Introdução
Só se pode compreender a vida como evento, e não como um ser-dado. Separada da responsabilidade, a vida não pode ter uma filosofia; ela seria, por princípio, fortuita e privada de fundamentos. (BAKHTIN, 2010, p. 116)
Compreendendo a vida como evento, e não como um ser-dado, vimos contar da escrita-evento como ato responsável do qual se deu conta uma pesquisadora na radicalidade da metodologia de pesquisa narrativa, num grupo de pesquisa de faculdade de Educação em universidade pública paulista. O que nos leva a apresentar este estudo é a compreensão da pesquisa narrativa como proporcionadora do desenrolar, no ato, do próprio evento-conhecimento. Compreendendo a vida como evento e não como um ser-dado,1 a pesquisa narrativa passa a ser um instrumento de compreensão que se dá como acontecimento denominado escrita-evento.
“Compreensão {…} como visão do sentido, não uma visão fenomênica e sim uma visão do sentido vivo da vivência na expressão, uma visão do fenomênico internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido” (BAKHTIN, 2003, p. 396), como algo que faz sentido, “responde a certas perguntas” (BAKHTIN, 2003, p. 381) e é proporcionado pela prática narrativa da metodologia de pesquisa de um sujeito que se conhece e ao outro para si no contexto/situação em que se reconhece nessa relação.
Este é um estudo que apresenta a ideia/conceito da escrita-evento desvelada no diálogo com (pontualmente na leitura de) outras pesquisas feitas na mesma metodologia de pesquisa narrativa e que compartilham uma visão de mundo histórico-cultural, com Mikhail Bakhtin como autor comum.
Em tempo, diálogo é um conceito bakhtiniano que vai além da linguística e da linguagem verbal. Falamos, com Bakhtin (2013, p. 209), de “relações dialógicas”. Podemos dizer que o conceito tem proposição linguística e abarca outros campos “lógicos e concreto-semânticos”, ainda que para estarem disponíveis para análise “devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que delas possa surgir relações dialógicas”.
Pensando na metodologia de pesquisa narrativa com Bakhtin (2010), a responsabilidade/responsividade do ato se manifesta no fato de os(as) pesquisadores(as) deixarem de objetivar prioritariamente o corpo de dados para subjetivá-lo na singularidade das relações dialógicas com os sujeitos das pesquisas e suas produções. O conhecimento produzido, nessa situação, é um efeito, ainda que buscado, muitas vezes inesperado, colateral àqueles que provocaram a pesquisa.
A mudança de posição de objeto para sujeito é possibilitada a quem assume uma postura relacional eu-outro em sua radicalidade amorosa, essencialmente humana.
O desamor e a indiferença nunca geram forças suficientes para nos deter e nos demorarmos sobre o objeto, de modo que fique fixado e esculpido cada mínimo detalhe e cada particularidade sua. Somente o amor pode ser esteticamente produtivo, somente em correlação com quem se ama é possível a plenitude da diversidade. (BAKHTIN, 2010, p. 129)
Aquele conhecimento inesperado, “novo”, decorrente de uma busca implicada na relação, instrumentalizado pela metodologia narrativa, possibilitado pelo ato responsável/responsivo do indivíduo da ontologia bakhtiniana, que constitui e é constituído pelo outro por quem não é indiferente, é materializado como escrita-evento. Dizendo de outro modo, com a ajuda de um referencial semiótico posterior a Bakhtin, escrita-evento é a materialização da capacidade de modelização primária humana, também chamada capacidade de linguagem (SEBEOK, 1981; PONZIO, 2007; PONZIO; PETRILLI; CALEFATO, 2007).
Trazemos como empiria recortes de pesquisas desse grupo de pesquisa, que têm em comum o fato de o(a) pesquisador(a) ser parte, como professor(a) ou profissional da Educação, do contexto de produção dos dados, procedimento metodológico comum no grupo de pesquisa. A leitura privilegiada-mútua das pesquisas em andamento proporciona a Serodio (2014) a compreensão de que a narrativa como pesquisa potencializa a “escrita antes das letras”: Ferreira (2013), Proença (2014) e Leardine (2014).
Não é intenção tratar das características que assemelham ou diferenciam as pesquisas, mas trazer, em momento oportuno, enunciados que evidenciam a ocorrência ou o contexto propício para o surgimento da escrita-evento. Cabe dizer que essas pesquisas baseiam suas análises de dados no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg (1989, p. 177), para quem “a ideia principal contida nessa proposta metodológica é a de que se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la”.
Serodio (2014), ao lidar com dados pertencentes à linguagem musical, escolhe aprofundar-se no estudo dos signos, traçar um “percurso interpretativo” (PONZIO; LOMUTO, 1997, p. 91):
O significado de um signo não está no signo mesmo, mas na relação com um outro signo que o interpreta, e o significado deste outro signo está na relação com um outro e assim por diante, numa corrente de interpretantes. O significado então não é separável do percurso e do sentido do percurso. Como um interpretado se relaciona, que relações tem: o que significa não é mais que isto.2 (PONZIO; LOMUTO, 1997, p. 20)
Para dizer o que as crianças e jovens poderiam narrar sobre a atividade de composição musical e o que perceberiam como seu resultado, para compreender o que as composições lhes diziam diretamente, Serodio (2014) procedeu a uma interpretação “semioética” (PONZIO; PETRILLI, 2003) dos signos em relação com o percurso didático e o sentido do percurso para os estudantes e a professora-pesquisadora. Optou por buscar na semiótica, que é cara a Bakhtin, avanços e percursos onde ela se encontra com a teoria de modelização e com a semioética.
A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006, p. 34)
Vivemos uma crise ideológica, “a crise contemporânea é, fundamentalmente, crise do ato contemporâneo. Criou-se um abismo entre o motivo do ato e seu produto” (BAKHTIN, 2010, p. 115). Crise e conflitos são uma desorientação inicial e ao mesmo tempo uma bússola para cogitar a compreensão de uma escrita como evento. Uma “consciência individual é apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006, p. 34).
Baseada na teoria semiótico-antropológica da “capacidade de linguagem, isto é, a possibilidade do jogo infinito de construção - e desconstrução - de novos mundos possíveis” (PONZIO, 2006, p. 167), Serodio (2014) se dá conta de que a narrativa verbal e a composição musical dos alunos e alunas deixam algo “escrito” e produzem conhecimento. A produção de uma expressão musical passa a ser um exercício de “escrita antes da letra” (PONZIO, 2006, p. 150) potente para a formação musical. Do mesmo modo, a produção narrativa verbal é potente para as pesquisas em Educação.
Ponzio (2006; 2010) propõe essa escrita - embora sem problematizar a pesquisa narrativa - como ato que materializa, realiza, concretiza numa forma exterior, por ser proporcionado pela capacidade de linguagem. A escrita-evento engloba e sustenta a investigação narrativa como apresentada por Connelly e Clandinin (1995), Josso (2006), Rego (2003), Passegi e Barbosa (2008) e Larrosa et al. (1995), e se apresenta como decorrência das pesquisas aqui trazidas para um confronto dialógico, como temos observado no grupo de pesquisa de que falamos3.
Alguns papéis da pesquisa narrativa no grupo de pesquisa
A narrativa assume muito mais do que os papéis que lhe têm sido atribuídos nos estudos de investigação narrativa, de registro, memória, reconstrução histórica, documentação do trabalho, explicitação dum acontecido, reflexão, como “caracterização dos fenômenos da natureza humana apropriado para as ciências sociais, teoria literária, história, antropologia, arte, cinema, educação, e, inclusive, alguns aspectos da biologia evolucionista” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 12-13). Esses estudiosos apontam as diferentes terminologias de acordo com diferentes funções na prática metodológica de pesquisa:
É igualmente correto falar de “investigação sobre a narrativa” ou de “investigação narrativa”. Entendemos que a narrativa é tanto o fenômeno que se investiga como o método da investigação. ‘Narrativa’ é o nome dessa qualidade que estrutura a experiência que será estudada, e é também o nome dos padrões de investigação que serão utilizados no estudo. (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 12)
Conscientes da diversidade do papel da narrativa, os autores canadenses especificam o modo como vão nomear essas distinções, focalizando as (auto)biografias, relatos de experiência e as análises discursivas desses textos. A pesquisa-narrativa, segundo os autores, é um enfoque metodológico muito elucidativo que também atinge outros campos, não verbais.
Para preservar a distinção usaremos um recurso razoável e já bem estabelecido: chamar ‘história’ ou ‘relato’ ao fenômeno e ‘narrativa’ à investigação. Assim, dizemos que as pessoas, por natureza, levam suas vidas “relatadas” e contam as histórias dessas vidas, enquanto os investigadores narrativos buscam descrever essas vidas, recolher e contar histórias sobre elas, e escrever relatos de experiência. (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 12)
Podemos complementar dizendo que Serodio (2008)4, já em sua dissertação de mestrado, praticava a narrativa para além de método de pesquisa, como trazem Connelly e Clandinin (1995) - como recolha ou produção de textos narrativos ou de experiências de vida narradas para a realização de análise dos dados narrativos e compilação qualitativa e/ou quantitativa dos dados. Ela dizia ser a única estratégia de pensamento possível, naquele momento, para fazer sua investigação.
No grupo de pesquisa em que esta pesquisadora participa desde 2001, partiu-se da concepção de pesquisador do professor, por Freire (1996), aprofundada na reflexão sobre o professor-pesquisador numa obra de referência organizada por Geraldi, Pereira e Fiorentini (1998), para dizer que o(a) professor(a) é o(a) legítimo(a) pesquisador(a) em Educação na/da escola, não só de sua prática docente, como pesquisador(a) dos conhecimentos produzidos por ele(a), seus alunos(as) e os(as) demais profissionais da Educação. Prosseguiram-se os estudos sobre autoria, principalmente com Foucault e Bakhtin, presentes já nas pesquisas do grupo (PRADO, 1992; GERALDI, 1993), e Bakhtin passou a fazer parte da fundamentação teórica do grupo.
Quanto ao pertencimento metodológico, a pesquisa narrativa se classifica entre as pesquisas qualitativas e se situa com as pesquisas sociológicas e as pesquisas (auto)biográficas, assim como tem características fortes da pesquisa-ação e estudo de caso (PRADO; CUNHA, 2007), incluindo, por vezes, uma diferença fundamental: constituir-se durante a pesquisa, enquanto se narra o que se deseja estudar/pesquisar.
Estando dirigida para a formação (Educação), é composta de peculiaridades, como o memorial de pesquisa (PRADO; FERREIRA; FERNANDES, 2011), que é o memorial de formação do(a) pesquisador(a) enquanto correlacionado com as atividades de pesquisa e o inventário de dados (PRADO; MORAIS, 2011). Essa é uma etapa imprescindível, pois geralmente a documentação trazida para a pesquisa é extremamente ampla, exigindo organização e algum critério de classificação, do qual emergem os objetos da pesquisa de maneira contextualizada na relação com os sujeitos que os produziram; e, o que talvez seja mais significativo, a produção narrativa de sentidos durante todo o processo se estende à parte dita analítica dos objetos de pesquisa, a qual nem sempre ocorre num determinado capítulo.
Soligo e Simas (2014, p. 413-425), num esforço de explicitação de um dos modos de se praticar a pesquisa narrativa que vai se firmando em parte do grupo, “adjetivam-na” como “pesquisa narrativa em três dimensões - na “fonte de dados, registro do percurso e modo de produção de conhecimento” (SOLIGO; SIMAS, 2014, p. 413) e trazem uma importante contribuição para a descrição metodológica da pesquisa, até por trabalharem com uma diversidade de teóricos de referência em estudos narrativos.
Cada acontecimento real-significativo no contexto da pesquisa se torna um acontecimento real-narrativo, que é retomado na leitura e no diálogo com interlocutores e produz outras narrativas até que, durante o percurso, os(as) pesquisadores(as) vão compreendendo outras perguntas embutidas naquela inicial, antes impronunciáveis.
Se fosse somente tomada como aparato técnico, a narrativa poderia se tornar mera transcrição ou mneumotécnica (YATES, 2007), no dizer de Milton José de Almeida.5
Desde 2008, para Serodio, a técnica de escrever narrativas com intenção formativa se torna metodologia de pesquisa no diálogo necessário, nem sempre harmonioso, como nos ensina Bakhtin (2003), com a prática de ensinar as experiências que ali acontecem e a busca de palavras que transformam a pesquisa dentro da pesquisa em outras buscas dentro dela.
A pesquisa narrativa, sendo ao mesmo tempo técnica e metodológica, mantém um diálogo constante entre a prática, a experiência e a atividade de busca de palavras para melhor se contar, talvez se tornando uma pesquisa dentro da pesquisa. E questiona o adequado, o certo e o verdadeiro de maneira narrativa, contando. {…} A disseminação da narrativa nos centros de formação inicial e/ou continuada como uma escolha válida, que pode desembocar em experiências no reconhecimento de si em relação com a escola, com os pares, com os alunos e com o lugar onde se vive. (SERODIO, 2008, p. 69, 71-72)
Nas primeiras pesquisas narrativas do grupo, “sobre bases intuitivas”, como bem explicita Pierini (2014) ao se referir à sua dissertação de mestrado, narrar se constituía numa maneira “confortável de explicitar” o que dizem os sujeitos, produtores dos objetos de análise da pesquisa.
Minha opção pela linguagem narrativa que na ocasião da tessitura da Dissertação de Mestrado repousava confortavelmente sobre bases intuitivas se reafirmava, porém, de forma fundamentada teoricamente por explicitar e instituir o que pensam os sujeitos e por produzir, a partir do tempo passado, um tempo outro que fosse vida, por promover o reaparecimento das marcas subjetivas e o estabelecimento de relações destas com os conceitos trabalhados, relações absolutamente grávidas de possibilidades de revelação dos sujeitos, para que, ao falarem de si, falassem também de tantos outros, tantas outras possibilidades de ser. (PIERINI, 2014, p. 77)
Ferreira (2013) aponta a importância do percurso narrativo na formação de professores que exige um percurso narrativo-reflexivo também para formação da formadora de professores.
Realizar uma investigação na pós-graduação, em um programa de doutoramento é, em alguma medida e em um dado momento, fazer um caminho para si (JOSSO, 2004) e em direção ao outro, re-conhecendo na própria história de vida a trajetória de formação, que revela indícios e sinais das ligações com a temática que o sujeito se propõe a pesquisar. Um caminho que se faz, fundamentalmente, por meio da escrita narrativa e de um pensar reflexivo, exercitando um olhar retrospectivo e prospectivo para as experiências rememoradas. (FERREIRA, 2013, p. 45)
Outro ponto a se considerar sobre a narrativa como metodologia de pesquisa nesse grupo de pesquisa é que, quase que na totalidade, são pesquisas da própria prática ou aspectos dela, o que, em se tratando de pesquisas em Educação, é uma condição que legitima a pesquisa sobre formação.
Naquele tempo não achava possível pesquisar a própria prática, hoje encontro na metodologia da pesquisa narrativa autobiográfica o caminho que me agrada percorrer. Narrar minha experiência vai me ajudando a compreender melhor o processo que vivi e me tornou a profissional que hoje sou. (PROENÇA, 2014, p. 38)
Como podemos ver, também para Proença (2014), foi ao narrar que uma compreensão que acontecia no ato mesmo de narrar foi tomando vulto.
Consideramos importante ainda, dadas as marcas culturais, enfatizar que Serodio (2014) não trata de gênero discursivo quando fala da narrativa ou da escrita-evento. Sabemos, claro, que é há um gênero que a possibilita e tem as suas regras firmadas histórico-culturalmente. Aliás, “não se sai do gênero: por mais concreto que seja, o indivíduo falante faz parte, como tal, do gênero que o identifica, e que permite uma caracterização individual dele” (PONZIO, 2010, p. 48).
Porém, a imposição genérica não deverá ser álibi para o uso da narrativa como “ação técnica” (BAKHTIN, 2010, p. 117), a qual pode ser um gênero neutro, ideal, abstrato que serve aos mais diversos interesses. Propomos o inverso: o não álibi impõe um gênero - quiçá uma alteração num gênero. Para que o mundo da vida e o mundo da cultura se constituam na dupla responsabilidade, “um tal ato não deve se contrapor à teoria e ao pensamento, mas incluí-los em si como momentos necessários, inteiramente responsáveis” (BAKHTIN, 2010, p. 117) circunstanciados e contextualizados na vida realmente vivida do(a) pesquisador(a), vida que “pode ser compreendida pela consciência somente na responsabilidade concreta” (BAKHTIN, 2010, p. 117).
Diz Ponzio (2010, p. 49):
Com Bakhtin (2003, p. 261-307, p. 264) podemos distinguir, nos gêneros discursivos, os gêneros primários ou simples, ou seja, os gêneros do diálogo cotidiano, e os gêneros secundários ou complexos, como o romance, os gêneros teatrais, etc., ou seja, todos os gêneros se configuram e objetivam as trocas cotidianas, comuns, concretas. A palavra dos gêneros primários torna-se, nos gêneros secundários, palavra configurada e perde assim sua ligação direta com o contexto real e com os objetivos da vida cotidiana e, consequentemente, perde o seu caráter instrumental, funcional. A palavra sai, portanto, dos lugares do discurso que a tornam monológica, por mais dialogicizada que possa ser, e nos quais é levada em consideração apenas em relação à sua capacidade de reportar-se ao objeto e à sua utilidade em relação aos interesses comunicativos do sujeito. Em vez disso, a palavra entra no contexto que a configura, e a sua relação com esse não está mais em conformidade com o interesse, não está mais baseada no que ela diz, mas no como diz; o que importa é o dizer, não o dito, não o significado, mas o significante que se torna ele mesmo significativo, assume ele mesmo significatividade/significância, valor em si. (PONZIO, 2010, p. 49)
A narrativa oral de um acontecimento em aula, amiúde para compartilhar um surpreendente fato com os estudantes no/do cotidiano escolar, reportada numa sala de professores, se distingue como gênero primário (BAKHTIN, 2003) em sua função objetiva de realizar trocas “comuns, concretas”. Ao ser configurada entre as produções de gênero secundário (gêneros científicos, filosóficos e artísticos), o contexto altera a valoração da palavra, passando a importar o ‘como’ se diz mais do que ‘o que’ se diz. E é esse dizer que possibilita descobertas de intuições, impressões escondidas na alma.
Essa é, sem dúvida, uma potência da narrativa escrita que se autoimpõe ao(à) pesquisador(a) dentro de um gênero discursivo instituído na academia: valer pelo significante que se torna significativo, com valor em si, com valor de acontecimento, de evento. A narrativa docente e a pesquisa narrativa realizadas no grupo de pesquisa a que nos referimos apontam para outro tipo na divisão didática dos gêneros do discurso relativamente estáveis de Bakhtin (2003) ou, ao menos, intersecções, interferências entre eles. Esperamos ampliar o diálogo com essa nossa proposta.
Semiótica global, semioética, interpretação responsável
Serodio (2014) veio a descobrir com a semioética que proceder narrativa-metodologicamente e metodológica-narrativamente é lidar com os signos da vida, assim como com a vida dos signos no mesmo ato. Do mesmo modo, lidar com a escrita da pesquisa, no sentido que “a escritura faz parte da linguagem ‘antes que o estilete ou a pena imprima letras em tabuinhas ou em pergaminho ou em papel’” (LÉVINAS, 19826apudPONZIO; CALEFATO; PETRILLI, 2007, p. 121), é lidar com a pesquisa da escrita, nesse mesmo sentido de interpretação narrativa como evento, vida, pensamento, ato que surge da responsividade ao outro.
Sebeok (19907apudPONZIO; PETRILLI, 2001, p. 7-8) afirma que semiose e vida convergem, então, repletas de signos, pesquisa e vida convergem, assim como escrita e pesquisa.
Esse é um modo de ver o caminho da pesquisa narrativa que surgiu na pesquisa narrativa de uma atividade didática do ensino de Música, na escola, contexto que deu à luz os jovens compositores e suas composições musicais na tese de doutorado da pesquisadora-professora de quem falamos.
Vamos a partir de agora trazer a responsabilidade/responsividade da escrita-evento sob o ponto de vista da semiótica global de T. A. Sebeok (1981). Para ele, todos os seres vivos usam signos porque não podem não fazê-lo, mas o como os usam determina de que signo e de que escrita dizem.
Tem-se uma visão restrita da escrita. Ela tem sido identificada com a transcrição da linguagem oral, e portanto é reduzida a simples registro, uma espécie de revestimento externo, consequentemente subalterna e servil com respeito à oralidade. Nesse sentido a escrita não seria nada mais do que uma mneumotécnica. {…} A escrita subordinada à fonação, a escrita como invólucro secundário para fixar a vocalização, está ao serviço da memória, da descrição narrativa, a serviço do sujeito nela prefixado, in-scrito e por ela descrito.8 (PONZIO, 2006, p. 150, tradução livre)
A escrita de que falamos, aquela que trazemos como escrita-evento, não tem o único sentido de grafia: é um ato condicionante - e anterior, inclusive - da transcrição gráfica do pensamento em signos verbais (PONZIO, 2006, p. 150), pois se trata da materialidade de uma capacidade específica da espécie humana de lidar com signos fazendo com eles coisas que têm significância.9
Desse modo, lidamos com signos fazendo uso necessário da capacidade de modelização primária humana, um dos principais fundamentos da semioética, materializando-os num ato concreto também chamado escrita. O outro fundamento seria o ato ético, o cerne da semioética. Pois a escrita é baseada na intenção de dar à existência aquilo que no contexto mais nos mobiliza na relação não indiferente com o outro com quem e para quem produzimos.
Com a escrita, assim, englobamos a grafia e a produção intelectual emotivo-volitiva, recriando ‘significancialmente’ um contexto que nos mobilizou de modo a criar o que de outro modo seria impossível, do modo que foi.
Também nos aproximamos da simbolicidade artística10, ao criarmos modos de expressão que ao serem dirigidos ao outro chegam a conferir profundidade e sentido perspectivo:
{…} Bakhtin se referiria ao símbolo retomando uma entrada enciclopédica de S. S. Averincev, que colaborou com Bakhtin, além de editar seus escritos. Usando a conceituação de Averincev de “símbolo artístico”, Bakhtin se volta para a conexão da imagem com o símbolo, a qual “confere profundidade e sentido perspectivo”. O símbolo implica em uma “correlação dialética entre identidade e não identidade”. No símbolo, acrescenta Bakhtin, citando Averincev, “há ‘o calor do mistério que une’, justaposição do eu ao outro, o calor do amor e o frio do estranhamento. Justaposição e confrontamento”. Bakhtin insiste que o sentido de símbolo-imagem requer uma relação com um outro sentido e interpretação, não na base do seu contexto mais próximo, mas, mais exatamente, em um contexto remoto, um contexto distante, que abre a identidade à alteridade. Está claro que tais considerações estão proximamente conectadas àquelas feitas por Bakhtin em Por uma filosofia do ato responsável. (PONZIO, 2008, p. 11-12)
A simbolicidade artística que percebemos em narrativas docentes e em passagens mais ou menos frequentes das pesquisas narrativas só é possível com o outro, quem, por que nos escuta, nos compõe e para quem compomos uma música ou uma tese ou para quem contamos nossa própria vida num dizer narrativo. É possível ver essa característica em muitas das teses e dissertações do grupo de pesquisa ao qual nos referimos, inclusive por sua ligação com a arte, seja como materialidade ou alegoria (Dança, Música, Fotografia, Literatura).
Embora toda essa produção eventual da escrita como materialização da capacidade de modelização primária humana possa não ser assim conscientizada pelo produtor - o narrador da pesquisa narrativa -, dar-se conta dessas condições de produção é necessariamente parte de um conjunto de atos conscientes ou meta-semióticos do pesquisador narrativo: os atos éticos ao lidar com os signos da vida e a vida dos signos. Mesmo que ele não leia uma linha de Semiótica.
Assim, conscientemente responsiva, ou meta-semioticamente, essa relação narrativa emotivo-volitiva passa a ser por nós compreendida como lidar com signos (semiótica) e sua semiose (MORRIS, 2009) de modo não indiferente com os sujeitos e os signos da pesquisa: uma aproximação semioética.
Ao lidar com a escrita narrativa da pesquisa e a pesquisa narrativa da escrita na urgência e emergência da vida como um “plano-a-realizar”, todos aqueles que, para os pesquisadores enquanto narradores, são outros nos fazem notar a convergência da vida de quem escreve, de quem e para quem a vida tem sentido, de quem e para quem a pesquisadora professora de Música com quem falamos realiza sua pesquisa.
Esta divisão arquitetônica do mundo em eu e em todos aqueles que para mim são outros não é passiva e casual, mas ativa e imperativa. Esta arquitetônica é tanto algo dado, como algo a-ser-realizado, porque é a arquitetônica de um evento. Essa não é dada como uma arquitetônica pronta e consolidada, na qual eu serei colocado passivamente, mas é o plano ainda-por-se-realizar, da minha orientação no existir-evento, uma arquitetônica incessante e ativamente realizada por meu ato responsável, edificada por meu ato e que encontra a sua estabilidade somente na responsabilidade do meu ato. O dever concreto é um dever arquitetônico: o dever de realizar o próprio lugar único no evento único do existir; e ele é determinado antes de tudo como oposição valorativa entre o eu e o outro. (BAKHTIN, 2010, p. 143)
A escrita narrativa como evento (também de) formação e, assim, dirigida pela realização num plano-ainda-por-se-realizar extrapola qualquer método, no sentido de “demanda” ou “ordenação”11 (SERODIO, 2013).
Concluindo
Com a intuição como bússola, o inevitável diálogo como boca - “quem tem boca vai à Roma” - e uma bagagem recheada de memórias e conceitos, alguns preconceitos, Serodio (2014) pôs-se a caminhar e a escrever. Talvez alguém dissesse que o que fez foi estudar com uma pergunta interior lhe conduzindo. E talvez ela concordasse. Mas esse seria um caminho, um método de pesquisa?
Então, pesquisa narrativa seria um método que se baseia no estudo de um tema em diálogo com as memórias e a materialidade dessas memórias contextualizadas e textualizadas, um diálogo único e irrepetível como as vidas o são. Seria possível conceber um método que não se repete? Sim, isso mesmo! Um método único, como um acontecimento, como um evento!?
Esse caminho acabou por se consubstanciar, para Serodio (2014), no desvelamento social da sua mente enquanto “realização do próprio lugar único no evento único do existir” (BAKHTIN, 2010, p. 143). A pesquisa narrativa, como método, ao fazer parte da formação docente e formação dos pesquisadores(as), tornaria a formação autoformação e formação com o outro, desde que tivesse uma “assinatura” feita pelo próprio(a) pesquisador(a), sob a imposição dos motivos e desejos que o(a) levou à pesquisa, onde a busca é a busca de um método/percurso, que surge na escrita.
Lembramos que sem o tal conjecturado método narrativo, Serodio (2008; 2014) afirma que não teria nem começado suas pesquisas. O memorial, o inventário de dados, os textos/composições em contraposição com o gênero discursivo científico (dissertação e tese), e a insistente retomada desses textos/composições como dados que se tornam enunciados e voltam a ser dados em outros momentos foram um caminho com o qual dialogar e trilhar parte do percurso que a pesquisa demandava.
Esse caminho, sim, concordamos, seria um método!
Então, pesquisa narrativa seria um método que se baseia no estudo de um tema em diálogo com as memórias e a materialidade (con)textualizadas na intenção de esforço investigativo na implicação e na escrita como produtora, criadora da materialidade expressiva do pensamento para um fim que é o acabamento estético desse esforço.
A investigação narrativa em sua deriva, realizada por indivíduo não indiferente ao outro, com um propósito de fundo, se torna meio de expressão potente para o desvelamento histórico-cultural da organização social da mente, uma “expressão que organiza a atividade mental” (BAKHTIN, 2006, p. 114).
A narrativa docente está próxima de sua utilidade comunicativa, como gênero primário, cotidiano (BAKHTIN, 2003; SERODIO, 2013; PRADO, 2013) que ao entrar em contato com o “edifício social” acadêmico não perde essa função primária de comunicação do cotidiano, quando se introduzam discursos, argumentos, teorias, quando se torna um meio acadêmico de fazer pesquisa.
Não seria possível inferir que Sebeok, assim como Serodio, foi chegando aos seus enunciados enquanto escrevia, e que essa afirmação da capacidade de modelização e the play of musement12 (il gioco del fantasticare, jogo de imaginação) foi produzida como num jogo de imaginação?
Narrativa, como ato de escrita, escrita como linguagem, linguagem como capacidade humana de inventar mundos, é interface de tradução do signos interiores em relação com os signos exteriores das leituras dialógicas que fazemos. São expressões inerentes à semiose humana e inscrição de um ato no continuum espaço-tempo relacional anteriores a qualquer semiótica (como ato de conhecimento consciente) possível.
No mesmo sentido, Serodio percebe que a escrita narrativa chega a se colocar além da formação e autoformação que anuncia a pesquisa narrativa como tem sido difundida e bem ao lado da simbolicidade artística (BAKHTIN, 2003, p. 398-399; PONZIO, 2008, p. 9-20), pois assume na dupla posição eu-outro/escrita-vida a postura da dupla responsabilidade-responsividade para com as relações do cotidiano, na dupla responsabilidade arte-vida (BAKHTIN, 2003, XXIII), e a sua realização na resistência inerente à mútua não interpenetrabilidade, como um evento único.
Ao se manter na escuta dos outros, como movimentos em direção ao outro, ao notar a convergência da vida de quem escreve, de quem e para quem a vida significa, de quem e para quem pesquisa, se vê uma produção de signos pela (por meio da) interpretação desses signos, que é infinita, singular, individual e cultural.
E, concluindo, ao aprender a escutar movimentos e motivos ao escutar movimentos e motivos musicais decorrentes de movimentos e motivos dos alunos e alunas em suas composições, com tudo o que isso quer dizer em termos de formação de professores, formação musical das crianças e jovens, conceituação de música, de arte, Serodio nota que a escrita-evento pode emergir quando outros pesquisadores se imbuem dessa postura responsável, sejam quais forem a materialidade, os objetivos e as questões de pesquisa.
Da genérica capacidade humana, na relação social com outros por quem não somos indiferentes, nasce a singularidade do ato único, irrepetível, sui generis: a escrita-evento.