianças e da necessidade de as autoridades discutirem com mais rapidez a reabertura das escolas de educação infantil. Foi destacado, ainda, que a ripartenza, isto é, o reinício das aulas, não deveria considerar apenas as exigências sanitárias, mas também as características específicas da educação para a primeira infância e, principalmente, que as crianças fossem ouvidas e as relações recuperadas após longos meses de distância (GNNI, 2020c).
Dar voz aos invisíveis: o desafio da pedagogia da proximidade
Na Itália, a Lei nº. 107, Buona Scuola, de 2015 e, posteriormente, o Decreto 65, de 2017 (Itália, 2020b, 2020c, 2020d), criaram o Sistema integrato di educazione e di istruzione dalla nascita ai sei anni (Sistema integrado de educação e instrução do nascimento aos seis anos), reconhecendo a Recomendação da Comissão Europeia, que ressalta como obrigatório o direito ao cuidado e à educação desde o início da vida e a importância de garantir o direito das crianças de frequentar serviços de alta qualidade para o bom desenvolvimento da aprendizagem permanente, da integração social e do desenvolvimento pessoal. Numerosas pesquisas internacionais relacionam a frequência a serviços de elevada qualidade para a infância ao alcance de resultados, notavelmente, superiores em testes de competências de base. O que evidenciam estes estudos sistemáticos de modo relevante é o impacto na redução das desigualdades, já que a experiência educativa e escolar de qualidade tem um impacto significativo sobre as crianças que vêm de famílias socialmente vulneráveis (Messetti, 2018).
Além do reconhecimento do valor educativo dos serviços dedicados à primeira infância, a lei, com os decretos que a atualizam, tem o objetivo de implementar a difusão sobre todo o território nacional e superar a descontinuidade entre as duas instituições que acolhem as crianças em idade pré-escolar – Nido d’infanzia (creche) de 0 a 3 anos e Scuola dell’infanzia (pré-escola) de 3 a 6 anos.
Na Itália, existia uma histórica separação entre as creches de responsabilidade das regiões, dos municípios e ministérios voltados para a assistência social e as pré-escolas de responsabilidade do governo federal e dos municípios. Somente a partir do Decreto nº. 65 (Itália, 2017) o atendimento de 0 a 3 anos passou a fazer parte da área de educação. O atendimento à criança de 0 a 3 anos é chamado de Servizi per la prima infanzia (Serviços para a primeira infância), porque junto aos Nidi d’infanzia (creches), são articuladas outras modalidades de atendimento, como: Nidi d’infanzia e micronidi, que correspondem às nossas creches para crianças de 0 a 3 anos; Sezioni primavera, para crianças de 24 a 36 meses, que contam com atividades específicas de cuidado e educação; Spazi gioco, espaços que atendem crianças entre 12 e 36 meses; Centri per bambini e famiglie, centros que recebem crianças e famílias em diferentes atividades; Servizi educativi in contesto domiciliare, atendem as crianças de 3 a 36 meses na casa da educadora. As crianças de 3 a 6 anos frequentam as Scuole dell’infanzia, que correspondem as nossas pré-escolas.
Dentro deste quadro normativo, a Commissione Nazionale per il Sistema Integrato zerosei, Decreto Lei nº. 65 (Itália, 2017), manteve o trabalho para a definição de novas perspectivas organizativas e de gestão e para fornecer indicações e diretrizes para os serviços educativos e de educação de qualidade. Nos meses da pandemia, a Comissão elaborou orientações pedagógicas, colhendo as boas práticas realizadas pelos profissionais da educação e docentes de todo o território nacional no período de fechamento dos serviços. O objetivo do documento, que tem o título de Orientamenti pedagogici sui LEAD: Legami Educativi a Distanza. Un modo diverso per “fare” nido e scuola dell’infanzia (Diretrizes Pedagógicas sobre os LEAD: Laços Educativos a Distância. Um modo diferente para “fazer” creche e a pré-escola) (Itália[9], 2020e) é a valorização do trabalho feito para instaurar e criar, com as crianças e os pais, relações educativas a distância, promover novos conhecimentos profissionais e prefigurar um pensamento positivo em vista da reabertura das estruturas.
Não sem propósito, a escolha da sigla LEAD Legami Educativi a Distanza (Laços Educativos a Distância) destaca a especificidade deste seguimento da educação, diferenciando-o de outras etapas escolares, que propuseram a Didática a Distância. A dimensão educativa na infância, de fato, tem uma forte conotação relacional e afetiva e por isso as ligações (laços) assumem uma função de importância vital. Portanto, os LEAD não devem em hipótese alguma substituir os serviços presenciais. A primeira exigência, depois do primeiro momento de desorientação do lockdown, foi de reconectar o fio interrompido das relações, restabelecê-lo e mantê-lo através de novas modalidades comunicativas. Com essa proposta, procurou-se criar laços entre professores e pais, entre professores e crianças, entre professores e colegas, entre crianças e entre pais, para alargar o horizonte cotidiano que, de repente, se tornou restrito, para replanejar ações educativas com sentido, para apoiar-se mutuamente e para alimentar a confiança.
O desafio dos laços a distância colocou em movimento a fantasia, a criatividade, a capacidade de adaptação dos educadores que se empenharam na realização de atividades, utilizando materiais e recursos frequentemente reciclados, objetos e instrumentos da própria casa, alavancando pensamentos divergentes e a paixão educativa. A desorientação inicial que caracterizou todos os lugares, todas as categorias de professores e todas as faixas de alunos cedeu lugar à iniciativa, à pesquisa de instrumentos e de meios mais adequados para reconstruir os contatos feitos de emoções, proximidades, olhares, vozes e cumplicidade que, até pouco tempo atrás, eram vividos no cotidiano de crianças, pais e profissionais da educação. A emergência requereu a superação das resistências e dos limites no uso das tecnologias. De dúvidas e temores iniciais, a improvisação transformou-se, aos poucos, em ação pensada e compartilhada no grupo educativo. Para muitos professores, o mergulhar nessa nova “aventura” teve o significado de experimentar o paradoxo entre proximidade e distância. O cuidado das relações e dos laços com as crianças e as famílias foi por alguns definida como pedagogia della vicinanza (pedagogia da proximidade) em contraposição à “didática a distância”.
Os LEAD se constituem em um ambiente virtual: é uma presença a distância, um paradoxo hoje tornado possível pela tecnologia. [...] O ambiente virtual não pode ser explorado com o corpo e o movimento, não permite o contato físico, o abraço, mas tem a potencialidade diversa que desfrutam sobretudo os canais visuais e auditivos, e pode oferecer estímulos para explorar o ambiente físico através dos outros sentidos e, como qualquer outro ambiente, possui regras de conduta. (Itália, 2020e, p. 02)
No documento, vem destacada a necessidade de renegociação das relações entre professores e pais e de fortalecimento do pacto educativo: os LEAD requerem, necessariamente, a mediação dos pais, que assumem um papel ativo de parceiros educativos. Precisam de sensibilidade, abertura ao diálogo e à discussão com os profissionais da educação, respeito aos papeis sociais e colaboração ativa de sua parte.
Segundo o documento, era necessário entrar nas casas “nas pontas dos pés”, negociar os momentos e os tempos, identificar juntos os instrumentos e as propostas mais adequadas. As experiências educativas deveriam ser propostas, não impostas. Chamadas de vídeo, conexões em pequenos grupos, por meio de plataformas didáticas para manter as relações fundamentais entre os pares e para as famílias que encontravam dificuldades com a modalidade sincrônica, mas dispunham de conexão com a Internet, poderiam enviar arquivos, carregar podcast (programas de vídeo ou áudio) ou vídeos e criar blogs (sites informativos). Nas situações em que não houvesse disponível algum dispositivo e conectividade, a ligação poderia ser mantida através do envio, periódico, de materiais, previamente preparados, como por exemplo, uma caixa com livros, lápis de cor e outros materiais escolares, com o pedido de restituição por parte da criança de desenhos, pequenos objetos, histórias contadas e/ou escritas pelos pais. Um outro ponto importante que o documento observa é a inclusão:
Os LEAD são para todos, incluídas as crianças de famílias que não falam bem a língua italiana, que pertencem a contextos desfavorecidos do ponto de vista social, cultural e econômico, [...] que têm necessidades educativas normalmente especiais, a fim de evitar que a emergência sanitária gere desigualdades mais marcantes. O primeiro desafio, então, é aquele de dar voz aos invisíveis, rastrear os dispersos. (Itália, 2020e, p. 03)
Os meios possíveis eram inúmeros; os serviços poderiam e deveriam retomar os contatos com todas as famílias. A frase de Don Milani, non uno di memo [10], citada nessas Diretrizes, assumiu, no período da suspensão das atividades escolares, o significado de uma urgência obrigatória. Alarmados, os pediatras italianos relataram, repetidamente, em cartas abertas aos jornais, sobre os riscos mais sérios, como: agravamento do atraso educacional, situações de estresse familiar com consequente aumento da violência doméstica, a falta de apoio educacional para as crianças com deficiência e necessidades educativas especiais, a interrupção das ações de apoio às famílias, a falta de uma adequada alimentação para as crianças que vivem em situação de pobreza (agravadas ainda mais com a crise econômica) e o aumento do sofrimento psicológico causado pelo prolongado isolamento (Tomasello, 2020).
O trabalho educativo a distância evidenciou ainda mais a necessidade de atento planejamento e programação das atividades, para as quais se revelou o fundamental e apurado trabalho de equipe, reconstruindo as diferentes configurações. Ao traçar um projeto pedagógico, mesmo no caso de emergência, foi importante ter em conta que no seu centro deveria permanecer a experiência da brincadeira, ação didática indispensável à aprendizagem nesta faixa de idade. Foram relatadas algumas experiências e uma seleção de sites de agências educativas qualificadas das quais despontaram um bom planejamento de percursos. Entre as boas práticas que o documento retoma está a valorização das conquistas das crianças. As suas aprendizagens, embora diferentes daquelas que teriam realizado frequentando os serviços educativos, não foram menos importantes e significativas. Nesta fase, também foram necessárias considerar a previsão de formas de documentação e avaliação das conquistas das crianças e de seus progressos com a necessária sinergia entre professores e pais. Além de tudo, foi destacada a importância de conversar com as crianças e esclarecer para elas sobre o que estava acontecendo, utilizando uma linguagem adequada à idade delas e prestando muita atenção às suas respostas e perguntas.
Os serviços educativos da infância, no momento de distanciamento social, revelaram-se as únicas instituições aptas a garantir e manter o sentido de comunidade para as crianças e as famílias, que tiveram a oportunidade de continuar as relações educativas sem a presença ativa dos profissionais da educação.
A abertura dos serviços: uma orientação nacional que considera contextos locais
Diferente de alguns países europeus que optaram por uma abertura gradual dos serviços já durante o ano escolar em curso, a Itália decidiu prorrogar a suspensão até o final das férias de verão e, portanto, adiando-a para o novo ano letivo. Provavelmente, foi o país que primeiro foi atingido e o último a reabrir as escolas. Não foi fácil essa decisão, porque existe um consenso internacional sobre as potenciais implicações sociais e psicológicas de um prolongado fechamento dos serviços educativos e escolares, que o Presidente da República, Sergio Mattarella, definiu como una ferita che riguarda tutti [11]. Já em abril, um documento das Nações Unidas chamava a atenção para os efeitos colaterais do lockdown, pois se as implicações clínicas da COVID-19 sobre as crianças são muito menos severas do que em outras faixas de idade, para elas, a reclusão forçada pode ser desastrosa e trazer consequências negativas permanentes para seu desenvolvimento. Assim, é necessário que haja solidariedade internacional em favor das crianças e da humanidade, bem como apoio às famílias, e organização de serviços de saúde e assistência pelos governos que mitiguem essas consequências (United Nations, 2020).
A reabertura dos serviços educativos e das escolas, que aconteceu em condições de segurança sanitária a partir de setembro de 2020, trouxe complexos problemas organizacionais relacionados ao uso do espaço, aos profissionais da educação e às atividades realizadas.
Segundo a senadora, pedagoga e docente universitária Vanna Iori (2020), as palavras-chave da reabertura dos serviços foram: experimentação, temporariedade, territorialidade. Experimentação porque a situação em que os italianos se encontravam era completamente nova: muitos pesquisadores da área sanitária naqueles meses repetiram, como um mantra, que “nada será como antes”, então as soluções conhecidas e consolidadas poderiam representar uma orientação para identificar as prioridades e as condições, no sentido de definir as propostas educativas para as crianças, que deveriam ser planejadas do zero e conduzidas segundo esse princípio da experimentação. Temporariedade visto que o futuro é incerto, a situação neste ano de 2020 poderia perdurar ou modificar-se muitas vezes, as escolhas não poderiam ser consideradas definitivas. Territorialidade para favorecer a reabertura onde as condições sanitárias permitissem, diferenciando escolhas, propostas e investimentos de acordo com as diversas situações e recursos locais. Para garantir as condições de segurança de cada experimentação, seria necessária uma perspectiva pública, integrada e coordenada, um compartilhamento geral de modalidades e práticas definindo critérios de funcionamento e controles. Sobre este aspecto, o GNNI (2020c) defendeu a abertura dos serviços subordinada à definição tanto de um protocolo sanitário, indicando as condições e os procedimentos para a ação, como um protocolo territorial, com o envolvimento de entes locais, serviços sócio-sanitários e entidades do terceiro setor, além do apoio de um pensamento pedagógico para a reabertura.
No final de julho, foi divulgado um documento após uma mesa nacional de discussões entre o governo, entidades da sociedade civil e especialistas da área sanitária. O Documento di indirizzo e orientamento per la ripresa delle attività in presenza dei servizi educativi e delle scuole dell’infanzia (Documento de diretriz e orientação para reinício das atividades presenciais nos serviços educativos e nas pré-escolas) (Itália, 2020f) apresentou pontos relacionados a espaços, gestão, profissionais e recomendações sanitárias. Foi um documento de referência nacional e implementado pelas regiões e pelos municípios no retorno às atividades.
Posteriormente, foi assinado, com os sindicatos, o documento Protocollo d’intesa per garantire l’avvio dell’anno scolastico nel rispetto delle regole di sicurezza per il contenimento della difusione di COVID 19 (Protocolo de intenção para garantir o início do ano escolar em cumprimento às regras de segurança para contenção da difusão da COVID 19) (Itália, 2020g), com uma série de normas de segurança no retorno ao trabalho dos profissionais. Também foi criada uma mesa de discussão nacional composta por representantes do Ministério da Educação, das organizações sindicais e com os escritórios de educação regionais para gerir e monitorar o andamento da situação.
Grande parte dos documentos e especialistas que trataram da reabertura dos serviços propôs o tema do reforço das intervenções extraordinárias de apoio aos pais (trabalhadores ou não), porque a pandemia colocou em dura prova as famílias, principalmente, aquelas em maiores dificuldades econômicas, resultante da perda de trabalho ou de condição de pobreza já anteriormente existente.
Enfim, mas não por último e não menos importante, mencionamos o documento Costruire una visione eco sostenibile del mondo: un’urgenza educativa sin dallo 6 (Construir uma visão ecossustentável do mundo: uma urgência educativa desde os 6) (Ciabotti et al., 2020), que o grupo green do GNNI enviou à Comissão ministerial e que elaborou as diretrizes nacionais de 0 a 6. As autoras chamam atenção para a relação criança/natureza nos projetos de reabertura dos serviços, esperando que a escolha não seja ditada somente pelas exigências da contenção do contágio. A pandemia de COVID-19 recolocou, com urgência, a necessidade de se interrogar sobre a relação homem/natureza, que do ponto de vista educacional, significa restabelecer, imediatamente, pensamento e planejamento naturais de modo estrutural e não conjuntural.
A educação na natureza tem inúmeras potencialidade para favorecer nas crianças o aprendizado experiencial e autêntico [...] e se insere de maneira coerente em um quadro mais amplo da educação para a sustentabilidade ambiental visando experimentar desde o nascimento uma relação emotiva e de pertencimento fundamental para desenvolver sentimentos e atitudes de consciência, responsabilidade, amor e cuidado nas relações com o ambiente degradado pela ação humana, que perdurarão por todo o curso da vida. (Ciabotti et al., 2020, s/p)
Apesar de tudo, a oportunidade que a crise pandêmica oferece é a de promover uma educação desde o nascimento ecologicamente orientada para reequilibrar a relação entre o homem e a natureza, que não seja apenas de exploração e opressão, uma inversão de paradigma que pode acontecer somente iniciando viver experiências de contato com a natureza e respeito por ela desde a mais tenra idade.
Considerando que a maioria dos especialistas alerta que a convivência com o vírus não será breve, cabe a toda sociedade (re)pensar novos modos de vivência sem, no entanto, silenciar os mais frágeis ou desconsiderá-los nos processos de mobilização e organização social no combate ao contágio. Que as crianças sejam consideradas e escutadas.
Brasil em meio à pandemia: quando a crise é uma constante para as crianças e a educação infantil
Primeiramente, para entender a crise pandêmica no Brasil, é necessário compreender que, no decurso da história da infância, da criança e da educação infantil brasileira, sempre foram e são muitos os anacronismos, devaneios e avanços que as configuram, em razão da sua heterogeneidade e variabilidade. Portanto queremos aqui ressaltar que houve conquistas para a infância, mas a pandemia veio a confirmar que a crise sempre foi uma constante para essa geração. E será por meio de documentos de entidades nacionais e leis aprovadas até o primeiro semestre de 2020 em âmbito federal para a infância e as crianças que nossas críticas estarão fundamentadas.
Consideramos válido, assim sendo, iniciar nossa análise relembrando que uma das principais conquistas de direitos para essa geração veio com a abertura política, o fim do regime militar e a promulgação da Constituição Cidadã, expressa sobretudo no artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Brasil, 1988, s.p. – grifos próprios)
Esse artigo é importante pois, pela primeira vez, garantiu às crianças a primazia, plena e irrestrita no cenário nacional. É importante frisar que as crianças e a infância estão inseridas em um jogo político-econômico-ideológico desordenado entre marginalizações, recusas, paternalismo e/ou estigmas que as consideram e confrontam a partir de idades, questões racial e de gênero, classe social e localização geográfica, para citar alguns parâmetros que interferem em demasia no modo como cada geração se relaciona e entende, assim como naquilo que lhe é ofertado e de direito.
Essa é uma história complexa e constituída por diferentes elementos, a começar pela dimensão do país, pela pobreza e exploração humana que nos acomete, pelas diferenças e desigualdades marcadas por questões culturais, sociais e econômicas, pela evasão de recursos e constante luta para uma dotação orçamentária destinada às políticas sociais. Para além disso, ainda é preciso estar em permanente atenção às afrontas de políticas nefastas de governos que, por vezes, postergaram ou desconsideram uma política de Estado que realmente afirme a absoluta prioridade para a infância.
Na educação infantil brasileira, a luta tem sido hercúlea pela legítima garantia do direito à educação das crianças de 0 a 5 anos. Rosemberg (2002; 2010) apresenta as tensões vividas para a constituição dessa etapa, a começar pela década de 1970, quando as crianças pequenas eram de responsabilidade apenas das famílias. As instituições estatais atuavam, notadamente, no cuidado daquelas que eram necessitadas, órfãs e abandonadas, portanto as crianças eram consideradas um problema social. Entretanto, nesse ínterim, há o despertar dos movimentos sociais que trouxeram o tema da educação da infância para a agenda das reivindicações, em correlação à ampliação do mercado de trabalho feminino. Já nos anos 1980, houve pressões, em diferentes sentidos, para a continuidade da expansão da educação infantil, porém esse foi seguido por um modelo “a baixo custo”, ou seja, uma política com propostas de educação com a função preparatória e compensatória para resolver problemas estruturais, além de subterfúgios para acobertar a divisão da sociedade de classe (Abramovay & Kramer, 1991). Portanto foi longo o processo até se ter consciência social do direito das crianças pequenas à educação e do direito de assistência aos filhos e às filhas de mães e pais trabalhadores, como postulado na Constituição de 1988 (Rosemberg, 2002).
Com a promulgação constitucional, iniciou-se outros longos debates e embates para o encaminhamento da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Brasil, 1996); à elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), com a primeira aprovação em 1998 (Brasil, 1999); à integração de creche e pré-escola como a primeira etapa da educação básica; e à organização e ao financiamento da educação infantil através do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), (Brasil, 2007). Foram muitas as demandas necessárias para esclarecer que a infância necessita de uma rede de proteção, provisão e que conte com sua participação, além, é claro, de recursos e investimentos em capital material e humano basilares para mudanças na estrutura social.
Algo importante conquistado, ao longo desse processo foi o reconhecimento da educação infantil como um dos espaços da infância e a primeira etapa da Educação Básica. Mesmo que essa ordenação tenha sido dada pelos adultos, é nesse espaço que as crianças desenvolvem uma cultura da infância, assim como suas identidades pessoal e coletiva a partir de interações, relações e práticas orientadas pela brincadeira, imaginação, fantasia, desejos, aprendizagens, observações, experimentações, narrações e questionamentos, construindo sentidos sobre a natureza e a sociedade (Brasil, 2009). Esse é um espaço que busca articular as experiências e os saberes das crianças aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, promovendo, assim, o desenvolvimento delas (Brasil, 2009).
Fizemos essa análise do caso brasileiro pautada na sua legislação nacional para indicar a relevância da educação infantil para as crianças e também para evidenciar que a crise sempre foi uma constante para essa geração. Jens Qvortrup (2011; 2014) chama a atenção para o fato de que, nas crises, são ampliadas as problemáticas que afetam a vida das crianças pois, como já assinalamos, a infância é minoritária e invisível. Ademais, corroboramos Sgritta (1997) em sua afirmação de que as crianças são cidadãs de segunda ordem, são consideradas menores, não são titulares dos seus direitos, não têm representação direta nas instâncias sociais, são qualificadas como de domínio de um adulto e, em geral, entende-se que só quando se tornarem adultos passarão a ter direitos de um cidadão de fato.
Atualmente, o argumento da proteção infantil volta a servir para desqualificar, desconstruir e não se fazer cumprir as contribuições e produções do campo da infância, assim como as conquistas legais para o campo da educação e da educação infantil brasileira, recolocando-a na perspectiva de uma estratégia assistencialista. Essa constatação foi denunciada, no início da pandemia, por meio do Boletim da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa (ANPED), intitulado “As crianças em tempos de crise” (Souza et al., 2020), o qual avalia que o campo da infância tem padecido com a negação da ciência e dos direitos das crianças duramente conquistados. Ademais, é notória a acentuação das desigualdades sociais no Brasil provocada pelo declínio econômico, o que eleva à situação de vulnerabilidade as crianças, assim como apontam as autoras:
Esta composição de crise humanitária, sanitária, econômica-social e política suscita, ao nosso juízo, uma preocupação com a invisibilidade das crianças e das experiências de suas infâncias. E, no caso da Educação Infantil, a invisibilidade que o atual governo confere à creche (educação de 0 a 3 anos) e o lugar de etapa preparatória designada à pré-escola, compõe novos desafios em tempos de pandemia do COVID-19, no qual as crianças pequenas estão sendo incluídas nas atividades remotas, nomeadas inadequadamente de Educação a Distância-EAD. (Souza et al., 2020, s.p.)
Como se constatou, a crise sanitária a que fomos acometidos, neste ano de 2020, é uma das piores, pois se somou à crise estrutural (política, econômica e ideológica-reacionária), que já vinha causando enormes prejuízos à infância, além de atentar contra a vida.
Resistentes ao conhecimento científico, as ações do atual governo federal dificultaram o acesso a informações e ampliaram o ambiente de conflito político e o crescimento do autoritarismo, disputando narrativas que sustentaram propostas antagônicas para enfrentar a crise (Henriques & Vasconcellos, 2020). “Sem que medidas obrigatórias de restrição a atividades fossem tomadas pelo governo federal, governadores agiram isoladamente[12]” (Henriques & Vasconcellos, 2020, p. 32). Aos poucos, a partir de março de 2020, cada Estado da federação decretou o fechamento das escolas de educação infantil como medida sanitária para preservação da vida. Aqui, como na Itália, a pandemia da COVID-19 trouxe uma particularidade às crianças que passaram de grupo de risco para grupo vetor assintomático, podendo transmitir a doença e, portanto, passaram de “sujeito vulnerável à sujeito perigoso” (Santana et al., 2020, p. 226). Mesmo com poucos estudos sobre o papel das crianças como vetores da doença (Ratier, 2020), as crianças brasileiras foram confinadas e/ou subtraídas do cenário sociopolítico.
Diferentemente de outros países, foi apenas em 1º de abril que o governo federal sancionou a primeira Medida Provisória nº 934/2020 (Brasil, 2020a, s.p.), que estabeleceu normas excepcionais sobre o ano letivo, ficando a educação básica dispensada da “obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar [...] desde que cumprida a carga horária mínima anual estabelecida nos referidos dispositivos”. Em 28 de abril, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou a “Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19” (Brasil, 2020b). O documento indica que o período de suspensão das atividades escolares foi definido por meio de decretos[13] de cada Estado e Município, cabendo a cada sistema educacional encontrar a melhor solução para seu caso particular, contanto que de acordo com o disposto na lei. Para as escolas de educação infantil, o documento sugere:
[...] desenvolver alguns materiais de orientações aos pais ou responsáveis com atividades educativas de caráter eminentemente lúdico, recreativo, criativo e interativo, para realizarem com as crianças em casa, enquanto durar o período de emergência, garantindo, assim, atendimento essencial às crianças pequenas e evitando retrocessos cognitivos, corporais (ou físicos) e socioemocionais. Deste modo em especial, evitaria a necessidade de reposição ou prorrogação do atendimento ao fim do período de emergência, acompanhando tão somente o mesmo fluxo das aulas da rede de ensino como um todo, quando do seu retorno. (Brasil, 2020b, p. 10)
Entre as propostas de atividades, o documento recomenda a utilização de materiais do Ministério da Educação (MEC), mas sem especificar quais, e tampouco articula um debate com as universidades, a sociedade civil e os órgãos competentes. Assim, indica:
[...] para crianças das creches (0 a 3 anos), as orientações para os pais devem indicar atividades de estímulo às crianças, leitura de textos pelos pais, brincadeiras, jogos e músicas infantis. Para auxiliar pais ou responsáveis que não têm fluência na leitura, sugere-se que as escolas ofereçam aos cuidadores algum tipo de orientação concreta, como modelos de leitura em voz alta em vídeo ou áudio, para engajar as crianças pequenas nas atividades e garantir a qualidade da leitura.
Já para as crianças da pré-escola (4 e 5 anos), as orientações devem indicar, da mesma forma, atividades de estímulo às crianças, leitura de textos pelos pais ou responsáveis, desenho, brincadeiras, jogos, músicas infantis e algumas atividades em meios digitais quando for possível. A ênfase deve ser em proporcionar brincadeiras, conversas, jogos, desenhos, entre outras para os pais ou responsáveis desenvolverem com as crianças. As escolas e redes podem também orientar as famílias a estimular e criar condições para que as crianças sejam envolvidas nas atividades rotineiras, transformando os momentos cotidianos em espaços de interação e aprendizagem. Além de fortalecer o vínculo, este tempo em que as crianças estão em casa pode potencializar dimensões do desenvolvimento infantil e trazer ganhos cognitivos, afetivos e de sociabilidade. (Brasil, 2020b, p. 11 – grifo no original)
Duas questões aqui se colocam: em primeiro lugar, é preciso ter claro que o aprender e o ensinar não se dão de forma separada, não é algo simples e requer conhecimento àquele que ensina, portanto não se trata de apenas seguir um roteiro, ou uma prescrição. O ensinante não deve se aventurar “a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe” (Freire, 2001, p. 259); em segundo lugar, devido às desigualdades que compõem a sociedade brasileira, são vários os desafios que este momento nos coloca e, para além da tão-só aprendizagem, precisamos pensá-los no coletivo, com as crianças, com os responsáveis, as professoras e em articulação com os problemas anteriores à crise sanitária. Desse modo, antes de elaborar decretos e medidas educacionais, devemos nos perguntar: como as diversas infâncias têm vivido esse momento? Como tem sido a rotina das crianças? Quais infâncias foram esquecidas, estão sendo reprimidas ou constrangidas? Como as crianças têm interpretado as ações das suas famílias sobre seu cuidado e educação? Como elas percebem a questão econômica que afeta a sua casa? E aquelas que perderam seus parentes, como lidam com a morte? Onde as crianças estão? O que elas pensam a respeito do confinamento social? E o que pensam os adultos envolvidos com as crianças? Quais são suas condições de trabalho e de vida doméstica para atuarem com elas?
Para estas e tantas outras perguntas que também não temos respostas, um caminho inicial seria saber as condições de vida das crianças, para que a rede de sustentabilidade da infância possa traçar um cenário menos nocivo para todos os envolvidos, pois apenas falar delas de forma abstrata, como indicado nos documentos, é uma das vias para inviabilizar e invisibilizar heterogeneidades e desigualdades (Llobet, 2020).
Em 7 de julho de 2020, foi publicado um novo parecer do CNE com “Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia” (Brasil, 2020c). Sem indicar um cronograma, visto que isso ficou a ser estabelecido por decretos estaduais e municipais, o CNE recomenda aos sistemas e às organizações educacionais o desenvolvimento de planos para a continuidade da implementação do calendário escolar de 2020-2021. Apoiado em estudos, principalmente, de entidades privadas[14] e internacionais[15], o documento sugere um retorno gradual iniciado com a educação infantil “devido à falta de maturidade desses alunos para atividades não presenciais e da necessidade de os pais voltarem ao trabalho” (Brasil, 2020c, p. 14).
Como já dito, é um tempo de crise e incerteza, mas mesmo diante do caos, novamente sugerimos que esse seja um tempo guiado para a escuta e o cuidado do outro, para conhecer, contemplar e exercer a solidariedade e a responsabilidade. São ações que deveriam estar na pauta dos pareceres e das orientações para guiar os debates nas escolas antes de se pensar na educação remota, online e/ou do ensino a distância (EaD). De modo urgente, é preciso mais uma vez reapresentar o sentido da educação infantil. O Manifesto da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa (ANPED, 2020), “Educação a distância na educação infantil, não!”, referenda a improbidade da modalidade EaD para essa etapa, visto que seus eixos norteadores estão pautados na brincadeira e interação. O documento destaca que a educação infantil e a educação das crianças de até 10 anos não são feitas de arranjos emergenciais, portanto, exige:
[...] planejamento governamental (em regime de colaboração federativa) e intragovernamental (diferentes setores de políticas públicas) nos estados, Distrito Federal e, sobretudo, nos municípios.
O cenário requer ampla discussão e proposição de políticas que não podem ser improvisadas ou reduzidas a meras atividades conteudistas mediadas pela tecnologia, sob uma máscara de inovação. Cabe ao setor público atuar com responsabilidade frente a estas questões, incluindo-se aqui os Conselhos Municipais e Estaduais de Educação, os Conselhos Tutelares e de Direito, o Ministério Público e os Tribunais de Contas, órgãos e instâncias aos quais cabe contribuir para o controle social das instituições privadas e públicas visando à garantia dos preceitos legais referentes aos direitos das crianças e de suas famílias. (ANPED, 2020, p. 3-4)
As “Recomendações do CONANDA para a Proteção Integral a Crianças e Adolescentes durante a Pandemia do COVID-19” (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2020) também assinalam que o Estado deve adotar medidas administrativas, legislativas e garantir investimentos públicos para a efetivação de políticas sociais que permitam condições dignas de existência e a promoção do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Das várias recomendações, destacamos:
A instauração de um plano de renda básica universal, garantindo que todas as famílias brasileiras estejam amparadas pelas políticas de assistência social de garantia do mínimo necessário para sobrevivência e convívio social, assim como condições de saúde e educação;
Evitar demissões e manter os salários dos trabalhadores domésticos e informais que se ocupam do cuidado de crianças e adolescentes; para que possam garantir condições dignas de alimentação, moradia e preservação da saúde das crianças e adolescentes sob seu cuidado;
Que crianças e adolescentes, inclusive as crianças com idade inferior a seis anos, têm o direito de estarem devidamente informados, com linguagem acessível, simples, consistente, de modo a fortalecer seu direito à participação, sua cidadania digital e o diálogo intergeracional;
Que seja garantida a continuidade da alimentação escolar, por meio de distribuição de refeições ou equivalente em dinheiro, correspondentes ao número normalmente realizadas na escola, a todos as/os alunas/os da rede pública, em âmbito federal, estadual e municipal, adotando as medidas necessárias para evitar o contágio (CONANDA, 2020, pp. 1-2).
É fundamental que, no Brasil, seja acionada uma rede que sustente a infância a fim de dar visibilidade às crianças e suas condições de vida, pois o limite é tênue para o aumento da desigualdade social que marca nosso país, para os retrocessos a problemas estruturais crônicos e para as saídas simplórias que acobertam a divisão da sociedade de classes, afetando todas as crianças e, de modo mais contundente, aquelas vulneráveis e marginalizadas.
Considerações finais
Com este artigo, buscamos mostrar, através da análise documental que, em períodos de crise, a rede de sustentabilidade – pautada nos campos como da educação, saúde, psicologia, do direito e serviço social – são basilares para garantir a tríade proteção, provisão e participação das crianças, sendo que essa organização deve se firmar no preceito da infância como prioridade da política de Estado. Sabemos que esse é um doloroso tempo de incerteza e perdas de todos os tipos, mas é preciso ter ciência de que as crianças devem continuar a estar no centro das proposições e devem ser consultadas. A prioridade na infância deve se manter, pois essa é uma geração minoritária pela condição desigual em que se encontra quando comparada a outros grupos. Como adverte Qvortrup (2011, p. 210), a infância é singularizada à parte da sociedade e tem um tratamento diferencial e desigual “em relação ao grupo dominante, que possui status social mais alto e maiores privilégios, isto é, nesse caso, os adultos”.
Respondendo à pergunta proposta no título desse artigo, o contexto de isolamento vivido pelas crianças italianas e brasileiras mostra caminhos que podem levar ao silenciamento delas. Todavia também apontamos que é possível estabelecer canais – virtuais ou não – de comunicação entre elas e delas com a sociedade. Como nos mostram experiências de diferentes países, entre eles a Itália, a escuta atenta e o diálogo com as crianças é o primeiro passo para a manutenção do processo educativo. Para além da proteção e provisão, também deve ser garantida a participação das crianças, sobretudo, naquilo que lhes diz respeito.