Introdução
O presente artigo é parte dos estudos sobre a democratização da educação que tem buscado desenvolver de forma articulada um conjunto de análises sobre a temática no contexto moçambicano .
O artigo examina os desdobramentos da política de democratização do acesso à educação básica e a contextualiza, analisando suas possibilidades futuras. A educação é entendida como um processo pelo qual a sociedade prepara os seus membros para garantir a sua continuidade e o seu desenvolvimento (MOÇAMBIQUE, 2003, p. 7) e a democratização do acesso à educação vai ser entendida “[...] como estratégia de acesso do estudante [...] a esse nível de ensino” (BITTAR; ALMEIDA; VELOSO, 2008, p. 280), no caso em apreço, à escola básica. Nesse entendimento, a escola “[...] assegura a todos a formação cultural e científica para a vida pessoal, profissional e cidadã, possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva com a cultura em suas várias manifestações”. Nesta perspectiva, a escola básica que é o espaço onde ocorre a educação básica (EB) “[...] mantém-se como instituição necessária à democratização da sociedade” (LIBÂNEO, 2000, p. 7). Assim, no contexto do Sistema Nacional de Educação de Moçambique, a EB é responsável por conferir
Competências fundamentais à criança, jovens e adultos para o exercício da cidadania, fornecendo-lhes conhecimento geral sobre o mundo que os rodeia e meios para progredir no trabalho e na aprendizagem ao longo da vida (MOÇAMBIQUE, 2018a, p. 20).
Moçambique conta com uma população de 27.909.798 de acordo com dados do censo populacional realizado em 2017 (MOÇAMBIQUE, 2019a). É predominantemente rural (66,6%) com a agricultura como base de subsistência. O país é independente desde 1975, antes, era uma colônia portuguesa da qual herdou uma extensa história e experiência. Alcançada a independência, a herança portuguesa deixou o país em condições sociais e econômicas bastante precárias, resultado do baixo investimento português nestas áreas (BEIRA; VARGAS; GONÇALO, 2015). Por esse fato, a educação passou a ser considerada prioridade nas ações do Estado, pois registrava-se uma taxa de analfabetismo em torno dos 95%-98% em 1975 (MONDLANE, 1975 apud BONDE, 2016).
Logo após a independência, o país viveu 16 anos de guerra civil que, aliada aos efeitos das calamidades naturais, colocaram o país na penúria. Diante disso, boa parte da infraestrutura social foi destruída, incluindo escolas, o que provocou o deslocamento de milhares de pessoas para os países vizinhos. Com o fim da guerra e a assinatura do Acordo Geral de Paz em outubro de 1992, permitiram o retorno da população às suas zonas de origem dando início a um ciclo de normalização das suas vidas (BEIRA; VARGAS; GONÇALO, 2015; MOÇAMBIQUE, 2003).
Este estudo, de caráter qualitativo confere importância fundamental à descrição e à interpretação da realidade com aporte teórico em Triviños (1987), Bauer e Gaskell (2002). A partir desses autores, examina-se o processo histórico que tende à garantia do acesso à educação básica, sua expansão e a formação de condições políticas para a sua implementação pelo Estado. Para tal, recorreu-se à análise de documentos oficiais do governo, especialmente os emitidos pelo Ministério da Educação. Tratam-se das estatísticas da educação, os diferentes planos estratégicos e as leis do Sistema Nacional de Educação (SNE). Nesses documentos, encontramos o registro de dados importantes sobre o acesso à educação básica (EB) e as condições impostas para tal. Fizemos uma análise bibliográfica sobre o tópico em livros, repositórios institucionais e em revistas cientificas para embasar e complementar a análise na perspectiva de situar o contexto social e político da emergência do acesso à EB e seus desdobramentos no país.
Estruturalmente, de início, o artigo contextualiza a política educacional entre o período colonial e a independência de Moçambique: a marcha percorrida. Depois, analisa o processo de democratização da educação iniciada no pós-independência e seus desdobramentos, situando as ações realizadas com vista a garantir o acesso de todos à EB. Em seguida, examina a evolução das possibilidades de acesso à EB em Moçambique, situando os desdobramentos do contexto atual. Ainda contextualiza a EB e analisa suas possibilidades futuras quanto ao acesso dos estudantes. Por fim, apresenta alguns ajuizamentos que emergem da pesquisa nas considerações finais.
Política educacional: da era colonial à independência
As funções que o Estado desempenha ao longo do tempo foram sofrendo inúmeras transformações. A título de exemplo, no século XVIII e XIX, a segurança pública e a defesa contra o ataque inimigo constituíam o seu objetivo fundamental. Com o desenvolvimento e a expansão da democracia, as responsabilidades do Estado se diversificaram, com destaque para a promoção do bem-estar da sociedade. Para tornar possível esse desejo, foi necessário desenvolver uma série de ações e atuar de forma direta em diversas áreas tais como, meio ambiente, saúde, educação, entre outros (CALDAS, 2008). Para promover o bem-estar da sociedade e atingir resultados nas mais diversas áreas, os governos baseiam-se na utilização de políticas públicas que podem ser definidas como o “[...] conjunto de decisões e ações destinados à resolução de problemas políticos” (RUA apudFALCÃO, 2016, p. 123). Dito de outro modo, as políticas públicas constituem a totalidade das ações, metas e planos traçados pelos governos para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público. Vale ressaltar, que as ações prioritárias que são tomadas pelos dirigentes públicos são aquelas que entendem ser as expectativas da sociedade. Por este motivo, “[...] nem todas as questões que fazem parte das preocupações presentes na sociedade atrairão também a atenção de membros do governo” (CAPELLA, 2018, p. 28). Nesse sentido, o bem-estar é sempre definido pelo governo (CALDAS, 2008).
No presente artigo, reflete-se sobre a política pública em educação enquanto um vetor da criação das condições de acesso às escolas básicas em Moçambique. A educação constitui uma forma de materialização das políticas sociais (LUIS, 2005, p. 34). Dessa forma, “[...] abordar a educação como uma política social, requer diluí-la na sua inserção mais ampla: o espaço teórico-analítico próprio das políticas públicas, que representam materialidade da intervenção do Estado” (AZEVEDO, 2001 apudLUIS, 2005, p. 35).
Akkari (2011 apudBONDE, 2016, p. 26) entende que “[...] uma política educacional é um conjunto de decisões tomadas antecipadamente, para indicar as expectativas e orientações da sociedade em relação à escola”. E discutir as políticas públicas de educação no contexto moçambicano implica olhar para a taxa de analfabetismo herdada do período colonial. Em 1975, quando Moçambique se torna independente, a taxa de analfabetismo girava em torno de 95 a 98% (BONDE, 2016). Esse índice guarda sintonia com a política educacional (PE) do governo colonial português que pouco interesse demonstrava com a educação dos moçambicanos. Como ilustração, em 1926 existiam “35 escolas primárias oficiais [...] para 16.536 habitantes. O ensino secundário [...] contava com 207 alunos, dos quais 78,8% eram europeus. Os 21,2% restantes, [...] integrados, maioritariamente, por indianos e mulatos” (GÓMEZ, 1999, p. 59). Em termos evolutivos, passados 37 anos, isto é, até 1963, havia no país “[...] 311 escolas primárias […] com 25.742 alunos, dos quais apenas 20% eram africanos. No ensino secundário, [...] (o percentual) representava […] 6% dos pouco mais de 3.000 alunos matriculados” (MONDLANE apudAFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2012, p. 31). Essas escolas apresentavam uma distribuição bastante irregular por não atingir as diversas regiões do país de maneira uniforme.
No período colonial, a grande maioria dos africanos habitantes da colónia não tinha acesso à educação básica e secundária e estava impedida de se matricular em escolas reservadas para brancos e assimilados . Havia uma diferença evidente entre as escolas para ‘nativos’ (que ensinavam a ‘educação indígena’), que eram, em regra, orientadas por missionários religiosos, principalmente católicos, e as escolas para brancos e assimilados, que eram geridas pelo Estado ou entidades privadas. Nas zonas rurais, onde vivia a imensa maioria dos habitantes da colónia, eram as missões religiosas as responsáveis pelo ensino (AFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2012, p. 30).
Até a independência nacional, Moçambique contava com dois modelos de ensino, profundamente opostos. Impostos pela ideologia colonial na década de 1950-1960, as escolas foram pensadas “[...] para atender a clientelas diferentes, isto é, foram estabelecidos dois tipos diferentes de educação: um destinado à população negra (nativos) e outro destinado aos brancos e africanos assimilados” (BONDE, 2016, p. 44). Os objetivos, conteúdos e políticas eram completamente distintos no sentido de segregar a população e incutir valores que reforçavam os objetivos da dominação colonial. Esse era o sentido do ensino rudimentar (de adaptação ou missionário) destinado aos negros, sob gestão da igreja católica, em sintonia com as intenções do governo colonial português (GUILICHE, 2011, BONDE, 2016; LUIS, 2005; AFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2012). Tinha como objetivo, de acordo com Mondlane (apudLUIS, 2005, p. 37), “[...] conduzir gradualmente o indígena duma vida de selvageria a uma vida civilizada” por um lado, mas por outro, incutir nos negros o sentimento de pertença à metrópole (BONDE, 2016, p. 45), “[...] preparar mão-de-obra para a economia colonial e o mais importante era fornecer uma educação mínima e julgada necessária” (LUIS, 2005, p. 38). Esse posicionamento se torna mais evidente quando citado por Mondlane um padre da época:
Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer ‘doutores’ [...]. Educá-los e instruí-los de modo a fazer deles prisioneiros da terra e protegê-los da atração das cidades, [...]. As escolas são necessárias, sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que o protege (MONDLANE apudLUIS, 2005, p. 38).
Fica evidente neste trecho, que a escola surge para o moçambicano à semelhança do que ocorreu no passado colonial do Brasil, “[...] com a função de ‘educar’ os primitivos, ‘resgatando-os’ da sua condição de barbárie e conduzindo-os para a civilização, ou seja, para a cultura europeia” (LEITE; RAMALHO e CARVALHO, 2019, p. 18). Mazula (1995) afirma que Marcelo Caetano, ex-presidente português, considerava os negros assim, separados, “[...] indispensáveis como auxiliares podendo estes trabalhar rodeados e dirigidos por europeus” (apudBONDE, 2016, p. 44). E, o ensino oficial (ou elementar primário) destinado aos brancos e assimilados era de gestão direta do Estado colonial português e pretendia dotar a criança de instrumentos fundamentais de todo o saber e das bases de uma cultura geral, preparando-a para a vida social. Esse nível de ensino era obrigatório para todos os portugueses que não fossem indígenas, física e mentalmente sãos e em idade escolar (LUIS, 2005; BONDE, 2016).
Após a independência nacional, uma série de transformações educativas foi realizada pelo governo da Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO (1975). Tais reformas fizeram com que um maior número de moçambicanos tivesse acesso à educação, independentemente da sua cor, raça, religião e origem social.
Democratização do acesso à EB e seus desdobramentos
Um entendimento do processo de democratização do acesso à educação no contexto moçambicano passa, por um lado, pela compreensão das profundas transformações realizadas na organização e na estrutura do ensino colonial, seus objetivos, conteúdos e filosofia e, por outro, pelas experiências educacionais da FRELIMO nas zonas libertadas . Essas zonas constituíram “o embrião do processo de democratização da educação” (LUIS, 2005, p. 40) pois nelas em torno de “[...] 20.000 crianças foram escolarizadas [...] até setembro de 1970, 29.000 crianças continuavam a frequentar o Ensino Primário (EP) e 133 alunos, incluindo 11 raparigas, frequentavam o secundário de Bagamoyo” (MAZULA, 1995 apudBONDE, 2016, p. 49).
A luta de libertação nacional, conduzida pela FRELIMO, representou a mais alta forma de negação do colonialismo português. Foi nesse período que surgiu uma nova concepção de educação em que soldados e estudantes ensinavam. Essa luta foi determinante no processo de democratização da educação, pois a elegeu como fator fundamental para o sucesso do projeto independentista (BONDE, 2016). Defendia-se que a criação de uma nova sociedade, sem exploração e assente na justiça social, demandava a formação de um “Homem Novo” e a educação foi considerada o elemento chave no processo de transformação de consciências e mentalidades. Por melhores que fossem as experiências das zonas libertadas, estas não poderiam ser linearmente transpostas para o Moçambique independente. Todavia, foram experiências importantes na idealização de um Sistema Nacional de Educação (SNE) que servisse aos moçambicanos sem discriminação (LUIS, 2005, p. 40), “[...] livre da opressão e alienação coloniais, capaz de recuperar individual e coletivamente a sua história e dignidade” (GÓMEZ, 1999, p. 92).
No dia 7 de setembro de 1974, são assinados os acordos de Lusaka que puseram fim à guerra colonial. O Estado Português, representado por Ernesto Augusto Melo Antunes e a FRELIMO, representada por Samora Moisés Machel, firmaram o acordo. Desde a sua assinatura até a independência nacional, instalou-se um Governo de Transição sob gestão do governo português e da FRELIMO (1974-1975). No período de sua vigência, as mudanças na educação
Se limitaram à reformulação dos programas de ensino e à introdução de novas formas de organização das escolas públicas. Contudo, permanecia ainda o caráter discriminatório do ensino herdado, isto é, as escolas oficiais, situadas geralmente nas zonas urbanas, destinavam-se aos filhos dos colonos e assimilados; os colégios, liceus e sistema de explicadores particulares continuavam intactos. Para os filhos de camponeses, a única salvação continuava a ser as escolas missionárias das zonas rurais (LUIS, 2005, p. 40).
Devido a essa discriminação, o governo da FRELIMO decide nacionalizar o ensino e uma série de outros serviços públicos (saúde, terra, habitação, indústria, entre outros) no dia 24 de julho de 1975 (um mês após a independência), conferindo ao Estado moçambicano o papel de executor das políticas públicas educacionais. Foram incluídas nas nacionalizações, escolas sob gestão das igrejas católica e protestantes. O objetivo da nacionalização, de acordo com a FRELIMO, foi de
Romper com os elementos de desigualdade social perpetuados pelo sistema de educação colonial e com isso possibilitar a planificação da acção educativa com vistas à criação de um sistema de educação ao serviço de interesses das massas (BONDE, 2016, p. 51).
A nacionalização das escolas abriu espaço para a criação de um sistema educativo único, centralizado no próprio Estado (LUIS, 2005, p. 41). Contudo, esse processo não foi fácil em virtude do Ministério da Educação e Cultura (MEC) ter se deparado com problemas de administração e gestão do ensino. O MEC e as escolas não tinham uma estrutura consolidada nem quadros suficientes em número e qualificação que pudessem garantir o funcionamento pleno de um sistema de ensino centralizado. Mesmo com as dificuldades, há que se dar mérito à nacionalização, pois permitiu que muitos moçambicanos tivessem acesso à educação. Dessa forma, inicia-se um processo ativo de expansão do acesso à educação. Em 1975, o número de estudantes matriculados no ensino primário (EP) era de 692.044 e o número de escolas, 5.261. No ano seguinte às nacionalizações, os números aumentaram para 1.308.804 estudantes num total de 5.941 escolas (ZIMBICO; COSSA, 2018).
Apesar do registro da entrada de muitos alunos no sistema de ensino, a estrutura do sistema colonial não sofreu alteração significativa. Ainda no Governo de Transição, foram convocados professores de todo país que se reuniram na cidade da Beira, a segunda maior do país, entre dezembro de 1974 e janeiro de 1975, no que foi o Primeiro Seminário de Educação do país. No encontro, discutiu-se a necessidade da reformulação dos currículos e dos programas de todos os níveis, à exceção do Ensino Superior. O sentido era ajustar o currículo à nova realidade social e política moçambicana. Os pontos de referência dos novos programas foram os aplicados nas zonas libertadas (LUIS, 2005; BONDE, 2016).
As intervenções com carácter pontual, realizadas após a independência nacional, não produziram modificações profundas no então vigente sistema de educação em Moçambique (LUIS, 2005). Por esse motivo, coloca-se como necessário o abandono do sistema de educação com caráter transitório e procede-se com a introdução de um novo sistema cuja missão seria a de responder às exigências do crescimento em diferentes setores da economia nacional (BONDE, 2016). Foi nesse espectro que, em 1983, foi aprovada a primeira Lei do SNE, a Lei n.o 4, de 23 de março de 1983 que introduziu uma nova organização e estruturação da educação no país (LUIS, 2005). Antes da aprovação da Lei, “[...] o sistema educativo funcionava quase numa base de programas de ‘improvisação normativa’” (DOMINGOS, 2010, p. 124). Com base na Lei, foram criadas “condições de oportunidades, eliminando a discriminação colonial, permitindo, consequentemente, o acesso a muitos alunos aos níveis mais altos de formação” (LUIS, 2005, p. 45).
O SNE foi introduzido num contexto em que o país enfrentava diversas dificuldades e, num contexto político, social e econômico bastante precário. O então presidente do país, Samora Machel (1975-1986) reconhecia esse fato quando afirmava que, “[…] não temos no nosso país uma fábrica de papel, de lápis, de canetas, de livros, de ardósias e quadros […]; não temos fábricas de materiais de construção para podermos ter mais escolas; não temos professores […]” (MACHEL, 1984 apudBONDE, 2016, p. 54). Além desses fatos, a guerra entre a FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que durou 16 anos (1976-1992), agudizou ainda mais as já precárias condições de implementação do SNE. Os recursos financeiros para a sua sustentação escasseavam, o que fez com que o período de 1987 a 1992 fosse caracterizado como uma época de crise geral da educação, por conta da falta de recursos econômicos, da destruição das poucas infraestruturas herdadas do período colonial, do abandono dos professores nas zonas rurais e do centralismo excessivo que caracterizava a governação (GUILICHE, 2011; BONDE, 2016; AFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2012; MOÇAMBIQUE, 2019c). Além desses fatos, uma nova Constituição da República de caráter liberal é aprovada em 1990 sob a pressão dos organismos internacionais. Na época, o cenário internacional era marcado pela queda do socialismo e do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, parceiros de Moçambique no final da década de 1980, pela queda do muro de Berlim e, a nível interno, pela guerra que assolou o país durante 16 anos, na qual uma série de infraestruturas escolares foi destruída, Moçambique deixa de ser um país socialista, abre-se espaço para o multipartidarismo, ocorre a liberalização do mercado e muitos serviços são privatizados. Pode-se perceber que o contexto de realização das reformas fez com que as políticas implementadas pelo Governo da FRELIMO não eram sempre bem-sucedidas e que algumas tivessem impacto reduzido na ampliação do acesso e da qualidade da educação no país (MOÇAMBIQUE, 2019c; GUILICHE, 2011).
Contudo, no período de negociações entre as duas forças beligerantes durante a guerra, o Ministério de Educação e Cultura já havia desenhado um plano para a introdução de uma nova lei da educação que pudesse ser adequada à nova constituição e às reformas neoliberais propostas. O plano se insere num movimento de reformas do setor público na década de 1990 e procura se adequar às políticas educacionais propostas pela conferência mundial de Jomtien de 1990 (BONDE, 2016; LUIS, 2005). A ação de organismos internacionais como é o caso do Banco Mundial , que tem sido um dos financiadores de programas educacionais dos países subdesenvolvidos (CANAN, 2016), caso de Moçambique, especialmente a partir da Conferência de Educação para Todos (EPT).
Para responder a esta nova configuração social, política e econômica uma nova Lei do SNE, a Lei n.º 6, de 6 de maio de 1992, é aprovada pela Assembleia da República para reajustar o sistema educativo à nova realidade. É à luz da alínea B do Artigo 1 dessa Lei que “[...] o Estado, no quadro da lei, permite a participação de outras entidades, incluindo comunitárias, cooperativas, empresariais e privadas no processo educativo” (MOÇAMBIQUE, 1992, p. 8). Com a abertura legal, começam a despontar instituições de ensino privado por todo o país anos mais tarde. Sobre esse cenário, concordamos com Zimbico e Cossa (2018) que afirmam que
[...] a educação não pode ser abandonada à iniciativa privada ou submetida absolutamente às leis do mercado, livre concorrência e busca de lucro […]. A função fundamental de orientar a atividade educacional prestando serviços aos cidadãos cabe ao Estado […] (ZIMBICO; COSSA, 2018, p. 915).
A ação limita as possibilidades de acesso a quem não tem recursos econômico-financeiros, característica da maioria da população moçambicana
O Estado moçambicano optou por abrir a gestão da educação à iniciativa privada como forma de se livrar da demanda provocada pelo crescimento populacional e diminuir os encargos financeiros com a educação. Uma outra razão foi devido à imposição ou influência das políticas neoliberais capitalistas focadas na economia de mercado (BONDE, 2016, p. 57).
Tanto nas reformas constitucionais de 1990 quanto nas de 2004, a educação continuou a ser vista como um direito e dever de todos os cidadãos. Continua a ser responsabilidade do Estado promover o acesso e a igualdade de oportunidades educativas, ainda que o processo educativo tenha sido aberto para os atores não estatais (AFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2012, p. 5).
Possibilidades de acesso à EB: a marcha percorrida
Iniciamos a jornada interpretativa pela década de 1960 (ainda no período colonial) por ser uma época na qual o governo português começou a demonstrar algum interesse pela educação dos nativos atendendo às reações dos movimentos independentistas que despontavam em África. Nessa década, para mostrar alguma movimentação, foram realizadas poucas tímidas ações no sentido de garantir o acesso de “todos” a educação. Nossa análise também inclui o ano da independência nacional, 1975, período caracterizado por muita efervescência em que foram transpostas experiências das zonas libertadas pela FRELIMO, além de dados baseados em cada uma das Leis do SNE, o que nos permite visualizar os avanços no acesso à educação. Ao longo do texto, abordamos o ensino primário porque a implementação da educação básica é muito recente e sua inclusão no plano curricular só ocorreu em 2003 (MOÇAMBIQUE, 2003).
O interesse pelo uso de estatísticas tem a ver, com o fato de serem de capital importância ao nos fornecer elementos passíveis de análise histórica como instrumento teórico-metodológico (ZIMBICO, 2018, p. 287), para “classificar, quantificar, cifrar, possibilitando desnudar realidades desconhecidas, pensá-las e planificar ações no sentido de transformar o país” (ZIMBICO, 2018). A tabela abaixo, mostra a real situação de acesso as escolas primárias em Moçambique.
Com base nos dados da tabela acima, pode-se constatar que, em termos de número de escolas, registou-se um avanço numérico de 311 escolas, no período colonial, para 20.658, em 2018. O período de mudança foi demarcado pela independência nacional quando muitas escolas das então zonas libertadas passam a entrar nas estatísticas oficiais. O número de alunos matriculados no EP aumentou de 25.742, em 1963, subiu para mais de seis milhões em 2018. A taxa bruta de admissão, que espelha o número de alunos que entram com a idade adequada no EP (Ensino Básico), decresceu (de 38,4% em 1975 para 33,5% em 1983 e ainda 31,8% em 1992) quando comparado ao período da independência nacional, se encontrava muito abaixo dos 50% para 92,7%, em 2018. Ainda assim, sobre essa taxa, os dados da tabela 1 demonstram que há um trabalho que precisa ser feito para garantir que todas as crianças em idade escolar possam ter acesso à educação na idade recomendada.
Indicador | Período | ||||
---|---|---|---|---|---|
1963 | 1975 | 1983 | 1992 | 2018 | |
N.O de escolas primárias (de educação básica) = EP1 e EP2 | 311 | 5261 | 6.014 | 20.658 | |
N.O de alunos inscritos | 25.742 | 692.044 | 1.311.183 | 1.314.351 | 6.435.623 |
Taxa bruta de admissão (6 anos) | 38,4% | 33,5% | 31,8% | 92,7% | |
Taxa líquida de escolarização | 48.9% | 31.4% | 38.9% | 100.7% | |
Taxa bruta de escolarização | 37.8% | 58.9% | 47.5% | 120.7% |
Fonte: AFRIMAP; OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA (2012, p. 32); ZIMBICO; COSSA (2018, p. 919); ZIMBICO (2018, p. 280); MOÇAMBIQUE (2018b); MOÇAMBIQUE (2019a), elaboração própria, 2020.
*Consideramos as informações relativas ao número de escolas e alunos inscritos porque não encontramos dados sobre as taxas prescritas na tabela.
Quanto à taxa líquida de escolarização, que se refere ao total de alunos que frequentam o EP e a população oficial de alunos para a frequência do EP (6-12 anos), os dois períodos históricos posteriores à 1975 registraram um aumento de 31,4% em relação a 1983 e 38,9% em relação a 1992 (38.9%). O aumento pode estar relacionado ao avanço nas negociações que puseram término a 16 anos de guerra civil, cuja assinatura foi feita em outubro de 1992, o que possibilitou aos alunos que haviam sido excluídos do sistema terem acesso à educação. Por fim, no período da aprovação da última e atual Lei do SNE, a taxa atingiu os 100,7% (2018), o que pode estar relacionado à ratificação dos compromissos internacionais assumidos pelo país que resultaram das conferências de Jomtien, na Tailândia (1990), Dakar, no Senegal (2000), e Incheon, na Correia do Sul (2015), todas organizadas pela UNESCO. Mesmo assim, esses dados revelam o desafio que se impõe hoje ao sistema, de forma particular no que toca a qualidade do ensino e a construção de infraestruturas escolares com o propósito de reduzir o número de alunos por turma.
No tocante à taxa bruta de escolarização, que diz respeito ao total de alunos que frequenta o EP com idade ideal e a população oficial do mesmo grupo etário, nota-se que houve um registro muito reduzido em 1975 (37,8%) justificado pelo fato do país herdar um sistema de ensino segregacionista (do período colonial) que deixou muitos alunos fora da escola. Já em 1983, esse número subiu, registrando 58,9%, fruto das políticas educacionais consagradas na Lei n.º 4, de 23 de março de 1983 que assumia como um dos seus baluartes erradicar o analfabetismo e garantir o acesso à educação a todos, sem discriminação (MOÇAMBIQUE, 1983). Em 2018, essa taxa registrou um percentual de 120,7%, o que vem a demonstrar que houve avanços significativos em termos de alunos que frequentam a EB na idade ideal preconizada na Lei.
O desafio agora é manter esses alunos no sistema de ensino. As distâncias percorridas pelos alunos para alcançarem uma escola são longas, particularmente nas zonas rurais como é reconhecido pelo próprio Ministério no Plano Estratégico de Educação (2012-2016). Apesar do avanço das estratégias para solução dos problemas, indica-se a necessidade da transformação de escolas do EP de primeiro grau (EP1), que lecionam para as 1as a 5as classes (equivalente às séries no Brasil), que não têm acesso a fontes de financiamento para a construção de mais salas de aulas e garantir que os alunos estudem mais próximos dos seus locais de habitação (MOÇAMBIQUE, 2012). Além disso, é lenta a implementação da operacionalização do Plano Operacional 2015-2018 (Plano Estratégico da Educação 2012-2019), uma vez que “[...] as condições das escolas e das salas de aula estão ainda longe do desejável: 45% das salas de aula são de construção precária e estima-se que 1/3 das crianças assistem às aulas sentadas no chão” (MOÇAMBIQUE, 2015, p. 48).
Situando a EB e suas possibilidades futuras
Atualmente, a EB compreende “o ensino primário e o primeiro ciclo do ensino secundário”. Contempla um total de nove anos de escolaridade (com três ciclos de três anos cada) o que inclui e equivale ao período da escolaridade obrigatória, de acordo com a Lei n.o 18, de 28 de dezembro de 2018 (MOÇAMBIQUE, 2018a; 2019b). Vale ressaltar que nem sempre os alunos em cada um dos ciclos se encaixam nas idades preconizadas por conta de reprovações e ingresso tardio na escola, com maior incidência nas zonas rurais.
Ainda que no quadro da Lei n.o 18, de 28 de dezembro de 2018, coadjuvada com o seu regulamento esteja definida a obrigatoriedade da escolaridade nos primeiros nove anos de vida, existe a referência de que “a gratuidade do ensino abrange propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, frequência e certificação, livros escolares, despesas que são assumidas pelo Estado” (MOÇAMBIQUE, 2019b) não sendo vinculativo ao ensino privado. A respeito do E P, está regulamentado que a isenção abrange o pagamento de “taxas de inscrição, de matrícula, de propinas, da quota para a Ação Social Escolar e do livro escolar”, o que se afigura um retrocesso quando comparado ao período de vigência das Leis que à antecedem. Isso porque os alunos perdem um ano de isenção dos serviços mencionados (MOÇAMBIQUE, 1992; 1983) pois, para o 1º Ciclo do ensino secundário (três últimas classes), a isenção abrange apenas a “taxa de matrícula” (MOÇAMBIQUE, 2019b) permanecendo pagos o restante dos serviços referenciados para o E P. Ainda que se considere a EB obrigatória, e tenha se estabelecido a sua extensão por mais dois anos, parece que continuaremos a ter muitos alunos sem acesso aos últimos anos de escolaridade da EB. Prova disso é que o acesso ao ensino secundário do 1o ciclo foi sempre deficitário em Moçambique dada a exiguidade de vagas e o reduzido número de escolas ministrando esse nível. Para dar vazão, tal como é evidenciado pelo Ministério da Educação, será feita a requalificação de escolas primárias para escolas básicas, mas nem todas reúnem condições para tal, o que passaria pela construção de novas salas (MOÇAMBIQUE, 2020).
A tabela abaixo mostra os dados de 2018, sintetizando os níveis, anos de escolaridade, número de escolas e o percentual correspondente a cada um dos níveis. Com base nos dados, pode-se perceber que, em termos práticos, à medida que se avança do EP1 para o ESG do 1º ciclo, o número de escolas diminui, o que significa que as oportunidades de vagas diminuem e, consequentemente, a possibilidade de acesso a níveis subsequentes. Do total das escolas existentes em 2018, apenas 2,62% ofereciam o 1º ciclo do ESG, o que mais uma vez vem demonstrar a impossibilidade de todos os alunos acederem a esse ciclo.
Nível de ensinos | Anos de escolaridade | N.º de escolas | % |
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EP1 (ensino primário do 1º grau) | 1ª - 5ª classe | 12.737 | 60,04 |
EP2 (ensino primário do 1º grau) | 6ª - 7ª classe | 7.921 | 37,34 |
Ensino secundário geral (ESG) do 1º ciclo | 8ª - 10ª classe | 556 | 2,62 |
Total | 21.214 | 100 |
Fonte: Base nas estatísticas oficiais (MOÇAMBIQUE, 2018b, p. 14), elaboração própria, 2020
Outro dado não menos importante é que muitos alunos de baixa renda podem não ter acesso aos últimos três anos, apesar da obrigatoriedade, por conta da distância entre escolas e seus locais de residência, particularmente os das zonas rurais, mas também pelas taxas a serem pagas, pois a lei preconiza isenções apenas no EP. Através da Lei, parece evidente uma tendência do Estado de se afastar de sua responsabilidade (de provedor de serviços educacionais gratuitos) quando o apelo é para sua maior presença, pois “os efeitos do abandono do Estado no campo da saúde e educação básica nos oferecem um quadro perverso. Trata-se de uma violência [...]. Há, pois, que se ampliar o papel do Estado nestas áreas” (FRIGOTTO, 2010, p. 198-199).
Lei n° 18/2018 | Subsistema de educação geral | |||||||||||
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Educação básica | ||||||||||||
Ensino primário | Ensino secundário | |||||||||||
Ciclos | 1º | 2° | 1° | 2° | ||||||||
Classes | 1ª | 2ª | 3° | 4° | 5° | 6° | 7° | 8° | 9° | 10° | 11° | 12° |
Idades | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | 13 | 14 | 15 | 16 | 17 |
Escolaridade obrigatória |
Fonte: Base na Lei n.o 18/2018 de 28 de dezembro (SNE), elaboração própria, 2020.
Antes da aprovação da atual lei do SNE (Lei n.º 18/2018), a distribuição dos professores era feita do seguinte modo:
As turmas do 1º grau (1º e 2º ciclos) do Ensino Básico serão leccionadas por um professor cada e as do 2º grau (3º ciclo), por 3/4 professores. Cada professor do 2º grau leccionará três a quatro disciplinas curriculares, podendo ser ou não da mesma área, conforme a sua especialização ou inclinação (MOÇAMBIQUE, 2003, p. 27).
No novo cenário, o EP funcionará em regime de monodocência. Esta redução de professores permite com que dois professores sejam para esse nível ao invés dos 4 ou 5 atuais, o que significa menos contratações de novos professores e redirecionamento dos que estavam no segundo grau (3º ciclo). Isso implica menos oportunidade para os novos professores. Nos últimos anos, Moçambique tem contratado um número de professores aquém das necessidades reais do sistema de educação.
Considerações finais
Neste artigo, examinamos os desdobramentos da política de democratização do acesso à EB e analisamos suas possibilidades futuras. Reiteramos que a democratização tem seu início no período colonial, caracterizado por uma expressiva segregação, pois o ensino destinado aos negros era permeado pela invasão cultural com clara intenção de inferiorizar a sua cultura e torná-la invisível. Contudo, as possibilidades de eliminação das desigualdades no acesso à educação só se iniciam com a independência nacional e. As experiências das zonas libertadas foram determinantes no processo de construção de políticas públicas educacionais genuinamente moçambicanas o que permitiu a democratização do acesso à educação nos moldes atuais.
Reiteramos que, a EB de Moçambique sempre esteve atrelada ao EP (primeiros 6 ou 7 anos de escolaridade, dependendo da lei), mas, no contexto das modificações legislativas atuais, passa a agregar os primeiros nove anos de escolaridade, o que equivaleria ao ensino fundamental I no Brasil. No entanto, pelos dados de acesso ao EP, registram-se avanços e melhorias significativas desde a independência, mas ainda persistem desafios como as taxas e emolumentos praticados ao nível do 1º ciclo do ensino secundário, parte integrante da EB (incluída recentemente com a Lei n.º 18/2018 de 28 de dezembro), o que pode tornar-se um meio de exclusão de acesso à esse ciclo. Outro desafio diz respeito às distâncias percorridas pelos alunos, em particular das zonas rurais, onde as escolas em sua maioria se localizam distantes dos seus locais de residência.
Destacamos, com base na Lei n.º 18, de 28 de dezembro de 2018, uma contradição no que toca ao acesso à EB. A Lei amplia o período de escolaridade obrigatória ao afirmar no Artigo 7 n.º 1 que: “a escolaridade obrigatória é da 1ª a 9ª Classes” e com relação a isenção de taxas ela afirma no Artigo 8 n.º 1 que “a frequência do EP é gratuita nas escolas públicas, estando isento do pagamento de propinas”. À luz da escolaridade obrigatória, não fica claro quais as despesas que ficarão ao cargo do Estado (MOÇAMBIQUE, 2018a; 2019b).