O mundo vive desde o ano de 2019 incertezas em todos os campos sociais, a partir do anúncio feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de uma cepa do coronavírus SARS-CoV-2, identificada na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Desde então, a covid-19 ocupa a agenda dos debates de líderes governamentais, cientistas, universidades e organizações mundiais, especificamente, sobre os impactos da pandemia na preservação da vida, da economia e de empregos em um cenário de recomposição das taxas de crescimento dos países, de alta do preço do petróleo, migrações e discussões climáticas, ambientais e sobre energias limpas.
Diante da perplexidade e do temor pela propagação da covid-19, governos, médicos sanitaristas, infectologistas e autoridades gestoras recomendaram a adoção de medidas restritivas da circulação de pessoas, fechamento de fronteiras entre países, trabalho remoto, cancelamento de atividades culturais e artísticas, e isolamento social que levou à interrupção de diversas atividades sociais. A educação foi uma das áreas afetadas, suscitando a discussão sobre as atribuições e funções do Estado para garantir e prover os direitos sociais, em especial os educacionais, durante crises como as pandêmicas. Nesse campo, evidenciou-se a desigualdade social e digital na garantia do acesso às tecnologias que viabilizassem o ensino-aprendizagem para milhares de crianças e adolescentes.
Ao mesmo tempo, na espreita, as gigantes big techs: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsolft (GAFAM), financistas e empresários da educação e do ensino atuam no contexto pandêmico encorajando governos nacionais a adotarem medidas para produção, circulação e consumo de mercadorias, equipamentos, plataformas e serviços, visto que educação e ensino foram elevados e inseridos nos negócios privados e competitivos com fins lucrativos. Nesse contexto, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no documento A framework to guide an education response to the COVID-19 Pandemic of 2020 (OCDE, 2020) indica fórmulas abstratas, destituídas da história local, para mitigar as fragilidades na aprendizagem dos estudantes que tiveram suspensas suas atividades escolares em todo o mundo.
Na busca de alternativas, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Ações Comunitárias (CENPEC), no documento Cenários da exclusão escolar no Brasil (UNICEF, 2021), discutem o agravamento da situação das crianças e adolescentes brasileiros sem acesso às tecnologias digitais e que tiveram infringido seu direito à educação. Ao mesmo tempo, as redes de ensino e escolas em todo o país buscam alternativas para assegurar o princípio constitucional prescrito no artigo 205:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Brasil, 1988, s.p.)
Bem como no artigo 208 que dispõe que:
[…] o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria. (Brasil, 1988, s.p.)
Ainda que o direito à educação esteja prescrito em lei, o Censo da Educação Básica (Educacenso) de 2019, registrou 47,9 milhões de matrículas nas 180.600 escolas de educação básica no Brasil e as dificuldades de acesso à internet nas escolas públicas de ensino fundamental com baixa cobertura nos estados do Acre, Amazonas, Maranhão e Pará (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2020, s.p.). Isso revelou a abissal desigualdade econômica e social brasileira concentrada em regiões historicamente excluídas de ações do Estado voltadas à melhoria da qualidade de vida da população e de acesso a serviços básicos como saúde e educação. Os dados revelam ainda, que quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola em 2019, um ano antes da pandemia, sendo a maioria com idade entre 4 e 5 anos (pré-escola) e 15 a 17 anos (ensino médio).
Essa realidade se tornou mais complexa com a pandemia. Em novembro de 2020, primeiro ano de registro da covid-19, identificou-se que no final do ano letivo, 5.075.294 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos estavam fora da escola ou sem acesso a atividades escolares. Esse número corresponde a 13,9% dessa população que declarou não frequentar a escola ou que frequentava a escola, mas não teve atividades escolares (UNICEF, 2021).
Em 17 de março de 2020, o Ministério da Educação por meio do Conselho Nacional de Educação publicou a Portaria n.º 343 que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia da covid-19. Importam os artigos relacionados à educação básica, como se segue:
Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor. […]
§ 2º Será de responsabilidade das instituições a definição das disciplinas que poderão ser substituídas, a disponibilização de ferramentas aos alunos que permitam o acompanhamento dos conteúdos ofertados bem como a realização de avaliações durante o período da autorização de que trata o caput.
Art. 2º, § 1º As atividades acadêmicas suspensas deverão ser integralmente repostas para fins de cumprimento dos dias letivos e horas-aulas estabelecidos na legislação em vigor.
§ 2º As instituições poderão, ainda, alterar o calendário de férias, desde que cumpram os dias letivos e horas-aula estabelecidos na legislação em vigor. (Brasil, 2020a, s.p.)
Dessa maneira, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de Educação (Parecer n.º 5/2020) dispôs sobre a reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da covid-19, prescrevendo que:
[…] as atividades pedagógicas não presenciais podem acontecer por meios digitais (videoaulas, conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem, redes sociais, correio eletrônico, blogs, entre outros); por meio de programas de televisão ou rádio; pela adoção de material didático impresso com orientações pedagógicas distribuído aos alunos e seus pais ou responsáveis; e pela orientação de leituras, projetos, pesquisas, atividades e exercícios indicados nos materiais didáticos. (Brasil, 2020b, p. 11)
Com as prerrogativas legais, os empresários dos setores de Educação, de Tecnologias e executivos das big techs aproximaram-se dos secretários de educação, reitores das universidades e diretores escolares apresentando tecnologias digitais, softwares, plataformas e programas para a retomada dos serviços educacionais online. De um lado, perfilaram as gigantes das empresas do setor de tecnologias da informação ávidas pela expansão e pelo potencial consumidor de tecnologias digitais, equipamentos e venda de serviços, e de outro, a viva memória das lutas dos movimentos sociais e associações acadêmicas e científicas que viam definhar o disposto na Constituição Federal de 1988. Os secretários e gestores da educação, cada um no seu nível de atuação, fizeram contratos, compraram pacotes e aderiram às plataformas e serviços comercializados pelas corporações empresariais. A corrida pela compra de tecnologias de informação e comunicação, de serviços de internet banda larga, tablets, softwares, celulares, linhas telefônicas, notebooks, microcomputadores, iphones irradiaram para todos os setores e abriram os mercados da cadeia produtiva – produção, circulação e consumo de objetos tecnológicos. No entanto, ela não atendeu igualmente às escolas públicas e privadas, excluindo crianças, adolescentes e jovens do acesso à educação escolarizada. Parte significativa da população, abrangendo cerca de 38 milhões de brasileiros estão em condições vulneráveis e continua excluída do acesso às tecnologias digitais.
Nessa conjuntura de desigualdade, as redes sociais ampliaram as formas de comunicação, informação e interatividade entre as pessoas, empresas, corporações e instituições educativas. O avanço da internet, o desenvolvimento das tecnologias digitais e o surgimento de redes interativas possibilitaram o acesso aos saberes e às informações, a outras formas de construir o conhecimento científico e tecnológico, de comunicar-se, de conectar-se e de manter relações sociais, de trabalho e de estudos.
A defesa, portanto, é pelo conhecimento e uso de tecnologias como resultado do trabalho humano. Essas são meios, instrumentos, ferramentas que possibilitam múltiplas linguagens, circulação e divulgação de códigos, métodos, gráficos, conhecimentos, descobertas, ampliação das formas de conexão, interação, articulação, comunicação e informação. As tecnologias são criações humanas e podem favorecer a vida humana, são veículos transmissores, que transportam coisas, objetos, produtos, artefatos, mas também, ideologias, valores, métodos, concepções, sistemas integrados e interligados, inteligência artificial.
Em face dessa realidade, e a partir de buscas por publicações científicas sobre a gripe espanhola que acometeu o mundo no início do século XX, identificou-se a ausência de estudos e pesquisas que tratem da oferta da educação, do trabalho escolar, da gestão e das práticas docentes durante aquela pandemia.
O dossiê Gestão educacional e trabalho pedagógico no contexto de pandemia resulta do compromisso de professores-pesquisadores do Brasil, Espanha e Portugal com a produção científica, histórica e de construção da memória de um dos mais traumáticos episódios da história sanitária mundial. Esses são diferentes olhares sobre realidades educacionais plurais com interesses em campos distintos e que se complementam no diálogo entre os articulistas em torno de temáticas como: escola e processos de ensino, aprendizagem e avaliação; a formação inicial e continuada de professores e o desenvolvimento da consciência crítica durante a pandemia; o protagonismo docente na adoção de práticas pedagógicas para incluir os alunos por meio das tecnologias existentes e metodologias ativas e de autorregulação da aprendizagem; a organização da oferta de atividades práticas no formato remoto emergencial em cursos de graduação como o estágio, um desafio enfrentado pelas universidades; a gestão neotecnológica da educação.
Esses artigos resultam de pesquisas científico-acadêmicas desenvolvidas por grupos de pesquisas e expressam diferentes concepções teórico-epistemológicas, múltiplas interpretações da educação na pandemia, e passam a integrar o conjunto de produções da Revista Linhas Críticas da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília - Brasil. Como registro científico e histórico, contemplam a diversidade institucional, regional e internacional que contribui para a produção de conhecimento sobre gestão educacional e trabalho pedagógico na pandemia da covid-19.