Introdução
O texto1 desafiador de Sandra Jovchelovitch (2020) procurou aproximar o campo conceitual da Teoria do Núcleo Central de Jean-Claude Abric aos estudos sobre narrativa. A pesquisadora pondera que é possível pensar em uma análise sociogenética do núcleo central (ABRIC, 1998) das representações sociais a partir das reflexões sobre a teoria da narrativa, tecendo uma composição teórica que, ao considerar a dialogicidade e a polifasia cognitiva, permite interrogar o núcleo central das representações sociais como estórias que insistem em permanecer (JOVCHELOVITCH, 2020).
Ao enfocar o núcleo central de uma representação social, a porção mais estável e de difícil mudança, a autora (2020) o anuncia como estórias, cujas significações são repostas nos processos comunicativos, nas práticas e nas culturas institucionais orientadas pela manutenção do campo representacional. No entanto, adverte que os conteúdos dessa estória, pertencente ao núcleo central, são forjados ao longo da história2, ancorando-se em um passado e projetando-se para o futuro. Seriam tais narrativas organizadas pelo poder gerador das themata – antinomias (MOSCOVICI; VIGNAUX, 1994) – e estariam as mesmas funcionando por meio do poder normativo de um metassistema (DOISE, 2011).
A originalidade das reflexões de Jovchelovitch (2020) repousa na noção de que, organizado como narrativa, o núcleo central da representação social não se apresenta rígido e imóvel, portanto, resistente às mudanças. Em consequência de a narrativa operar por meio da articulação de diferentes perspectivas, o núcleo central passa a ser constituído pelo estado de polifasia cognitiva, apresentando coexistência de saberes e lógicas distintas em um mesmo campo representacional. Assim caracterizado, o núcleo central é, segundo a autora, como um campo de forças no qual se instala um tensionamento entre significações.
Essa formulação abre novas possibilidades para a análise das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIN/UFMT), que tem se apoiado nas narrativas tanto como fenômeno da comunicação social e produção de sentidos quanto como estratégia metodológica a ser utilizada nas pesquisas com crianças.
Neste texto, os resultados de duas pesquisas que consideram a narrativa como fenômeno e estratégia metodológica (TEIBEL, 2017; ASSUNÇÃO, 2018) serão revisitados a partir dos pressupostos apresentados por Jovchelovitch (2020).
O estudo de Teibel (2017) assume como objeto de análise a representação social do cuidado em uma Enfermaria Pediátrica, a partir das negociações entre diferentes redes de significados compartilhadas: as narrativas da equipe de saúde, a narrativa Binje3 (FREIRE, 2013) e as narrativas infantis elaboradas a partir do diálogo com as atividades desenvolvidas no contexto do subprojeto “Binje: em busca de autorias infantis no contexto hospitalar”.
Por sua vez, o estudo de Assunção (2018) adota como objeto de investigação as representações sociais partilhadas por crianças hospitalizadas sobre os profissionais de saúde implicados em seu tratamento. Essa pesquisa, realizada no interior de uma instituição pública de saúde, abarcou o emprego de observação participante, de análise documental e de entrevistas com crianças mediadas por roteiro lúdico orientado pelo mote principal da noção de cuidado, o qual fomentou a elaboração do instrumento “Quem cuida de mim no hospital?”.
As discussões ora empreendidas buscam estabelecer enlaces em torno das proposições de Jovchelovitch (2020) e os estudos acima apresentados, de modo a refletir sobre seus avanços e pertinência ao campo investigativo da teoria das representações sociais.
1. Representações sociais e narrativas: algumas considerações preliminares
As representações sociais podem ser articuladas por meio do pensamento narrativo e veiculadas por intermédio das narrativas. Tal compreensão atenta-se para a ideia de que a partilha de histórias atua no sentido de conferir previsibilidade aos costumes. No entanto, apesar de as construções narrativas – elaboradas para lidar com os contextos em que tais modos cotidianos de proceder se manifestam – fazerem referência aos arcabouços de histórias de uma cultura, estas também envolvem uma conquista mental e de desenvolvimento pessoal que inclui a subjetividade de quem narra.
Ainda que o inesperado surja desafiando o que é tido como canônico, as postulações já apresentadas pela cultura são tomadas como base para novas organizações narrativas, colocando em prática as dimensões adaptativa e criativa do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 2009). Nesse processo, os elementos que engendram as experiências anteriores são reelaborados, visando contornar o estranhamento frente ao desconhecido, em prol de atender tanto à subjetividade do autor quanto às demandas do contexto no qual ele se insere.
Purkhardt (2002) discute a importância das histórias na cultura e sugere que as narrativas podem ser compreendidas a partir do processo de contar histórias. Isso porque, em sua percepção, histórias não se sustentam sozinhas; elas são enunciadas por alguém a partir de seu endereçamento para si e/ou para o outro. Contar algo não traduz apenas a repetição de histórias, mas pronuncia o esforço de recontar algo que, de alguma forma, já foi elaborado anteriormente, de modo singularizado, na medida em que a narrativa adquire novos significados ao ser atualizada no contexto em que ela é reapresentada.
Desse modo, a compreensão das representações sociais pode ser aperfeiçoada e acurada pela exploração de como as pessoas localizam estas categorias no contexto narrativo, uma vez que a coerência entre esse saber e sua funcionalidade nos contextos sociais é fornecida pela organização narrativa da representação, que ampara pessoas e coletividades a delinearem contextos de interação.
Tomar a representação social como um fenômeno associado à construção narrativa, caracterizado por um processo subjetivo regulado socialmente, possibilita compreender a relação existente entre o mundo de vida, o qual as pessoas habitam, e o processo de elaboração dos estados variáveis desse mundo, que se tornam inteligíveis e manejáveis.
No contexto dos estudos em representações sociais, Jodelet (2001) sugere que, ao se analisar uma representação, sejam levantados os seguintes questionamentos: “Quem sabe e de onde sabe?”, “O que e como sabe?”, “Sobre o que sabe e com que efeitos?”. Para Jovchelovitch (2008), essas perguntas se referem aos atores, às práticas comunicativas, ao objeto, às razões e às funções das representações sociais. Isso porque a forma como o não familiar é transformado em familiar depende da identidade da pessoa e de como esse conhecimento é utilizado em contextos de interação. Desse modo, se o saber encontra-se imbricado aos contextos nos quais ele é evocado ou elaborado, torna-se necessário inscrever referências à existência de metassistemas que orientarão a organização narrativa das representações sociais para buscar preservar identidades específicas.
Doise (2001) explica que múltiplos esquemas organizadores compõem o metassistema das representações sociais, tais como roteiros, regras e normas, que são apropriados a cada situação e regem as diferentes interações sociais de que as pessoas participam. São esquemas preexistentes ao funcionamento cognitivo individual, que se fazem presentes na cultura e são atualizados em certas situações, tais como os metassistemas jurídico e religioso, por exemplo.
Moscovici (1978, 2012) esclarece que o pensamento natural mantém sua coerência justamente pela ação do metassistema de valores e avaliações que são centrados em relações e identidades sociais. Observa-se que, ao orientarem funcionamentos cognitivos, os metassistemas invocam não apenas paradigmas normativos, mas também identidades. Doise (2011) compreende que essa relação entre um conteúdo cognitivo e um metassistema relacional se faria presente desde a elaboração desse conteúdo. Mesmo separados, esse saber manteria uma assinatura, uma marca do processo relacional original.
Outro aspecto destacado refere-se à noção de polifasia cognitiva, tendo em vista que, a depender das exigências do ambiente social e da configuração psicossocial de um campo, a representação social se constitui pelo estado de polifasia cognitiva, isto é, pela capacidade das pessoas de pensar e representar de muitos modos (MOSCOVICI, 2003). Essa capacidade se torna de grande importância para a prática da comunicação porque a diversidade de situações e experiências que uma pessoa vivencia, no seu cotidiano, exige plasticidade e adaptação às necessidades sociais nesses diferentes contextos de vida. Sobre a dimensão da subjetividade e a existência de múltiplos saberes acerca de determinado objeto, considera-se que estes possam ser hierarquizados de acordo com os pesos atribuídos a eles em relação ao contexto de interação e à identidade pessoal.
De forma geral, pode-se destacar que as representações sociais se fazem presentes nos diferentes contextos nos quais as pessoas se comunicam, auxiliando no processo de organização das narrativas individuais de modo que elas veiculem a perspectiva pessoal de maneira socialmente aceita naquela interação. Assim, narrativas são necessariamente intencionais e, ao utilizarem determinados saberes em detrimento de outros, envolvem processos de defesa identitária, realizando um convite para se compreender o mundo a partir de determinada perspectiva.
Os estudos ora analisados compreendem que uma Enfermaria Pediátrica pode apresentar diferentes contextos de interação nos quais crianças e profissionais da saúde realizam movimentos de significação do contexto, elaborando narrativas que buscam articular aspectos de sua identidade e significação de si aos constructos sociais sobre o cuidado à criança no contexto hospitalar, visando atribuir inteligibilidade a essas práticas e orientando seu papel em relação a elas.
2. Marco institucional, metassistema e projeto representacional
A análise sobre os marcos institucionais (JOVCHELOVITCH, 2020) do hospital, considerando a dimensão histórica e a produção de metassistemas, permite identificar elementos de centralidade de representações sociais associadas a diferentes aspectos sobre a hospitalização, ao mesmo tempo que possibilita a circulação de novos conteúdos representacionais que, no processo de negociação das trocas simbólicas, concorrem para a construção da realidade social.
O estudo sobre a construção social da cultura da hospitalização e do cuidado para com a saúde pode ser conduzido a partir do esquema proposto por Bauer e Gaskell (1999) sobre a tríade representacional e seu prolongamento considerando a dimensão temporal. Esses autores anunciam que, em torno dos paradigmas que orientam as trocas sociais, na cultura hospitalar, por exemplo, é possível notar um prolongamento do triângulo básico da representação social (Eu-Outro-objeto) em direção ao passado (projeto no passado) e ao futuro (projeto no futuro). O conteúdo representacional estaria, portanto, sendo forjado no curso histórico e na confluência de sentidos que coexistem em um mesmo grupo: estes se apresentam ora contraditórios, ora cooperativos entre si. Nesta dinâmica tem-se que os conteúdos estariam alinhados a um projeto representacional (P) e, dessa forma, apresentam-se em adesão a uma representação social específica.
Desse modo, a narrativa pode ser considerada como um instrumento promotor de um projeto representacional, pois ao ser partilhada repõe algumas significações em detrimento de outras, mantendo-as vivas na memória coletiva, de forma a favorecer o processo de mediação com a realidade em determinado sentido. Consequentemente, na medida em que tais saberes delineiam aspectos da realidade, ao mesmo tempo acabam por fortalecer certas características de uma identidade grupal em torno do papel a ser desenvolvido em relação à realidade descrita, forjando processos de conservação ou mudança no pensamento social.
No marco institucional que circunscreve o contexto de cuidados hospitalares, é possível identificar conteúdos representacionais que se ancoram nos discursos orientados pela perspectiva da medicina científica ou flexneriana e pela perspectiva da humanização da saúde. Tais referências podem ser identificadas como metassistema que, uma vez presentes na memória social, influenciam a construção da realidade social interferindo na construção de normas, protocolos e processos avaliativos anunciados por meio de processos narrativos.
O modelo de saúde predominante na formação médica brasileira, inscrito na memória social há mais de 100 anos, é a medicina científica, ou flexneriana, que compreende o corpo humano como uma máquina, sendo a doença representada como uma avaria, e o tratamento, como o conserto desse aparelho. Essa compreensão refere-se à Medicina como um saber do campo científico, reduzindo o objeto de ação médica à cura biológica. Nessa perspectiva, o papel do médico é descrito como detentor do saber, e o paciente, como portador de uma condição clínica. Os valores ressaltados envolvem tecnologia, especialização e controle. Ainda nessa perspectiva, o desenvolvimento da Pediatria indicou que o cuidado voltado para a criança apresentava o papel do médico relacionado com a proteção da infância, sendo a criança caracterizada tanto por sua dificuldade na comunicação quanto por seu devir. Com isso, a atuação médica ganhou também contornos educativos e disciplinares.
Esse modelo aborda de forma reducionista os aspectos sociais e subjetivos da saúde, tendo como base a assistência à doença em seus aspectos individuais e biológicos, centrados no hospital, nas especialidades médicas e no uso intensivo de tecnologias.
A outra rede de significação sobre o cuidado em saúde, mais recente na memória social, apresenta-se associada aos movimentos de humanização que surgem justamente em resposta a uma visão reducionista do processo saúde-doença. Assim, aqui existe o destaque da dimensão ética e relacional, enfatizando valores como protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos diferentes personagens na produção de saúde. O objeto do cuidado é apresentado como incluindo aspectos sociais, psicológicos e comportamentais. Os médicos são apresentados como parte de uma equipe de profissionais que atuam juntamente com quem demanda atenção, estabelecendo vínculos e compartilhando decisões e responsabilidades. O objetivo é a criação de um novo modelo de atendimento pautado no respeito à vida humana, o que inclui maior atenção às singularidades da dimensão subjetiva do usuário.
Fonte: Elaborado pelas autoras, segundo as contribuições de Pagliosa e Da Ros (2008) e de Rios (2009).
Assim como Jovchelovitch (2020) propõe, ao considerar a hipótese do núcleo central de uma representação, é possível inferir que a perspectiva da medicina científica – com seus valores, roteiros, regras e normas objetivados em documentos, como o Procedimento Operacional Padrão (POP) – confere contorno à centralidade das representações sociais sobre o hospital, a hospitalização e objetos correlacionados, forjando estórias que insistem em permanecer. Por sua vez, as narrativas orientadas por representações sociais ancoradas na perspectiva da humanização concorrem à centralidade e são menos difusas apenas em determinados subgrupos que atuam de modo consciente no sentido de promover mudanças no pensamento social. Em ambos os casos se anuncia, com os diferentes conteúdos, o delinear de projetos representacionais que forjam processos identitários distintos e nem um pouco neutros. No horizonte, o que se destaca é o tensionamento do campo representacional, disputa de projetos representacionais, forjando processos de conservação e mudança das representações sociais.
3. Das pesquisas em análise
A pesquisa de Teibel (2017) apresentou contornos de um estudo do tipo etnográfico (ANDRÉ, 2003), envolvendo a investigação e análise de dois eixos: 1. O contexto dos profissionais, no qual se utilizou a observação participante e houve a realização de entrevistas semiestruturadas; e 2. O contexto das práticas desenvolvidas pelo projeto de extensão Binje junto às crianças, envolvendo a observação participante das atividades e em alguns momentos a videogravação e a realização de entrevista semiestruturada. As 11 entrevistas realizadas junto aos profissionais foram processadas pelo programa computacional IRAMUTEQ, que permitiu a realização da análise de Classificação Hierárquica Descendente, favorecendo a identificação de diferentes classes nas narrativas apresentadas. Já o material produzido por meio da observação foi analisado a partir de eixos interpretativos que buscavam apresentar articulações das notas de caderno de campo com os referenciais teóricos. Em relação às crianças, foram selecionados 12 casos, analisados compreensivamente, também por meio da configuração de eixos interpretativos.
Por sua vez, Assunção (2018), que também se apoiou na abordagem do tipo etnográfica (ANDRÉ, 2003), adotou um roteiro de entrevista delineado pelo emprego do roteiro lúdico “Quem cuida de mim no hospital?”, na perspectiva de uma narrativa semiacabada caracterizada como narrativa encorajadora de novas narrativas. Também compôs o roteiro lúdico uma questão denominada de indução de metáfora (ANDRADE, 2006).
Participaram da pesquisa 26 crianças, entrevistadas e acompanhadas ao longo de seus processos de internação. Para a análise e processamento das informações foram empregadas técnicas específicas para cada etapa de produção de dados, abarcando, de maneira geral, a análise compreensiva, o processamento pelo programa computacional IRAMUTEQ (CAMARGO; JUSTO, 2014), a análise a partir da proposta de núcleos de significação (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015), bem como adotou-se a forma definida como triangulação do pesquisador (APOSTOLIDIS, 2006).
4. O tensionamento dos conteúdos representacionais sobre os cuidados em saúde nas narrativas dos profissionais e das crianças
Os achados de pesquisa de Teibel (2017) chamam a atenção para o conflito gerado nas profissionais de saúde ao se depararem com outro modelo de abordagem no contexto hospitalar, este sugerido pelo projeto de extensão Binje, pelas práticas de escuta da criança, bem como pelo estabelecimento de uma comunicação horizontalizada.
No âmbito das interações entre os profissionais da saúde, Teibel (2017) identificou coexistência de narrativas orientadas ora pela perspectiva de uma medicina flexneriana, cuja atenção ao corpo doente não está necessariamente alinhada à dimensão subjetiva do sujeito, ora por indícios de adesão às práticas ancoradas na perspectiva da humanização dos cuidados em saúde. A centralidade dos conteúdos orientados pelos pressupostos da medicina flexneriana se destaca, na medida em que se observa a organização da rotina dos procedimentos médicos como principal operador das práticas de atenção à saúde.
A dimensão do conflito e o tensionamento no campo representacional parecem impactar a construção identitária dos profissionais da saúde, especialmente no contexto do cuidado de crianças, quando eles relatam seu incômodo ao observarem a relação das crianças com os acadêmicos do projeto de extensão, em contraste com a relação das crianças com as auxiliares de enfermagem, por exemplo. Se no primeiro caso notam a presença de um vínculo de confiança, no segundo destacam que as crianças parecem percebê-los como agressores, mesmo compreendendo a necessidade dos procedimentos invasivos para o reestabelecimento da saúde.
No estudo de Assunção (2018), para efeito deste texto, destacam-se as metáforas e metonímias elaboradas pelas crianças sobre o profissional da saúde escolhido e desenhado por elas ao longo da entrevista orientada pelo roteiro lúdico. Após a escolha do profissional, a criança foi convidada a desenhá-lo e, posteriormente, a pensar na seguinte questão: “Se a pessoa escolhida pudesse ser uma coisa, o que seria? Por quê?”.
A análise das narrativas das crianças hospitalizadas revela tanto as práticas de atenção à saúde ancoradas nos protocolos e procedimentos – tais como cirurgia, injeção, soro, aferição de pressão – como também anuncia a dimensão subjetiva presente na relação da criança com o profissional da saúde. Trata-se de pensar, no primeiro caso, a doença como sinônimo de menos saúde e, no segundo, a saúde na doença.
Se, de um lado, observa-se uma impessoalidade nas relações, por outro, o profissional parece ser capturado pela lente da criança, que organiza sua narrativa levando em consideração a dimensão atitudinal. Para as crianças existe uma diferença bem marcada entre cuidar na perspectiva do corpo adoecido e cuidar bem, que anuncia a ideia do estar com, uma atitude aparentemente orientada pela perspectiva da humanização.
Tanto nas narrativas das profissionais da saúde apresentadas no estudo de Teibel (2017) quanto nas narrativas de crianças destacadas no estudo de Assunção (2018), nota-se a presença de tensionamento do campo representacional caracterizado pela produção de narrativas que veiculam representações sociais ancoradas em diferentes paradigmas que compõem o metassistema médico-hospitalar.
Na análise das narrativas é possível identificar processos identitários afetados por esse tensionamento, seja porque as profissionais da saúde se declaram em conflito ante as duas proposições de atendimento, seja porque as crianças se orientam na relação com tais profissionais ora tomando o corpo adoecido como principal elemento mediador das interações, ora considerando as atitudes e a subjetividade implicada no cuidado hospitalar.
A criança anuncia que espera ter um cuidado competente e eficaz, mas também deseja construir laços afetivos, se sentir acolhida e protegida.
5. Narrativas e cultura hospitalar: processos identitários entre a conservação e a mudança
Embora nenhuma das pesquisas ora apresentadas tenham se dedicado a identificar a dimensão estrutural das representações sociais, é possível, do ponto de vista conceitual, anunciar os elementos do núcleo central como sendo aqueles que circulam na memória social e se mostram menos difusos nas trocas sociais. Nesse sentido, é possível anunciar as narrativas de profissionais e crianças organizadas pela ênfase no corpo doente como sendo orientadas pelo paradigma da medicina flexneriana e, assim, concorrem para a centralidade das representações sociais.
Por um lado, identifica-se a circulação de conteúdos representacionais ancorados na perspectiva da humanização dos cuidados em saúde provocando um tensionamento nas trocas sociais com reflexos na constituição identitária, sobretudo dos profissionais de saúde. Por outro lado, tais representações sociais orientam práticas de cuidado em saúde que impactam diretamente a qualidade das vivências infantis no contexto da hospitalização.
Do ponto de vista do marco institucional, nota-se que a circulação de práticas de atenção à saúde orientadas pelo diálogo horizontalizado entre crianças e profissionais de modo consistente e prolongado, como o subprojeto “Binje: em busca de autorias infantis em contextos hospitalares”, contribui para nomear novas possibilidades de atenção à saúde da criança em contexto hospitalar, antes inexistentes no campo representacional. Por exemplo, a possibilidade da participação das enfermeiras e auxiliares de enfermagem nas sessões de contação de histórias e a abertura às narrativas das crianças como forma de acessar a sua condição subjetiva.
Deste modo, movimentos de conservação e mudança orientados por conteúdos representacionais muitas vezes antagônicos que circulam no metassistema médico-hospitalar revelam a concomitância de diferentes modos de pensar de um mesmo grupo, como sugere a noção de polifasia cognitiva.
Considerações finais
O exercício de revisitar os achados de pesquisa de Teibel (2017) e de Assunção (2018) a partir dos pressupostos apresentados por Jovchelovitch (2020) possibilitou a emergência de novos modos de se analisar a centralidade dos conteúdos representacionais para além da abordagem estruturalista. De outra forma, permitiu inserir no debate o rico processo de contradição e tensionamento das significações, levando em consideração as dimensões histórica e institucional mediadas pela ideia de projeto representacional (BAUER; GASKELL, 1999).
Ao compreender o núcleo central de uma representação social como uma narrativa, a autora (JOVCHELOVITCH, 2020) revela uma faceta dinâmica da estrutura cognitiva, que, mesmo sendo reconhecida como a mais cristalizada e resistente às mudanças, é em igual medida impactada pela polifasia cognitiva e, desse modo, acaba por ser regulada pela força das contradições e do tensionamento. Trata-se de recuperar a dialogicidade das trocas sociais para o estudo do núcleo central considerando a perspectiva sociogenética.
No caso dos estudos aqui apresentados, as reflexões de Sandra Jovchelovitch (2020) podem ser consideradas pertinentes.