Introdução
A1 permanência estudantil tem se constituído como um desafio em todos os níveis e modalidades de ensino ao longo das últimas décadas no Brasil, haja vista os relevantes indicadores e os inúmeros estudos da evasão escolar no país2. Refletir sobre o tema requer considerar que a permanência estudantil “[…] caminha pari passu com sua antítese: a evasão (uma vez que a conclusão implica em uma saída exitosa do estudante do sistema de educação superior)” (Mendes, 2020, p. 386). Evasão e permanência colocam-se em permanente interação dialética, são produzidas pelas relações das classes sociais com o sistema escolar, e precisam ser entendidas a partir das divisões e hierarquias inerentes ao sistema educacional (Oliveira; Magrone, 2021).
A saída precoce de um estudante de um curso, instituição ou sistema de ensino tem relação com a retenção escolar e com a não conclusão de determinado nível de estudo e é identificada na literatura como evasão escolar (Dore; Lüscher, 2011). Todavia, ainda existem indefinições em torno do conceito; por isso, é um terreno em disputa (Oliveira; Magrone, 2021). O conceito “evasão” é criticado por individualizar e responsabilizar exclusivamente os sujeitos evadidos pelo fenômeno (Steimbach, 2012; Pelissari, 2012; Zanin, 2019), e, por isso, tem sido proposto por autores como Pelissari (2012), Zanin (2019) e Moraes (2021) a adoção do termo “abandono escolar”. Por abandono escolar, entende-se a relação entre os diversos fatores que envolvem o estudante e a escola, resultantes de processos sociais, econômicos e culturais, visto que o estudante pode abandonar ou ser abandonado (Zanin, 2019; Zanin; Garcia, 2021). De acordo com Zanin (2019), esse fenômeno complexo tem relação com diversos fatores, que podem ser coletivos ou individuais, internos ou externos à escola, e que estão em interação dialética, cuja análise vincula-se aos contextos social, econômico, político e cultural. O abandono escolar compromete o usufruto do direito à educação com qualidade por todos os estudantes, mas, aqueles cujas condições de vida são marcadas pela pobreza e pela desigualdade social, enfrentam-no com maior intensidade3.
Diante disso, reconhece-se que os principais entraves para a permanência nas instituições de educação são enfrentados por aqueles estudantes que vivenciam em seu cotidiano o entrecruzamento das dimensões de classe, gênero, etnia, origem social, etc. Esses entraves se articulam também com as condições que, historicamente, marcam a oferta de educação pública no país: as desigualdades sociais e regionais, a dualidade estrutural, a universalização e obrigatoriedade tardias dos ensinos fundamental e médio, entre outras questões. Com isso, as possibilidades para a fruição do direito à educação se diferenciam a depender do contexto vivido pelos estudantes e pela influência e confluência das diversas variáveis que encontram no seu dia a dia. Nessa perspectiva, a permanência estudantil se articula com a elaboração de estratégias, que se formam a partir de ações e movimentos realizados pelos estudantes ou pelas instituições e se voltam para manter os estudantes até a conclusão dos cursos. Essas estratégias podem ser informais, articuladas pelos estudantes, ou estabelecidas como políticas pelas instituições, e ambas possuem dimensões materiais e simbólicas (Santos, 2009; Mendes, 2020). Tendo em vista a produção dessas estratégias é que se define que as interações estabelecidas entre as condições de vida dos estudantes e as condições que são produzidas pelas instituições de ensino são um caminho profícuo para análise da permanência estudantil. Ou seja, a permanência estudantil depende amplamente da conjunção que se estabelece entre as condições de vida dos estudantes e as condições institucionais.
Com o intuito de fomentar a discussão sobre a permanência estudantil, este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa qualitativa desenvolvida no âmbito de cursos técnicos subsequentes do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) com o objetivo de: compreender as condições para a permanência de seus estudantes a partir da interlocução entre as suas condições de vida e as condições institucionais.
A pesquisa, realizada nos campi de Florianópolis e Caçador do IFSC, foi orientada pelo método crítico dialético, de natureza qualitativa, com base em questionários, entrevistas e análise de documentos. O método crítico dialético, como método de investigação e exposição do movimento do real, forneceu as categorias analíticas de totalidade, mediação e contradição para compreender a permanência estudantil a partir da dialética estabelecida entre as condições de vida dos estudantes e as condições institucionais. A dialética é o modo de pensar a realidade como “[…] essencialmente contraditória e em permanente transformação” (Konder, 2008, p. 8), considerando todas as coisas em movimento e interação, sendo a contradição “[…] o princípio básico do movimento pelo qual os seres existem” (Konder, 2008, p. 47).
Tendo em vista as categorias analíticas, buscou-se conhecer e analisar as condições institucionais do IFSC que têm relação com a permanência estudantil a partir de documentos institucionais (leis, resoluções, instruções normativas, portarias e outros) e programas voltados para a permanência estudantil, assim como entrevistas semiestruturadas com dez professores coordenadores de cursos técnicos subsequentes4. Para acessar informações sobre as condições de vida dos estudantes, foram aplicados questionários a 263 estudantes. A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro de 2019 e março de 20205.
Os dados oriundos dos questionários foram sistematizados com o apoio do software Lime Survey®, enquanto usou-se o Microsoft Excel para a quantificação e apresentação em forma de gráficos e tabelas. A análise do conjunto de informações obtidas com as entrevistas semiestruturadas seguiu a proposta operativa de análise de conteúdo indicada por Minayo (2014) que possibilitou a ordenação dos textos – transcrição, revisão e organização – para compor um mapa horizontal dos achados da pesquisa, identificar as ideias centrais e realizar os recortes, a codificação de cada entrevista em unidades de sentido (Minayo, 2014). Essa análise do conteúdo das entrevistas foi realizada com apoio do software Atlas.ti. A pesquisa, em todas as suas etapas, respeitou os aspectos ético-legais que norteiam a pesquisa com seres humanos (como a garantia ao anonimato dos participantes), estabelecidos pela Resolução 466/2012 e pela Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
A partir dessa introdução, o artigo organiza-se em três tópicos. No primeiro, realiza-se uma discussão sobre condições de vida, buscando situar o debate sobre sua concepção e evidenciando alguns resultados da pesquisa com os estudantes dos cursos técnicos subsequentes. No segundo tópico, efetiva-se o mesmo movimento em relação as condições institucionais, situando-as no IFSC, destacando os programas e ações voltados a permanência estudantil. Em seguida, no terceiro tópico, problematiza-se os encontros e desencontros entre as referidas condições. Finalmente faz-se algumas considerações em torno dos resultados apresentados.
O Debate sobre Condições de Vida e a Realidade dos Estudantes Pesquisados
As condições de vida foram escolhidas como eixo estruturante para analisar a permanência estudantil dos estudantes dos cursos técnicos subsequentes do IFSC por congregar diferentes dimensões da totalidade social e pelo impacto que têm nas possibilidades de permanência estudantil. De modo geral, no Brasil, as condições de vida têm sido analisadas por agências de estudos e pesquisas – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados Seade (SEADE), entre outros – e por diversas pesquisas acadêmicas que buscam, dentre vários outros aspectos, compreender como vivem e trabalham as populações. Desse modo, a produção teórica sobre o tema no Brasil tende a se organizar em torno da produção e análise dos indicadores oficiais para evidenciar diversos aspectos do cotidiano das populações.
No entanto, essa produção, embora altamente pertinente, se mostra insuficiente para sustentar um debate de maior amplitude que coloque em relevo o contexto econômico, social e político de um determinado local ou país, visto que esse contexto interfere diretamente nas circunstâncias em que vive a população (García, 2017). Nesse estudo, entende-se que as condições de vida são resultantes da interação dialética entre produção e reprodução social, vinculadas à contradição central do capitalismo, que é a sua capacidade de gerar pobreza e riqueza na mesma proporção e, por isso, estão no centro do conflito entre capital e trabalho. No Brasil, as atuais condições de vida refletem a formação histórica e social do Brasil, marcada pelo racismo, pela desigualdade estrutural e vários outros elementos determinantes.
Para definição das condições de vida, o âmbito da produção é analisado a partir das transformações do capitalismo e suas crises cíclicas e constantes. Nesse sentido, as condições e relações de produção relacionam-se com a forma de produzir mercadorias e com a apropriação da força de trabalho pelo capital em cada momento histórico. Considera-se a inserção dos trabalhadores nas distintas formas de venda de força de trabalho, os rendimentos obtidos e as particularidades que circunscrevem o trabalho remunerado, assim como aqueles que estão excluídos desse âmbito.
No Brasil, as condições de vida dos trabalhadores são determinadas por um conjunto de fatores, como a reestruturação produtiva, a flexibilização das relações de trabalho, a desregulamentação dos direitos trabalhistas, o desemprego, a mundialização financeira e a ideologia neoliberal, que se associam ao enfraquecimento do Estado no âmbito social e à privatização, focalização e seletividade das políticas sociais, cujo resultado é o enfraquecimento do sistema proteção social público e dos direitos sociais duramente conquistados.
As determinações concretas das crises no mundo do trabalho resultam na redução dos empregos formais vinculados ao trabalho fabril; no crescimento de um novo proletariado, fabril e de serviços vinculados às diversas modalidades de trabalho precário: terceirizados, subcontratados, temporários, além do grande número de pessoas desempregadas (Antunes; Alves, 2004). As determinações expressam-se também pela expansão do trabalho em domicílio, possibilitada pela desconcentração das unidades produtivas, pela flexibilização e pela terceirização, muitas vezes vinculada à casa dos trabalhadores (Antunes; Alves, 2004). Configura-se, assim, uma nova morfologia do trabalho, que, além das variadas formas de informalidade, aprimora os mecanismos geradores de valor com base em novos e velhos mecanismos de intensificação e, por vezes, também com base na autoexploração, incorporando também significativa parcela de exploração do trabalho de imigrantes (Antunes, 2013). Os trabalhadores enfrentam cada vez mais dificuldades para se inserir e se manter “ativos” no mercado de trabalho e veem os direitos sociais e do trabalho constantemente na mira do capital, que se utiliza do Estado para manter seus padrões de acumulação e recomposição. Então, exauridos pelas mutações nas condições de produção, ou pelo desemprego, buscam condições para escapar do assalariamento, que revela o crescimento do auto emprego, e dos microempreendedores individuais, formas mistificadas da subsunção do trabalho ao capital.
As configurações do mundo do trabalho, pressionadas pelas crises cíclicas e constantes do capitalismo, fazem com que os efeitos da superexploração do trabalho e das expropriações contemporâneas (Fontes, 2018) se espraiem para a totalidade da vida social, afetando sobremaneira as formas de reprodução social das populações. Por isso, essa dimensão será incorporada nas análises das condições de vida.
A reprodução social é um eixo integrador das diferentes dimensões do real (biológicas, sociais e culturais) que se referem aos aspectos materiais e simbólicos presentes nas esferas econômicas, demográficas e políticas (Oliveira; Salles, 2000). As questões que envolvem a reprodução social são escorregadias e complexas, mas é um campo em que grande parte dos custos da produção capitalista podem ser observados (Katz, 2019). Assim, a discussão da reprodução social é associada com “[…] a reprodução da totalidade do processo social que envolve o cotidiano da vida social em todas as suas faces” (Mioto, 2017, p. 17).
Os estudos sobre reprodução social ganharam força através do feminismo marxista, que problematiza a produção e a reprodução diária e geracional da força de trabalho e que busca superar a opressão das mulheres sob o capitalismo a partir de uma teoria unitária, materialista. Baseando-se no universo categorial de Marx, as autoras feministas problematizam a produção e reprodução da força de trabalho, compreendida como mercadoria peculiar do capitalismo, evidenciando a família como o local social da produção e reprodução da mercadoria especial (Ferguson; McNally, 2017).
As autoras6 que formularam a teoria da reprodução social (Battacharya, 2019; 2018) articulam o trabalho doméstico e de cuidados ao surgimento e ao desenvolvimento histórico do capitalismo, e, ao questionar a invisibilidade conferida a esse tipo de trabalho nas discussões em torno da teoria do valor, denunciam a opressão vivida pelas mulheres a partir da apropriação de seu tempo de trabalho pelo capitalismo (Ferreira, 2017). Essa teoria considera a produção de bens e serviços e da vida como um processo integrado, em que as pessoas produzem a si mesmas fora da economia formal, fora do local de trabalho, e com baixo custo para o capital7. Destaca, também, que o trabalho remunerado e não remunerado das mulheres, realizado por elas dentro de casa, é o que mantém o mundo em movimento, ressaltando a interação dialética entre trabalho assalariado e trabalho reprodutivo (Federici, 2019).
Desse modo, a reprodução social se assenta na complexidade do cotidiano e, em um duplo movimento, engloba as diversas práticas e relações sociais que reproduzem a força de trabalho, as práticas e as relações que estão vinculadas com a produção de mercadorias. Nesse sentido, a reprodução social engloba tanto a reprodução do capital quanto a do trabalhador, uma vez que esta é imprescindível para a reprodução daquele (Bhattacharya, 2018). Para além do trabalho não remunerado das mulheres e da família como instituição fundamental, “[…] a reprodução social é assegurada por uma ampla variedade de formas abrangentes como as categorias Estado, moradia, capital e sociedade civil” (Katz, 2019, p. 437-438), em que o equilíbrio entre elas muda conforme a história, a geografia e a classe e tem aspectos político-econômicos, culturais e ambientais.
Enfim, a reprodução da vida social integra a totalidade da sociedade e acontece de forma imbricada com o atual desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Nesse sentido, a reprodução social engloba a família e o Estado como instâncias que garantem as condições de vida da população trabalhadora no contexto brasileiro. A família garante a produção, reprodução e manutenção da força de trabalho, não só nos aspectos físicos, mas também ideológicos. As articulações desenvolvidas pelas famílias com o Estado e com o mercado, e o quanto são capazes de fazer por si mesmas (produção para o autoconsumo, organização de seus membros para ingresso no mercado de trabalho, entre outros), são aspectos decisivos para determinar o nível de vida de uma população. Já o Estado atua nesse campo ao interferir nos processos de produção e de reprodução: na produção, ele se envolve ao garantir as condições de exploração da força de trabalho na sua vinculação orgânica com o capital; na reprodução social, a participação do Estado é operada principalmente por meio das políticas sociais ao proporcionar o acesso a benefícios e serviços que são fundamentais para a reprodução da vida social.
Assim, a análise da reprodução social torna-se um eixo fundamental na pesquisa realizada pela sua centralidade para a reprodução e manutenção da vida, em seus aspectos biológicos e sociais, e por enfatizar a importância da família e do Estado na definição das condições em que vivem as populações. Incorporar a reprodução social nos estudos sobre permanência estudantil contribui para trazer à cena aspectos da vida social dos estudantes que não podem ser ocultados, como o cuidado de si e de familiares dependentes, o trabalho doméstico não remunerado, a dependência ou não de serviços e benefícios estatais, e as negociações estabelecidas na esfera familiar para sustentar a permanência estudantil. Importante ressaltar que a vinculação com aqueles aspectos não se coloca como opção ou possibilidade de escolha aos estudantes, mas são inerentes à reprodução e manutenção da vida e fazem parte do seu cotidiano. Nessa perspectiva, a abordagem das condições de vida proposta na pesquisa articula-se com a totalidade social, o que é fundamental para a análise de contexto complexos como o brasileiro, que expressa a precarização generalizada da vida social.
Tendo em conta tais fundamentos, a pesquisa realizada busca captar, através de questionários, aspectos da vida dos estudantes que indiquem as suas condições de vida, especialmente na dialética do movimento de produção e reprodução social. Na pesquisa realizada, a maioria dos estudantes participantes da pesquisa são homens (68%) e jovens (74% deles têm até 30 anos). Em Caçador, a maioria tem até 25 anos e, em Florianópolis, a maioria têm idade superior a essa faixa etária. Predominam estudantes de cor de pele branca (62% em Florianópolis e 73% em Caçador).
As condições de vida desses estudantes são marcadas pela inserção no trabalho remunerado, grande parte deles com contratos formais na iniciativa privada (68% em Caçador e 35% em Florianópolis). Em Florianópolis, cerca de 20% atuam como trabalhadores informais, autônomos e profissionais liberais e outros 20% se declararam como estudantes. Quarenta e sete por cento daqueles que estudam em Caçador e 30% daqueles em Florianópolis trabalham mais de 41 horas semanais.
Esses dados indicam que não há condições de afirmar que encontramos estudantes em tempo integral entre os participantes da pesquisa, ainda que 5% dos que estudam em Caçador e 19% dos matriculados em Florianópolis tenham assim se declarado quando perguntados sobre a sua ocupação. Todavia, quando questionados sobre a situação de trabalho, esse grupo se considerou desempregado, indicando que se dedicavam somente aos estudos no momento da pesquisa, porque estavam excluídos do trabalho remunerado. Em algum período, trabalho remunerado e estudos já foram ou poderão ser realizados de forma concomitante. Existe também a possibilidade de que o estudo seja combinado com outras formas de trabalho, ainda que sem remuneração, como apoio em atividades da família, trabalho doméstico, cuidado de familiares dependentes, entre outros. É importante manter o adjetivo trabalhador na caracterização desses estudantes porque a busca por um curso técnico está diretamente vinculada à situação de estar trabalhando, com o desejo de ser ou já ter sido trabalhador (caso dos aposentados). Assim, a ampla inserção no trabalho remunerado permite identificá-los como trabalhadores estudantes, ou seja, são trabalhadores que estudam e se desdobram entre duas atividades igualmente demandantes e que, por isso, apresentam características peculiares (Foracchi, 1977). Os trabalhadores estudantes têm uma identidade própria e um patrimônio singular de experiências e saberes (Fischer; Franzoi, 2009); por isso, suas relações com o mundo do trabalho são fundamentais para analisar as relações que estabelecem com os cursos e com as instituições de ensino.
Majoritariamente, os participantes da pesquisa estudam no período noturno, justamente pela possibilidade de conciliação com o trabalho remunerado. Eles são passageiros da noite, como afirmou Arroyo (2017), que, ao final da tarde, estão nas filas dos ônibus para se deslocarem de seus trabalhos para os cursos e, ao final da noite, estão nas mesmas filas, indo das escolas para suas casas. Esses são os mesmos passageiros do amanhecer que bem cedo saem de suas casas para os locais de trabalho (Arroyo, 2017).
A condição de passageiros do início do dia e do fim da noite os aproxima de identidades de gênero, classe, raça, trabalho, entre outras, e representa uma busca por mudança de suas condições de vida, cercadas de esperanças e de incertezas. Assim, “[…] deslocar-se nesses espaços e nesses horários pela cidade, pelos campos, indo, voltando ao trabalho e à EJA é uma luta por deslocar-se como classe, gênero e raça” (Arroyo, 2017, p. 24) e romper as hierarquias tão presentes no sistema escolar e nas formas como se reproduzem as hierarquias sociais, raciais, sexuais e espaciais (Arroyo, 2017).
A renda familiar é fundamental para a definição das condições de vida de uma população e para compreender como essas hierarquias se expressam no contexto escolar. A distribuição dos estudantes conforme a renda familiar em Caçador foi a seguinte: 3% com renda até 1 salário mínimo; 28% com renda entre 1 e 2 salários; 17% com renda até 3 salários; 23% com renda entre 3 e 4 salários; 28% com renda acima de 4 salários mínimos. Ou seja, 48% com renda familiar de até 3 salários mínimos. O cenário encontrado em Florianópolis foi o seguinte: 12% com renda abaixo de 1 salário mínimo; 26% com renda entre 1 e 2 salários, 24% com renda entre 2 e 3 salários, 15% com renda entre 3 e 4 salários e 23% com renda superior a 4 salários mínimos. Constata-se que 62% daqueles que estudam em Florianópolis têm renda familiar de até 3 salários mínimos. Entre os participantes da pesquisa, 50% são a única ou a principal fonte de renda de suas famílias.
Pensando nas hierarquias de classe, gênero, raça e etnia que estruturam a sociedade brasileira, e na busca por deslocamentos que a retomada ou a continuidade dos estudos representa, as informações sobre a renda familiar serão analisadas sob o prisma da raça e da cor da pele dos participantes, buscando dar visibilidade aos estudantes pretos, pardos e indígenas, mesmo eles sendo minoria entre o público pesquisado (36% em Florianópolis e 27% em Caçador). Tais informações constam no Gráfico 1 abaixo.
Note: *PPI – estudantes que se autodeclararam pretos, pardos e indígenas. Fonte: Elaborado pela autora.
Observa-se a reprodução das desigualdades históricas e estruturais da sociedade brasileira no contexto escolar. Os pretos, pardos e indígenas são maioria nos estratos com renda familiar mais baixa nos dois campi, configurando-se cor/etnia como um importante critério para balizar as políticas institucionais, como a de assistência estudantil.
No que se refere às divisões de sexo/gênero, verificou-se que, em Florianópolis, 68% dos participantes são homens, 31% são mulheres e 1% declarou a identidade de gênero como não binário. Em Caçador, a tendência foi semelhante, em que 67% dos participantes são homens e 33% são mulheres. No total, 179 homens e 82 mulheres participaram da pesquisa. Tendo em vista essas divisões, buscou-se captar as nuances da reprodução social vivida pelos estudantes. Para tanto, perguntou-se sobre a composição familiar, a situação conjugal, o envolvimento deles com o trabalho doméstico, com os cuidados dos filhos, com as decisões importantes para a manutenção da família e se são assistidos por serviços e benefícios de apoio à reprodução social.
Observou-se que 67% dos estudantes não possuem filhos. Para aqueles que têm, a idade dos filhos, daqueles que estudam em Caçador, coincide com o perfil mais jovem dos estudantes deste campus, pois 54% têm filhos de até 10 anos. Em Florianópolis, observa-se um contingente significativo de estudantes que possuem filhos já adultos: 22%, mesmo percentual daqueles que possuem filhos com idade entre 5 e 10 anos. A rede familiar sobressai no cuidado dos filhos, visto que enquanto estão no IFSC, 58% dos estudantes de Florianópolis e 70% de Caçador deixam os filhos com seu pai ou sua mãe.
A tendência geral na distribuição do trabalho doméstico entre moradores indica divisão equilibrada, mas as mulheres se reconhecem como as principais responsáveis, e os homens consideram que as atividades se distribuem de forma equilibrada ou que colaboram pouco. Tendência semelhante foi encontrada no cuidado dos filhos: predominam aqueles que consideram que as responsabilidades são compartilhadas e os que se consideram os principais responsáveis. Essas respostas indicam que os homens, principalmente os casados e que residem com suas companheiras, tendem a considerar a divisão do trabalho doméstico equilibrada. Já as mulheres seguem outra tendência e se consideram as principais responsáveis, mesmo quando residem com seus maridos/companheiros. Essa tendência corrobora com o entendimento de que a reprodução social se realiza no âmbito da família (Mioto, 2017) e é responsabilidade quase exclusiva das mulheres.
No que se refere às decisões que precisam ser tomadas para manter a casa e a família (qual integrante da família participa do trabalho remunerado, inserção ou não dos filhos em atividades extracurriculares, o gerenciamento dos recursos financeiros obtidos, quem realiza o trabalho doméstico e outros serviços necessários para a manutenção do local de moradia, entre outros), verificou-se que os estudantes são responsáveis pelas decisões mais importantes (30% dos respondentes) nos dois campi. Essas decisões são compartilhadas com outras pessoas da família para 57% daqueles que moram em Caçador e para 51% daqueles que moram em Florianópolis.
Observa-se que a família é um elemento chave para reprodução social, de quem se espera a capacidade de produzir serviços internamente (cuidado e trabalho doméstico), a organização de esforços para gerir gastos, garantir rendimentos e executar ações coordenadas para acesso e gerenciamento de serviços ofertados pelo Estado e pelo mercado. Igualmente importante para compreender as condições de vida são as formas como os estudantes se organizam em torno da vida familiar, já que “[…] o indivíduo é avaliado muito mais pelas condições de sua família que do seu status individual na sociedade” (Cioffi, 1998, p. 1041). Também porque a família funciona como unidade de produção de bens e serviços e organiza um esforço coletivo em prol da articulação de estratégias de sobrevivência ao decidir quem e quando seus integrantes participam do mercado de trabalho (Montali, 1991) e, por extensão, da qualificação profissional.
Nesse sentido, conhecer a participação dos estudantes e suas famílias em serviços públicos ou privados é significativo pois indicará as possibilidades de ajuda e suporte que estão sendo acessadas para além da família (Moraes, 2021). O acesso à proteção social estatal pela via dos serviços públicos é um fator importante para as condições de vida de uma população e permite captar a participação do Estado na reprodução social. Entre os estudantes participantes da pesquisa, observa-se a ênfase no acesso aos serviços de educação (considerando a matrícula deles no IFSC) e saúde públicas e uma baixa incidência de famílias atendidas por serviços e benefícios da política de assistência social.
A cobertura previdenciária é garantida para aqueles que possuem vínculo formal de trabalho. Os trabalhadores informais vivenciam uma situação de desproteção social, pois a maioria deles não contribui para a previdência social e, por isso, estão excluídos dos direitos previdenciários e trabalhistas. Constata-se que a reprodução social dos estudantes depende amplamente de iniciativas privadas desenvolvidas no âmbito das famílias tendo em vista o baixo acesso aos serviços públicos de proteção social.
A dimensão da reprodução social mostra-se relevante para compreender a permanência dos estudantes pela contribuição deles para o sustento familiar e pelo envolvimento com o cuidado dos filhos e com o trabalho doméstico, ainda, pelo inexpressivo apoio obtido junto aos serviços públicos. Os relatos dos estudantes são elucidativos das implicações dessa dimensão para a permanência estudantil:
Tenho, pois tenho um filho e dependo que pai dele chegue para poder ficar com para mim ir ao curso e também dependo de carona de terceiros (Feminino, estudante logística).
A dificuldade de conciliar casa, trabalho e crianças acaba dificultando bastante, principalmente o horário para chegar no IFSC. E os professores não tem tolerância quanto a isso” (Feminino, estudante de administração). Recém estou saindo de uma licença domiciliar, minha filha tem 6 meses e tenho um menino de 4 anos, deixá-los é muito difícil, principalmente pela distância que tenho que enfrentar para chegar até aqui (Feminino, estudante de edificações).
Parentes idosos e doentes cadeirantes dependentes (Masculino, estudante mecânica)
(Moraes, 2021, p. 333).
Após apresentar um panorama geral das condições de vida dos estudantes, passa-se para a análise das condições do IFSC que se mostraram relevantes para a permanência dos estudantes.
As Condições Institucionais do IFSC e a Permanência Estudantil
As condições institucionais para a permanência estudantil se expressam através de um conjunto composto por documentos, programas, projetos e ações realizadas no IFSC que têm como objetivo incentivar ou garantir a permanência dos estudantes nos cursos. Diante da amplitude e da diversidade desse campo, que é tanto teórico-documental como prático-operativo, foram selecionadas duas fontes principais de dados: os documentos institucionais relacionados com a temática e o fazer profissional dos coordenadores dos cursos.
O mapeamento e a análise dos programas por meio da consulta a documentos do Governo Federal e do IFSC (leis, resoluções, instruções normativas, portarias etc.) permitiram identificar os programas executados que têm foco na permanência estudantil. Entre esses, destacam-se como fundamentais: Programas de Assistência Estudantil, que concedem auxílio financeiro para estudantes com renda familiar bruta per capita de até dois salários mínimos8; Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); programas de estágio e jovem aprendiz voltados para a inserção socioprofissional; Núcleos de Acessibilidade Educacional (NAE); e Atendimento Educacional Especializado para pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e pessoas com altas habilidades e superdotação, entre outras ações que podem ser executadas pelos campus individualmente9.
O Plano de Permanência e Êxito – PPE (IFSC, 2018) também é uma ação importante para analisar entraves e caminhos possíveis à permanência, pois indica a necessidade de implantar, monitorar e avaliar ações específicas para minimizar os indicadores de evasão. Para isso, sugere a criação de Comissões de Acompanhamento das Ações de Permanência e Êxito dos Estudantes (CAPE), na reitoria e nos campi, com plano de trabalho contendo etapas, prazos e responsáveis para construir planos locais de permanência e êxito em todos os campi (IFSC, 2018). O Campus Caçador implantou a CAPE, realizou o diagnóstico e identificou os fatores de evasão, planejou medidas de permanência e êxito, mas ainda não havia começado a executá-las. Já em Florianópolis existe a comissão que trata do assunto, mas não foi possível acessar os materiais. Assim, apesar de o IFSC ter construído o PPE, observa-se alguns desencontros na execução dos trabalhos. Todavia, considerando a “[…] ausência histórica de ações de apoio à permanência na Educação Profissional e Tecnológica brasileira, esse documento possibilita e oferece condições para possíveis debates e mudanças” (Zanin, 2019, p. 211), sendo necessário aprimorá-lo e, principalmente, executar as ações planejadas para que de fato alcance os estudantes e se constitua como ferramenta de apoio à permanência estudantil.
A partir dos resultados obtidos com a análise documental, buscou-se o diálogo com os coordenadores dos cursos, professores que são eleitos ou indicados para a função, e considerados como informantes chaves da pesquisa pelas atribuições que exercem (acompanhamento dos estudantes e dos processos de avaliação do ensino, a organização de planos de ensino diferenciados para estudantes com deficiência, a organização dos conselhos de classe, entre outras). Em suma, compete aos coordenadores a organização e a gestão dos cursos. Para isso, eles mobilizam um conjunto de saberes teóricos e práticos e, por vezes, criam e adotam estratégias que podem ser mais ou menos favoráveis à permanência estudantil e que nem sempre estão formalmente registradas.
Observou-se que muitas ações dos cursos são mobilizadas a partir das demandas apresentadas pelos estudantes, que se relacionam diretamente com as suas condições de vida. As principais ações de permanência informadas pelos coordenadores foram: alteração nos Projetos Pedagógico de Curso (PPC); monitorias e aulas de reforço; oferta de espaço e infraestrutura para refeição dos estudantes; incentivo ao protagonismo dos estudantes durante as aulas e valorização dos conhecimentos obtidos com as experiências de trabalho; programas de assistência estudantil e estágios; equipes interdisciplinares para atender os estudantes (coordenadoria pedagógica e NAE); estratégias diferenciadas para contato com eles; laboratórios e ênfase em aulas práticas; capacidade dos professores para levar experiências para a sala de aula; oficina de estratégias de ensino e aprendizagem; fortalecimento dos vínculos entre coordenador de curso e estudante, o que possibilita ao coordenador conhecer a realidade dos estudantes; diagnóstico no início do curso para identificar perfil das turmas; adaptação da metodologia das aulas para que se tornem mais dinâmicas e atrativas etc.
A pesquisa documental permitiu identificar os programas de assistência estudantil como marco dos programas voltados para a permanência estudantil e também foram citados por quase todos os coordenadores como parte importante das condições institucionais. Todavia, observou-se que aproximadamente 60% dos estudantes de Florianópolis e 70% dos de Caçador não participam de nenhum desses programas. Apenas 10% dos estudantes de Caçador e 17% daqueles que estudam em Florianópolis recebem os auxílios financeiros do PAEVS10. Aproximadamente 10% de todos eles possuem IVS11 ativo (ou seja, estão dentro dos critérios do programa), mas não recebem os auxílios. Apesar dessa baixa participação, os auxílios do PAEVS e o IVS foram os dois programas mais acessados pelos participantes da pesquisa. Chama a atenção o baixo percentual de estudantes com IVS, mesmo sem receber auxílio, já que 31% em Caçador e 38% em Florianópolis possuem renda familiar total dentro dos critérios para acesso ao IVS. Como o IVS adota o critério de renda familiar per capita, supõe-se que um número ainda maior de estudantes estaria apto a se cadastrar nele.
Seguindo a análise das ações citadas pelos coordenadores e o acesso dos estudantes a essas ações, constatou-se que o atendimento extraclasse realizado pelos docentes, o atendimento pela equipe interdisciplinar da coordenadoria pedagógica) e pelo NAE, apesar de serem enfatizados pelos docentes, tem baixa participação dos estudantes. Acredita-se que a própria condição de trabalhador estudante do público que frequenta os cursos técnicos subsequentes coloca entraves para a participação naquelas ações. O atendimento extraclasse, por exemplo, geralmente é ofertado no contraturno das aulas, ou no mesmo período das aulas, mas em dias não letivos, ou ainda, em horários antes das aulas ou de intervalos, o que depende da disponibilidade dos docentes. Observou-se que as condições de vida da imensa maioria daqueles que frequentam esses cursos são marcadas pela conjunção entre trabalho remunerado, estudos e muitas vezes, responsabilidades familiares, o que reduz o tempo disponível para participar de atividades extraclasse. Por vezes, essa participação acontece durante o horário de aula, prejudicando assim, o acesso ao conteúdo do curso naquele momento específico. Situação semelhante ocorre com o atendimento no NAE e na coordenadoria pedagógica. Em síntese, as informações prestadas pelos coordenadores e pelos estudantes evidenciam a baixa participação dos estudantes naquilo que é citado pelos coordenadores como o núcleo da política de permanência estudantil no IFSC.
Alguns coordenadores informaram apenas ações institucionais do IFSC e não indicaram ações específicas dos cursos, situação daqueles que estão há poucos meses no cargo e ainda estão construindo um conjunto de saberes específicos, e, talvez por isso, mencionaram exclusivamente os programas institucionais. Outro ponto a destacar é que não há uma padronização de ações por cursos ou campus, pois elas dependem da forma como o curso é conduzido, dos perfis dos docentes, das práticas que já estão construídas e validadas pelos servidores, que tanto podem ser mais inclusivas quanto mais meritocráticas.
Assim, observa-se que a experiência do coordenador e o tempo em que está no IFSC influenciam o conjunto de ações realizadas nos cursos. Esse é um ponto que requer análise profunda e cautelosa, pois, à medida em que as respostas institucionais dependem individualmente de cada coordenador, pode gerar desigualdades e reforçar o abandono escolar. É interessante observar também a ausência de fluxos e parâmetros institucionais para a atuação dos coordenadores. O que existe é um conjunto de atribuições, que também são peculiares a cada campus. Nesse contexto, a produção de condições institucionais favoráveis à permanência dos estudantes nos cursos depende de adequadas condições de trabalho e da oferta de formação inicial e continuada aos trabalhadores da Educação Profissional e Tecnológica (EPT).
O grupo de docentes que participou da pesquisa tem elevado nível de formação acadêmica: quatro são doutores, quatro são mestres e dois são especialistas. Essas formações foram realizadas em cursos vinculados às áreas técnicas de atuação. Apenas duas pessoas informaram ter cursado especialização em nível de pós-graduação lato sensu na área de Educação. Considerando o contexto complexo da docência na EPT, da gestão dos cursos e da importância desta para a permanência dos estudantes, encontrou-se coordenadores que não se sentiam capacitados quando assumiram a função de coordenador. Alguns destacaram que ainda não se sentem plenamente competentes para gerir os cursos, principalmente aqueles que estão na função há pouco tempo. Informaram ainda que não participaram de capacitações voltadas para o exercício da coordenação e que o preparo para a função foi mediado pelas experiências anteriores, suas e dos colegas, pela observação da atuação dos colegas e pelo apoio administrativo de outros servidores.
À ausência de capacitações específicas para o cargo, somam-se aspectos da rotina de trabalho dos coordenadores, como o excesso de burocracias relacionadas ao uso de sistemas de controle e processos institucionais, sendo importante considerar a condição de trabalhador do professor, e que sua atuação se insere no bojo das contradições entre capital e trabalho, principalmente pela relação de compra e venda de sua força de trabalho (Moura, 2014). É responsabilidade das instituições ofertantes de Educação Profissional ofertar capacitação em serviço aos seus servidores, sendo esse um campo fértil para refletir e criar mecanismos favoráveis à permanência estudantil.
As evidências da pesquisa indicam que parte importante das condições institucionais são as negociações estabelecidas entre professores e coordenadores com os estudantes. A partir dessas negociações, desdobram-se um conjunto de práticas produzidas no cotidiano dos cursos e que são fundamentais para a construção de estratégias de permanência por parte dos estudantes. Tendo em vista essas possibilidades de negociação que se colocam entre os estudantes e os servidores, os estudantes foram questionados se suas demandas com relação ao trabalho e à família são acolhidas pelos professores e servidores do IFSC. Em Florianópolis, 56% concordaram com a assertiva, 12% discordam, 17% ficaram indiferentes e 15% não responderam. Em Caçador, 53% concordam, 22% discordam, 18% ficaram indiferentes e 7% preferiram não informar. As respostas sinalizam a presença de desigualdades entre os diferentes cursos e campi que exigem estudos mais aprofundados.
Constata-se que o IFSC desenvolve programas e ações que têm impacto positivo para a permanência estudantil, mas é fundamental ampliar o acesso dos estudantes a esses programas. Destaca-se também a importância do papel dos servidores na construção de estratégias de permanência, com ênfase para docentes que estão na coordenação dos cursos que, pelo seu conjunto de atribuições, assumem a mediação entre as demandas dos estudantes, dos servidores (professores e setores de atendimento aos estudantes, gestores) e dos processos institucionais.
Os Encontros e Desencontros entre as Condições de Vida dos Estudantes e as Condições Institucionais: elementos fundamentais para a permanência estudantil
Os resultados da pesquisa possibilitam conhecer aspectos da vida dos estudantes que podem influenciar na sua capacidade de produzir estratégias de permanência estudantil, ao mesmo tempo que apresentam os programas e ações realizados no âmbito dos cursos técnicos subsequentes que podem favorecer a permanência. Constata-se que há uma dialética entre condições de vida e condições institucionais, uma vez que a capacidade dos estudantes em desenvolver estratégias de permanência, sejam elas materiais ou simbólicas, depende diretamente de suas condições de vida e se associam diretamente às condições institucionais encontradas. Todavia, o exame desse movimento dialético entre as referidas condições sinaliza encontros e desencontros.
Em síntese, as condições de vida dos estudantes indicam que sua trajetória é marcada pelo trabalho remunerado, de tal modo que a sua trajetória escolar não depende exclusivamente deles próprios e de suas habilidades, mas é permeada pelas possibilidades encontradas nas esferas do trabalho e da família, pelas críveis negociações que podem ser estabelecidas entre essas esferas, e acontece no contexto emaranhado das articulações entre produção e reprodução social. Observou-se que, em alguns cursos, as ações realizadas correspondem às condições de vida dos estudantes, pois as experiências vividas por eles no mundo do trabalho são incorporadas no planejamento e no cotidiano das aulas conferindo protagonismo aos estudantes, aparecem também na flexibilização de horários, da metodologia das aulas e de atividades avaliativas. Aqueles cursos que são coordenados por mulheres e em que elas são a maioria entre os estudantes se mostraram mais compreensivos com relação às demandas familiares, incorporando a reprodução social como uma dimensão importante para o planejamento dos cursos, o que se verifica no acolhimento, na compreensão diante das demandas de cuidado dos filhos e das dinâmicas familiares dos estudantes. No entanto, em muitos cursos, a reprodução social permanece invisibilizada, e nem chega a ser reconhecida entre as demandas apresentadas pelos estudantes.
Os resultados indicam ainda a presença de ambivalências no que se refere às posturas dos servidores, principalmente os docentes. Percebe-se que alguns professores adotam posturas mais flexíveis, são mais tolerantes com horários e prazos, outros não. Essa ambivalência também foi percebida nos relatos dos professores, quando alguns destacam a importância do acolhimento, da formação de vínculos e de uma atuação mais próxima aos estudantes, enquanto outros não fizeram referência a essas questões.
Outro ponto de destaque são as incongruências entre os programas voltados para promover a permanência existentes e o acesso dos estudantes a esses programas. Atualmente, o IFSC prioriza a concessão de auxílios financeiros, mediante cadastro prévio e cumprimento de diversos critérios e etapas até o recebimento dos auxílios. O acesso dos participantes da pesquisa à assistência estudantil do IFSC foi baixo, o que indica que a instituição precisa aprimorar seus mecanismos de divulgação e de acesso aos programas para ampliar o atendimento aos estudantes dos cursos técnicos subsequentes. Além disso, registra-se a importância de fomentar os programas de acesso universal previstos na Resolução CEPE/IFSC 001/201012 (IFSC, 2010) e a criação de outros que atendam às necessidades de um contingente maior de estudantes, a exemplo do Programa de Alimentação Escolar, pois as diversas exigências para as etapas de cadastro e seleção aos programas atuais, focalizados no público com renda de até 1,5 salário-mínimo, demanda tempo e atenção e pode desmotivar os trabalhadores estudantes a participar dos programas.
Diante disso, observando as correlações estabelecidas entre as condições de vida dos estudantes com o acesso aos programas institucionais e com as práticas estabelecidas no cotidiano dos cursos, verificam-se muitas convergências, mas também a presença de divergências, que conformam contextos desiguais entre os cursos e campus e podem reiterar o abandono escolar. No entanto, essas divergências podem ser exploradas no cotidiano institucional para produzir estratégias de permanência estudantil e assim reduzir os indicadores de abandono escolar e, consequentemente, ampliar a permanência estudantil. Um dos caminhos possíveis para a instituição explorar essas divergências e ambivalências é o fomento de ações continuadas de formação e capacitação dos servidores, que tenha como pressuposto as condições de vida dos estudantes e o contexto social, econômico, político e cultural em que cada campus está inserido e que aborde temas como acolhimento, trabalhador estudante, demandas e responsabilidades familiares, entre outros, haja vista que o aperfeiçoamento profissional mediado pela experiência tem se mostrado insuficiente para embasar práticas favoráveis à permanência estudantil.
Conhecer e problematizar essas divergências e ambivalências é um dos meios para o enfrentamento do abandono escolar, cujos indícios são presentes na realidade pesquisada, visto que 36% dos que estudam em Florianópolis e 45% dos que estudam em Caçador já pensaram em desistir do curso atual em algum momento. Constata-se, então, uma dialética entre permanência e abandono, mostrando que a permanência nos cursos esteve ou está ameaçada para uma parcela significativa dos estudantes. Os riscos de abandono escolar vinculam-se a diversos fatores, tais como o trabalho remunerado, o reduzido tempo para estudo extraescolar e excesso de atividades, as demandas familiares, o trabalho doméstico, as demandas de cuidado dos filhos e dependentes, o transporte para o IFSC, o horário de início e de encerramento das aulas, a insuficiência de recursos financeiros, conteúdo do curso e dificuldades de aprendizagem; distância entre o local de moradia ou de trabalho e o IFSC, entre outros. Essa multiplicidade de fatores corrobora com o que apontou (Zanin; Garcia, 2021):
[…] o abandono escolar é uma das faces de um projeto de sociedade excludente que se fundamenta em princípios como a meritocracia, a individualização, a educação mercadológica, a dualidade estrutural, entre outros, amparados em políticas e concepções neoliberais que afetam também a Educação Profissional e Tecnológica brasileira
(Zanin; Garcia, 2021, p. 107).
Por isso, o enfrentamento do abandono escolar se torna possível a partir da perspectiva da totalidade, considerando a interação dialética entre os diferentes contextos e entre fatores individuais e coletivos dos estudantes, internos e externos à instituição para a produção de contextos favoráveis à permanência estudantil. Ou seja, não se trata do resultado das características particulares e individuais dos sujeitos, nem de responsabilizar individualmente setores ou servidores, mas de considerar a multiplicidade das suas condições objetivas e subjetivas, assim como as condições econômicas, políticas e culturais envolvidas no planejamento institucional (Zanin, 2019).
Considerações Finais
O método crítico dialético que orientou a pesquisa apresentada neste artigo permite identificar uma interação dialética entre condições de vida e condições produzidas e ofertadas pelo IFSC. A convergência das dinâmicas desencadeadas a partir dos dois polos referidos – condições de vida e condições institucionais – produz contextos mais ou menos favoráveis para o início, manutenção e conclusão dos projetos educacionais dos diferentes sujeitos que se apresentam como estudantes nos cursos técnicos subsequentes do IFSC. As condições de vida dos estudantes, resultantes do contexto emaranhado que se estabelece entre produção e reprodução social, podem se configurar como entrave ou como fator favorável à permanência estudantil, a depender da forma como são incorporadas no âmbito institucional.
O exame das condições de vida evidenciou as interlocuções estabelecidas pelos estudantes com o mundo do trabalho, o que exige pensar quais são as condições de trabalho em que estão inseridos os trabalhadores estudantes. A escola precisa questionar não apenas quem são esses estudantes, mas de que trabalho eles vêm, sendo fundamental conhecê-los em seus tensos percursos de humanização, considerando suas histórias como trabalhadores e como estudantes. Assim, importa não só o fato de serem trabalhadores estudantes, mas principalmente o tipo de atividade que realizam, a duração da jornada, a existência e qual o tipo de contrato de trabalho a que estão vinculados, se estão cobertos pela proteção social do Estado, entre outros.
A permanência material e simbólica (Mendes, 2020; Santos, 2009) tem relação direta com as condições de vida, pois depende dos recursos que o estudante e sua família dispõem para custear a permanência nos cursos e, na ausência destes, depende dos recursos disponibilizados pela instituição, no caso o IFSC. Assim, é fundamental trazer a responsabilidade institucional na produção de estratégias de permanência (Mendes, 2020) para o primeiro plano. Nesse sentido, afirma-se que a permanência estudantil é multideterminada e depende amplamente da capacidade institucional de produzir contextos que sejam favoráveis à permanência dos diversos sujeitos que se apresentam como estudantes.
Essa ênfase na responsabilidade da instituição ancora-se na autonomia institucional das instituições de ensino, garantida pelo Conselho Nacional de Educação para elaboração, execução, avaliação e revisão dos Projetos Político-Pedagógicos respeitando a legislação vigente (Brasil, 2021). Considerando que o IFSC é uma instituição pública, ele deve planejar ações para melhor atender os estudantes, inclusive naquelas demandas que tradicionalmente são delegadas ao âmbito privado, como a reprodução social. A priorização da responsabilidade institucional deve ser acompanhada pelo conhecimento sobre as condições de vida dos estudantes, tendo em vista subsidiar a organização e o planejamento institucional. Ampliar a permanência estudantil é garantir a fruição do direito à educação, tarefa imprescindível às instituições públicas, que concebem a educação, direito social e universal e, no caso do IFSC, pela função social que lhe foi atribuída pela Lei n° 11.892/2008 (Brasil, 2008).
Diante disso, as evidências observadas na pesquisa possibilitam indicar alguns caminhos possíveis que podem ser pensados a partir do contexto institucional, entre os quais, destacam-se: considerar as condições de vida como norteadoras do planejamento dos cursos; adotar o trabalho como referente material e simbólico para o aprendizado; romper com as invisibilidades em torno da reprodução social; fortalecer o ingresso por sorteio público para democratizar o acesso à EPT; aprofundar a análise das dificuldades de aprendizagens e outras questões pedagógicas na relação com a permanência estudantil; e ampliar os programas universais de assistência estudantil em detrimento dos programas focalizados.
As análises realizadas e os caminhos sugeridos, embora identificados no contexto dos cursos técnicos subsequentes do IFSC, se aplicam a outros níveis de ensino e a outras instituições, uma vez que as condições de vida dos estudantes e a sua correspondência ou não pelos programas institucionais é um dado relevante para a fruição do direito à educação em qualquer contexto. Conclui-se, assim, que uma das principais contribuições da pesquisa está em lançar luz na interação entre condições de vida dos estudantes e condições institucionais e, especialmente, incorporar a reprodução social como um eixo de análise, visto que frequentemente é desvalorizada ou invisibilizada.