INTRODUÇÃO
A formação de docentes tem se mostrado um campo de estudos bastante profícuo, sendo amplamente debatido por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento (Psicologia, Educação, Linguística, etc.), em seus mais variados aspectos, entre eles: Trabalho Docente, Identidade e Profissionalização, Formação Continuada e Concepções de Docência. A inexauribilidade dessas investigações está relacionada às constantes transformações histórico-culturais que delineiam as formas de atuação desses profissionais da educação, suscitando, portanto, novos debates sobre as práticas formativas.
Segundo Cunha (2013), a reflexão acerca do conceito de formação de professores constitui um desafio permanente para a educação superior, exigindo que se recorra à pesquisa, à prática de formação e à significação do papel desse profissional na sociedade. Enquanto a pesquisa se debruça sobre as questões epistemológicas, políticas e culturais, a prática circunscreve-se em uma amálgama de condições teórico-contextuais. No entanto, a autora destaca que as pesquisas continuam abordando os assuntos clássicos e que se faz necessário ampliar a abrangência do foco em decorrência da complexidade desse tema. Nesse sentido, este artigo pretende discutir as práticas de letramento na formação docente para a atuação no ensino superior, conforme se apresentam na literatura brasileira.
A formação docente para a atuação em diferentes níveis educacionais, da educação básica à pós-graduação, estrutura-se sobre práticas de leitura e escrita, ou seja, o que o professor lê e escreve forma sua consciência sobre sua profissão e sobre os objetos que ensina e discute em aulas. Do mesmo modo, essas práticas também são constitutivas da sua consciência sobre si mesmo, ou seja, sobre sua identidade profissional, e sobre os outros, seus alunos e pares, a quem tal formação terá efeitos objetivos e subjetivos. Desse modo, é fundamental eleger o papel central da linguagem verbal para a formação do professor, bem como seus efeitos no exercício da sua profissão.
Para tanto, faz-se necessária uma concepção de linguagem que discuta sua centralidade nas práticas formativas, bem como possibilite analisar suas consequências para a atividade docente. Isto implica em compreendê-la em sua dimensão verbo-axiológica, de forma a pensá-la em suas complexas relações sociais, culturais, históricas e subjetivas.
Tendo em vista tal complexidade, a filosofia dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin, em oposição ao denominado objetivismo abstrato estruturalista, que compreende a língua como um sistema de signos arbitrários e convencionais, propõe uma concepção discursiva da enunciação, enfatizando seu caráter material e ideológico. É a língua viva, manifesta como “(...)o modo mais puro e sensível da relação social” (VOLOCHÍNOV, 2010, p.36).
Nessa mesma direção, no final do século XX, um grupo de pesquisadores britânicos, chamado New Literacy Studies, em oposição ao modelo autônomo de letramento predominante na sociedade e nas instituições de ensino, que muito se assemelha ao objetivismo na compreensão da língua como um código neutro, propõe um olhar ressignificado para esse conceito, a partir de um modelo ideológico de letramento. Tal modelo concebe as práticas de leitura e escrita como sendo envoltas em relações de poder, significados e práticas culturais específicas (STREET, 2014, p. 17). Sendo assim, o letramento não se encerra com o domínio do código escrito, mas prossegue por todas as complexas formas de organização do mundo social e construído. “Quando participamos da linguagem de uma instituição, seja como falantes, ouvintes, escreventes ou leitores, ficamos posicionados por essa linguagem; ao se dar esse assentimento, uma miríade de relações de poder, autoridade, status se desdobram e se reafirmam (p. 143)”.
Ora, se o letramento é um processo contínuo, é importante estudar o efeito dessas práticas discursivas nas diferentes etapas de ensino, inclusive nas universidades, espaço no qual os estudantes se deparam com textos específicos da comunidade científica e, para a apropriação de seus significados, não basta apenas o domínio dos aspectos formais da língua (gramática, ortografia, etc.), mas o reconhecimento de “procedimentos e papéis sociais por meio dos quais esse modelo de letramento é disseminado e interiorizado” (STREET, 2014, p. 129).
Sobre essas práticas de letramentos que ocorrem no ensino superior, Lea e Street (1998, 1999) apresentam o conceito de letramentos acadêmicos, que se relaciona “(...) com a produção de sentido, identidade, poder e autoridade que ocorrem no interior das universidades (...)” (LEA, STREET, 1999, p. 3); e colocam em primeiro plano a natureza social e institucional, que prevê a “(...) aquisição de usos adequados e eficazes de letramento como mais complexos, dinâmicos, matizados, situados, o que abrange tanto questões epistemológicas quanto processos sociais incluindo: relações de poder entre pessoas, instituições e identidades sociais” (p. 3).
Ainda na busca pela compreensão das características dos textos que circulam na universidade, podemos recorrer à arquitetônica dos gêneros discursivos de Bakhtin (2011). Esse filósofo da linguagem nos diz que cada campo da atividade humana cria e coloca em uso formas enunciativas bastante regulares, utilizando-se inclusive de uma sintaxe bastante padronizada para introduzir e concluir seus enunciados, a fim de interagir com determinado interlocutor.
Deste modo, ele propõe a análise das esferas sociais como princípio organizador dos gêneros. Elas tipificam as relações sociais, estabilizando relativamente os enunciados que nelas circulam, originando gêneros do discurso particulares. Na universidade, nossas práticas de uso da língua (escrita, oral, multissemiótica) são relativamente estabilizadas pelo campo no qual os enunciados são produzidos e circulam na própria esfera acadêmica.
Portanto, não basta dominar as estruturas formais da língua, sendo também necessário apropriar-se das formas próprias de comunicação da comunidade acadêmica. Essa apropriação pode ser problemática para muitos estudantes, que fracassam na aprendizagem e não atingem o sucesso almejado em suas trajetórias acadêmicas. Uma concepção enunciativo-discursiva de linguagem pode modificar o papel do professor nas práticas de leitura e escrita na universidade, dada a reflexão sobre sua complexidade.
Diante das discussões provocadas até o momento, e pautando-se, portanto, em uma concepção discursiva da linguagem e no conceito de letramentos, enquanto conjunto de práticas sociais, importa saber: como as pesquisas têm discutido a relevância das práticas de letramento na formação de professores que atuam no ensino superior?
Objetiva-se, portanto, identificar na literatura científica em qual direção estão propostas as discussões sobre a importância das práticas de letramento na formação do docente que atua no ensino superior, por meio da análise de artigos realizados em âmbito nacional, em um período de seis anos, a fim de estabelecer um panorama de como essa temática tem sido caracterizada.
No entanto, é necessário ir além de um mero mapeamento de estudos. Este artigo encontra-se imerso na preocupação de identificar e problematizar quais são as concepções de linguagem utilizadas, de modo a possibilitar reflexões teórico-metodológicas sobre as políticas pedagógicas predominantes no ensino superior e como elas incidem nas práticas de letramentos e na formação do professor que atua nesse espaço.
O MÉTODO
O presente artigo pretende, no encontro com textos outros, realizar uma revisão integrativa de literatura, que, de acordo com Scorsolini-Comin (2015), objetiva, para além de “(...) mapear a produção acerca de determinado assunto, discuti-la de modo integrado e crítico, a fim de possibilitar o levantamento de lacunas e de evidências para a prática profissional na área” (p. 164). Para tanto, foram considerados artigos produzidos no cenário nacional, em um recorte temporal compreendido entre os anos de 2013 e julho de 2019, indexados em duas bases de dados: SciELO (Scientific Eletronic Library Online) e Portal de Periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para o mapeamento de artigos. A opção por essas bases está relacionada ao fato de recuperarem grande parte da produção científica nacional e apresentarem trabalhos completos.
Os procedimentos e etapas utilizados nesta revisão integrativa são: (1) Definição da pergunta científica, especificando o objeto da investigação (letramento e formação de professores) e a área de interesse dentro do campo educacional (ensino superior); (2) Levantamento das bases de dados, a fim de selecionar as mais adequadas à pesquisa, e a definição das palavras-chave e das estratégias de busca; (3) Estabelecimento dos critérios de seleção dos artigos a partir da busca; (4) Condução das buscas nas bases de dados, utilizando as estratégias previamente definidas; (5) Aplicação dos critérios na seleção dos artigos, justificando as possíveis exclusões; (6) Categorização dos estudos; (7) Elaboração de um resumo crítico, sintetizando as informações disponibilizadas pelos artigos que foram incluídos na revisão; e por fim a interpretação e discussão dos estudos a partir do aporte teórico selecionado para este estudo (9).
Os caminhos da pesquisa
A seleção das palavras-chave que orientariam as buscas foi uma etapa árdua e criteriosa, realizada durante a primeira semana do mês de junho de 2019. Em um primeiro momento, utilizou-se os seguintes termos: letramento; formação do professor; ensino superior; letramento acadêmico; leitura e escrita na universidade; práticas e ensino-aprendizagem, ora combinando-os, ora empregando alguns em detrimento de outros, ou seja, utilizando combinações distintas. Observou-se, portanto, que aparecia um número reduzido de trabalhos, notando-se, por meio da leitura do resumo, que não atendiam aos objetivos propostos para este artigo.
Após várias combinações de descritores, optou-se por utilizá-los de modo abrangente: letramento; formação do professor (com o uso dos operadores booleanos and para os termos procurados), na busca por assunto. Essa ação levou-nos a uma hipótese inicial: de que há pouca produção nacional sobre a temática do letramento relacionada à formação de professores. Mesmo com esses termos mais abrangentes, encontraram-se 223 artigos no Portal de Periódicos Capes e 15 no Portal SciELO.
A partir desse levantamento, percebeu-se que o debate sobre a formação do professor em relação às práticas de letramento que ocorrem no interior das universidades, embora conste nessas pesquisas, muitas vezes apresenta-se diluído no corpo do estudo, exigindo uma leitura mais profunda dos trabalhos selecionados.
Para a inclusão dos artigos na revisão integrativa, foram adotados os seguintes critérios: (1) Artigos que abordassem a temática do letramento e da formação do professor, produzidos em cenário nacional; (2) Trabalhos relacionados à formação de docentes no ensino superior ou para a atuação profissional nesta etapa da educação e (3) Estudos realizados entre o ano de 2013 e julho de 2019. Consequentemente foram excluídos: (1) Estudos que analisam práticas de letramento realizadas nas séries iniciais da escolarização básica; (2) Pesquisas sobre a formação do docente em língua estrangeira; (3) Trabalhos cuja temática distancia-se do proposto no título e/ou resumo, sendo, portanto, divergente ao que se propõe investigar neste estudo e (4) Os artigos repetidos, visto terem sido contabilizados apenas uma vez.
Depois de aplicar os critérios de inclusão e exclusão, compilaram-se os estudos selecionados numa planilha de Excel, utilizando os seguintes itens de categorização organizacional: título, autoria, instituição de vinculação, data de publicação, tipo de pesquisa, sujeitos participantes, questão central, tema, aporte teórico, resultados, concepções linguagem e formação de professor (demarcadas ou implícitas).
O eixo “sujeitos participantes” foi fundamental para a categorização dos tipos de estudos e se estão relacionados à formação do docente em cursos de licenciatura ou à formação do professor para a atuação no ensino superior.
Apresenta-se e discute-se também: os principais campos de conhecimento que se debruçam sobre esses estudos, seus objetivos, sua contribuição para as práticas de letramento desenvolvidas no ensino superior e a fundamentação teórica utilizada para as análises. Vislumbra-se, com isso, identificar as similitudes e os distanciamentos existentes entre as abordagens, a fim de verificar as lacunas e apontar pontos importantes para o avanço das discussões.
Pretende-se, portanto, compor a arena das vozes dos autores dos artigos selecionados, das concepções de linguagem que os perpassam, bem como exercer o olhar exotópico a fim de situar o contexto histórico de produção destes estudos, seguindo os ensinamentos bakhtinianos sobre o funcionamento da linguagem, sendo “(...) possível apreender os movimentos de transformação de significações, que produzem os cenários de experiências cotidianas de determinada sociedade, em um determinado tempo” (PAN; LITENSKI, 2018, 529).
RESULTADOS
Caracterização do corpus da pesquisa
Após o emprego dos critérios de exclusão, restaram 36 artigos, que foram submetidos a uma segunda etapa de análise, que consistiu na leitura dos trabalhos na íntegra. Após essa abordagem mais criteriosa, foram selecionados 20 artigos (apresentados no quadro 1). A maior parte das pesquisas excluídas estava relacionada à formação continuada de professores ou estava voltada às práticas de letramento realizadas no ensino fundamental.
Em relação a esses artigos selecionados (N=20), realizou-se uma primeira categorização, buscando mapear de quais universidades os pesquisadores desses trabalhos são oriundos. Constatou-se que a maior parte das pesquisas provém de instituições públicas (N=19), sendo que seis (6) são da Universidade Federal do Tocantins e as demais de diferentes instituições, entre elas: Universidade Federal de Brasília, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal da Bahia.
Os artigos que compõem o corpus deste estudo foram publicados em 12 periódicos diferentes, todos avaliados dentro dos critérios de qualidade da CAPES (resultados apresentados no triênio 2013/2016), sendo as áreas mais comuns e de convergência: a Linguística (N=14) e a Educação (N=6).
Dentre a totalidade dos artigos, pode-se constatar (8) oito que, a partir da identificação de problemas relacionados às questões estruturais da língua, propõem modelos de práticas, visando o desenvolvimento e domínio das habilidades de leitura e escrita relacionadas a um gênero acadêmico específico. Nessa linha de abordagem, encontramos estudos como os de Bittencourt; Avelar (2013), Silva et al. (2016) e Florek (2016). Dentre os gêneros acadêmicos relacionados às análises e intervenções propostas por parte dos artigos, encontram-se: infográfico, monografia, relatório de estágio e memoriais de formação.
O Quadro a seguir apresenta uma categorização das pesquisas analisadas em relação aos sujeitos participantes das investigações e reflexões.
Observou-se que, entre os estudos analisados, apenas quatro (4) trouxeram explicitados diretamente na temática a questão da formação do docente para o ensino superior e a sua relação com as práticas de letramento, os demais artigos estão relacionados à formação docente que ocorre nos cursos de licenciatura, ou tratam da formação de modo mais amplo, da escolarização básica à superior.
A seguir, os artigos serão categorizados em dois eixos, de acordo com os sujeitos participantes, os objetivos das pesquisas e as concepções de linguagem adotadas.
A formação do professor universitário e as práticas de letramentos acadêmicos
Iniciamos esta seção destacando que, entre os quatro (4) artigos que a compõem (FLOREK, 2016, BITTENCOURT; AVELAR, 2013, FERRAGINI, 2018, SILVA; FRANCO, 2017 ), dois (2) deles apresentam estudos para além do campo das licenciaturas. Bittencourt e Avelar (2013) trouxeram a temática para a área da Comunicação Social, enquanto Florek (2016) apresentou reflexões e orientações visando atingir professores de graduação e pós-graduação de diferentes cursos.
No artigo Estratégias instrutivas na docência do ensino superior: o letramento e a habilidade da leitura e da escrita em cursos de Comunicação Social (2013), Bittencourt e Avelar enfatizaram as dificuldades de escrita que os acadêmicos apresentam ao adentrarem na universidade, conforme se observa no trecho: “(...) Essa herança histórica gera ainda desníveis nas habilidades cognitivas para a apreensão dos conteúdos, enfraquecendo o processo de ensino-aprendizagem, principalmente nos modelos didáticos habitualmente utilizados no cotidiano escolar” (BITTENCOURT; AVELAR, 2013, p. 31).
A partir dessa constatação, destacaram a importância de ações planejadas pelos docentes para o avanço desse cenário. Para compreender melhor essa possibilidade, analisaram produções dos estudantes, verificando que elas melhoraram muito após práticas de letramento acadêmico direcionadas e orientadas. Essas práticas consistiam naquilo que os autores chamaram de “exercícios” envolvendo leituras orais, resumos, escrita de relatórios e estudos de caso, por exemplo. Embora não esteja demarcada explicitamente no texto, há uma concepção de linguagem enquanto desenvolvimento de habilidades essenciais para o exercício profissional, pois os cursos referidos no artigo são da área da Comunicação Social.
No corpo do estudo, os autores apresentaram o letramento como um método de ensino essencial para reverter os déficits cognitivos dos alunos. Assim, verifica-se no trecho: “No ensino superior o letramento, quando planejado e metodologicamente aplicado, pode ser um instrumento de grande valor para reverter déficits cognitivos, romper barreiras cristalizadas e instaurar atitudes positivas de respeito mútuo em sala de aula” (BITTENCOURT; AVELAR, 2013, p. 32). E, por fim, reiteraram a importância de uma formação adequada para os docentes que atuam no ensino superior, que considere o tipo de textos que circulam nesse espaço, a criatividade e a relação professor e aluno.
Florek (2016) apresentou em seu artigo uma proposta didática sistematizada para o ensino de um gênero multimodal da esfera científica, o resumo acadêmico gráfico (RAG), que pode ser aplicado a estudantes de diferentes cursos. Para tanto, considerou o modo como a multiplicidade cultural e os significados linguísticos podem ser materializados socialmente e as formas contemporâneas de comunicação em meio às novas tecnologias.
A autora construiu sua metodologia respaldando-se na Análise Crítica de Gênero, na Pedagogia dos Multiletramentos e na concepção de texto como “(...) uma unidade semântica (desde um gesto, uma palavra a todo um discurso) produzida pelas trocas linguísticas efetivadas entre determinados participantes em contextos sócio-históricos específicos (HALLIDAY; HASAN, 1989; MEURER; MOTTA-ROTH, 1997 apud FLOREK, 2016, p.244). O objetivo principal desse estudo foi trazer procedimentos analíticos sobre gêneros multimodais, com ênfase nas RAGs, e também apresentar algumas concepções de aprendizagem (perspectiva behaviorista, cognitivista e perspectiva sociocultural) que, segundo a pesquisadora, ao se intercruzarem podem auxiliar nas práticas de leitura e escrita no âmbito acadêmico.
Ferragini (2018) apresenta-nos uma pesquisa-ação, situada no campo de estudos da Linguística aplicada e que possibilita reflexões ao professor universitário do curso de Letras, a partir de uma proposta de didatização do gênero ensaio literário, visando aproximar a concepção de linguagem e a teoria de gêneros discursivos de Mikhail Bakhtin à Pedagogia Histórico-Crítica. Pretendeu-se, com isso, “(...) demonstrar no referido contexto encaminhamentos teórico-prático que conduzam à aprendizagem significativa e, consequentemente, a uma formação mais reflexiva” (p. 295).
Entre os principais resultados encontra-se a importância do professor avaliar as práticas de escrita que desenvolve com os estudantes de licenciatura em Letras, a fim de encontrar novas formas de atuação, mais significativas e contextualizadas no ensino de Língua Portuguesa, articulando teoria e prática.
Silva e Franco (2017) representam o único estudo da amostra que traz a leitura acadêmica como foco das discussões. Os autores objetivaram verificar em que medida a práxis docente, presente em Cursos de Pedagogia, implica na formação de professores leitores. Para isso, analisaram os documentos norteadores dos Cursos, como o Projeto Pedagógico, Matrizes Curriculares e as Ementas das disciplinas de Alfabetização e Letramento, Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Fundamentos Teórico-metodológicos em Alfabetização e Língua Portuguesa; as respostas dadas por estudantes e professores aos questionários semiestruturados aplicados e as observações realizadas nas aulas. Os sujeitos participantes foram os professores que lecionavam as disciplinas relacionadas ao ensino da leitura e a formação do leitor, além de estudantes matriculados nas turmas de 2.º, 3.º e 4.º anos.
Embora não tragam demarcados em seu artigo os pressupostos teóricos que sustentaram as discussões sobre leitura, os autores destacaram a importância dela para a emancipação intelectual dos estudantes, atuando como peça fundamental para a melhoria da escrita.
Entre os resultados, ficou evidente que há pouca carga horária disponível para essas disciplinas que tratam da leitura no curso de Pedagogia, bem como a presença de uma práxis burocratizada, que não transforma a realidade destes estudantes, ou seja, “(...) foi possível observar que se fala dos conceitos de leitura e de sua importância, mas não se lê; que se fala sobre as linguagens dos diferentes contextos sociais, mas não se discute a linguagem presente nos diferentes momentos de interlocução em sala de aula” (SILVA; FRANCO, 2017, p. 102).
É importante destacar que, dentre os artigos investigados, além deste estudo de Silva e Franco (2017), apenas Muniz e Vilas Boas (2018) deram ênfase na importância da leitura para a formação docente; os demais permaneceram centrados na escrita. Em relação aos gêneros orais, não há nenhum estudo específico nos artigos selecionados.
A formação docente e as práticas de leitura e escrita nos cursos de licenciaturas
Conforme apresentado no quadro 2, observa-se um número significativo de trabalhos voltados para a discussão do letramento na formação do professor em cursos de licenciatura (N=13). São artigos que suscitam, em momentos pontuais, algumas discussões sobre a formação do professor universitário, ou seja, aquele que forma o professor, principalmente nos trechos em que, após a apresentação de uma problemática relacionada ao letramento acadêmico (déficit de aprendizagem de determinado gênero da esfera científica, por exemplo), destacam a necessidade de ressignificação das práticas formativas que ocorrem nesse espaço. Assim justifica-se a seleção desses estudos para a amostra.
A maior parte dos artigos (N=9) traz para o seu campo de análises a formação do professor que ocorre durante a realização do curso de Letras, espaço onde a linguagem é o objeto principal de estudo. São eles: Silva (2013, 2015, 2015); Silva e Oliveira (2018); Lima et al. (2014); Sartori (2015); Silva et al. (2016); Muniz e Vilas Boas (2018); Pereira e Leitão (2015).
Neles foram abordados, a partir da análise de trabalhos avaliativos dos estudantes, temas como a “formação reflexiva docente” e o “letramento do professor” (SILVA, 2015), “a inserção do acadêmico enquanto pesquisador em outro espaço de letramento” (LIMA et al., 2014), “autoria e identidade nas escritas acadêmicas” (PEREIRA; LEITÃO, 2015) e “a importância do letramento informacional digital na formação do professor contemporâneo” (SILVA et al., 2016).
Entre os artigos desta seção, há cinco (5) estudos (SILVA, 2013, 2015, 2015; SILVA et al., 2016; SILVA; OLIVEIRA, 2018) relacionados à produção científica do professor e pesquisador Wagner Rodrigues da Silva (UFT), membro, desde 2017, da comissão gestora da Associação de Linguística Sistêmico-Funcional da América Latina (2017-2020). Essas pesquisas situam-se no campo indisciplinar da Linguística Aplicada (L.A.) - caracterizada por uma teoria sociossemiótica que possibilita a compreensão de aspectos contextuais a partir da análise léxico-gramatical da materialidade linguística do texto - e nos estudos do letramento.
Alguns estudos desta seção (SILVA, 2013; SILVA; SILVA; BORBA, 2016; SILVA; OLIVEIRA, 2018; AZEVEDO; SANTOS, 2018 e FISHER; COLAÇO, 2017), ao abordarem a leitura e a escrita em diferentes cursos (História, Matemática e Geografia), evidenciaram que a centralidade das discussões sobre a leitura e a escrita permanece atrelada à disciplina de Linguística.
Mesmo os artigos que tratam da formação docente em cursos de pós-graduação (SILVA, 2017; GRANDE; NASCIMENTO, 2018) analisam a preparação do professor em cursos de Mestrado Profissional (ProfiLetras) para a atuação em classes da Educação Básica. Enquanto Silva (2017) faz uma crítica ao teoricismo acadêmico, Grande e Nascimento (2018) destacam que essas práticas de formação, por serem muito prescritivas e impositivas, acabam por negligenciar os conflitos identitários dos sujeitos nela envolvidos (estudantes e professores).
Entre os estudos analisados, há treze (13) artigos (LIMA et al., 2014; KLEIMAN, 2014; SARTORI, 2015; MUNIZ; VILAS BOAS, 2018; GRANDE; NASCIMENTO, 2018; SILVA, 2013, 2015, 2016e 2017; SILVA; OLIVEIRA, 2018; SARTORI , 2015; FISCHER; COLAÇO, 2017; AZEVEDO; SANTOS, 2018) que apresentam a concepção de letramento atrelada aos Novos Estudos do Letramento. Esses estudos “(...) enfatizam a necessidade de se considerar o ambiente social de interação, em práticas de letramentos voltadas às necessidades de uso social, portanto, em práticas sociais (...)” (FISCHER; COLAÇO, 2017, p. 440) e “(...) circunstanciadas pelas relações de poder que constituem a identidade sócio-histórica da universidade e suas seleções culturais que se desdobram no currículo (...)” (AZEVEDO; SANTOS, 2018, p. 368-369).
Constam também, para este estudo, dois trabalhos que trazem reflexões sobre a formação dos professores que atuam nos diferentes segmentos da educação (Básica e Superior) e as práticas de letramento que ocorrem nestes espaços: Szundy (2014) e Kleiman (2014).
Sob uma perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem, em Letramento na contemporaneidade (KLEIMAN, 2014), a partir de exemplos de situações de ensino e aprendizagem, há reflexões sobre as relações estabelecidas entre a escola e as outras instituições (multiletramentos das culturas impressa e digital, por exemplo), “(...) mantendo como pano de fundo da discussão os objetivos e funções do letramento escolar e a formação do professor que quer ativamente atuar como agente de letramento do mundo contemporâneo” (KLEIMAN, 2014, p. 72). Deste modo, traz à luz a necessidade de repensarmos a leitura e a escrita para além dos muros das instituições educacionais, mas estabelecendo relações com a vida.
Szundy (2014) utilizou leituras sobre o Círculo de Bakhtin e conhecimentos do campo da Linguística Aplicada para discutir sobre as características de uma educação e formação responsável. De acordo com a autora, educar como ato responsável “(...) implica refletir sobre uma educação responsiva às demandas sociais da contemporaneidade” (SZUNDI, 2014, p. 30).
Assim como nos trabalhos de Szundy (2014) e Kleiman (2014), há mais cinco (5) artigos que fundamentam suas discussões sobre a linguagem em uma concepção ancorada nos pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin, são eles: Lima et al. (2014), Azevedo e Santos (2018), Fischer e Colaço (2017), Sartori (2015), Grande e Nascimento (2018).
DISCUSSÃO
O espaço de formação circunscrito no campo técnico procedimental
Os artigos analisados demonstraram que os interesses de pesquisa pairam sobre a formação do professor que acontece prioritariamente no interior dos cursos de licenciatura, ou seja, que preparam para o trabalho com a linguagem nas classes da Educação Básica. E, dentre essas licenciaturas, o curso de Letras é o mais investigado, refletindo em outro dado importante: o letramento é muito relacionado aos cursos cuja linguagem é objeto de estudo.
Nessa direção, Muniz e Vilas Boas (2018) destacam que há toda uma valoração social acerca do profissional de Letras como sendo o principal agente responsável “(...) por implementar uma prática pedagógica que vise ao desenvolvimento progressivo da competência linguístico-discursiva, princípio fundamental para as múltiplas atuações sociais de seus alunos” (p. 2015). No entanto, a linguagem perpassa todos os processos formativos na universidade, sendo necessário expandir seu horizonte investigativo, principalmente porque é por meio dela que os sujeitos compreendem como os conhecimentos são produzidos e as relações de poder imbricadas. E, “(...) a forma como a linguagem é abordada nas práticas pedagógicas pode favorecer a ampliação da consciência em relação ao universo profissional, ou reduzi-la a uma dimensão técnica e reprodutora dos conhecimentos de uma área” (ALMEIDA; PAN, 2017, p. 90).
Outro fato importante para ser destacado é que o olhar para o tema do letramento acadêmico é muito específico de algumas disciplinas, neste caso, da Linguística, principalmente da Linguística Aplicada. Embora Silva (2013, 2015) aponte que este campo de conhecimentos circunscreve-se em uma abordagem indisciplinar, orientada na perspectiva dos novos estudos do letramento (STREET, 2014), é necessário trazer outras vozes para a discussão desse tema, em uma perspectiva interdisciplinar, compreendendo que “A unilateralidade e as limitações do ponto de vista (da posição do observador) sempre podem ser corrigidas, completadas e transformadas (enumeradas) com o auxílio das mesmas observações levadas a cabo de outros pontos de vista” (BAKHTIN, 2011, p. 330), tornando mais fértil o debate sobre o tema da formação de professores e a sua relação com letramento acadêmico.
Todos os professores, dos diferentes cursos e disciplinas existentes, trabalham com práticas de leitura e escrita, ao passo que também foram e são formados por elas. Isso porque a linguagem “(...) se valida por um duplo embate - um no plano do factual (do refletir o mundo) e outro no plano do axiológico (no plano das refrações)” (FARACO, 2017, p. 48). Essa relação axiológica na universidade é marcada pela sua história e o contexto sociocultural estabelecido, principalmente no que concerne às formas de atuação e de compreensão do papel do professor e o modo como ele se relaciona com as práticas de leitura e escrita.
Para situar melhor essa discussão, faz-se necessário destacar que, assim como a história da Educação Superior é recente no Brasil (ZAVADSKI E FACCI, 2012), a consolidação de processos formativos para o profissional que atua nas universidades segue dando seus primeiros passos. Essa formação é definida no art. 66, da LDB, nos seguintes termos: “Art. 66 - A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado”. Nesse sentido: “A LDB não concebe a docência universitária como um processo de formação, mas sim de preparação para o exercício do magistério superior, que deverá ser realizada prioritariamente (não exclusivamente) nos cursos de pós- graduação stricto sensu” (PIMENTA et al., 2005, p. 273).
É notório que os cursos de pós-graduação, principalmente na modalidade stricto sensu (mestrado e doutorado acadêmicos), têm uma maior preocupação com a formação do pesquisador, deixando uma carga horária restrita às disciplinas voltadas à formação do professor que atuará no interior das universidades, que muitas vezes nem são obrigatórias. Sendo assim, esse docente se constitui quase que intuitivamente, baseado nas suas experiências formativas e na ação dos seus pares, que acabam por determinar as características que o definem como sendo um “professor universitário”.
Se há pouco espaço nos cursos de pós-graduação para ações formativas voltadas às metodologias, didáticas, estratégias de ensino, etc., muito menos ainda têm entrada as discussões relacionadas aos letramentos que ocorrem numa universidade, como a apropriação, nem sempre tranquila, dos gêneros textuais da comunidade acadêmica. Muito pelo contrário, frequentemente constata-se uma relação problemática “(...) que nos leva a concluir que esse é um campo de produção de estigmas e de violência simbólica. Professores e alunos são vítimas de dificuldades que podem ser amenizadas se houver um investimento na compreensão dos problemas em torno dessa temática e em ações propositivas” (MARINHO, 2010, p. 383).
Ora, se essa formação, envolvendo estratégias de ensino para o trabalho com os gêneros textuais da esfera acadêmica não tem ocorrido em muitos cursos de pós-graduação, alguns pesquisadores têm se debruçado sobre esta problemática. Conforme podemos ver nos resultados, há, dentro do conjunto dos artigos estudados, um número expressivo de trabalhos voltados à proposição e discussão de modelos didáticos orientadores nas práticas de gêneros específicos, como, por exemplo, os trabalhos de Bittencourt e Avelar (2013), Florek (2016) e Ferragini (2018).
Ferragini (2018) justifica essa estratégia metodológica, presente em seu artigo, como uma possibilidade de aproximação da teoria de gêneros discursivos com a didática e demonstrar “(...) encaminhamentos teórico-prático que conduzam à aprendizagem significativa e, consequentemente, a uma formação mais reflexiva” (p. 296).
Alguns pesquisadores, como Bittencourt e Avelar (2013) e Silva e Franco (2017) justificam a escolha pela abordagem didático-metodológica, presente nos artigos, como estratégias para recuperar déficits de leitura e escrita que os estudantes trazem da Educação Básica. Conforme vemos neste trecho da pesquisa de Silva e Franco (2017): “(...) é possível perceber as dificuldades dos estudantes brasileiros em relação à leitura, uma vez que os alunos do 3.º Ano do Ensino Médio apresentam os mesmos conhecimentos nesta área dos alunos que estão no 9.º Ano do Ensino Fundamental, apesar de três anos a mais de escolaridade” (p. 83).
Nesse sentido, um primeiro ponto a se destacar é que os gêneros que circulam na comunidade científica apresentam estruturas e especificidades diferentes dos que compõem os processos de letramentos vivenciados em etapas anteriores da escolarização. E mesmo estudantes que se sobressaiam bem em suas produções escritas no ensino médio costumam apresentar dificuldades com esses gêneros mais específicos do ensino superior.
Azevedo e Santos (2018), ao analisarem excertos de falas de estudantes universitários sobre a escrita do trabalho de conclusão do curso de História, destacam que há uma falsa compreensão que o letramento autônomo habilita o leitor a transitar por diferentes textos com autonomia sem considerar “(...) que gêneros textuais distintos requerem competências diferentes de seus leitores/escritores” (p. 381). Ou, ainda, nas palavras de Bakhtin (2011): “(...) são muitas as pessoas que, dominando magnificamente a língua, sentem-se logo desamparadas em certas esferas da comunicação verbal, precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do gênero de uma dada esfera” (p. 303).
Essa concepção de gêneros nos leva à compreensão de que não basta ao professor expor os estudantes ao contato com os textos acadêmicos, pois isso nem sempre garantirá a compreensão dos conhecimentos técnico-científicos; é necessário mediar esse encontro, chamando atenção para as particularidades da linguagem empregada e como ela se encontra articulada para a produção de significados nos diferentes textos (artigos, ensaios, resenhas, etc.); o seu contexto de produção; situar os autores e as escolas de pertencimento que se confrontam ou silenciam. Ou seja, o professor precisa receber uma formação adequada para essas práticas.
Podemos também historicizar essa necessidade de abordagens práticas nas pesquisas sobre letramentos no ensino superior, visando melhor compreender a centralidade delas nos acadêmicos, nesse primeiro momento de ascensão do tema enquanto campo de pesquisa, conforme se verificou nos estudos de: Sartori (2015), Silva et al. (2016), Muniz e Vilas Boas (2018), Silva e Franco (2017), Pereira e Leitão (2015).
Durante os governos Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Lula (2003-2011), foram tomadas as principais medidas para a criação de programas de incentivo ao acesso e à permanência do estudante na universidade. Como exemplo, podemos citar o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), além da ampliação de abrangência dos programas já existentes, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Também foi implantada a Lei de Cotas, número 12.711/2012, prevendo que a metade das vagas de todos os cursos e turnos das instituições federais seja reservada a alunos que estudaram todo o nível médio em escola pública. Uma parte dessas vagas é reservada a pardos, negros e indígenas; outra parte aos estudantes com renda familiar igual ou menor a 1,5 salário mínimo per capita, promovendo o acesso da população historicamente menos favorecida ao ensino superior. Esses programas resultaram no aumento das vagas nas universidades públicas e, principalmente, facilitaram o acesso das camadas populares às IES privadas.
Esse novo perfil de estudante que adentrou a universidade subverteu a ideia do acadêmico ideal, necessitando de novas formas de acolhimento e atendimento, bem como exigiu mudanças estruturais nas políticas pedagógicas dos cursos, para os quais os professores não estavam preparados. No entanto, observa-se que:
A entrada e permanência de camadas populares tradicionalmente excluídas dos espaços acadêmicos impactam as estruturas estabelecidas e a correlação de força e poder existente nas práticas de letramento legitimadas. A Universidade na última década vem respondendo às políticas públicas que viabilizam a entrada de novos atores, porém promove ou aceita poucas mudanças em suas tradições estabelecidas. (AZEVEDO; SANTOS, 2018, p. 383).
Além disso, no que concerne ao letramento, a ausência e urgência de formação para as práticas de leitura e escrita, mediante essa heterogeneidade, foi suprida, em parte, com modelos didáticos de atuação frente a gêneros específicos. É o que nos mostrou este estudo, que também nos revelou que a adoção de modelos didático-procedimentais prescinde de uma explicitação das concepções que os sustentam, em especial a concepção de estudante.
No entanto, para que os déficits na aquisição do letramento acadêmico não recaiam apenas para o estudante e suas incapacidades cognitivas, a análise precisa contemplar os professores e suas práticas, conforme discutem Lima et. al (2014); a universidade como um todo, diante das complexidades dos letramentos na contemporaneidade, como apontam os estudos de Kleiman (2014), Szundy (2014), Silva et. al (2016) e Grande e Nascimento (2018); e a heterogeneidade do perfil dos estudantes que compõem o ensino superior, tão bem enfatizado por Azevedo e Santos (2018) e Fisher e Colaço (2017), no momento histórico em que as políticas de acesso são democratizadas.
Sobre as demandas educacionais dos letramentos contemporâneos, há dois (2) artigos, entre os analisados, que sinalizam avanços importantes na forma de se pensar a formação docente, de modo que este profissional seja capaz de responder a essas novas formas de comunicação. Kleiman (2014), fundamentando-se na arquitetônica bakhtiniana, destaca que, para a formação de sujeitos autônomos e emancipados, capazes de agir como partícipes reais nas diferentes situações discursivas, os professores não devem ser meros replicadores de teorias impostas pela academia, mas devem entender que os gêneros que nela circulam fazem parte de uma complexa comunicação cultural; que precisam ser refletidos, debatidos, complementados, polemizados e transformados no contato com outros gêneros do discurso (KLEIMAN, 2014, p. 89).
Com a mesma base teórica, Szundy (2014) enfatiza a importância de uma formação responsiva que capacite os docentes das mais diferentes áreas a “(...) orientar as escolhas verbais e não verbais de forma a desvelar os significados refratados a partir das escolhas realizadas e problematizar de que forma significados que causa sofrimento, exclusão ou revelam preconceitos podem ser reconstruídos de forma mais crítica e ética” (p. 20). Deste modo, estes profissionais, ao exercerem a docência enquanto ato responsável, seriam capazes de buscar experiências mais dialógicas e persuasivas, visando a (re) construção de sentidos sobre ler e escrever na universidade.
Muitos outros artigos analisados também trouxeram aportes teóricos ancorados na arquitetônica do Círculo de Bakhtin, principalmente para fundamentar as discussões sobre os gêneros discursivos presentes na universidade, embora, em algumas vezes, orientados em uma perspectiva mais voltada à estrutura composicional, circunscrevendo em um segundo plano a sua orientação dialógica, ou seja, seu caráter histórico e responsivo ativo, que dá voz à comunidade acadêmica.
Divorciar as dimensões axiológicas e estruturais da língua pode reduzi-la a um meio transparente de transmissão de conhecimentos de determinada esfera profissional, o que é recorrente nas universidades, reflexo de uma concepção de linguagem que compreende a leitura e a escrita como produtos de um sistema abstrato de signos voltado apenas ao uso técnico. Esse caráter “(...) naturaliza os dispositivos de produção do que pretendem formar, sobre valores sociais prevalentes como a produtividade e a competição, em detrimento da dimensão social, afetiva, transformadora da linguagem” (ALMEIDA; PAN, 2017, p. 96).
É preciso trazer à discussão a compreensão da linguagem na sua dimensão discursiva, permeada por uma miríade de relações dialógicas que envolvem os diferentes contextos socioideológicos de organização dos cursos e de como ocorre a profissionalização para a atuação nas universidades, compreendendo principalmente que:
Ler e escrever a linguagem técnica da profissão aliada aos domínios das normas da língua, sem a dimensão discursiva, criativa, política e autoral é a subjulgação do papel do autor-criador para assunção de um reprodutor técnico do uso da língua e do conhecimento. (ALMEIDA; PAN, 2017, p. 92).
Como consequência dessa visão objetiva da linguagem, muitos professores universitários, assim como os estudantes, não estão conscientes dos modos discursivos que operam em determinadas áreas profissionais e de que eles exigem diferentes recursos de leitura e escrita (ALMEIDA; PAN, 2017), até porque tal aprendizagem nem sempre se faz intuitivamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os artigos analisados, em maior ou menor espaço, demonstram estar envoltos na preocupação com a condução das práticas de letramentos desenvolvidas nas universidades, embora muitos estejam centrados nos estudantes e em suas dificuldades de leitura e escrita, tangenciam um amplo campo que ainda precisa ser desvelado.
Ao final deste trabalho, os leitores devem estar se indagando sobre os motivos que levaram a proposição de uma revisão sistemática para mostrar que, de fato, há muita pouca pesquisa relacionando a formação do professor que atua no ensino superior com as práticas de letramentos que ocorrem na universidade. Sim, esse é o fato: apontar a quase invisibilidade do tema e demarcar a sua urgência.
É o silêncio que movimenta sentidos e nos diz muito. No ínfimo espaço dedicado a esse tema, grande parte das discussões permanece centrada nos estudantes de graduação, em suas dificuldades de apropriação dos gêneros da esfera científica e na indicação de estratégias metodológicas, sugerindo que a formação do professor está direcionada a uma formação mais técnica de usos da língua, sem, contudo, avançar no debate sobre a importância do papel da linguagem na sua formação, como produtora de sentidos atribuídos às práticas de letramento que vivencia e produz na universidade.
Há a necessidade de novos estudos, que considerem a complexidade dialógica manifesta na relação entre as práticas de letramento acadêmico e a formação docente, para que, desse modo, possamos trazer à luz novos modelos formativos, mais interdisciplinares, e que compreendam o caráter socioideológico dos enunciados que compõem as formas comunicativas que ocorrem nas universidades, ou seja, a língua viva da comunidade acadêmica, que reflete e refrata vozes institucionais e sociais, produzindo modos de subjetivação (ALMEIDA; PAN, 2017).
Também observou-se que, se por um lado as vozes dos estudantes já se fazem presentes nas pesquisas sobre letramento acadêmico, por meio de narrativas, entrevistas, etc., o mesmo ainda não se observa em relação aos docentes do ensino superior e, portanto, muito do que se diz sobre eles permanece centrado em interpretações a partir de resultados avaliativos pautados nas produções dos universitários. Parte das discussões concentra-se em críticas e apontamentos de como o professor universitário deve atuar, mas em raras exceções têm se tornado audíveis as suas experiências no exercício profissional e em suas trajetórias de vida e formação, buscando compreender como elas são constitutivas de sua identidade docente, configurando-se como uma possibilidade de (re) criação de sentidos e contribuindo para a construção de uma voz coletiva (PAN; LITENSKI, 2018, p. 529). Aponta-se, portanto, a premência de se ouvir os docentes em suas necessidades e angústias, visando compreender as concepções de linguagem que subjazem às práticas de letramento e, assim, possibilitando significá-las.
Conclui-se, ainda, por meio desta revisão de literatura, que as discussões sobre a relevância do papel da linguagem na formação do professor permanecem muito centradas em uma concepção técnica de usos da língua, visando respostas urgentes às dificuldades encontradas pelos estudantes e docentes no decorrer do encontro com os gêneros científicos, principalmente nos cursos em que a linguagem é objeto de estudo. Na mesma direção, a Linguística circunscreve-se como o principal campo de investigação das práticas formativas de letramentos acadêmicos.
Enfatiza-se a necessidade de avançarmos nas pesquisas, alicerçados por uma concepção discursiva da língua que perceba sua centralidade nas práticas formativas do professor universitário das diferentes áreas de atuação, bem como um olhar interdisciplinar para o estudo da linguagem, ampliando o escopo de análises, e compreendendo que ela perpassa todas as práticas comunicativas que ocorrem nas universidades.