Introdução
Helen: Acho que falam mais sobre isso.
Wayne: Sim, falam. Falam mais sobre isso.
(Centro Girral de Aprendizagem Aborígene, 2017)
Ao dizer acho que falam mais sobre isso, Helen, uma mãe aborígene que tinha um filho pequeno, estava descrevendo como os pais que conhecia falavam sobre orientar mais a aprendizagem. Helen e Wayne estavam discutindo a campanha Lead My Learning [Orientar minha Aprendizagem] e a participação dos pais na aprendizagem dos filhos. Estavam em uma pré-escola aborígene no Centro Girral de Aprendizagem Aborígene em Girral, um dos locais da campanha comunitária de nosso projeto. Girral (pseudônimo) é uma grande cidade regional em New South Wales (NSW) (29.000 habitantes), com uma população aborígene muito maior do que a população nacional da Austrália (12%, comparado com 3,3%). As pré-escolas são para pais, famílias e cuidadores e suas crianças pequenas (desde bebês até a idade pré-escolar). Têm facilitadores/as que podem ser contratados (se a pré-escola fizer parte de um serviço) ou, se for em grupos comunitários, voluntários, sendo em geral sediados em espaços designados que sejam acolhedores para crianças pequenas. As pré-escolas diferem marcadamente de creches; enquanto em geral esta não inclui os pais, as pré-escolas estão cheias de pais e seus filhos pequenos.
Por meio do Marketing Social Cultural Crítico (Harwood; Murray, 2019b), a campanha Lead My Learning buscava descrever respeitosamente as práticas de aprendizagem dos pais com seus filhos pequenos - práticas que muitas vezes são negligenciadas ou deslegitimadas na educação hegemônica. Desenvolvida como parte de um projeto de quatro anos de duração, Lead My Learning resultou da busca pela criação de um discurso que os pais reconheçam como inclusivo de sua participação na aprendizagem dos filhos. Quando Helen e Wayne disseram que estes pais falam mais sobre isso, estão explicando que os pais estão falando mais sobre sua participação na aprendizagem dos filhos depois de participarem da campanha Lead My Learning. Lead My Learning incluía pais aborígenes e não aborígenes que vivenciam desvantagem educacional e foi desenvolvida em dezessete lugares em comunidades regionais e rurais/remotas em New South Wales, Austrália. Neste artigo, enfocamos como trabalhamos para criar uma abordagem Aborígene-Orientada que promovesse a inclusão de pessoas aborígenes e não aborígenes.
A conversa de Helen e Wayne não é marcada por noções de déficit, como pais aborígenes serem menos envolvidos ou menos engajados com a aprendizagem dos filhos. A partir de seus comentários e do feedback de outros pais, a campanha Lead My Learning não era um corretivo. Ao contrário, poderíamos dizer que contribuiu para o que chamamos de produção de discurso estratégico (Harwood; Murray, 2019a), isto é, um discurso estrategicamente desenvolvido que aborde o que os pais estão fazendo (mas que foi eliminado nos discursos oficiais hegemônicos de participação dos pais na educação). Por exemplo, Deanne, que participou de uma entrevista diferente, afirmou ao ser questionada sobre sua experiência com Lead My Learning que tenho certeza que sim, mas certamente para mim é tipo mais… estou mais consciente agora (Deanne, Pré-Escola Girral, 2017). Muitas vezes foram feitos comentários semelhantes sobre Lead My Learning pelos 122 outros pais que participaram de nossa yarning1 pós-campanha e das entrevistas semiestruturadas.
É importante observar que os comentários de Helen, Wayne e Deanne deixam claro que, primeiro, os pais falavam mais sobre algo que estavam fazendo - sua participação na aprendizagem dos filhos. Em segundo lugar, que a campanha Lead My Learning tinha conseguido conectar de maneira respeitosa estas práticas de aprendizagem - e representá-las de modo a se conectar com os pais. Começamos com a discussão dos comentários de Helen, Wayne e Deanne porque nos ajudam a demonstrar o que nosso projeto de pesquisa se propôs a fazer. No restante do artigo, partimos desta discussão de dados empíricos para uma discussão de como trabalhamos com uma abordagem aborígene-orientada. Neste sentido, este artigo se propõe a introduzir a prática de pesquisa que produziu a campanha Lead My Learning.
Na seção seguinte, esboçamos como a participação parental na aprendizagem dos filhos é dominada por noções ocidentais de educação hegemônica. Nesta discussão, apontamos para nossa necessidade de aplicar uma antropologia crítica sob o ângulo da educação a estes discursos dominantes, lançando luz, por assim dizer, sobre estas produções e práticas discursivas. Ao mesmo tempo, nos embasamos em recursos metodológicos da antropologia da educação que nos incentivam a estar no campo, despender tempo e, com reflexividade crítica, escutar e aprender. A seguir, fazemos um breve esboço do Marketing Social Cultural Crítico, que adaptamos do marketing social. A partir desta discussão, descrevemos como nos embasamos em Protocolos de Pesquisa Aborígene, que não apenas informaram nossas práticas de pesquisa, mas que, ao nosso ver, melhoraram nossa própria prática como pesquisadoras. Em seguida, discutimos como trabalhamos com uma abordagem aborígene-orientada ao longo de nossa pesquisa. No restante do artigo, fazemos uma revisão dos processos de pesquisa e discutimos a criação do Marketing Social Cultural Crítico - um dos resultados de nossos esforços de pesquisa.
Os Discursos Dominantes da Participação Parental na Aprendizagem de seus Filhos
Existe um problema sério em como a participação parental na aprendizagem dos filhos é conceituada na educação ocidental hegemônica, e isso pode ter impactos prejudiciais para os pais aborígene (Lea; Thompson; Mcrae-Williams; Wegner, 2011; Lowe; Harrison; Tennent; Guenther; Vass; Moodie, 2020; Martin, 2017). Este problema tem ressonância naquilo que González, Wyman e O’Connor (2016) descrevem como a premissa subjacente do influente trabalho em Funds of Knowledge (FofK) [Recursos de Conhecimento] (González; Mull; Amanti, 2006; Rogoff et al., 2017; Urrieta, 2015). Conforme afirmam, “O trabalho começou com uma premissa simples: aprender sobre os estudantes e suas comunidades é tão importante quanto aprender matérias e conteúdo” (González; Wyman; O’ Connor, 2016, p. 482). Significativamente, com os Funds of Knowledge,
[…] a intenção era combater explicações ‘culturais’ não-informadas e estereotipadas de comportamentos que se infiltraram no discurso em torno da participação dos pais, valorização da educação, e investimento em desempenho escolar… A práxis do FofK também promoveu um engajamento profundo com os locais históricos das comunidades, em um esforço para ir além de ‘análises culturais rasas’… (González; Wyman; O’ Connor, 2016, p. 482-483).
Para nossa pesquisa, também precisamos combater visões não-informadas e estereotipadas que “[...] se infiltram no discurso em torno da participação dos pais, valorização da educação, e investimento em desempenho escola” (González; Wyman; O’Connor, 2016, p. 482-483). E isto exigiu uma abordagem crítica a como os problemas educacionais são construídos (Harwood; Hickey-Moody; McMahon; O’Shea, 2017; McMahon; Harwood; Hickey-Moody, 2016). Com certeza, os pais aborígenes e não aborígenes que vivenciaram desvantagem educacional experienciaram uma série de relatos de déficits sobre si próprios, seus filhos e sua participação na aprendizagem dos filhos (Harwood; Murray, 2019b). Para os pais aborígenes envolvidos em nosso projeto de pesquisa, isto incluía os impactos continuados da colonização, do racismo e das narrativas de déficit.
As conversas e a pesquisa que descreve estas práticas diferentes foram vitais para construir nossa atenção para o que os pais estavam fazendo. Os trabalhos publicados que nos informaram ou ajudaram a descrever o que estávamos vivenciando com relação à participação dos pais incluiu o trabalho sobre LOPI (Learning By Observing and Pitching In) [Aprendizagem por Observação e Participação] (Correa-Chávez; Mejia-Arauz; Rogoff, 2015; Mejía-Arauz; Rogoff; Dayton; Henne-Ochoa, 2018; Rogoff, 2014; 2016; Rogoff et al., 2017; Urrieta, 2015). Este trabalho, baseado nas Américas, enfoca as práticas de aprendizagem que diferem do foco ocidental da escola,
Learning By Observing and Pitching In parece ser particularmente comum nas comunidades mexicanas e centro-americanas, especialmente aquelas com histórico indígena, bem como entre imigrantes aos Estados Unidos oriundos destas regiões e comunidades nativas norte-americanas (Rogoff, 2016, p. 185).
Embora muito da pesquisa sobre LOPI tenha se concentrado nestas comunidades, Rogoff (2016, p. 185) vai adiante para sugerir que,
[…] é provável que todas as comunidades utilizem o LOPI, especialmente porque as crianças aprendem sua primeira língua ao participarem de seu uso. Além disso, algumas escolas inovadoras são organizadas de maneiras que se assemelham ao LOPI, com colaboração entre crianças e adultos em iniciativas escola-comunidade.
É interessante que Rogoff (2016) propõe uma comparação entre LOPI, que enfatiza um paradigma de participação em práticas culturais, com a abordagem em linha de montagem da educação moderna. Embora não tenhamos pesquisado LOPI em nosso trabalho, os conceitos foram extremamente úteis para nos ajudar a pensar de maneira diferente e reconhecer as práticas de aprendizagem dos pais.
Então, pode-se argumentar que construir reconhecimento e valorização da participação dos pais exige um “[...] profundo engajamento com locais históricos das comunidades” (González; Wyman; O’ Connor, 2016, p. 483), bem como uma consciência crítica de como os problemas de déficit são construídos. Isto é uma consciência político-histórica - bem como o uso cuidadoso e sustentado de atenção em profundidade e no campo a como os pais estão envolvidos na aprendizagem dos filhos. Aqui a antropologia da educação oferece valiosas abordagens e insights à educação e à participação dos pais. Por exemplo, Hurtig e Dyrness (2016, p. 531) discutem as contribuições da
[…] etnografia crítica e pesquisa-ação participativa etnograficamente informada para nosso entendimento de como os pais de comunidades marginalizadas se engajam e o que pensam acerca de sua participação na educação de seus filhos.
De maneira semelhante e inspiradas por uma abordagem etnográfica crítica, conseguimos construir nossa compreensão da participação dos pais e acolhemos uma ênfase em Protocolos de Pesquisa Aborígene e abordagem Aborígene-Orientada.
Marketing Social Cultural Crítico e os Discursos de Déficit de Aprendizagem Dominantes e Colonizadores
Conforme foi defendido acima, o discurso sobre a participação parental aborígene na aprendizagem dos filhos é impactado por relatos colonizadores e de déficit de participação parental e aprendizagem que são estreitos e insuficientes. Então, é necessário encontrar maneiras de descrever/nomear o que os pais aprendizes fazem com seus filhos (mas que é excluído do discurso oficial). O Marketing Social Cultural Crítico à promoção da educação é um dos resultados de nossa pesquisa.
O marketing social cultural crítico aplica um marco crítico que é culturalmente informado e pretende desestabilizar ou desafiar os relatos de déficit dominantes que problematizam as pessoas e/ou suas comunidades. O marketing social cultural crítico situa a cultura e a crítica na linha de frente para aferir como os conceitos, as técnicas e práticas de marketing social poderiam ser usados em determinado contexto social e cultural e com uma apreciação de como as práticas dominantes podem ter impacto nos contextos de vida das pessoas e suas relações com educação e aprendizagem. Embasando como as atividades de marketing social são conceituadas, planejadas e aplicadas, a atividade de crítica e atenção ao cultural forma uma abordagem que problematiza a produção de conhecimento e se sustenta na tradição de metodologias críticas e de reflexividade do pesquisador (Harwood; Murray, 2019b, p. 96).
O Marketing Social Cultural Crítico se engaja com estudos recentes em marketing social que têm buscado desenvolver conexões interdisciplinares com as ciências sociais críticas, bem como com o novo trabalho novo que defende abordagens descolonizadoras na pesquisa de marketing social com povos aborígenes (Madill; Wallace; Goneau-Lessard; Stuart MacDonald; Dion, 2014). Há muito poucas adaptações de metodologias, como o marketing social para uso na complexa paisagem cultural e social da desvantagem educacional (Truong, 2014). Entretanto, há diversos estudos que estão se embasando em abordagens como a etnografia (Brennan; Frite; Previte, 2015; Cullen; Matthews; Teske, 2008) e que estão usando trabalho conceitual sociológico como capital cultural (Kamin; Anker, 2014). Ao mesmo tempo, os estudiosos têm se baseado nas ciências sociais críticas para questionar os motivos de marketing social, por exemplo, as críticas foucaultianas ao marketing social como formas de governança biopolítica (Crawshaw, 2012; Pykett; Jones; Welsh; Whitehead, 2014).
Era fundamental prestar mais atenção a uma ênfase cultural crítica que procura responder aos complexos problemas da desvantagem (Harwood; Hickey-Moody; McMahon; O’Shea, 2017; Wolff; O De-Shalit, 2007). E principalmente, isto envolvia o emprego de Marketing Social Cultural Crítico de baixo para cima (Murray; Harwood, 2016). Isto permitiu que criássemos uma abordagem criticamente informada para uso na promoção de futuros educacionais em comunidades e lugares onde há significativa desvantagem educacional.
Protocolos de Pesquisa Aborígene
Nossos esforços têm sido informados por nossa atenção continuada aos Protocolos Aborígenes (Murray; Harwood, 2016). Fazemos uma parada aqui para enfatizar que “[…] não estamos afirmando que exista um conjunto de protocolos aborígenes” (Murray; Harwood, 2019b, p. 15). Este ponto foi explicado por Karen Martin (2012, p. 28), uma Mulher2 Noonuccal, em seu capítulo Childhood, lifehood and relatedness: Aboriginal ways of being, knowing and doing,
As ideias neste capítulo não devem ser consideradas como compreensões aborígenes genéricas da realidade. Embora possam surgir alguns princípios universais e haver alguns princípios em comum entre nós como povos aborígenes, só consigo falar a partir de minha própria compreensão, vivências e realidades. Portanto, não existe tamanho único porque o modelo tamanho-único não é respeitoso.
Os protocolos aborígenes que usamos foram centrais para informar e orientar nossa abordagem neste projeto de pesquisa e não são genéricos, mas sim os protocolos com os quais trabalhamos com base em nossos próprios entendimentos. O Estado-nação agora conhecido como Austrália tem uma diversidade de povos aborígenes e Torres Strait Islander [nativos do Estreito de Torres]. O governo australiano (2015) relata que antes da colonização da Austrália (anterior a 1776) havia “[…] mais de 500 clãs ou ‘nações’ de aborígenes e de nativos de Torres Strait em todo o continente” (Australian…, 2015). No entanto, é provável que este número seja maior e, fundamentalmente, “[…] também é problemático usar o tempo pretérito para descrever as ricas e diversificadas práticas culturais e saberes vivos do continente que desde a colonização tem sido chamada de Austrália” (Harwood; Murray, 2019b, p. 14). Um mapa apresentando esta diversidade está disponível on line3 e informamos que foi produzido como uma “[…] tentativa de representar os grupos linguísticos, tribais ou nações de povos aborígenes da Austrália […]” e que “[…] as informações sobre as quais o mapa está baseado é contestada e pode não ser aprovada por alguns proprietários de terras” (Australian…, 2019).
Conforme foi esboçado nas Guidelines for Ethical Research in Australian Indigenous Studies [Diretrizes para Ética em Pesquisa em Estudos Indígenas Australianos] da AIATSIS (Australian…, 2012), é vital que a pesquisa com e sobre os povos indígenas deva ser fundada sobre um processo de engajamento pertinente e reciprocidade entre pesquisadores e povos indígenas. Reconhecemos a importância da aprendizagem com os Idosos4 aborígenes locais e da construção de relações, estabelecimento de respeito e condução de pesquisa de maneiras que assegurem seus direitos de manutenção da propriedade intelectual (Murray; Harwood, 2016). Os protocolos de Pesquisa Aborígene (Murray; Harwood, 2016) que utilizamos enfatizam o respeito, as relações e os direitos ao conhecimento. Esta abordagem busca os pontos fortes dos povos aborígenes, das culturas aborígenes, das comunidades aborígenes e do País.
O País tem uma grande importância na Austrália aborígene. Por exemplo, ver McKnight (2015; 2016) e a coletânea Us Women, OurWays Our World (Dudgeon; Herbert; Milroy; Oxenham, 2017). Uma descrição de País publicada por Aunty Laklak Burarrwanga, uma Idosa Datiwuy, Cuidadora de Gumatj (Burarrwanga 2013), compartilha a profundidade deste significado.
O País tem muitas camadas de significado. Incorpora pessoas, animais, plantas, água e terra. Mas o País é mais do que apenas as pessoas e as coisas, também é o que as conecta entre si e com os múltiplos reinos espirituais e simbólicos. Está relacionado com as leis, os costumes, o movimento, a canção, os saberes, as relações, as histórias, os presentes, os futuros e os seres do espírito. Pode-se conversar com o País, ele pode ser conhecido, ele mesmo pode se comunicar, sentir e agir. Para nós, o País é vivo com relatos, leis, poder e relações de parentesco que reúnem não apenas as pessoas umas com as outras, mas conectam pessoas, antepassados, lugares, animais, rochas, plantas, relatos e canções na terra e no mar. Então, você vê que conhecer o País é importante porque se trata de como e onde você se encaixa no mundo e como você se conecta com os outros e com o lugar (Burarrwanga et al., 2013, p. 54).
Incluímos esta citação de Aunty Laklak Burarrwanga para transmitir a importância do País e a necessidade vital de sermos inclusivas para com o respeito e a consciência de País em nosso trabalho. Este respeito e consciência, por exemplo, foram fundamentais para nossas relações com os participantes, para valorizar os diferentes povos e comunidades aborígenes com quem trabalhamos, e para sermos pesquisadoras respeitosas para com o País (McKnight, 2015).Ao mesmo tempo em que somos orientadas por protocolos aborígenes, nosso trabalho procura criticar ativamente os discursos, práticas e abordagens de pesquisa de déficit e colonizadores. Por exemplo, nossa atenção aos protocolos aborígenes nos levava continuamente a buscar e questionar práticas que são colonizadoras, a estar mais bem informadas sobre os impactos das histórias da colonização, e estarmos abertas e positivamente engajadas em questionar a nós mesmas e a nossa prática de pesquisa. Isto inclui a atenção à crítica da noção de ‘caçadores coletores’ que foi erroneamente usada para descrever os povos aborígenes (Pascoe, 2018) ou estereótipos de povos aborígenes associados a ‘arbustos’ e não à cidade (Fredericks, 2013). Deste modo, “[…] aderir a estes protocolos ofereceu a oportunidade de conexão com maneiras filosóficas e práticas profundas de empreender processos de pesquisa e escutar e ser orientado por aqueles envolvidos na pesquisa” (Harwood; Murray, 2019b, p. 115). Estes protocolos informaram nosso trabalho em cada etapa de nossa pesquisa (Murray; Harwood, 2019b) e sustentamos que “[…] incorporar Protocolos Aborígenes forneceu uma base para que participantes e partes interessadas do projeto nos enxergassem como investigadores respeitosos” (Harwood; Murray, 2019b, p. 115).
Uma Abordagem Aborígene-Orientada: invertendo estratégias hegemônicas
A pesquisa que informou a criação da campanha Lead My Learning foi conduzida por duas pesquisadoras, Nyssa, uma Mulher5 Dungutti, e Valerie, uma mulher6 não-aborígene nascida em Kaurna Country (Adelaide, Austrália) descendente de ingleses, galeses e alemães. Inicialmente nos reunimos para formar uma equipe de pesquisa depois que Valerie recebeu uma bolsa de quatro anos do Australia Research Council Future (FT1301011332) e Nyssa foi contratada como Gerente de Projeto em janeiro de 2015. A equipe de pesquisa ampliada incluía pessoas aborígenes e não-aborígenes. Assumindo uma abordagem transcultural, os participantes incluíam pessoas aborígenes e não-aborígenes que vivenciaram desvantagem educacional, vivem em lugares de desvantagem socioeconômica e que estão envolvidas em parentalidade de crianças pequenas. As atividades de pesquisa ocorreram durante um período de quatro anos (2015-2018).
O objetivo geral era investigar a adaptação de técnicas de marketing social para uso em contextos da Educação Infantil com famílias que sofriam considerável desvantagem socioeconômica e melhorar o conhecimento sobre o ensino superior em ambientes de Educação Infantil de baixo status socioeconômico. Lead My Learning e o desenvolvimento de Marketing Social Cultural Crítico são resultados deste projeto.
Por meio de nossa colaboração em conjunto e nossa aprendizagem continuada com Idosos e comunidades, decidimos inverter o paradigma, por assim dizer, e nos concentramos em uma abordagem Aborígene-Orientada que promovesse a inclusão de povos aborígenes e não-aborígenes.
[…] fomos orientados por pessoas aborígenes. Esta abordagem para promover educação inverte estratégias ‘hegemônicas’. As pessoas aborígenes consultadas em nossa pesquisa gostaram que não-aborígenes fossem bem-vindos para participar na campanha. Assim, embora nossa abordagem realmente tenha incorporado consultoria com pessoas não-aborígenes, garantimos que isto estivesse de acordo com as abordagens aborígene-orientadas (Harwood; Murray, 2019a, p. 354).
A pesquisa foi sustentada por um compromisso em priorizar os modos aborígenes de saber, ser e fazer (Martin; Mirraboopa, 2003) e foi orientada por pessoas aborígenes. O que estávamos fazendo era marcar uma posição em que “[…] buscamos trabalhar proativamente contra a indiferença colonialista à filosofia indígena” (Watson, 2014, p. 517-518” (apud Harwood; Murray, 2019, p. 105). Seguir esta orientação nos estimulou a refletir sobre práticas aborígenes, inclusive Dadirri (escuta profunda), compartilhada pela Idosa Miriam-Rose Ungunmerr (2017), que contribuiu com abordagens de pesquisa (Miller; 2014; West; Stewart; Foster; Usher, 2012).
Decidir os lugares onde a campanha de Marketing Social Cultural Crítico poderia ocorrer foi um processo lento e resultado de nossa pesquisa formativa. Começamos nas etapas iniciais com o trabalho de campo em diversos lugares na regional Interna, rural (regional Externa) e remota de NSW. Na Austrália that “[...] [a] expressão ‘rural e remoto’ compreende todas as zonas fora das maiores cidades australianas” e isso segue a Australian Statistical Geography Standard (Australian…, 2019), “[...] estas zonas são classificadas como regional Interna, regional Externa, Remota ou Muito remota” (Australian…, 2019). Para identificar os lugares onde havia significativa desvantagem educacional, nos baseamos no SEIFA Index of Relative Socioeconomic Disadvantage [Índice de Desvantagem Socioeconômica Relativa] (Australian…, 2013).
Com base em nossa pesquisa formativa, estes lugares iniciais foram então limitados a lugares específicos onde o trabalho de campo continuado, que incluía a criação e a implantação da Lead My Learning, ocorreu. A etapa formativa durou catorze meses, um período de tempo que foi necessário para construir a relação com comunidades aborígenes e não-aborígenes e realizar múltiplas entrevistas e visitas à comunidade com pais e um rol de serviços em múltiplos lugares no estado australiano de New South Wales.
Durante todo nosso trabalho de campo, usamos entrevistas (por yarning e semiestruturadas) com grupos de pais e prestadores de serviços, e entrevistas longitudinais (yarning e semiestruturadas) com pais. Foram usados yarning, uma metodologia aborígene, e entrevistas semiestruturadas. Ao discutir yarning aborígene, Fredericks et al. (2011, p. 13) explicam que
Yarning é mais do que apenas uma troca de palavras e gentilezas em conversa casual. Yarn é um processo e uma troca; abrange elementos de respeito, protocolo e engajamento nas relações dos indivíduos entre si. Yarning estabelece o relacionalidade e determina responsabilização (Martin, 2008).
Yarning é um método aborígene respeitado (Bessarab; O Ng’ Andu, 2010) e pode ser usado em pesquisa por e com povos aborígenes (Geia; Hayes; Usher, 2013; Mooney; Riley; Blacklock, 2018).
A decisão de usar entrevistas por yarning ou entrevistas semiestruturadas dependia de quem estava envolvido na entrevista (tanto participantes como pesquisadoras) e do contexto. Em geral, ocorria yarning quando havia pessoas aborígenes envolvidas (seja como participantes ou pesquisadora). Se uma pesquisadora aborígene estivesse presente e os participantes fossem aborígenes e não-aborígenes, o yarning ocorria. Se todos os presentes fossem não-aborígenes (participantes e pesquisadora), então eram usadas entrevistas semiestruturadas. Em alguns casos em que as entrevistas individuais eram feitas pela pesquisadora aborígene e a pessoa não-aborígene conhecesse ou se sentisse confortável com yarning, a metodologia yarning era usada. Usamos yarning principalmente nas discussões que tínhamos em nossa equipe de pesquisa, como era feito em nossas entrevistas com participantes (Harwood; Murray, 2019b). Havia ocasiões em que as entrevistas por yarning ocorriam com participantes aborígenes e uma pesquisadora não-aborígene. Nestes casos, a abordagem Aborígene-Orientada ajudava a pesquisadora não-aborígene a respeitar, a escutar para ser orientada pelos participantes aborígene e suas abordagens yarning no contexto da pesquisa.
Este trabalho formativo também nos levou a reconsiderar e replanejar o delineamento de nosso projeto de pesquisa para a campanha, tendo como resultado nosso ajuste para incorporação de três estratégias distintas:
1) Uma campanha comunitária (com lista de espera (aproximadamente 29.000 pessoas)
2) Uma campanha em várias pré-escolas (11 lugares) em parceria com um prestador de serviços em NSW regional
3) Uma campanha em serviços de Educação Infantil (4 locais) baseada em transporte de crianças por ônibus.
O Marketing Social Cultural Crítico, semelhante ao marketing social, envolve o uso de diversas estratégias ou técnicas. Descrevemos brevemente duas delas, segmentação e proposição. Em termos de segmentação, nosso projeto trabalhava com o que denominamos de segmento felicidade vs educação. Este segmento valorizava a educação - mas considerava a felicidade como mais importante (Harwood; Murray 2019a). Por meio de nosso trabalho formativo, tínhamos identificado que conectar aprendizagem com felicidade seria a chave no delineamento de uma campanha de Marketing Social Cultural Crítico para este grupo prioritário.
A proposição desenvolvida para Lead My Learning era baseada em nossa etapa formativa em profundidade. Foi desenvolvida a seguinte proposição:
É possível orientar a aprendizagem dos filhos. É necessário apenas um pouco de tempo e pode ser inserida nas atividades diárias.
Você pode estimular a aprendizagem de seus filhos sem ter conhecimento específico sobre algum tópico E isto proporciona à criança experiências felizes de valorização e desfrute da aprendizagem.
Esta proposição formava a base a partir da qual desenvolvemos e testamos/buscamos feedback (e redelineamos e buscamos feedback) sobre as mensagens da campanha. Isto levou ao desenvolvimento da clara mensagem Atividades Diárias são Oportunidades de Compartilhar e Incentivar a Aprendizagem. As mensagens associadas criadas enfatizavam o compartilhamento e o estímulo à aprendizagem:
Momentos de Compartilhamento e Estímulo à Aprendizagem ajudam as crianças a desfrutarem da aprendizagem, a se sentirem fortes em relação à aprendizagem e, muito importante, se interessarem em aprender e explorar relações de aprendizagem.
Compartilhamento de Aprendizagem: Falar sobre o como aprender, descrever as coisas conforme você as vê, compartilhar informações, crianças observarem você aprendendo.
Estímulo à Aprendizagem: Oferecer incentivos como sorrir, sinal de positivo, reforço positivo, e elogiar pela tentativa.
Estas mensagens eram apoiadas por uma série de materiais e componentes de design e processos como o plano de campanha. Tivemos fases adicionais iterativas de consultoria com representantes de nosso público prioritário (o segmento prioritário que tínhamos identificado). Estas iterações múltiplas garantiam que os materiais fossem continuamente refinados conforme a orientação do público - e nos ajudavam a assegurar que a campanha e os materiais de campanha fossem respeitosos para com a participação dos pais.
Ter observado a abordagem Aborígene-Orientada, os Protocolos de Pesquisa Aborígene e a prática de tempo valorizada no campo em antropologia da educação nos ajudou em nossos esforços de despender tempo para realizar nosso projeto, particularmente a pesquisa formativa em profundidade e os ciclos iterativos de delineamento e feedback. Embora tenhamos vivenciado um senso de pressão para concluir estas partes do projeto de pesquisa, tiramos força destes protocolos e abordagens para permanecer a distância e usar o tempo para desenvolver relações e escutar, aprender e reelaborar nosso trabalho cuidadosamente. Acreditamos que esta pesquisa em profundidade foi fundamental para nossos êxitos na campanha e, particularmente, para conseguir descrever ou retratar de maneira respeitosa a participação dos pais na campanha Lead My Learning. As Figuras 1 e 2 mostram exemplos dos pôsteres usados na campanha, respectivamente Poster Compartilhar e Poster Estimular.
Estes posters nas Figuras 1 e 2 mostram a mensagem e elementos de design usados na campanha. As imagens fotográficas são de pessoas nas comunidades locais, conteúdo que foi solicitado pelos grupos representativos com quem consultamos7.
Produção de Discurso Estratégico e Marketing Social Cultural Crítico
O Marketing Social Cultural Crítico utiliza o que denominamos produção de discurso estratégico, o qual “[…] opera para deliberadamente produzir discursos de saberes subjugados que podem interromper procedimentos de verdade dominantes” (Harwood; Murray, 2019a, p. 353-354). Em nosso projeto,
[…] saberes subjugados são as práticas de aprendizagem dos pais, enquanto os procedimentos de verdade que estamos procurando interromper são as verdades em que os ‘pais em desvantagem educacional não estão envolvidos na aprendizagem dos filhos’.
Nosso caso da necessidade de produção de discurso estratégico está embasado no argumento de que é fundamental que as verdades sobre a participação dos pais sejam escutadas, que existem benefícios para os pais quando as verdades a respeito de sua participação na aprendizagem são ditas e que isto é fundamental quando as verdades dominantes estão tão fortemente infundidas com narrativas de déficit sobre os pais.
Para nós, a subjetividade, especialmente a teorização foucaultiana de subjetividade, é uma maneira de compreender como as verdades podem ter estes impactos (Harwood; Murray, 2019a). A atenção à subjetividade não é nova na antropologia, (por exemplo, Povinelli (2016)), e de fato, conforme Ortner (2006, p. 128) afirmou, tem valor para a crítica cultural,
Tenho me preocupado em explorar as maneiras como esta antropologia da subjetividade pode ser a base da crítica cultural, permitindo que façamos perguntas contundentes a respeito da formatação cultural de subjetividades em um mundo de relações de poder descontroladamente desiguais, e sobre as complexidades das subjetividades pessoais no mundo.
Nossa atenção à produção de discurso estratégico conecta-se de algumas maneiras com a antropologia da subjetividade, concebida de maneira ampla, porque esta atenção aos discursos nos leva a uma íntima proximidade com os processos de subjetivação (Harwood; Murray, 2019a). A subjetividade tem muito a ver com a subjetivação, “[…] a formação de uma relação definida de eu para eu” (Foucault, 2014, p. 231). Ou seja, nossas relações conosco mesmos e nossas relações com a verdade estão bastante implicadas em processos de subjetivação. As verdades não circulam simplesmente sem impactar a subjetividade, tampouco, parafraseando Ortner (2006), operam sem uma rede de relações de poder. Resumindo, “Foucault incentiva a atenção a como as práticas de subjetivação estão ligadas a como o sujeito relata o que é verdadeiro” (Harwood; Murray, 2019a, p. 356).
Esta abordagem conceitual também tem nos ajudado a interpretar como determinado/s saber/es são desqualificados e subjugados. Conforme Foucault (1980, p. 81-82) indica, isto ocorre de duas maneiras:
Os conteúdos históricos que foram enterrados ou disfarçados em uma ou sistematização formal [...] blocos de saberes históricos que estavam presentes, mas que estavam disfarçados no corpo de conhecimento funcionalista e sistematizador [...]
[...] [e] Outra coisa [...] um conjunto inteiro de saberes que foram desqualificados como inadequados para sua tarefa ou elaborados de maneira insuficiente: saberes ingênuos, localizados bem abaixo na hierarquia.
A primeira maneira nos ajuda a conhecer como determinados conteúdos históricos, como as práticas culturais de aprendizagem, podem ser enterrados ou disfarçadas em um saber systematizador, como o colonialismo por povoamento. Para os pais e as comunidades em nosso estudo, a segunda maneira nos lembra da probabilidade de que os saberes dos pais sobre a aprendizagem sejam desqualificados. Consideradas em conjunto, estas duas maneiras nos forçam a abordar de modo diferente as relações dos pais com aprendizagem. Fazer pesquisa desta maneira significa que é inegável concluir que pais, conforme o discurso oficial, não estão fazendo aprendizagem real ou educada com seus filhos. Como pesquisadoras, resistimos deliberadamente a estas metáforas de déficit e, ao invés disso, buscamos reconhecer e construir nossa apreciação e respeito pelo modo como esta participação não reconhecida oficialmente dos pais com a aprendizagem está ocorrendo. Também é significativo na política deste processo de pesquisa que tenhamos nos decidido a reconhecer e construir nossa constatação de como práticas educacionais ocidentais legitimadas dominantes produzem determinadas formas de aprendizagem como ingênuas e desqualificadas. Nossa abordagem crítica procurou reconhecer, descrever, apresentar e representar visualmente as práticas de aprendizagem existentes. Nosso trabalho estabelece que, embora teorias das ciências sociais como o trabalho sobre governamentalidade de Foucault (1991; 2000) possam informar a crítica do marketing social, também podem ajudar a construir abordagens críticas que produzam técnicas de discurso estrategicamente produtivas que possam perturbar as visões de déficit dominantes.
Conclusão
Nosso projeto demonstra que é possível adaptar uma abordagem de marketing social para promover a educação de uma maneira que seja respeitosa para com a participação de pais aborígenes na aprendizagem dos filhos. Também mostramos como é possível conduzir pesquisa transcultural com pessoas aborígenes e não aborígenes que seja orientada por abordagens aborígenes. Esta orientação informou não apenas como Lead My Learning, a campanha de Marketing Social Cultural Crítico, foi concebida, mas como nós, pesquisadoras, compreendemos e concebemos os problemas de marginalização educacional e desvantagem socioeconômica. Até o momento existem poucos trabalhos publicados sobre abordagens de marketing social com povos aborígenes (Madill; Wallace; Goneau-Lessard; Stuart MacDonald; Dion, 2014). Nosso trabalho é uma contribuição a como o marketing social poderia ser adaptado para trabalhar de maneira respeitosa com pais aborígenes. Ao aprender com as iniciativas de muitos de nossos colegas e comunidades aborígenes, esta abordagem olha para os pontos fortes de povos aborígenes, Culturas aborígenes e Comunidades aborígenes e, ao mesmo tempo, busca criticar ativamente qualquer abordagem baseada em déficit.
Os protocolos aborígenes usados para consultoria na pesquisa são vitais para o envolvimento significativo com pessoas aborígenes. Estes protocolos permitiram que mantivéssemos uma abordagem Aborígene-Orientada, guardássemos respeito ao longo dos processos de pesquisa e os aplicássemos a todos os envolvidos na pesquisa, tanto pessoas aborígenes como não aborígenes. Para concluir, gostaríamos de expressar nosso respeito e agradecimento aos muitos participantes e mentores de nossa pesquisa. Incorporar protocolos aborígenes ao nosso projeto não é apenas para haver interações com pessoas aborígenes; proporcionou uma base para pessoas não aborígenes nos enxergarem como pesquisadoras respeitosas.