Introdução
A velocidade dos avanços tecnológicos e da complexidade dos desafios impostos ao mundo do trabalho aumenta a exigência por profissionais capazes de se adaptar a situações variadas e solucionar problemas cada vez mais complexos. Assim, o desenvolvimento das habilidades cognitivas é uma condição importante para a formação profissional. Dentro das possibilidades de desenvolvimento cognitivo, a habilidade espacial tem se mostrado um requisito para as áreas das ciências, tecnologia e engenharia (WAI; LUBINSKI; BENBOW, 2009).
Lohman (1994) define a habilidade espacial como a capacidade de gerar, manter, recuperar e transformar imagens visuais bem estruturadas (p. 1000)". Considerada pelo autor como uma das mais importantes habilidades humanas, pode ser segmentada em outras habilidades, em que cada uma enfatiza diferentes elementos do processo de geração, armazenamento, recuperação e transformação de imagens.
Sorby (1999) segmenta habilidade espacial em duas categorias: a orientação espacial, que é a capacidade que o indivíduo tem de se localizar no espaço; e a visualização espacial, que é a capacidade que o indivíduo tem de manipular imagens de objetos mentalmente. A visualização espacial, por sua vez, se divide em duas subcategorias: a transformação mental que seria a capacidade de manipular (montar, desmontar) o objeto mentalmente e a rotação mental, capacidade de rotacionar mentalmente um objeto.
Sorby (1999) cita ainda, que mais de 80 atividades profissionais utilizam-se da habilidade espacial. Já existem estudos que enfatizam a relação positiva entre habilidade espacial e desempenho profissional em áreas como engenharia, ciência da computação, matemática, física, medicina e odontologia (SORBY et al., 2005).
Considerando-se a área da engenharia, o profissional deve estar apto a estruturar processos graficamente e a solucionar problemas. Em geral, os engenheiros estão envolvidos em atividades relacionadas à gestão do processo produtivo, aos processos de melhoria dos produtos, à inovação e à pesquisa e desenvolvimento. Esses profissionais desempenham um papel importante para o desenvolvimento tecnológico. Por isso, existe uma tentativa de criar um ambiente favorável para o desenvolvimento da habilidade espacial desses profissionais (WAI; LUBINSKI; BENBOW, 2009).
Para Sternberg (2010), a capacidade de resolver problemas cada vez mais complexos está diretamente ligada com a capacidade que o profissional tem de interagir com outras áreas do conhecimento e, principalmente, ser criativo. Até o componente cognitivo da criatividade, segundo Kell et al. (2013), pode ter influência da habilidade espacial. Kell et al. (2013) realizaram uma pesquisa longitudinal, que começou, em 1976, com o recrutamento de 563 jovens na faixa etária de 13 anos. Testes específicos para medir a habilidade espacial foram realizados e os que tiveram as melhores pontuações foram escolhidos para a pesquisa. Após 30 anos, ou seja, no começo de 2012, os resultados foram mensurados. Os resultados demonstraram que, além de assumir um papel importante no aprendizado e na criatividade, a habilidade espacial também é fundamental para a produção de novas tecnologias e para a inovação.
Pensando na educação apropriada para a formação do engenheiro de 2020, Cardoso (2013-2014) sugere que:
a criação de um espaço lúdico, que alie a engenharia às artes e ao design, talvez seja a ação mais efetiva para a integração das engenharias às outras profissões, sendo esta a solução para acelerar o desabrochar do processo criativo e inovador do jovem estudante (p. 98).
Essa perspectiva pode ser bem aplicada à disciplina de desenho nos cursos de engenharia. O desenho é o meio pelo qual um engenheiro transmite os aspectos da forma e dimensões de partes e do todo, de objetos a serem construídos. No entanto, o que acaba acontecendo é que na disciplina de desenho, onde a habilidade espacial é importante, existe um grande número de alunos reprovados ou evadidos. Essa é uma realidade de várias instituições, como relatam Monice, Santos e Petreche (2003), Prieto e Velasco (2012) e Seabra (2009). Todos os autores pesquisados indicam a baixa habilidade espacial dos alunos como uma das causas de rendimento não satisfatório nas disciplinas de desenho.
Para estimular o desenvolvimento da habilidade espacial, muitas tecnologias podem ser exploradas a fim de instigar a aprendizagem de estudantes e profissionais das áreas de engenharia. Os jogos digitais aparecem como forte opção para alavancar o contexto educacional. A ludicidade dos jogos e o avanço dos recursos tecnológicos envolvem cada vez mais as pessoas, principalmente os jovens (COSTA; DUQUEVIZ; PEDROZA, 2015).
Para Sedeño (2010), os jogos digitais podem incentivar a concentração e o raciocínio estratégico aumentando os níveis de agilidade mental. Essas habilidades podem ser contextualizadas nas habilidades espaciais como, por exemplo, na capacidade de representação espacial, incluindo a compreensão da natureza sequencial do texto e a conexão entre as partes visuais.
Com base na suposição de que os jogos digitais podem trazer muitos benefícios para o desenvolvimento da habilidade espacial e considerando que as pesquisas com games necessitam aprimorar seus procedimentos metodológicos para o alcance de resultados mais precisos, nossa opção foi proceder a uma revisão de literatura. A revisão de literatura é uma prática importante para apreciação das contribuições e lacunas em determinado tema. Assim, o objetivo deste trabalho foi analisar o levantamento de pesquisas sobre a importância de jogos digitais para o desenvolvimento das habilidades espaciais.
Método
A pesquisa foi realizada utilizando a ferramenta de busca da Thomson Reuters, que buscou artigos em revistas internacionais indexadas na base de dados da Web of Science, publicado entre os anos de 2010 e 2015. A Thomson Reuters é uma empresa que nasceu em 2008 da junção da Thomson Corporation e da Reuters Group PLC. A empresa que trabalha com as mais recentes inovações tecnológicas, desenvolveu um sistema de pesquisa de artigos internacionais (THOMSON REUTERS, 2017).
A revisão de literatura usou palavras-chave como “spatial visualization” OR “spatial ability” OR “spatial skill” OR “mental-rotation” OR “spatial perception” AND “vídeo games” OR “serious game” OR “computer games” OR “online games”. Para a revisão foram definidos critérios, conforme a Tabela 1.
Critérios | Descrição | |
Tipo de pesquisa | Se a pesquisa foi experimental, survey, etc. | |
Amostra | Quais foram os participantes da pesquisa. | |
Pesquisa | Resultados | Quais os resultados principais. |
Área do conhecimento | Qual a área do conhecimento abordado na pesquisa. Ex.: Humanas, exatas, etc. | |
Jogo | Tipologia do jogo | Se quebra-cabeças, esportes, etc. |
Fonte: Autores
Com os artigos selecionados para a revisão e com os critérios definidos para a avaliação, foram realizadas tanto a análise qualitativa como também análise quantitativa (frequência absoluta) de acordo com o tipo de variável.
Resultados e discussão
Esta revisão de literatura identificou 44 artigos. A Figura 1 mostra a área de conhecimento dessas produções.
Na Figura 1, chama à atenção a constatação de apenas dois artigos na área de engenharia. Desses artigos, Uttal e Cohen (2012) encontraram melhoria no desempenho em disciplinas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), quando foi trabalhada a habilidade espacial dos alunos. Em contrapartida, Martin-Dorta et al. (2014) avaliaram a produção de um game e verificaram sua contribuição para o desenvolvimento da habilidade espacial de alunos iniciantes de engenharia. Esses resultados sugerem a possibilidade de ampliar as investigações na aplicação de jogos digitais nas engenharias.
A Tabela 2 caracteriza o método delineado nos artigos da revisão bibliográfica que adotamos, conforme mencionado pelo(s) autor(es) das obras.
Método dos Artigos | Frequência |
---|---|
Experimental | 21 |
Revisão | 6 |
Survey | 3 |
Meta-análise | 2 |
Estudo correlacional | 1 |
Não citado pelo autor | 11 |
Fonte: Autores
A Tabela 2 mostra que a maioria dos delineamentos foi caracterizado como método experimental. Dos artigos empíricos, buscou-se ainda identificar os participantes. A maioria era jovens adultos, acima de 18 anos (21 artigos). Os demais artigos obtiveram como amostra crianças até 12 anos (8 artigos), bem como adolescentes entre 12 e 18 anos (6 artigos).
Para Doyle, Voyer e Cherney (2012), Jirout e Newcombe (2015) e Lamb, Akmal e Petrie. (2015), o incentivo contínuo da habilidade espacial por meio de jogos, desde o início da escolarização, pode despertar o interesse para a carreira de engenharia e contribuir para o uso das habilidades espaciais nas etapas futuras do adulto ou profissional. Vale ressaltar que em todas as etapas do ciclo da vida, incluindo a velhice ou ainda pessoas com transtornos do desenvolvimento (CARDOSO-LEITE; BAVELIER, 2014), é possível promover intervenções com jogos digitais para o treino cognitivo.
Quanto ao foco das pesquisas experimentais, três artigos tratavam de criação de um novo jogo (HUNG et al, 2012; LIN; CHEN; LOU, 2014; MARTIN-DORTA et al, 2014). Apenas uma pesquisa experimental não encontrou resultados significativos ou não conseguiu confirmar sua hipótese (COLLINS; FREEMAN, 2014). A maioria mostra evidências positivas da aplicação dos jogos digitais para o desenvolvimento da habilidade cognitiva.
Os artigos com pesquisas descritivas do tipo survey verificaram diferenças no uso das habilidades cognitivas entre homens e mulheres (HALPERN; STRAIGHT; STEPHENSON, 2011; LOWRIE; JORGENSEN 2011; TERLECK et al., 2011).
Com o propósito de identificar os instrumentos de investigação da habilidade espacial, a Tabela 3 mostra os testes específicos encontrados em 30 artigos.
Testes ou Instrumentos de Investigação | Frequência |
---|---|
Mental Rotation Test - MRT | 8 |
The Paper Folding (VZ-2) | 3 |
Card Rotations Tests | 2 |
Wechsler Intelligence Scale for Children-IV (WISC-IV) | 2 |
Judgment of Line Orientation and Position-15 | 2 |
Water-level task | 2 |
Spatial Visualization Test | 1 |
Guilford-Zimmerman Spatial Orientation Test (GZSOT) | 1 |
Computerized Authentic Spatial Sense Test - CASST | 1 |
Perspective Taking Spatial Orientation Test (PTSOT) | 1 |
Spatial Anxiety Scale | 1 |
Bausteine-Test BST | 1 |
Intelligenz-Struktur-Test 2000R | 1 |
WPPSI-IV - Block design test | 1 |
The Spatial Inteligence Scale | 1 |
The Santa Barbara Sense of Direction Scale | 1 |
Purdue Spatial Visualization-Rotation Test (PSVT) | 1 |
Fonte: Autores
A Mental Rotation Test (MRT), dos autores Vandenberg e Kuse (1978), foi o instrumento mais usado como parte metodológica dos artigos revisados (BOWMAN et al., 2013;CHERNEY; BERSTED; SMETTER, 2014;DOYLE; VOYER; CHERNEY, 2012;LIN; CHEN; LOU, 2014;MARTIN-DORTA et al., 2014;STEPHENSON; HALPERN, 2013;VENTURA et al., 2013;YILDIZ; TÜZÜN, 2011). O MRT é composto por 20 questões com o uso de papel e lápis. Essa praticidade fez com que o MRT fosse, segundoCherney, Bersted e Smetter (2014), um dos testes de mensuração da habilidade espacial mais utilizado nas pesquisas.
Quanto à tipologia dos jogos digitais identificados na revisão, o jogo de tiro em primeira pessoa aparece como preferência nas pesquisas. Esse tipo de jogo parece ter efeito sobre a visualização espacial e os estímulos visuais.
ParaAchtman, Green e Bavelier (2008), os jogos de ação em primeira pessoa podem afetar bastante o processamento visual e a atenção por exigir dos jogadores um monitoramento constante dos objetos do jogo que se movem rapidamente. Essa velocidade e imprevisibilidade praticamente isola o jogador de possíveis distrações e aumenta a capacidade de distribuir a atenção no espaço e no tempo. Outros gêneros de jogos que se mostraram interessantes, também, para a habilidade espacial: caça ao tesouro, blocos, quebra-cabeça e simuladores virtuais.
Ainda sobre os jogos de tiros, vale ressaltar que, nesta revisão, os resultados apresentaram aspectos positivos dessa categoria como, por exemplo, no estudo deFerguson (2007). O autor discute que essa categoria, por mais que reporte algum tipo de violência em suas cenas, isso não é o suficiente para estimular a agressividade, porém é capaz de desenvolver a habilidade espacial pela dinâmica do jogo.
A maioria dos estudos apontou resultados satisfatórios nas intervenções que utilizaram jogos para a finalidade de desenvolvimento da habilidade espacial (CHANDRASEKHARAN et al., 2010;CLARK; FLECK; MITROFF, 2011;MIDDLETON et al., 2013;NOUCHI et al., 2013;POWERS et al., 2013;RICHARDSON; POWERS; BOUSQUET, 2011;ROSENTHAL et al., 2011;SPENCE; FENG, 2010;SONG; HAN; SHIM, 2013;UTTAL; COHEN, 2012;YANG; CHEN, 2010).
Vale comentar que alguns estudos não encontraram os resultados esperados.Cubukcu (2011) verificou que a qualidade da imagem não interfere na habilidade espacial, e que, portanto, os esforços dos desenvolvedores de jogos fossem voltados para desenvolver conteúdos relacionados aos aspectos cognitivos.
JáAppelbaum et al. (2013) identificaram melhorias na sensibilidade inicial a estímulos visuais nos jogos de ação, mas não notaram retenção de informação na memória. Por sua vez,Halvorsen et al. (2013) não encontraram relação entre jogar e o desempenho da pessoa em realidade virtual laparoscópica, tarefa que exige habilidade espacial.
Além disso, esta revisão sinalizou sugestões para novas pesquisas como, por exemplo: realizar estudos de longo prazo (CHERNEY; BERSTED; SMETTER, 2014;PRICE; LEE; MALATESTA, 2014;SANCHEZ, 2012); retratar cenários mais reais, ou usar elementos mais familiares aos usuários nos procedimentos experimentais (BOWMAN et al, 2013;ROGERS; BOWMAN; OLIVER, 2015); realizar estudos com uma amostra maior (COLLINS; FREEMAN, 2014;REDICK; WEBSTER, 2014); e verificar diferenças entre homens e mulheres (CASHDAN et al., 2012; CHERNEY; RENDELL, 2010;HALPERN; STRAIGHT; STEPHENSON, 2011;LOWRIE; JORGENSEN, 2011;NEUBAUER; BERGNER; SCHATZ, 2010;RICHARDSON; COLLAER, 2011; TERLECK et al., 2011;YANG; CHEN, 2010) e nível socioeconômico (DEARING et al., 2012), nas habilidades espaciais.
Os artigos enfatizaram, também, como proposta para estudos futuros a aplicabilidade de intervenções com os jogos digitais nos contextos educacional, clínico e de práticas de atividade física (HUNG et al., 2012;LUFT et al., 2013;MAAN et al., 2012;MOREAU; CONWAY, 2013;UTTAL et al., 2013). Essa recomendação permite discutir que os procedimentos de intervenção planejados com o apoio de jogos digitais a fim de maximizar as funções cognitivas e prevenir futuros declínios podem ter efeitos positivos, desde que criados e implementados de acordo com as necessidades dos usuários. Para que os estímulos evocados favoreçam a aprendizagem é fundamental também outros aspectos como uma fundamentação teórica e pedagógica sustentando a prática do profissional, como reforçamKebritchi e Hirumi (2008).
Conclusões
Este estudo revisou a literatura internacional publicada na temática de jogos digitais aplicados às habilidades espaciais. Em geral, ficou evidenciado nesta revisão o uso dos jogos digitais como uma ferramenta muito interessante para o desenvolvimento da habilidade espacial.
Assim, foi possível perceber a importância de investir no uso de jogos digitais para aplicação nas engenharias, considerando a relevância da habilidade espacial para os profissionais dessa área, que atuam essencialmente na criação de novos produtos, no desenvolvimento tecnológico e na inovação.
Além da engenharia, a habilidade espacial está sendo percebida cada vez mais como uma caraterística cognitiva importante para o desempenho profissional e o rendimento acadêmico em áreas como medicina. A habilidade espacial para essa área se apresenta de uma maneira bem especial, uma vez que seus profissionais ou estudantes necessitam dessa habilidade para executar certas atividades, como a realização de cirurgias médicas.
Sabendo-se da gama de jogos digitais que são disponibilizados ou que podem ser criados, é importante realizar mais estudos acerca dos seus impactos sobre o desenvolvimento de habilidades espaciais. Desse modo, novas pesquisas contemplando ao mesmo tempo desenvolvimento e impacto da aplicabilidade dos jogos digitais trarão resultados mais eficazes para a produção de conhecimento científico e tecnológico.
Embora este trabalho não se aprofunde em analisar criticamente os artigos levantados, sua contribuição consiste em apresentar tendências e lacunas dentro de um período mais atual de dois temas, cuja relação ainda é pouco discutida. E tentando delimitar ainda mais, pode-se levantar a seguinte questão: os jogos digitais são interessantes pelo seu caráter lúdico ou por estarem embarcados em plataformas tecnológicas intuitivas e interativas? Sendo assim, como sugestão para novas revisões, propõe-se cruzamentos entre temas como novas tecnologias - plataforma - sistemas usados para o treinamento / desenvolvimento da habilidade espacial.
Para trabalhos futuros, destacam-se as seguintes sugestões: Usar ferramentas lúdicas e interativas para promover a habilidade espacial em áreas como engenharia; mesclar ferramentas convencionais com as digitais para aumentar a possibilidade de sucesso no desenvolvimento da habilidade espacial; e desenvolver jogos digitais que contemplem conteúdo específico e compatível com o público em questão. Destaca-se também a importância de métodos experimentais e quase-experimentais para o alcance desses resultados.