Introdução
Há aproximadamente 20 anos, começa a circular no cenário acadêmico brasileiro o termo pedagogias culturais. Ele surge embutido em artigos, capítulos e livros traduzidos que introduzem em nosso País os Estudos Culturais1 em Educação2 e se torna, nesse curto período, uma ferramenta conceitual amplamente utilizada nas pesquisas desse novo e polêmico campo. Exatamente por essa repercussão, elegemos esse conceito como foco de estudo. Nas pesquisas desenvolvidas no Brasil, ele tem se mostrado um dos conceitos mais produtivos acionados a partir do referencial teórico dos Estudos Culturais em seu cruzamento com a educação. Contudo, se até mesmo as condições de possibilidade e os locais de emergência dos próprios Estudos Culturais são constantemente objeto de controvérsias3, com as pedagogias culturais não é diferente. Para se chegar ao conceito com as acepções que se tem hoje, travaram-se muitas e importantes discussões acerca das conexões entre pedagogia e cultura. Partindo muitas vezes de distintas matrizes teóricas, tais debates, dependendo dos autores que os propõem e subsidiam argumentativamente, apresentam delineamentos e focos diferenciados. Esse o motivo pelo qual consideramos conveniente aos propósitos de nossa análise valer-nos dos sentidos do termo invenção.
No livro História: a arte de inventar o passado, Albuquerque Júnior (2007, p. 12) explica que, especialmente nas últimas três décadas, não só historiadores, mas também cientistas sociais, filósofos, pedagogos, psicólogos, entre outros especialistas, começaram a lançar mão em seus trabalhos do termo invenção. Para o autor, isso decorreria de a palavra apontar para “um modo de se relacionar com o passado, com os documentos, com a memória, com a temporalidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 12), que se afasta de concepções hegemônicas vigentes em outros tempos, inscrevendo-se em formas contemporâneas de compreender o trabalho do historiador, expressivas de mudanças paradigmáticas. O termo é instigante porque nos faz pensar sobre “fatos”, “dados”, “conceitos” e “teorias” como invenções que se naturalizaram e parecem saltar fora da história, instalando-se em um território universal e atemporal. O uso da palavra invenção tem se mostrado apropriado para procurar explicar como a realidade social é construída e, logo em seguida, apreendida por variados campos de conhecimento; serve também para nos referirmos “a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum evento humano” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 20). Com esses sentidos, ela nos parece produtiva para aquilo a que este texto se propõe: percorrer o caminho que levou à invenção e aos usos da expressão pedagogia cultural ou, em sua flexão de número, pedagogias culturais, particularmente nos territórios investigativos que demarcam os já mencionados Estudos Culturais em Educação.
Nossa intenção, aqui, não é tentar capturar o momento fundante do emprego do termo pedagogias culturais. O que pretendemos é apontar e problematizar algumas das muitas e variadas condições que possibilitaram a emergência/invenção dessa expressão/conceito, lançando mão, para isso, das teorizações de vários autores que se dedicaram a vislumbrar e analisar as pedagogias atuantes em uma multiplicidade de espaços, para além daqueles que delimitam territórios escolares ou escolarizados. Assim, situamos este trabalho no que Albuquerque Júnior (2007) nomeia de terceira margem, ou seja, lá onde a invenção nasce justamente da relação, da justaposição das margens e dos fatos. Com vistas a tal intento, este artigo está organizado em quatro seções, cujos focos descrevemos brevemente a seguir, e nos quais optamos por uma exposição que não se atém à cronologia dos acontecimentos.
Na primeira seção, procuramos mostrar que a ampliação da noção de lugares de aprendizagem foi central para o conceito de pedagogias culturais. O livro Places of Learning 4 (Lugares de Aprendizagem), de Elizabeth Ellsworth (2005), alertou-nos para o quanto foi revolucionária e fulcral para os usos do conceito, no início dos anos 1990, a disseminação da ideia de que processos educativos extrapolam amplamente o âmbito escolar. Embora posterior às produções de alguns dos autores que trazemos para esta discussão, Places of Learning contribuiu para um melhor entendimento das condições de possibilidade para a invenção e os usos do conceito. Ao escolher tal obra para subsidiar nossa argumentação, procuramos também ressaltar o destaque que a autora dá à pedagogia como importante articuladora de processos educativos.
Na segunda seção, abordamos o pioneirismo do educador norte-americano Henry Giroux ao adjetivar a pedagogia segundo as formas que apresenta quando imbricada com a cultura. Voltamo-nos particularmente aos conceitos de pedagogia pública e pedagogia crítica, adotados pelo autor, para apontar seus vínculos com o conceito de pedagogias culturais. Aproveitamos também para sublinhar o quão importante foram as pesquisas de Giroux para a demarcação do campo que identificamos hoje como Estudos Culturais em Educação e para a constituição do conceito de pedagogias culturais.
Na terceira seção, tratamos da emergência acadêmica da expressão na obra Cultural Pedagogy: arts, education, politics5 (Pedagogia cultural: artes, educação, políticas), de David Trend (1992) - que nossas pesquisas indicaram ser provavelmente o primeiro registro escrito do termo. Nesse livro, o autor norte-americano, vinculado à teoria crítica da educação, emprega-o para tratar da relação entre pedagogia, arte e democracia. Embora o significado do conceito não coincida inteiramente com aquele que adotamos mais recentemente, o nome de Trend, assim como sua obra, é reconhecido como inequivocamente associado ao surgimento do conceito e a seus direcionamentos investigativos iniciais.
Na seção seguinte, trazemos a dupla de autores norte-americanos Shirley Steinberg e Joe Kincheloe para abordar a visibilidade que as pesquisas produzidas por eles deram ao conceito. Foi em suas investigações desenvolvidas a partir dos anos 1990 que o conceito de pedagogias culturais se firmou no campo acadêmico, começou a ser importado e a circular em outros contextos, a exemplo do que aconteceu no Brasil.
Ao final, procuramos articular brevemente as seções do trabalho, destacando-as como fios que nos permitem vislumbrar algumas fulgurações nos meandros implicados na invenção do conceito de pedagogias culturais.
A contribuição da ideia de lugares de aprendizagem
No decorrer dos últimos 40 anos, variadas pesquisas, tanto no terreno das discussões sobre cultura, como no daquelas sobre educação e pedagogia, contribuíram para matizar a ideia de lugares de aprendizagem. São exemplos significativos disso o trabalho de Basil Bernstein (2001), ao ressaltar que estamos diante de uma “sociedade totalmente pedagogizada”, e de Raymond Williams (1968), quando argumenta que, em um processo de educação permanente, diferentes instituições e espaços (inclusive revistas femininas!) estão ativa e profundamente implicados com práticas e experiências que visam ensinar algo. Mesmo não pretendendo, aqui, contemplar a multiplicidade de autores que, de um modo ou de outro, colocaram em articulação a relação entre educação, pedagogia e cultura - criando, assim, condições para que se possam examinar as relações de ensino e aprendizagem como amplos processos culturais -, nesta seção apresentamos a discussão sobre lugares de aprendizagem por entendê-la como uma importante condição de possibilidade para a invenção do conceito de pedagogias culturais.
Ao buscar elementos que nos permitissem focalizar a emergência do conceito, deparamo-nos com variados textos que, mesmo sem empregá-lo, destacam ser uma das principais características do imperativo pedagógico contemporâneo a existência de relações de ensino e aprendizagem em diferentes nichos sociais regulados pela cultura. Entre os materiais encontrados, chamou nossa atenção o livro Places of Learning, de Elizabeth Ellsworth (2005), que, ao colocar em destaque o caráter pedagógico da vida social contemporânea, produz uma análise interessante e consistente sobre variados espaços culturais como lugares de aprendizagem. Estudiosa de teoria do cinema, a norte-americana Elizabeth Ellsworth se tornou conhecida de uma parcela de pesquisadores brasileiros da área da educação com a publicação em português do instigante ensaio “Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também” (ELLSWORTH, 2001), no qual explora o que os estudos sobre cinema, e sobre a cultura popular em geral, podem nos ensinar sobre educação de forma a resgatar para esse campo prazer, enredo, emoção, envolvimento e interação. Places of Learning (ELLSWORTH, 2005) reflete certa sintonia com o modo de pensamento da autora no texto que já conhecíamos. Segundo ela própria, esse trabalho mais recente constitui itinerário para uma jornada inexplorada e experimental, visando oferecer elementos que possam contribuir com entendimentos alternativos sobre pedagogia.
Três motivos principais justificam trazer esse livro para esta discussão: o primeiro é que, nas pesquisas que realizamos, temos constatado que, há pelo menos duas décadas, a compreensão de que ensino e aprendizagem ocorrem em vários lugares da cultura, e não apenas na escola, não era algo ressaltado, discutido e difundido entre nós como hoje. Isso nos levou a considerar adequado focalizar inicialmente o debate sobre a noção de lugares de aprendizagem, para depois chegar ao conceito de pedagogias culturais. O segundo motivo se refere ao fato de o livro de Ellsworth (2005), dadas a pertinência e a atualidade de suas análises, ser hoje uma obra recorrentemente citada, no cenário internacional, em tópicos que envolvem essa discussão. O terceiro refere-se à centralidade que a autora atribui à pedagogia. Ou seja, por mais que, desde os limiares dos anos 2000, muitos pesquisadores - embasados inclusive em Henry Giroux - viessem mencionando diferentes espaços não escolares como lugares de ensino e aprendizagem, em suas obras, o papel da pedagogia ou era silenciado ou era marginal, sendo pouco discutido e aprofundado.
O livro de Ellsworth (2005) que aqui nos interessa se tornou conhecido e destacado justamente por posicionar a pedagogia como articuladora central dessa movimentação, promovendo um salto nas discussões que tratam da relação entre pedagogia e diversos sítios em que, segundo a autora, a cultura produz conhecimento. Ao fazer essa relação, outro ponto que chama a atenção é que Ellsworth desenvolveu suas análises sem adotar um tom de denúncia que considerasse a produção de conhecimento resultante dessa relação como algo que aliena ou oprime, o que Giroux, embasado na teoria crítica, fez recorrentemente em suas produções ao articular pedagogia e cultura. A esse respeito, será realizada uma discussão na seguinte seção deste artigo.
Ellsworth (2005) considera que algumas condições, tais como o aprofundamento das abordagens sobre temas como mídia e tecnologia e a massiva troca global de pessoas, culturas e objetos, contribuíram para que discursos binários como virtual/real, razão/emoção, corpo/mente fossem superados. Face a isso, argumenta que agora precisamos usar os novos entendimentos sobre esses tópicos binários para criar conceitos e pedagogias capazes de tratar da aprendizagem do self6. Ao “pensar em pedagogia não em relação ao conhecimento como uma coisa feita, mas ao conhecimento em construção”7 (ELLSWORTH, 2005, p. 1), a autora discute como a mídia, os museus e a arquitetura acionam uma pedagogia que produz efeitos na construção do self, na “autoaprendizagem” de cada sujeito. Segundo ela, a pedagogia desses lugares provoca nos sujeitos movimentos, sensações e efeitos que fazem com que seus corpos e mentes realizem aprendizagens tanto em relação a si mesmos, quanto em relação aos outros e ao mundo.
O que move a autora em sua pesquisa que analisa distintos espaços culturais como lugares de aprendizagem é uma “curiosidade fundamental sobre coisas e processos - neste caso, elementos pedagógicos emergentes e qualidades - que nós ainda não entendemos e que nos provocam a pensar ou a imaginar novos caminhos”8(ELLSWORTH, 2005, p. 5). Por exemplo, quando toma o Museu do Holocausto9 de Washington D.C. como um sítio de análise, a autora considera-o um lugar anômalo10, que instiga novas perspectivas do olhar, que é peculiar, e cujos fenômenos pedagógicos são difíceis de classificar. Esse museu, segundo ela, é exemplar como um lugar em que mídia e arquitetura compõem uma cena particularmente poderosa em termos pedagógicos. Ele mobiliza exterioridade e interioridade de professores e estudantes para muito além dos limites de teorias e práticas pedagógicas e curriculares usualmente acionadas com vistas à compreensão das diferenças socioculturais. Esse museu do Holocausto, assim como tantos outros similares pelo mundo, desencadeia variadas questões para debate, inclusive aquela sobre quais representações são acionadas e que tipos de efeitos têm sobre as múltiplas leituras e compreensões do Holocausto. Diante das possibilidades que surgem nesses outros lugares de aprendizagem, Ellsworth (2005) propõe que se adotem novos ângulos, novas perspectivas, que permitam vislumbrar tais espaços anômalos como espaços pedagógicos. Esse é o objetivo da autora nessa obra, já que, segundo argumenta, é difícil enxergar anomalias pedagógicas quando se olha para esses lugares a partir do “centro”, de discursos e práticas dominantes. Contudo, quando se consideram conotações múltiplas e excêntricas, a potencialidade do entendimento da experiência da autoaprendizagem como algo em construção faz com que a força pedagógica desses sítios se torne mais evidente.
Ellsworth (2005) entende e nomeia como “força pedagógica” as qualidades pedagógicas que cada um desses lugares possui. Argumenta que, ao assistirmos a um filme, visitarmos uma exposição ou escutarmos uma música, corpo e mente entram em sintonia com o que está sendo visualizado, escutado ou sentido, e a força dessa conjunção é que resulta em aprendizagens. Sem atribuir qualquer adjetivo específico a essa forma de pedagogia (não a denominou pública, crítica ou cultural), Ellsworth chama a atenção para como se exerce a força pedagógica desses espaços. Destaca que curadores, designers, produtores midiáticos ou outras pessoas que projetam tais ambientes têm intenção educativa e inventam caminhos processuais que instigam e possibilitam aprendizagens.
Usando o conceito de espaço transicional, do pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (198911, apudELLSWORTH, 2005), Elizabeth Ellsworth (2005) argumenta que múltiplos lugares produzem aprendizagem porque colocam os sujeitos no espaço transicional.12 Ou seja, posicionam-nos em contato com novas experiências, novas sensações, que alteram aquilo que já sabiam. Introduzem os sujeitos em uma zona na qual os limites entre dentro e fora, entre o que se sabe e o que corpos e mentes estão assimilando produzem novos efeitos, novos conhecimentos. O mais interessante desse uso que a autora faz de Winnicott é que, para ela, nesse contexto, a pedagogia funciona como uma dobradiça. É a pedagogia que articula o mundo real e o imaginário, mediando esse processo e permitindo que o sujeito reorganize seu self mediante a incorporação de suas novas aprendizagens.
Então, conforme já afirmamos, toda essa argumentação desenvolvida por Ellsworth concede à pedagogia um destaque especial. Nessa obra, vemos a ampliação da ideia de lugares de aprendizagem sendo produzida a partir da centralidade da pedagogia como articuladora entre diversificados espaços culturais de aprendizagem - para além da escola - e a produção do self. A nosso ver, é essa tensão e ampliação do que pode ser entendido como pedagogia, assim como a indicação desses loci incomuns como lugares de aprendizagem, que aporta um contributo significativo para o fortalecimento do conceito de pedagogias culturais. Mesmo que a reflexão de Ellsworth seja posterior aos usos iniciais do conceito, ela nos ajuda, hoje, a compreender melhor o que seus usos permitiram que fosse pensável em educação.
Prosseguindo em nosso intento de rastrear a invenção do conceito de pedagogias culturais, parece-nos que outra condição importante para tal acontecimento foi a flexibilização e a pluralização do conceito de pedagogia. Conforme salientamos, Ellsworth (2005) não se preocupou em denominar, derivar ou adjetivar a pedagogia objeto de sua análise; Henry Giroux, contudo, fez isso mais de uma vez e, por isso, podemos considerar que os conceitos de pedagogia pública (GIROUX, 1999a), pedagogia radical (GIROUX, 1983) e pedagogia crítica (GIROUX; MCLAREN, 1995), empregados por ele, reverberam no conceito de pedagogias culturais. Nesse cenário, o legado de Giroux é indiscutível, conforme explanamos a seguir.
Pedagogia crítica e pedagogia pública: o legado de Henry Giroux
Passadas mais de duas décadas da publicação dos primeiros textos de Giroux que tratam de pedagogia em conexão com os Estudos Culturais13, é possível avaliar o quanto suas ideias foram precursoras e estimuladoras de todo um campo de discussões que se ocupa das aproximações entre pedagogia e cultura.
Mais do que ampliar o conceito de pedagogia, dizendo que esta se dá em uma gama de lugares que não apenas a escola, esse autor parece ser um dos primeiros estudiosos que adjetiva o conceito com a intenção de pluralizar as ações pedagógicas. Foi tomando esses conceitos como ponto de partida que muitos outros estudos se tornaram possíveis e repercutiram positivamente no campo da Educação. Por exemplo, Bernstein (2001), ao falar da pedagogização da vida diária; Pikett (2009), ao tratar do Estado pedagógico; Camozzato (2012), ao abordar a vontade de pedagogia; ou Watkins, Noble e Driscoll (2015), ao discorrerem sobre o imperativo pedagógico, referem-se à produção de Giroux para desencadear suas discussões.
Em contato com essas produções que ampliam o conceito de pedagogia, que a consideram um imperativo e mencionam as pedagogias culturais - como é o caso, entre outros, dos trabalhos de Camozzato (2012) e Watkins, Noble e Driscoll (2015) -, observamos que não apenas o conceito de pedagogia crítica serve como ponto de partida, mas também o conceito de pedagogia pública é mencionado. Isso chamou nossa atenção porque, especialmente na maior parte das pesquisas em Educação produzidas no Brasil, o conceito de pedagogia pública não aparece; já o conceito de pedagogias críticas, dada inclusive a participação do educador Paulo Freire em sua formulação e divulgação, é um conceito mais difundido e frequentemente adotado em pesquisas desenvolvidas em nosso país. Inspirado na Teoria Crítica, o conceito de pedagogias críticas é explicitado por Giroux (1994) no já mencionado artigo “Doing Cultural Studies: youth and the challenge of pedagogy”. Nele, o autor esclarece que compreende as pedagogias críticas não apenas como um conjunto de técnicas e habilidades, mas como uma prática cultural, aproximando-se, assim, dos Estudos Culturais. Busca relacionar tal campo com as pedagogias críticas, pois, para ele, os Estudos Culturais oferecem uma teorização importante aos educadores, já que aportam elementos tanto para analisar a produção histórica, econômica e cultural de representações e desejos que os jovens contemporâneos absorvem, especialmente pela mídia, quanto para repensar a relação entre poder, cultura, aprendizagem e o papel dos docentes como “intelectuais públicos” (GIROUX, 1994).
Além de promover uma aproximação entre esses dois campos, Giroux, em vários textos (GIROUX, 2008{1995}14, 1994, 1999a), empenhou-se em salientar o quanto a pedagogia é importante para os Estudos Culturais e, vice-versa, o quanto os Estudos Culturais são importantes para a educação e a pedagogia. A partir da análise de diversos materiais midiáticos, como filmes hollywoodianos, filmes e desenhos animados da Disney, o autor salienta que tais artefatos, ao mesmo tempo que reforçam estereótipos de gênero e raça, dão condições para que, mediante uma pedagogia crítica, tais narrativas sejam colocadas sob suspeita e reescritas. É pela crítica das representações aí embutidas que os sujeitos podem ampliar sua compreensão sobre o contexto social e cultural em que estão inseridos e, consequentemente, a gama de estratégias para desenvolverem um senso de resistência e transformação. A pedagogia crítica dá atenção à produtividade dos artefatos da cultura e os investiga para denunciar as formas de ideologia e dominação presentes nos discursos e nas representações que produzem. Diz respeito a uma ação pedagógica politicamente engajada, que atrela fortemente o papel do educador ao processo de transformação da realidade sociocultural. Citando pesquisadores como Stuart Hall, Edward Said, Lawrence Grossberg, entre outros, Giroux (1999a) afirma que esses estudiosos redefiniram o significado de pedagogia crítica e política cultural. Segundo ele:
O novo trabalho em pedagogia tem sido encarado como uma forma de produção política e cultural profundamente envolvida na construção do conhecimento, subjetividades e relações sociais. Distanciando-se da pedagogia como prática fora do contexto histórico e não teórica, vários trabalhadores culturais têm cada vez mais tentado utilizar a prática pedagógica como uma forma de política cultural. Tanto dentro quanto fora da instituição acadêmica, isso tem implicado em uma preocupação com análises de produção e representação do significado e em como essas práticas e seus efeitos estão envolvidos na dinâmica do poder social. (GIROUX, 1999a, p. 13)
Consideramos que, pelo posicionamento assumido pelo autor sobre pedagogia, assim como pelo trabalho que faz ao analisar artefatos da cultura (como os filmes de Hollywood ou da Disney), a noção de pedagogia atuando para além da escola se torna mais visível e potente. Segundo Giroux (1999a, p. 14), como prática cultural, a pedagogia “contesta e recompõe a construção, apresentação e engajamento de diversas formas de imagens, texto, fala e ação”. Ainda de acordo com o autor, ao compreendermos que estes artefatos da cultura - publicidade, filmes, televisão, entre outros - praticam uma pedagogia, ensinam e posicionam os sujeitos, estamos entendendo como a política cultural se exerce, como os arranjos sociais são engendrados. Esse tipo de pesquisa tem implicado “uma preocupação com análises de produção e representação do significado e como essas práticas e seus efeitos estão envolvidos na dinâmica do poder social” (GIROUX, 1999a, p. 13).
Já o conceito de pedagogia pública, que aparece na produção intelectual de Giroux por volta dos anos 2000 (1999b, 2004a, 2004b, p. 74), refere-se “a um conjunto poderoso de forças ideológicas e institucionais cujo objetivo é produzir indivíduos competitivos, com interesses próprios, disputando seu próprio ganho material e ideológico”15. Citando novamente não só Stuart Hall e Lawrence Grossberg, mas também autores como Meaghan Morris e Toby Miller, no texto “Cultural Studies, Public Pedagogy, and the Responsibility of Intellectuals” (Estudos Culturais, Pedagogia Pública e Responsabilidade dos Intelectuais), publicado em 2004 nos Estados Unidos, Giroux (2004b) se mostra ainda mais próximo dos Estudos Culturais, mas sempre afinado com a perspectiva da teoria crítica.
Partindo do reconhecimento da importância da produção dos Estudos Culturais para a ampliação da ideia de cultura, o autor considera a cultura como “a esfera primária onde indivíduos, grupos e instituições engajam-se na arte de traduzir as diversas e múltiplas relações que medeiam a vida privada e as questões públicas”16 (GIROUX, 2004b, p. 62). Nesse contexto, mais uma vez a pedagogia ocupa um papel central, já que, segundo ele, “a pedagogia é fundamental para qualquer noção viável de política cultural e {que} os estudos culturais são cruciais para qualquer noção viável de pedagogia” (GIROUX, 2004b, p. 62). Assim, prossegue o autor,
é precisamente no cruzamento em que diversas tradições de estudos culturais e pedagogia se informam mutuamente que existe a possibilidade de tornar o pedagógico mais político para os teóricos dos estudos culturais e a política mais pedagógica para os educadores.17 (GIROUX, 2004b, p. 62)
Na esteira dessa argumentação, o autor esclarece que seu interesse nos Estudos Culturais vai na direção de mostrar
{...} como os processos de aprendizagem constituem os mecanismos políticos através dos quais as identidades são formadas e os desejos mobilizados, e como as experiências assumem formas e significados dentro e através de condições coletivas e de forças maiores que constituem o reino do social.18 (GIROUX, 2004b, p. 62-63)
Como se pode perceber, o desenvolvimento do conceito de pedagogia pública assenta-se na visão de que a cultura opera de forma pedagógica. Todavia, para que esse traço seja politicamente efetivo, o autor considera que cabe aos educadores atuarem como intelectuais ideologicamente engajados nas lutas políticas embutidas no que chama de política cultural. Isso justifica o porquê de Giroux insistir que devemos enxergar a pedagogia para além da escola, já que é só prestando atenção e analisando o contexto sociocultural que os educadores podem ter condições de melhor compreender as forças políticas e culturais que o formam.
Ainda que conceito de pedagogia pública se assemelhe ao que poderia ser considerado o conceito de pedagogia crítica atualizado, aproximando-se ainda um pouco mais dos Estudos Culturais, em ambos os conceitos vemos a preocupação de Giroux com questões que envolvem ideologia, cultura e o papel do professor. Nos usos que encontramos para o conceito de pedagogias culturais no Brasil, não vemos essas marcas de modo tão evidente, seja no tom de denúncia, seja no de engajamento, e raramente encontramos o conceito associado à escola e aos professores. Entretanto, parece decorrer da produção de Giroux o embasamento do conceito de pedagogias culturais para operar em diferentes contextos culturais. É em sua produção que adjetivar a pedagogia tornou-se algo usual, e é especialmente Giroux, como afirmam Watkins, Noble e Driscoll (2015), que inscreveu a pedagogia como um assunto importante na pauta dos Estudos Culturais. Enfim, como se percebe, essa linha do mapa que passa por Giroux implicou e continua a reverberar muitas heranças vinculadas à invenção do conceito de pedagogias culturais.
A invenção da expressão pedagogias culturais
Buscar rastros do conceito de pedagogias culturais e tentar localizar algumas condições que permitiram a emergência de uma noção utilizada em muitos países, especialmente nos de língua inglesa, mas não apenas nesses, não é uma tarefa simples. Todavia, as facilidades dos tempos de globalização digital foram favoráveis a esse empreendimento, levando-nos ao livro Cultural Pedagogy: arts, education, politics, do norte-americano David Trend, publicado em 1992.
A obra integra a coleção “Critical Studies in Education and Cultural Series”, coordenada por Henry Giroux e Paulo Freire, e tem o próprio Giroux como autor do prefácio. Tal fato já torna fácil a percepção de que, dada a coleção de que faz parte, as pessoas que a coordenam e o período em que a obra foi escrita, essa é uma produção vinculada à teoria crítica da educação. Conforme Watkins, Noble e Driscoll (2015, p. 13), “o livro de Trend usa a estrutura da pedagogia crítica para analisar a educação artística e o trabalho cultural, dando centralidade para as discussões sobre participação e democracia”19.
Nessa obra, Trend (1992) traz à discussão diferentes argumentos para mostrar que, a partir da centralidade da cultura e do que entende como expansão da pedagogia para diferentes espaços, a relação entre arte e política adquire novos matizes. Nesse contexto, o papel da pedagogia é destacado, pois, ao considerá-la “como um instrumento através do qual as pessoas se localizam, analisam seus ambientes e formulam planos para o futuro” (TREND, 1992, p. 7), a pedagogia funciona como uma “ação profundamente política”.20
Conforme Trend, essas características da pedagogia são essenciais para a relação entre arte e educação no cenário social que contextualiza sua obra (início dos anos 90). Assim, mantendo o tom de denúncia próprio da teoria crítica, o autor aproxima pedagogia e cultura para mostrar que, quando colocadas em relação, ambas trazem benefícios teóricos tanto para artistas, quanto para professores.
Tal aproximação acontece no primeiro capítulo da obra, e, por isso, esse é o que mais chama a atenção. É nele que Trend faz uma revisão crítica, abarcando desde reconhecidos autores de tendência marxista até aqueles dos Estudos Culturais, para evidenciar o modo como tópicos sobre pedagogia e cultura têm influenciado o pensamento de teóricos contemporâneos. Trend (1992) aponta que a importância da cultura no campo social e educacional começa a ser discutida com mais afinco no decorrer do século XX pelos neomarxistas da Escola de Frankfurt. Em tempos de expansão dos meios de comunicação, a crítica feita pelos pensadores frankfurtianos era de que a indústria cultural, a serviço do sistema capitalista, estaria mercantilizando a cultura e, com isso, apagando a arte erudita e a cultura popular. Para aqueles pensadores, tal movimento demonstrava o quanto o sistema estaria orientado para o consumo, de modo que os sujeitos não conseguiam apresentar qualquer forma de resistência, tampouco escapar dos ditames da indústria cultural.
Mesmo concordando que os comentários de Max Horkheimer e Theodor Adorno, na década de 1930, tivessem sido significativos para mostrar que a indústria cultural capturava as massas e as incentivava ao consumo, Trend (1992) considera que não conferiam à cultura a merecida importância e que,
{...} embora útil no amplo mapeamento de reprodução ideológica, esta posição totalizante recusa atribuir qualquer autonomia aos produtores ou às audiências. Ela também foi descaradamente elitista em seus pontos de vista em relação ‘às massas’. 21 (TREND, 1992, p. 11)
Trend (1992) argumenta que novos modos de olhar para a cultura foram produzidos a partir das ideias de Althusser - como a de que entre os aparelhos repressores do Estado e a consciência do indivíduo há um espaço que se refere ao papel da cultura na complexa relação dialética com o mercado -; assim como a partir dos estudos do também marxista Hans Magnus Enzenberger, na década de 70, que apontou terem seus antecessores de esquerda um entendimento equivocado sobre o modo como a cultura funciona. Quando Trend (1992, p. 12) fala sobre Enzenberger, ele menciona que, para este, “em vez de enganar as massas em uma rede de falsos desejos, a mídia realmente encontrou maneiras de satisfazer reais (mas muitas vezes inconscientes) desejos”22. Ainda de acordo com Trend (1992), tal constatação vai em direção à assertiva elaborada posteriormente por marxistas pós-estruturalistas, como Frederic Jameson e Roland Barthes, ao afirmarem serem negociáveis as possibilidades de significação, já que os significados são “flutuantes” e, portanto, os signos culturais poderiam ser interpretados de diferentes formas. Defende Trend (1992, p. 12) que
A partir da compreensão da contingência do significado, evoluiu um discurso complexo sobre as muitas forças em luta para influenciá-lo. A própria maneira de ver o mundo torna-se uma questão de estratégia. Por esta razão, as questões de “leitura” e “escrita” culturais são explicitamente preocupações pedagógicas.23
Entendendo que os significados são também questão de interpretação, o autor aponta que muitos construtos importantes para o marxismo, como poder, formação social e luta de classes, passaram a ser vistos com novas lentes. O autor ainda declara que, com esse entendimento, a questão da disputa política do significado no terreno cultural se tornou ainda mais contundente e o papel crítico dos profissionais de educação ainda maior, já que tal proposição convida os educadores a pensarem sobre as estruturas institucionais discursivas em que estão inseridos.
Ademais, com as lutas sociais travadas após a Segunda Guerra Mundial, outros estudos que contribuem para se pensar a relação da pedagogia com a cultura emergiram. Conforme Trend (1992), os escritos de Gramsci, divulgados depois de sua morte, são exemplos disso. Gramsci, percebendo as mudanças sociais como processos de aprendizagem, teria argumentado, diferentemente de Marx, que toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação educativa. Para Trend (1992, p. 24):
Neste contexto ele {Gramsci} não estava simplesmente se referindo às formas de ensino que comumente estão associadas à sala de aula. Gramsci estava descrevendo o profundo processo político através do qual os cidadãos são socializados para reconhecer e validar o poder do Estado. Este processo permeia todos os componentes do aparato social: o escritório, a igreja, o museu, e em particular a escola. Se pensarmos essas situações como locais de potencial persuasão ideológica, então a teoria da educação de Gramsci torna-se significativa. Obviamente, estamos quase sempre em um processo de aprendizagem. Portanto as pedagogias podem abranger atividades tão diversas tais como a educação dada pelos pais, o cinema, a arquitetura e o contar histórias.24
Pierre Bourdieu, por sua vez, conforme Trend (1992), já não concebia a escola como espaço produtor de um processo político. Ao contrário, Bourdieu foi um dos pensadores do período pós-guerras que defendia que a escola reproduzia em nível micro as relações que se davam no macrossistema. Ou seja, de acordo com Bourdieu, não estaríamos em processo de aprendizagem, mas de reprodução, de dominação e subjugação. A teoria de Bourdieu trouxe avanços ao ampliar o papel da cultura, mas recebeu críticas porque, mais uma vez, o papel das instituições ficou em primeiro plano.
Posteriormente, com o surgimento dos Estudos Culturais e com o declínio da polaridade entre alta e baixa cultura, abriu-se um novo campo de discussões. Para Trend (1992), com os Estudos Culturais sendo definidos como um campo de embates de ideias que fornecem novas respostas a questões sociais e políticas, temas envolvendo poder, identidade e representação entram em cena, o que permite que a pedagogia possa ser percebida como uma estratégia política.
A partir desses desdobramentos, que intensificaram a aproximação entre pedagogia e cultura, nos capítulos seguintes de seu livro, Trend chama a atenção para questões políticas que fazem com que o acesso à arte passe a ser objeto de preocupação de trabalhadores culturais. Alegando que a crise econômica dos Estados Unidos favoreceu a comodificação da arte ao comercializá-la em galerias e considerando preocupantes as taxas de abandono escolar no sistema educacional norte-americano, o autor destaca que novas políticas públicas são necessárias para não haver risco de novas cisões entre alta e baixa cultura. Para isso, sugere a reinvenção da esfera pública, que a comunidade busque novas formas de integração e que, com isso, a pedagogia atue em favor da cidadania, com trabalhadores culturais como ativistas educacionais. Ou seja, que uma pedagogia cultural preocupada com a arte, com políticas públicas e cidadania seja acionada por trabalhadores culturais em geral.
Como se pode perceber, David Trend introduz o conceito de pedagogias culturais para tratar de questões específicas, mais particularmente preocupadas com arte e educação. A importância da linha que adota segue em três direções: a primeira refere-se à introdução da própria expressão pedagogias culturais; a segunda, à aproximação do autor com o campo dos Estudos Culturais; a terceira trata da importante relação entre os conceitos de cultura e pedagogia. Sob nosso ponto de vista, isso sinaliza que, mesmo tendo ele inventado o conceito para tratar de uma questão específica, estava ciente da cultura como recurso pedagógico e da pedagogia como instrumento que pode alterar as formas culturais. Nas palavras de Giroux (2004b, p. 61), Trend integra um conjunto de pensadores que
{...} expandiu o significado da pedagogia como uma prática política e moral, estendeu sua aplicação para além da sala de aula, tentando ao mesmo tempo combinar o cultural e o pedagógico como parte de uma noção mais ampla de educação política e estudos culturais.25
Expansão e visibilidade do conceito de pedagogias culturais
Com pesquisas voltadas à análise da produtividade de artefatos midiáticos na produção de sujeitos consumidores, especialmente crianças, os estadunidenses Shirley Steinberg e Joe Kincheloe são considerados por nós como os principais responsáveis por dar visibilidade, nos limiares do ano 2000, no Brasil, ao conceito de pedagogias culturais. Também vinculados à perspectiva crítica da Educação,26 os autores realizam suas análises na vertente crítica dos Estudos Culturais.
Em 1997, Steinberg e Kincheloe, inspirados nos escritos de Giroux sobre pedagogia e mídia e também influenciados pelas teorizações da pedagogia crítica, publicaram nos Estados Unidos o livro Kinderculture: The Corporate construction of childhood27. Nessa obra, junto com vários autores, entre eles Henry Giroux e Douglas Kellner, discutem a produtividade da mídia na construção corporativa da infância, uma infância pautada por e para o consumo. Empregam o conceito de pedagogias culturais para aludir à formatação das crianças pelos diversos artefatos midiáticos, uma infância que denominam de pré-fabricada - a infância construída por grandes corporações como Mattel, Disney e McDonald’s.
Nesse sentido, considerando pedagogia cultural como um tipo de pedagogia produzido especialmente pelos artefatos midiáticos, Steinberg (1997) assim a ela se refere:
{...} a pedagogia cultural está estruturada pela dinâmica comercial, por forças que se impõem a todos os aspectos de nossas vidas privadas e das vidas de nossos/as filhos/as. Os padrões de consumo moldados pela publicidade empresarial fortalecem as instituições comerciais como os professores do nosso milênio. (STEINBERG 1997, p. 102)
De acordo com Steinberg e Kincheloe (2004), tal manifestação é própria de uma sociedade capitalista pautada pelo consumo, em cujos sujeitos a mídia deve constantemente produzir novos desejos, que deverão ser materializados em atos de consumo. Segundo os autores:
Padrões de consumo moldados pelo conjunto de propagandas das empresas capacitam as instituições comerciais como professoras do novo milênio. A pedagogia cultural corporativa “fez seu dever de casa” - produziu formas educacionais de um incontrolável sucesso quando julgadas com base em seu intento capitalista. (STEINBERG; KINCHELOE, 2004, p. 14, grifo dos autores)
Assim, ao chamarem a atenção para a repercussão dos artefatos da indústria cultural contemporânea na formação das crianças, os autores atribuem sua produtividade ao fato de os conglomerados midiáticos disseminarem seus padrões de consumo em diferentes espaços, transformando em pedagógicos os incontáveis lugares habitados por crianças. Steinberg e Kincheloe (2004, p. 14) argumentam que a expressão pedagogia cultural
{...} enquadra a educação em uma variedade de áreas sociais, incluindo mas não se limitando à escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc.
Posteriormente, no livro Sign of the burger, the Mcdonald’s and the culture of Power28 (2002), Joe Kincheloe aciona mais uma vez o conceito de pedagogias culturais. Interessado em investigar a história e as estratégias da empresa mundialmente conhecida pelos seus arcos dourados, Kincheloe parte de outras pesquisas que têm como objeto o McDonald’s para mostrar que os arcos dourados deste, como um significante cultural global, produzem impacto na vida das pessoas.
Assumindo novamente como referencial a perspectiva crítica dos Estudos Culturais, Kincheloe busca destacar a dinâmica de poder que atravessa o tão famoso logo. Assim, todo o livro é permeado pela discussão educacional, em capítulos que tratam seja da marca como ícone pós-moderno, em que o fast-food é a saída rápida para as mulheres que estão no mercado de trabalho e não mais na cozinha de suas residências, seja da orientação para o consumo que o Mcdonald’s realiza, conectado com o ideário neoliberal, por meio de diversas estratégias - como criativos anúncios publicitários que colocam em circulação um padrão de vida americano desejável.
Kincheloe (2002) usa tais focos temáticos para mostrar o papel educativo que a empresa vem exercendo, especialmente com seu público mais jovem. O conceito de pedagogia cultural é empregado para investigar e explicitar o caráter educativo das estratégias da empresa, que ensina uma ideologia mercantil voltada para o consumo a partir da celebração de padrões de vida desejados pela clientela norte-americana. Contudo, conforme Hickey-Moody, Savage e Windle (2010), ao acionar o conceito, Kincheloe o faz para denunciar a ideologia subjacente aos arcos dourados, os efeitos negativos da corporação McDonald’s, o que aponta para um uso do conceito semelhante ao adotado por Trend (1992). Assim, de acordo com esses autores: “pedagogias culturais, nesse sentido, podem representar uma das muitas alternativas possíveis para considerar as influências educativas informais em uma era de expansão da globalização e mercantilização”29 (HICKEY-MOODY; SAVAGE; WINDLE, 2010, p. 231).
Conclusão
Durante o processo investigativo das pesquisas a que se vincula este artigo, um dos principais avanços que acreditamos ter feito até este momento foi amadurecer a ideia de que, dadas as condições de emergência e invenção do conceito de pedagogias culturais, e dadas suas vinculações teóricas e seus usos, qualquer tentativa de circunscrever o conceito, de capturá-lo em uma definição estreita e demasiadamente demarcada seguiria na contramão de sua flexibilidade e das possibilidades que têm instaurado. Parece-nos que, mais produtivo do que cercar o conceito para afirmar o que são “mesmo” essas tais pedagogias culturais, seria investigar suas condições de possibilidade e os significados denotativos que a articulação dessas condições oferecem ao conceito.
Assim, pensamos que a potência de cada condição, da mesma forma como uma linha que compõe um mapa, está na especificidade de cada uma delas, e apenas quando agrupamos essas linhas em um mesmo quadro é que podemos compreender o que torna o conceito de pedagogias culturais tão atraente, flexível e produtivo para indicar processos educativos em marcha nas sociedades de hoje.
Watkins, Noble e Driscoll (2015) argumentam também nessa direção. Consideram, por exemplo, que a exploração da materialidade da pedagogia em diferentes lugares de aprendizagem, feita por Ellsworth (2005), especialmente a partir do uso da ideia de espaço transicional, é um fecundo campo de exploração. Contudo, para a pedagogia, tais análises ainda deixam em suspenso importantes questões, a saber, “que a pedagogia como um particular conjunto de práticas e relações situadas não é elaborada em tantos detalhes quanto necessita”30 (WATKINS; NOBLE; DRISCOLL, 2015, p. 11).
O legado de Giroux também não passa despercebido por Watkins, Noble e Driscoll (2015). Como concordam os autores, a ampliação que Giroux propõe à pedagogia é de grande importância para o campo, mas, por outro lado, a ênfase negativa dada às qualidades pedagógicas dos espaços culturais restringe o leque de análises possíveis. Os autores consideram que, apesar de Giroux ter “deslocado a pedagogia para além da sala de aula”, em certo sentido, ele “pressupõe que a pedagogia deva ser sempre ‘intencional’ e parte integrante de um processo político através do qual as pessoas são ‘incitadas’ a adquirir um ‘caráter moral’ particular”31 (WATKINS; NOBLE; DRISCOLL, 2015, p. 13, grifos dos autores). Além disso, sem querer descartar a importância dos trabalhos em pedagogias críticas e pedagogia pública, os autores consideram que a produção de Giroux não faz o tipo de trabalho empírico e teórico necessário para explorar as qualidades pedagógicas da vida social. Dessa forma, segundo eles, “pedagogia torna-se menos uma ferramenta para analisar as práticas específicas e mais uma ‘caixa preta’ através da qual algo é feito, sem explicar como é feito”32 (WATKINS; NOBLE; DRISCOLL, 2015, p. 10, grifos dos autores).
Do mesmo modo, apesar de ser igualmente muito significativa a contribuição de Trend (1992) - que nossas pesquisas indicaram ser o autor que inaugurou a utilização da expressão pedagogias culturais -, consideramos que, hoje, o conceito é produtivo para pensar uma gama muito mais ampla de relações do que apenas aquelas entre pedagogia, arte e democracia, como ele fez. Além disso, como David Trend também se ancora no referencial dos estudos críticos, isso implica as limitações já mencionadas por Watkins, Noble e Driscoll (2015).
As críticas para Steinberg e Kincheloe (2004) seguem na mesma direção. Suas contribuições no que tange à visibilidade e à disseminação do conceito são muito importantes, particularmente para as pesquisas brasileiras que lançam mão do conceito como ferramenta teórica, pois foi por intermédio da produção teórica desses autores que tal noção se tornou conhecida no Brasil, inicialmente nos estudos realizados na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, expandindo-se, posteriormente, para outros espaços acadêmicos de investigação. Contudo, como esses autores também se filiam à vertente crítica da Educação e produziram suas investigações tendo como mote o contexto social, cultural e econômico norte-americano, não podemos afirmar que o uso que fazemos do conceito seja similar ao deles. Uma análise de aproximações e distinções nas apropriações desse conceito nas pesquisas brasileiras dos Estudos Culturais em Educação ainda está por ser feita.
Como viemos argumentando neste artigo, é especialmente pertinente para o entendimento de emergência, produtividade e usos do conceito de pedagogias culturais rastreamento, mapeamento e compreensão das múltiplas linhas/condições que o (re)inventam.
Com isso, para que o conceito de pedagogias culturais possa continuar sendo “um conceito aberto e exploratório” (HICKEY-MOODY; SAVAGE; WINDLE, 2010), avaliamos que conhecer suas possibilidades, analisá-lo e discuti-lo constitui movimento primordial para que este persista como uma ferramenta teórica consistente nas pesquisas que o acionam. Trazer novos elementos para esse processo a partir da discussão de sua “invenção” é o que este breve artigo procurou fazer.