Introdução
Um dos temas mais presentes nas discussões sobre educação superior e relações raciais na última década são as políticas de ação afirmativa implantadas no início do século XXI no Brasil. O conceito de ação afirmativa utilizado neste estudo refere-se a:
[...] uma ação reparadora/compensatória ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos do passado, presente e futuro, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social (Moehlecke, 2002, p. 203).
Um aspecto importante dessa definição é que abrange a questão do enfrentamento à discriminação e que pode ser entendida tanto na chave da ampliação da diversidade cultural presente na sociedade brasileira e, de forma mais específica, nos espaços do educação superior, discussão desenvolvida por Munanga (2003) e Gomes (2011), quanto em outra frente de estudo, no enfoque das desigualdades que caracterizam o acesso diferenciado e subrrepresentado dos negros ao ensino superior - a exemplo dos estudos de Beltrão e Teixeira (2004) e Paixão (2010). As primeiras políticas de ação afirmativa no mundo remontam a meados do século XX, nas cotas para castas na administração pública e no ensino na Índia (1947), e/ou as lutas por direitos civis nos Estados Unidos (1953) (Moehlecke, 2000; Ferez Jr.; Dalfon, 2014).
Para a realidade brasileira, de forma geral, as primeiras experiências de políticas diferenciadoras devem ser associadas às mudanças pós anos de 1930 com a lei dos 2/3, de 1934, que determinava que 2/3 dos trabalhadores contratados nas empresas deveriam ser brasileiros; em 1968 a Lei do Boi propunha que o ensino técnico agrícola ou o ofertado nas escolas superiores de Agricultura e Veterinária reservassem 50% de suas vagas para agricultores e seus familiares (Ferez Jr.; Campos, 2014; Gomes, 2003).
Uma parte das políticas de ação afirmativa ou de atendimento diferenciado é proposta e financiada por instituições não governamentais, dentre essas a Fundação Ford1, financiadora do Internacional Fellowships Program (IFP), cujos resultados, quanto à inserção de seus beneficiários, são objeto do trabalho aqui apresentado.
A Fundação Ford, como agência de fomento, tem na administração pública uma das suas áreas de maior interesse. Segundo Faria e Costa (2006, p. 161):
O apoio irrestrito da Fundação à diversidade social e à participação democrática manifesta-se por meio de financiamento de programas voltados para abordagens que privilegiam, por exemplo, questões de gênero, saúde da mulher, modelos de desenvolvimento sustentável, programas de saúde, reforma educacional, questões étnico-raciais, desigualdade social, meio ambiente e recursos naturais (biodiversidade), movimentos socais.
O Programa Internacional de Bolsas, conhecido no Brasil como Programa Bolsa2, faz parte de uma iniciativa da Fundação Ford que financiou projetos relacionados com Ação Afirmativa em 22 países, entre os anos de 2000 e 2012, totalizando 4.305 beneficiários (IFP, 2016). Segundo Rosemberg (2003), “[…] constituiu a iniciativa de maior envergadura financiada pela Fundação Ford: US$ 280 milhões durante os dez anos previstos de duração”. Cada país teve a liberdade de definir qual a população alvo da Ação Afirmativa e as formas de organização e monitoramento das iniciativas uma vez implementadas. No caso do Brasil ficou definido no Edital de seleção que o programa:
[…] além de estar atento à igualdade de gênero, destina-se, prioritariamente, as pessoas negras e indígenas, ou originárias das regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste, provenientes de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas e educacionais (Rosemberg, 2013, p. 5).
No histórico das iniciativas, o IFP, ajustado para cada realidade do país de inserção, tinha por objetivo ser um programa que promovesse a justiça social, a partir da oferta de condições de acesso ao ensino superior às pessoas mais desfavorecidas social e economicamente, de forma a garantir uma maior equidade no acesso às etapas mais elevadas de escolarização, consideradas como condição para o desenvolvimento pessoal e social das comunidades.
Em 2013 foi idealizado e iniciado pelo Instituto de Educação Inter-Nacional (IEE) o IFP Alumni Tracking Study, um estudo longitudinal, com duração prevista de 10 anos para avaliação dos impactos do IFP na trajetória de todos seus beneficiários diretos (bolsistas). Nos primeiros resultados, publicados em relatório de 2016, com a participação de 1.861 ex-bolsistas (43% da população atendida pelo programa), foi evidenciado de forma sintética que: 96% terminaram seus estudos apoiados pela bolsa; 92% indicaram maiores oportunidades de inserções sociais após a bolsa; 90% concordam que a bolsa aumentou seu compromisso com a justiça social; 84% continuam vivendo em seus países de origem, e 54% em suas comunidades de nascimento, dentre outros resultados.
No Brasil, o Programa Bolsa, sob responsabilidade da Fundação Carlos Chagas, é reconhecido como o primeiro programa de ação afirmativa para o acesso à pós-graduação desenvolvido no país. Em 12 anos de duração (entre 2001 e 2012), o programa financiou 343 bolsas de pós-graduação para grupos subrrepresentados (pretos, pardos e indígenas) nesse espaço privilegiado de construção de conhecimentos3. Ao final, 308 deles alcançaram suas titulações (mestrado ou doutorado), uma taxa de sucesso de 89,8%. Nesse contexto, avaliar o impacto desta ação de 12 anos de duração é fundamental no momento em que as políticas de ação afirmativa adentram os programas de pós-graduação (Silva, 2016; Filho et al., 2016). Este trabalho pretende contribuir com insumos quantitativos que possam ser explorados e comparados com outros programas de escopo similar.
Nesta pesquisa, consideramos como fonte de dados o Currículo Lattes4, que funciona como um sistema padronizado de informações curriculares, atualizado pelos próprios acadêmicos. Essa plataforma tem sido amplamente utilizada para mensurar a trajetória acadêmica de pesquisadores, seja para obtenção de recursos de fomento à pesquisa junto a diversas fundações, centros de pesquisas e universidades, seja como instrumental em processos de avaliação de cursos de graduação e programas de pós-graduação (Luiz, 2006; Silva, 2004). Nesse sentido, esse instrumento demonstrou ser relevante para investigar as trajetórias acadêmicas dos egressos (ex-bolsistas) do IFP, já que localizamos 300 (97,4%) currículos atualizados dos 308 beneficiários e titulados do programa (isto é, bolsistas cujo trabalho de mestrado ou doutorado foi aprovado).
Ação Afirmativa e o Acesso de Negros à Educação
Os estudos sobre negros no Brasil datam da passagem do século XIX para o século XX. A partir dos anos 1930, o discurso do pensamento social brasileiro passou a difundir a ideologia da democracia racial, balizada principalmente por autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, os quais demonstram em suas obras que no Brasil há o encontro pacífico e cordial entre as três raças fundadoras (branco, negro e índio), descaracterizando a violência e as relações de dominação originárias desde o processo de colonização europeia. Somente na década de 1960, consolidam-se críticas a essas teorias, que passam a ser denominadas como “[…] mito da democracia racial”, revelando as relações de poder associadas ao ideal de branqueamento e explicitando o racismo na sociedade brasileira (Moura, 1988).
Porém, as discussões sobre educação e relações raciais estão presentes na sociedade desde o final do século XIX, ainda durante os trâmites da Lei do Ventre Livre, em que a escolarização dos escravizados era apresentada como um caminho de preparação para a vida em liberdade. Se nos anos iniciais do século XX, a visão propagada na sociedade era de que os próprios negros deveriam ser responsabilizados por sua precária situação educacional, essa leitura foi se alterando. Nos anos 1940/50, o Movimento Negro passou a reivindicar a escolarização dos negros como um problema social e não como um problema relacionado à negritude (Gonçalves; Silva, 2000; Pinto, 2013).
Uma importante referência nessa temática são os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva, pioneiramente nos anos 1980, que analisaram bases de dados nacionais no recorte cor/raça, indicando que as desigualdades educacionais observadas entre brancos e negros não se limitavam a questões socioeconômicas, ou seja, somente a uma discussão das estruturas de classes ou estratificação social, devendo ser associadas também à estrutura racial. Em outras palavras, as desigualdades brasileiras precisam ser avaliadas levando em consideração o racismo que perdura na estrutura social e histórica brasileira (Miranda; Aguiar; Di Piero, 2004). Simultaneamente, o próprio Movimento Negro organizado passou a propagar a necessidade de acesso, permanência e qualidade na educação para os negros em todas as etapas de escolarização, incluindo o ensino superior.
Entre o final da década de 1980 e o início dos anos 1990, as relações raciais passaram a ocupar um espaço mais definido nas pesquisas educacionais. Em 1986, a Fundação Carlos Chagas (FCC) organizou um evento de balanço da produção teórica sobre o tema raça, negro e educação (Miranda; Aguiar; Di Piero, 2004, p. 14). Em 1987, a revista Cadernos de Pesquisa da FCC, n. 63, publicou um dossiê com 37 artigos dedicados à temática Raça Negra e Educação.
Por muitas décadas, até o final do século XX, o tema das relações raciais, quando presente, constituiu-se predominantemente em “[…] objeto de conhecimento historicamente produzido por acadêmicos brancos, cuja epistemologia baseia-se no estudo sobre negros” (Figueiredo; Grosfoguel, 2007, p. 36).Foi evidenciado que a produção realizada por pesquisadores negros não tinha visibilidade. Dentre os vários marcos da consolidação da temática relações raciais e educação, a fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as5 (ABPN), nos anos 2000, merece destaque. Segundo Gomes (2012, p. 740):
A ABPN surgiu para congregar pesquisadores negros e não negros que estudam as relações raciais e demais temas de interesse da população negra, produzir conhecimento científico sobre a temática racial e construir academicamente um lugar de reconhecimento das experiências sociais do movimento negro como conhecimentos válidos.
As Políticas de Ação Afirmativa e a Mudança no Perfil Racial do Ensino Superior Brasileiro
As políticas de ação afirmativa para ingresso de jovens pertencentes aos grupos subrrepresentados (autodeclarados pretos, pardos e indígenas) no ensino superior brasileiro consolidaram-se no início deste século XXI. Normativas como o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288) (Brasil, 2010) e a Lei de Cotas (Lei n. 12.711) (Brasil, 2012) institucionalizaram os processos e as iniciativas de ação afirmativa propostas em diferentes instituições de ensino e garantiram uma maior participação de pretos, pardos e indígenas no acesso às etapas (graus acadêmicos) mais elevadas da educação no Brasil, em especial ao ensino superior. As ações afirmativas no ensino superior são compostas pelas políticas de cotas para acesso aos cursos de graduação na rede pública e pelo Programa Universidade para Todos (Prouni)6 e pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies)7 na rede privada8. As primeiras experiências de utilização de cotas foram realizadas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) em 2003 (Machado, 2013), na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) em 2004 (Queiroz; Santos, 2006) e na Universidade de Brasília (UnB) em 2004 (Velloso, 2004). Essas políticas foram definidas nas instâncias administrativas, inicialmente nas esferas estaduais e em leis específicas e, mais recentemente, como legislação federal.
Vale ressaltar que políticas de ação afirmativa não se restringem a cotas ou reservas de vagas. Desde os anos 1990, iniciativas de cursinhos populares, por meio de aulas de reforço, visavam o aperfeiçoamento do desempenho de estudantes para o ingresso via processos vestibulares, vide as experiências do Instituto Cultural Beneficente Steve Biko (ICBSB) na Bahia (Moehlecke, 2000) e os cursinhos populares, organizados pela Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) (Souza, 2009), que priorizavam alunos oriundos de escolas públicas e/ou negros como seus públicos-alvo. Outra iniciativa importante é o acréscimo de pontuação (bônus) nas notas dos candidatos do grupo alvo nos processos vestibulares, como os desenvolvidos pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (Souza, 2012; Tessler; Pedrosa, 2008)9. Segundo Feres Jr. e Daflon (2013), das instituições de ensino superior (IES) públicas que implementaram ações afirmativas, 50% optaram por cotas, 10% por algum tipo de bonificação no desempenho acadêmico, 4,3% ampliaram o número de vagas para atender esse público específico e as 35,7% restantes desenvolveram diferentes combinações dessas modalidades. Posteriormente ao ingresso são também fundamentais os programas de financiamento dos custos para a permanência de estudantes no ensino superior.
É fundamental relembrar que essas ações ocorrem no interior de lutas dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, que desde os anos 1940 explicita as desigualdades existentes entre o acesso de negros10 e brancos a bens sociais e reivindica continuamente maior equidade entre os grupos em diferentes esferas sociais: acesso, permanência e qualidade na educação, acesso e qualidade no atendimento à saúde, à participação política e ao acesso ao mercado de trabalho.
Em relação a um acesso diferenciado à pós-graduação, etapa mais elevada de escolarização formal, as experiências são recentes e foram implementadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, na UnB, na Unicamp (Cerqueira; Roberto, 2014; Silva, 2016) e em três programas de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da USP (Unbehaum; Leão; Carvalho, 2015).
Um quadro geral da expansão no acesso de pretos, pardos (reunidos, portanto, na categoria negros) e indígenas na graduação e pós-graduação está descrito nos Gráficos 1 e 2 com informações coletadas nas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)11 a respeito da graduação e dos Censos Demográficos para a pós-graduação, ambos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A taxa de crescimento total entre 2001 e 2015 foi de 106,9%. Para os pretos essa taxa alcança 571,5% e para os pardos, 281,6%. Em contraposição, os brancos ampliaram em apenas 49,2% sua participação. A taxa de ampliação para pretos deve ver relativizada, considerando que o valor inicial é pequeno (84 mil) na comparação com os outros grupos (brancos e pardos); assim, qualquer novo ingresso acaba tendo um peso maior no cálculo de variação.
Separando a análise em dois períodos - 2001 a 2007 e 2009 a 2015 - observa-se que a expansão da participação de negros é maior no primeiro período, 136,2% contra 47,1% para o intervalo de 2009 a 2015. Esses resultados podem estar associados às políticas de ação afirmativa desenvolvidas nas IES no início dos anos 2000, como descrito anteriormente.
Nas análises para a pós-graduação, a proposta inicial era trabalhar também com dados da Pnad, porém a variação encontrada no número de estudantes de pós-graduação (ver diferença entre os anos 2002 e 2003; 2005 e 2006) e a comparação com dados da GeoCapes12 descritos na Tabela 1 nos fizeram optar por apresentar dados dos Censos Demográficos (2000 e 2010), que oferecem uma maior robustez na expansão amostral (ver gráfico 2).
Pnad | GeoCapes | Censo Demográfico | |
---|---|---|---|
2000 | - | 117.595 | 158.889 |
2001 | 267.356 | 126.496 | - |
2002 | 293.519 | 137.406 | - |
2003 | 307.098 | 147.972 | - |
2004 | 323.687 | 151.011 | - |
2005 | 310.933 | 163.671 | - |
2006 | 379.313 | 174.047 | - |
2007 | 322.834 | 184.466 | - |
2008 | 326.608 | 196.843 | - |
2009 | 327.664 | 211.224 | - |
2010 | - | 224.316 | 277.916 |
2011 | 387.436 | 245.189 | - |
2012 | 329.938 | 264.767 | - |
2013 | 382.710 | 283.622 | - |
2014 | 358.064 | 302.034 | - |
2015 | 368.047 | 325.230 | - |
Fonte: BME (2016) e GeoCapes (2016). Processado pelos autores.
A taxa de variação total entre 2000 e 2010 é de 74,9%. Para os pretos, a taxa chega a 192,7% e, para os pardos, 195%. Para os brancos, a taxa de variação é de 56,1%.
A maior participação dos negros no ensino superior, tanto na graduação como na pós-graduação, é representativa, conforme descrito pela literatura (Paixão, 2010; Feres Jr., 2014), porém ainda está distante da participação dos grupos na população brasileira. A Tabela 2 expõe a participação de cada grupo em comparação com o total da população.
% | População | Estudantes de graduação | Estudantes de pós-graduação |
---|---|---|---|
Pretos | 7,5 | 5,4 | 3,9 |
Pardos | 43,4 | 30,4 | 18,8 |
Negros | 50,9 | 35,8 | 22,7 |
Brancos | 47,5 | 63,9 | 76,9 |
Fonte: BME (2016). Processado pelos autores.
É importante notar que, os negros, que representam mais da metade da população brasileira têm uma participação bem menor no nível de graduação (35,8%), uma razão de 3 brancos para cada negro. No nível de pós-graduação, essa distância é de 4 brancos para cada negro, com participação de 76,9% de brancos. As desigualdades ainda são marcantes, no entanto, os dados mostram uma mudança no perfil de escolarização superior da população brasileira. Vários fatores têm contribuído para estas transformações (Paixão, 2010).
A seguir, são apresentadas informações relativas a um programa de ação afirmativa, o Programa Internacional de Bolsas denominado IFP, que mesmo em pequena escala, contribuiu para modificação positiva no perfil de estudantes negros na pós-graduação brasileira, dimensionada pela inserção que tiveram em universidades brasileiras. Esta experiência do IFP pode servir de subsídios no debate sobre a relevância das políticas de ação afirmativa na educação e na produção de conhecimento.
O Programa Bolsa e as Ações Afirmativas na Pós-Graduação
No Brasil, o programa se caracterizou pela preparação dos estudantes beneficiários para os processos seletivos, não devendo, portanto, ser caracterizada na modalidade de reserva de vagas. O objetivo da iniciativa era apoiar pessoas oriundas de segmentos subrrepresentados na graduação e que evidenciavam ótimo potencial acadêmico e de liderança, bem como compromisso com questões sociais. Os candidatos selecionados recebiam bolsas de estudo com auxílio financeiro acima do pago por instituições de fomento (CAPES, CNPq, por exemplo), além de recursos para pesquisa, participação em eventos e formação, compra de materiais didáticos, entre outras demandas. Uma equipe pertencente à Fundação Carlos Chagas, com o auxílio de especialistas, realizou o processo seletivo, acompanhou desde a etapa de produção dos projetos de pós-graduação, à seleção dos programas. Foi realizado acompanhamento durante todo o período de frequência aos cursos e as defesas de mestrados e doutorados.
Entre os anos de 2001 e 2012 foram organizados oito editais que correspondem a oito turmas de bolsistas com mais de oito mil candidaturas. Durante o período, foram beneficiadas 343 pessoas, predominantemente oriundas das regiões norte, nordeste e centro-oeste e, em sua maioria, pretos, pardos e indígenas, provenientes de camadas econômicas mais populares.
As primeiras turmas do IFP coincidiram com as primeiras experiências de ação afirmativa para acesso ao nível de graduação, desenvolvidas em universidades públicas brasileiras. Os debates sobre a temática ocorriam em diferentes espaços acadêmicos e sociais, a mídia trazia um tenso e parcial debate sobre as cotas, com posições tanto favoráveis quanto contrárias sobre os direitos de acesso às vagas nas universidades brasileiras, as implicações e a necessidade de criação de políticas diferenciadoras para grupos subrrepresentados nesse espaço de saber (Feres Jr., 2014).
Considerando as modalidades de ação afirmativa, o Programa Bolsa se enquadra na modalidade de financiamento de custos antes da matrícula (preparatório) e durante o período da pós-graduação, além de orientações de percurso para os candidatos. O projeto não se dispunha a questionar ou provocar mudanças nos processos seletivos para ingresso à pós-graduação, mas atuava no fortalecimento das condições financeiras através do valor da bolsa, acima do pago por outras instituições de fomento, recursos para viagens para realização da pesquisa ou participação em eventos e cursos de língua estrangeira. Uma equipe da FCC acompanhava todo o período de bolsas, auxiliando em questões acadêmicas com vistas a facilitar os percursos de formação tornando seus beneficiários mais competitivos nos processos seletivos institucionalizados. Ou seja, o ingresso continuava a acontecer pelo esforço, ou pelo mérito.
No ano de 2016, a Fundação Carlos Chagas desenvolveu um projeto de avaliação do impacto do Internacional Fellowships Program (IFP) na agenda das relações raciais, bem como na mobilidade social dos beneficiários e no comprometimento político e social com a temática. O estudo foi composto por um questionário eletrônico, respondido por 71,4% dos bolsistas (225 dos 343 bolsistas); além disso, informações foram retiradas dos formulários de inscrição dos candidatos aprovados com vistas a compreender suas trajetórias antes da participação no Programa - denominada Memória IFP - e somadas às informações acadêmicas extraídas do Currículo Lattes dos bolsistas, material cuja análise é apresentada e discutida neste artigo.
Análise dos Currículos Lattes de Ex-Bolsistas IFP
O currículo da Plataforma Lattes, pela dimensão que vem ocupando nas áreas de produção e gerenciamento de informações, associado à sua utilização pelas agências de fomento à pesquisa, constitui um instrumento privilegiado para a construção do perfil e da trajetória acadêmica de pesquisadores brasileiros em atividade.
Para este trabalho foram localizadas informações de 300 dos 308 bolsistas que finalizaram um curso de pós-graduação stricto sensu no contexto do programa de bolsas - IFP. São descritas informações de caracterização por sexo e cor/raça (obtidas nos registros da FCC), áreas de inserção/atuação, publicação de artigos em periódicos e coautoria científica. Esses dados permitem a análise cientométrica do perfil dos bolsistas na principal plataforma de dimensionamento da produção científica, tecnológica e acadêmica brasileira. Em determinados casos, os dados são apresentados sob a forma de gráficos, separando o perfil de mulheres e de homens.
Processamento dos Dados da Plataforma Lattes
Para todos os bolsistas, foram extraiu-se todas as informações acadêmicas contidas nos currículos Lattes usando seus identificadores únicos (ID Lattes composto de 16 dígitos) e atualizadas até 6 de novembro de 2016 (data final de coleta de dados). Foi utilizado o scriptLattes13 como ferramenta computacional para o processamento de todas as informações curriculares. O período utilizado para a extração de dados, para cada bolsista, compreendeu da data de seu ingresso ao programa, que variou de 2002 a 2010, até o ano 2016. Adicionalmente foram extraídas informações sobre a data da última atualização do currículo Lattes, primeira grande área e área do conhecimento em que o bolsista atua profissionalmente. As redes de coautoria entre os bolsistas do programa IFP foram obtidas também pela ferramenta scriptLattes. A rede corresponde à coautoria de qualquer tipo de produção bibliográfica (livro, capítulo de livro, artigo em periódico, artigo em evento, por exemplo) registrada nos currículos. O processo que a ferramenta usa para a obtenção da rede de coautoria é o de comparação entre todos os títulos das publicações do mesmo tipo e do mesmo ano. Caso duas publicações sejam similares, ambas são registradas como uma publicação em coautoria. É importante notar que, com essa estratégia, apenas é possível obter coautoria entre os bolsistas, isto é, coautoria endógena.
Resultados
Características Gerais
Este trabalho apresenta os principais resultados obtidos com base nos currículos Lattes localizados dos bolsistas. A presença de 83,3% de negros está em consonância com a proposta do programa. Um conjunto de 12 pessoas, autodeclaradas brancas, foi também beneficiário do Programa14, por decisão do comitê de seleção. Em relatório de 2013 do programa IFP é informado que 50% das bolsas foram concedidas para mulheres e 95%15 para negros e indígenas.
A Tabela 4 apresenta informações de ano de atualização dos currículos na Plataforma Lattes, considerando que a data de coleta foi em novembro de 2016. A atualização do currículo pode ser entendida como uma proxy de inserção acadêmica, já que o currículo se torna quase obrigatório para os processos seletivos relacionados às instituições de ensino superior no Brasil.
Branca | Preta | Parda | Indígena | Total | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
Mulheres | 3 | 103 | 55,1% | 30 | 47,6% | 15 | 39,5% | 151 | 50,3% | |
Homens | 9 | 84 | 44,9% | 33 | 52,4% | 23 | 60,5% | 149 | 49,7% | |
Total | 12 | 4,0% | 187 | 62,3% | 63 | 21,0% | 38 | 12,7% | 300 | 100,0% |
Fonte: IFP (2018).
% | 2016 | 2015 | 2014 | 2013 | 2012 | 2011 | 2010 | Antes 2010 | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Branca | 75,0% | 8,3% | 8,3% | 8,3% | 100,0% | ||||
Preta | 68,4% | 10,7% | 5,3% | 4,2% | 2,7% | 2,7% | 1,6% | 4,2% | 100,0% |
Parda | 69,8% | 14,3% | 6,3% | 4,7% | 1,6% | 1,6% | 1,6% | 100,0% | |
Indígena | 47,4% | 18,4% | 18,4% | 5,2% | 2,6% | 2,6% | 2,6% | 2,6% | 100,0% |
Fonte: IFP (2018).
Do conjunto coletado foi evidenciado que, dois terços atualizaram o currículo no ano de coleta das informações (2016), com uma taxa um pouco menor para os indígenas (47,4%). Considerando o triênio 2014-2016, 86,2% dos ex-bolsistas atualizaram seu currículo Lattes.
Uma das preocupações do IFP, ao selecionar os candidatos oriundos das regiões norte, nordeste e centro-oeste, é que, ao concluírem os estudos de pós-graduação (por exemplo, após a titulação acadêmica), os bolsistas retornassem para sua região de origem16. Dados do Relatório de Pesquisa do Survey (2016) indicam que, dos 205 candidatos para os quais obtivemos resposta do local de moradia atual, 128 (62,7%) continuavam na mesma localidade (UF) de nascimento, o que indica que, embora tendo estudado em outra localidade, parte importante retornou para os locais de origem. Para reforçar essa ideia, a Figura 1 foi elaborada apresentando o mapa de geolocalização de atuação profissional atual dos bolsistas, com uma distribuição representativa no Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Cada bolsista foi representado por um balão com o logo da Plataforma Lattes.
Outra informação importante para a caracterização do grupo são as áreas de conhecimento de formação. Dos 300 ex-bolsistas, 40 ou não registraram área de atuação ou registraram como área outros. 177 associados a Ciências Humanas, 45 a Ciências Sociais Aplicadas, 19 a Linguística, Letras e Artes, 8 a Ciências da Saúde, 6 a Ciências Agrárias, 3 a Ciências Biológicas e 1 tanto para Engenharias quanto para Ciências Exatas e da Terra. Os Gráficos 3 e 4 expõem a distribuição por áreas de conhecimento, separadamente, para mulheres e homens e por cor/raça. A tendência reforça o já descrito na literatura sobre inserção de negros no ensino superior, com uma maior participação nas áreas das Ciências Humanas17 e Sociais Aplicadas18, consideradas de menor prestígio (Ricoldi; Artes, 2016). Como as taxas de participação de brancos são pequenas, as análises se concentram nos grupos de pretos, pardos e indígenas.
Da mesma forma que as mulheres pretas se concentram nas Ciências Humanas, que incluem os cursos de Educação, as mulheres pardas estão em sua maioria nas Ciências Sociais Aplicadas. Na comparação entre os sexos, os homens se concentram nas Ciências Humanas, com uma participação menor nas Ciências Sociais Aplicadas. Os indígenas, tanto homens quanto mulheres, se concentram nas Ciências Humanas (46,7%).
As informações de áreas de conhecimento podem ser complementadas pelo local de inserção profissional, obtido a partir do endereço profissional dos bolsistas e descrito na Tabela 5, sem o recorte racial.
Endereço profissional | N | % | |
---|---|---|---|
Sem informação | 116 | 38,7% | |
Governo* | 46 | 15,3% | |
IES | Federal | 75 | 25,0% |
Estadual | 16 | 5,3% | |
Total IES | 104 | 34,7% | |
Outras instituições/associações | 34 | 11,3% | |
Total | 300 | 100,0% |
Fonte: IFP (2018).
*Governo inclui secretarias e instituições federais, estaduais e municipais, em especial as secretarias de Educação.
Dos respondentes (184 pessoas), a maior parte atua em IES federais, conforme a expectativa de inserção acadêmica dos beneficiários, definidas nos objetivos do Programa de bolsas - IFP. Inseridos em órgãos do governo estão 15,3%, o que inclui principalmente as Secretarias de Educação.
Artigos Científicos
Uma medida disponibilizada no Lattes e valorizada na academia é a produção de conhecimento na forma de artigos científicos (livros, capítulos de livros, resumos em eventos, artigos completos em eventos, assim como artigos em periódicos). Dos 300 ex-bolsistas, 248 (82,7%) publicaram pelo menos um artigo científico no período, sendo que apenas 52 (17,3%) não realizaram alguma publicação. Quando observada a produção de artigos em periódicos científicos avaliados por pares, notamos que 181 (60,3%) dos ex-bolsistas publicaram pelo menos um artigo.
Na Tabela 6 apresentamos o número total de artigos coletados para todos os beneficiados pelo programa de bolsas. Os quantitativos na tabela correspondem à somatória de todas as produções individuais, assim, as publicações em coautoria pelos mesmos bolsistas podem estar sendo duplamente contabilizadas. A coautoria está sendo explorada na próxima seção.
Total de artigos | Média | Máximo | |
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Trabalho em congresso | 1219 | 4,06 | 58 |
Capítulo de livro | 714 | 2,38 | 29 |
Artigo em periódico | 697 | 2,32 | 32 |
Resumo | 556 | 1,85 | 31 |
Livro | 288 | 0,96 | 25 |
Resumo expandido | 203 | 0,67 | 21 |
Fonte: IFP (2018).
O maior tipo de produção bibliográfica corresponde a trabalhos completos publicados em congressos (média de 4 artigos), seguido de capítulos de livro e artigos publicados em periódicos científicos avaliados por pares (ambos com média de 2,3). Como esperado, os livros e resumos correspondem a um número menor de publicações. Não há uma avaliação da qualidade (Qualis Capes19) dos artigos, apenas a contagem para o período em análise.
Finalmente, é importante frisar que o programa de bolsas IFP tem auxiliado a selecionar, criar e/ou fomentar pesquisa, que é refletida em 3.677 artigos científicos. Na coleta realizada é possível identificar ex-bolsistas com grande número de publicações (ver coluna máximo na Tabela 6).
Coautorias Entre os Bolsistas IFP
A Figura 2 apresenta a rede de coautoria entre os bolsistas, indicando que, após a conclusão do programa de bolsas IFP, mantiveram contatos de trabalho e produção científica. A maior parte das parcerias é separada por sexo. Nota-se que esta figura mostra apenas as relações entre as 56 pessoas (18,7% de 300) que colaboraram durante o período de ingresso no programa. Portanto, as pessoas que não colaboraram com algum outro membro do programa não estão sendo representadas na rede e podem ter produzido artigos em parcerias fora do período em que o programa de bolsas IFP esteve vigente.
Na Figura 2, o número no vértice corresponde ao número de protocolo do processo atribuído pela FCC ao aluno bolsista durante a inscrição. No caso de uma pessoa ter realizado mais de um processo seletivo, o protocolo mantido é o mais antigo. A cor cinza no vértice representa as mulheres, e a cor branca, os homens. A grossura da aresta representa a proporção de coautorias feitas entre cada par de bolsistas. O tamanho do vértice é proporcional ao número de colaborações de cada bolsista. Um incentivador para essas parcerias pode ser a Associação Brasileira de Pesquisadoras(es) pela Justiça Social (Abrapps), criada pelos ex-bolsistas com a finalidade de estabelecer um espaço de representação política dos egressos do programa IFP. Estas evidências serão o ponto de partida para novos estudos que analisem colaboração entre bolsistas do programa IFP.
Com respeito ao grau de colaboração entre os 56 ex-bolsistas que colaboraram, foi evidenciado que somente 3 pesquisadores colaboraram com outros 3 ex-bolsistas e que 8 pesquisadores colaboraram com outros 2 ex-bolsistas. As outras 45 colaborações correspondem a parcerias apenas entre 2 ex-bolsistas (grau 1). Esses quantitativos mostram que, embora o programa de bolsas IFP não exija colaboração entre os beneficiados, é natural que, dadas as áreas e os assuntos de pesquisa, os temas sejam explorados de forma colaborativa. Esta questão de colaboração pretende ser mais explorada nos trabalhos que visam avaliar o programa após a sua finalização.
Conclusões
A contribuição do estudo apresentado para as discussões sobre as políticas de ação afirmativa é avaliar uma iniciativa pioneira de oferta de bolsas para negros e indígenas acessarem a pós-graduação brasileira, enquanto as principais ações desenvolvidas à época concentravam-se no acesso aos cursos de graduação. O uso de dados retirados da Plataforma Lattes permitiu a caracterização atualizada da inserção, da trajetória, da produção e da colaboração entre os beneficiários da iniciativa.
O sucesso do Programa Bolsa pode ser dimensionado pelos resultados obtidos, por exemplo, pela inserção acadêmica dos ex-bolsistas em universidades públicas.
A inserção de negros nos espaços da pós-graduação é uma realidade dimensionada e descrita pelos números apresentados, tanto nos resultados gerais descritos a partir dos Censos Demográficos, como pela descrição do universo IFP.
Hoje, várias iniciativas de discriminação positiva estão em desenvolvimento em programas de pós-graduação em diferentes universidades. O tema está em pauta. A experiência do Programa de Bolsas IFP pode contribuir indicando que, para um real sucesso na empreitada, é necessária a garantia de acesso, ou seja, democratização do ensino superior e implementação de políticas racializadas de permanência estudantil. As trajetórias dos bolsistas IFP indicam que as políticas diferenciadoras são exitosas e produtoras de pesquisadores inseridos na academia e nos espaços de produção dos conhecimentos.