Introdução
Sendo hontem presos nove menores vagabundos, que vivem de furto, sendo trez escravos, que ficão na cadeia, trez portuguezes, que mandei apresentar ao respectivo consul, e os trez brasileiros, de nomes Manoel Martins, Jose Alves da Silva e Justino Felix de Souza, que este officio acompanhão; rogo a V. Exª se digne dar a estes últimos o destino que entender conveniente.2
O trecho acima é parte de um ofício enviado pela Secretária de Polícia da Província do Pará, em 16 de fevereiro de 1881, ao inspetor do Arsenal da Marinha pedindo destinação para alguns menores que se encontravam envolvidos com a criminalidade na cidade de Belém. O documento retrata a situação de menores escravos que deveriam ser encaminhados à cadeia pública de imigrantes portugueses - que tinham seus destinos resolvidos pelo consulado português - e de brasileiros enviados às escolas de artífices ou aprendizes marinheiros, os quais dependiam da aptidão física do menor. No caso dos menores imigrantes portugueses, buscavam geralmente os consulados como instituição que pudesse dar cabo aos chamados “menores vagabundos”, em razão de não haver uma legislação específica para criminosos estrangeiros menores.
Ao longo dos séculos XIX e XX, a sociedade paraense manteve uma postura bastante ambígua ao tratar os menores imigrantes em relação a seu envolvimento com a criminalidade. Havia, de um lado, discursos hostis e intolerantes no trato dos menores que eram capturados pelas chefaturas de polícia como sujeitos “perigosos”, “vadios”, “vagabundos”, “flagelos da sociedade”, “menores desviantes” e “ociosos”. De outro lado, circulavam discursos de piedade na elaboração de políticas de atendimento aos menores com a implementação de ações educativas nas instituições correcionais para conter o avanço da criminalidade infanto-juvenil de imigrantes.
Em razão da itinerância e ociosidade, os menores eram considerados ameaçadores à estabilidade social na cidade de Belém. Essa preocupação se justificava em razão do projeto estabelecido pela elite local, o qual desejava um lugar de progresso, modernização e civilidade. Em virtude disso, as autoridades policiais paraenses, recorrentemente, apreendiam menores no centro comercial e nos diversos bairros da capital do Pará, sob justificativa de realização de algum delito ou apenas por se encontrarem em situação degradante de abandono pelas ruas. Em geral, era uma população de menores que não tinha moradia nem ofício e com pouca ou nenhuma escolaridade, o que dificultava para encontrar emprego. Em decorrência dessa mobilidade constante e, sobretudo, o fato de estarem sem exercer um ofício, sem dinheiro e sem domicílio fixo, menores acabavam imersos em uma condição de potenciais praticantes de crimes e, consequentemente, condenados à marginalidade.
Entre as diversas nacionalidades de menores que migravam para a região Norte, com o sonho de ascensão social, estavam portugueses, italianos, árabes, turcos e espanhóis. O certo é que muitos menores imigrantes acabavam construindo uma longa carreira no mundo do crime, sendo constantemente perseguidos pelas autoridades policiais. Em alguns casos, ao serem presos por algum delito, essas autoridades identificavam que o menor fazia parte de uma quadrilha de ladrões que atuavam como “gatunos” ou praticavam “furtos e roubos” nos estabelecimentos comerciais de Belém.
A documentação existente, tais como processos criminais de imigrantes menores da 4ª Vara Criminal da Cidade de Belém, o Livro de Registro de Menores Recolhidos no Instituto Correcional Santo Antônio do Prata (1921), bem com o Rol dos Culpados (PARÁ, 1905-1923), permite-nos esboçar o entendimento de que houve uma significativa circulação de menores de diversas nacionalidades que foram enquadrados em várias tipificações criminais. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar o processo migratório de menores portugueses para a capital do Pará, seu envolvimento com a criminalidade e as medidas de atendimento educativas no Instituto Correcional Santo Antônio do Prata. Em vista de alcançar o objetivo almejado, questiona-se: que menores imigrantes estrangeiros se envolviam com a criminalidade em Belém do Pará? Que marcadores sociais e tipificações criminais os menores imigrantes estrangeiros, em especial os portugueses, foram enquadrados pela justiça paraense? Que medidas correcionais os menores portugueses foram submetidos? Até que ponto o “asilamento” de menores imigrantes portugueses na Colônia Correcional Santo Antônio do Prata foi eficiente na recuperação dos menores?
A metodologia utilizada consiste em análise documental. As fontes de pesquisa foram: a) os autos crime de imigrantes menores de idade; b) Rol dos Culpados ̶ do ano de 1905 ao ano de 1923, obtidos nos arquivos do Centro de Memória da Amazônia (CMA), que guarda e protege os documentos do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (PARÁ, 1923b); c) o Livro de Registro de Entrada de Menores recolhidos na Colônia Correcional Santo Antônio do Prata (CCSAP), referente ao ano de 1921 e adquirido no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).
A história e historiografia dos processos criminais no Brasil têm seu marco na década de 1890. O uso desse tipo de documento como fonte histórica se consolida no campo da História a partir do processo de redemocratização com a difusão da História Social. Houve, então, um significativo interesse dos pesquisadores na “recuperação da voz ‘subalternas’, como então se dominava, e a reflexão sobre a justiça, vários estudos a partir de então, contemplaram as duas dimensões, produzindo análises profícuas e originais sobre temas distintos” (GRINBERG, 2013, p. 127).
O uso de processos criminais como fonte pode ajudar não somente a conhecer a situação dos menores imigrantes envolvidos com a justiça paraense, mas principalmente utilizá-los como um documento histórico, “seja como uma forma de compreender melhor as relações entre os agentes sociais em uma época de muita imigração de menores, seja para estudar a própria justiça e seus agentes em diversas temporalidades” (GRINBERG, 2013, p.121). Além disso, ao cotejar essa fonte com o livro de registro de menores recolhidos no Instituto Correcional Santo Antônio do Prata (1921), é possível desenvolver análises mais amplas sobre o contexto histórico de imigrantes menores, os mecanismos de controle social, as legislações e os procedimentos correcionais para combater a criminalidade. Ademais, nas peças criminais há, de um lado, uma constituição de sujeitos e suas vozes materializadas nas linhas discursivas dos documentos como vítimas, réus, testemunhas, juízes, advogados e demais agentes da lei e agentes do sistema jurídico-policial. De outro lado, elementos referentes aos eventos, tipificações criminais, versões, interpretações e acusações que envolviam os menores em estado de crime.
Rizzini (1997) destaca que foi a partir do século XIX, com o advento da República, que o conceito de “menor” teve referência jurídico-assistencial construída a partir da dicotomia “criança” versus “menor”, na qual, a primeira, era mantida sob o cuidado da família, e, o segundo, era mantido sob a égide do Estado, das leis, da filantropia assistencialista e da educação coercitiva, repressiva e disciplinar. Foi nesse período que o termo “menor” se popularizou e se incorporou à linguagem comum. Na legislação penal, o uso do termo “menor” se tornou corrente para abarcar todos aqueles que, igualmente, não tivessem completado a maioridade estipulada em 21 anos. Como enfatiza Rizzini (1997, p. 134), ser menor, nesse período, “[...] simbolizava ser pobre, ser potencialmente perigoso, abandonado ou em perigo de o ser, pervertido ou em perigo de o ser”.
Fraga Filho (1996) mostra que o termo “vadio” comportava uma condenação moral, advinda do fato do sujeito estar fora do domínio familiar e produtivo. Portanto, o “menino vadio” seria aquele que atentava contra a ordem familiar ao trocar o ambiente doméstico pelo mundo da rua, tornando-se uma ameaça à ordem social.
Foi no início do século XX que o termo “menor” se tornou mais forte, ao ser associado à criminalidade, ou seja, convertendo-se em “uma categoria jurídica e socialmente construída para designar a infância pobre - abandonada (material e moralmente) e delinquente. Ser menor era carecer de assistência, era sinônimo de pobreza, baixa moralidade e periculosidade” (RIZZINI, 1997, p. 134). É dentro dessas perspectivas jurídicas e sociais que muitos jovens portugueses estão inseridos ao delinquir.
Destarte, para um melhor desenvolvimento explicativo e analítico do presente artigo, este foi dividido em duas seções. Na primeira, apresenta-se uma contextualização do processo imigratório de menores para Belém do Pará, que foi motivado pelo advento da economia da borracha na Amazônia. Além disso, destaca-se, a partir de dados da 4ª Vara Criminal de 1900 a 1925, uma análise dos marcadores sociais de 41 menores, destacando nome, origem, estado civil, idade, profissão, instrução e tipologia criminal. Por fim, abordamos a relação da nacionalidade dos imigrantes estrangeiros com as tipificações criminais. Na segunda seção, discorre-se sobre o caso de dois imigrantes portugueses e suas trajetórias de criminalidade e asilamento na Colônia Correcional do Prata.
O contexto imigratório de menores para Belém do Pará
No século XIX, a migração para a Amazônia paraense teve como cerne a ocupação e o desenvolvimento econômico advindos do ciclo da borracha. O crescimento comercial e demográfico derivado do boom gomífero a fez se transformar de uma região “esquecida” e “atrasada” em um dos mais promissores centros comerciais do Brasil. Foi a partir de meados do século XIX que toda a economia da região passou a girar em torno do extrativismo da borracha, condicionando novos contingentes populacionais à cidade, imprimindo uma ampliação e modificação na paisagem urbana (SARGES, 2010).
O cenário cotidiano da cidade de Belém, nos finais do século XIX e início do XX, apresentava-se dubiamente diferente. De um lado, uma cidade mais central formada por uma elite que se beneficiava com a comercialização da borracha. De outro lado, uma outra cidade mais periférica formada por um aglomerado de pessoas que viviam na pobreza e habitando pequenos barracos ou cortiços de imigrantes. Segundo Cancela (2012), em 1872, 12% da população que vivia em Belém era composta por estrangeiros.
Percebe-se que nesse canário nem todos os imigrantes obtiveram prosperidade em terras paraense, pois não era raro ver, no período analisado, os imigrantes exercendo atividades pouco prestigiosas3, morando em cortiços ou coletivamente em estabelecimentos comerciais como mercearias, padarias e botequins. Durante muitos anos, as pesquisas voltadas à imigração para a Amazônia não visavam os setores mais pobres da sociedade, uma vez que mostravam os pobres imigrantes como massas indiferenciadas da população, ignorando as especificidades de suas vidas e suas interrelações (HIDAKA, 2013). No caso da imigração para a Amazônia, pesquisadores como Cancela (2012), Sarges (2010) e Sampaio (2011) dão destaques ao contexto sociopolítico e socioeconômico dos imigrantes de diversas nacionalidades na cidade de Belém.
Diversos locais de Belém, como ruas, praças, botequins, mercearias e padarias eram palco de relações individuais e coletivas, algumas vezes harmoniosas, outras conflituosas. Nesse sentido, reorganizar fisicamente a cidade, como pregava o intendente Antônio Lemos4, não era suficiente frente ao desafio do aumento populacional, da ordem pública e social. Um exemplo disso foi o fechamento e demolição, em 1903, de todos os cortiços de Belém, consolidando a política higienista e de medicação dos hábitos cotidianos. O movimento higienista e a medicação dos hábitos ditos incivilizados buscavam normatizar a sociedade amazônica dando a ela padrões de comportamento e de civilidade (PARÁ, 1903b). No caso dos imigrantes, era recorrente as aglomerações de pessoas em cortiços vivendo em condições precárias e em constantes conflitos e violência.
Um dos fatores que contradiziam esses padrões de comportamento e de civilidade foi as contravenções da ordem pública, particularmente a desordem, a embriaguez e a vagabundagem associada aos crimes contra o patrimônio, tais como furto e roubo5, os quais eram os principais tipos de crimes em que havia a participação de menores estrangeiros.
De acordo com o Quadro 1, é possível observar, a partir da documentação da 4ª Vara Criminal de 1900 a 1925, que, dos 41 imigrantes menores, a maioria era do sexo masculino, correspondente a 37 (90%) em comparação a 04 (10%) do sexo feminino. A predominância de menores do sexo masculino tem significativa relação com o quantitativo que imigrava para a Amazônia paraense, no desejo de trabalhar e ter uma vida próspera. Alguns eram motivados a vir para a Belém por ter uma rede de relação familiar ou de compadrio com pessoas da sua nacionalidade que trabalhavam na cidade. Essa situação era muito comum, principalmente entre os menores portugueses. Já os imigrantes de outras nacionalidades eram movidos pela imagem da Amazônia na Europa, como uma região que se encontrava em plena expansão econômica.
Nome | Origem | Estado Civil | Idade | Profissão | Instrução | Tipificação Criminal |
---|---|---|---|---|---|---|
Nome | Origem | Estado Civil | Idade | Profissão | Instrução | Tipificação Criminal |
Vicente Braga Araújo | Italiana | Solteiro | 12 | Estudante | Sabe ler escrever | Furto |
Agostinho Gonçalves | Espanhola | Solteiro | 14 | Sem profissão | Analfabeto | Furto |
Ricardo Garcia | Espanhola | Solteiro | 15 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Vadiagem Furto |
Luiz Martins Nunes | Portuguesa | Solteiro | 15 | Caixeiro | Sabe ler escrever | Vadiagem Furto |
David Joaquim Tavares | Portuguesa | Solteiro | 15 | Caixeiro | Sabe ler escrever | Homicídio |
Antonio Dias Santos | Portuguesa | Solteiro | 16 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Estelionato |
Felipe Jorge | Turca | Solteiro | 16 | Funileiro | Analfabeto | Roubo |
Francisco Horácio Pires | Espanhola | Solteiro | 16 | Embarcadiço | Sabe ler escrever | Vadiagem Furto |
Rosa Elias Jorge | Árabe | Casado | 16 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Furto |
Urbano Cardo Silva | Portuguesa | Solteiro | 17 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Estelionato |
Anna Petrowich | Sérvia | Solteiro | 17 | Cigana | Analfabeta | Furto |
José Alves Amorim | Portuguesa | Solteiro | 17 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Furto |
Manoel Gonçalves da Cunha | Portuguesa | Solteiro | 17 | Pedreiro | Analfabeto | Roubo |
Jose Joaquim Ribeiro Braga | Portuguesa | Solteiro | 18 | Funileiro | Sabe ler escrever | Defloramento |
Raul Teixeira Almeida | Portuguesa | Solteiro | 18 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Furto |
Abel Marcelo Marinho | Portuguesa | Solteiro | 18 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Furto |
Jacintho Soares Quinta | Portuguesa | Solteiro | 18 | Carteiro | Sabe ler escrever | Roubo |
José Ferreira Lima | Portuguesa | Solteiro | 18 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Roubo |
Antonio Pereira | Portuguesa | Solteiro | 18 | Caixeiro | Sabe ler escrever | Roubo |
Valentim Victor Rodrigues | Espanhola | Solteiro | 18 | Eletricista | Sabe ler escrever | Roubo |
Antonio Ferreira | Portuguesa | Solteiro | 19 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Furto |
Frederico Silva | Portuguesa | Solteiro | 19 | Marítimo | Analfabeto | Furto |
Antonio Rodrigues | Portuguesa | Solteiro | 19 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Vadiagem Furto |
Manoel Dantas Costa | Portuguesa | Solteiro | 19 | Açougueiro | Analfabeto | Furto |
João Manoel Coelho | Portuguesa | Solteiro | 19 | Comerciante | Sabe ler escrever | Furto |
Isac Banaion | Marroquina | Solteiro | 19 | Mercador ambulante | Sabe ler escrever | Furto |
Luiz Martins Nunes | Portuguesa | Solteiro | 19 | Foguista | Sabe ler escrever | Roubo |
Catharina Petrowich | Sérvia | Solteiro | 19 | Cigana | Analfabeta | Furto |
João Lucio Augusto | Portuguesa | Solteiro | 20 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Estelionato |
José Maria da Silva | Portuguesa | Solteiro | 20 | Comerciante | Sabe ler escrever | Estelionato |
Horácio Vieira | Espanhola | Solteiro | 20 | Carpinteiro | Sabe ler escrever | Furto |
Maria Augusta Fernandes | Espanhola | Solteiro | 20 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Furto |
Manoel Serrão | Portuguesa | Solteiro | 20 | Pedreiro | Analfabeto | Furto |
José Januário Rai | Portuguesa | Solteiro | 20 | Carpinteiro | Sabe ler escrever | Furto |
Joaquim Monteiro | Portuguesa | Solteiro | 20 | Sem profissão | Sabe ler escrever | Roubo |
Jayme Gonçalves Custódio | Portuguesa | Solteiro | 20 | Barbeiro | Sabe ler escrever | Furto |
Joaquim Martins | Portuguesa | Solteiro | 21 | Carroceiro | Sabe ler escrever | Ameaça |
Arthur Antonio Fernades | Portuguesa | Solteiro | 21 | Auxiliar de comércio | Sabe ler escrever | Furto |
Luiz Gomes Paes Castro | Portuguesa | Solteiro | 21 | Comerciante | Sabe ler escrever | Furto |
Antonio Augusto Penna Rocha | Portuguesa | Solteiro | 21 | Empregado no comércio | Sabe ler escrever | Homicídio |
Manoel Dantas da Costa | Portuguesa | Solteiro | 21 | Açougueiro | Analfabeto | Roubo |
FONTE: Elaborado pelo autor a partir dos Autos Criminais da 4ª Vara - Capital (PARÁ, 1900-1925)
Conforme observado no Quadro 1, os menores imigrantes encontrados nos autos dos processos criminais nos anos de 1900 a 1925 tinham entre 12 e 21 anos de idade, dos quais 21 (51,5%) dos menores estavam na faixa etária de 19 a 21 anos, 15 (36,5%) dos menores estavam entre 16 a 18 anos e, por fim, 05 (12%) estavam na faixa etária de 12 a 15 anos. De acordo com o nível de escolaridade dos menores imigrantes, constata-se que 41 (78%) sabiam ler e escrever e 09 (22%) eram analfabetos. Quanto ao estado civil dos 41 menores registrados na 4ª Vara, 40 (98%) eram solteiros e apenas 01 (1,5%) deles era casado. Com relação à nacionalidade, dos 41 menores, 29 (71%) eram de portugueses, 06 (14%) de espanhóis, 02 (5%) sérvios, 01 (2,5%) de italianos, turcos e marroquinos.
Os portugueses, ainda segundo as informações do Quadro 1, foram os imigrantes que mais se envolveram com a criminalidade no Pará. Segundo Cancela (2012), a imigração de famílias e de jovens menores foi motivada pela possibilidade de obter terras, firmas comerciais e enriquecer com a venda da borracha. Muitos desses imigrantes “ouviam falar que Belém era uma cidade que crescia rapidamente, que as oportunidades de negócio eram muitas e que facilmente com trabalho, alguém poderia ficar bem de vida” (CANCELA, 2012, p. 30).
Das tipificações criminais impostas aos 41 menores nos processos (Tabela 1), têm-se 20 (48%) de furtos, 09 (22%) de roubo, 04 (10%) de vadiagem e furto, além de estelionato, 02 (5,0%) de homicídio e 01 (2,5%) de defloramento e ameaça. Os dados apontam que os crimes estavam relacionados às questões impostas pela imigração, como falta de trabalho, baixas remunerações devido a trabalhos pouco rentáveis, informalidade, ociosidade e problemas com relação à moradia. Contudo, se cruzarmos os fatores nacionalidade e tipificação de crime, é possível constatar que os portugueses faziam parte da maioria dos menores imigrantes que praticava diversos crimes. Do total de 29 (70,5%) crimes entre a população de imigrantes portugueses, encontravam-se ameaças, defloramentos, homicídios e estelionatos, mas a maioria se envolvia com furtos e roubos. Os espanhóis, por sua vez, do total de 06 (14,5%), envolveram-se com furtos e roubos. No que concerne os sérvios 02 (5,0%), envolveram-se com furtos, enquanto os árabes, italianos e marroquinos se envolveram, cada um, com 01 (2,5%) furto. Por fim, os turcos com 01 (2,5%) de roubos.
Nacionalidade | Ameaça | Defloramento | Estelionato | Furto | Homicídio | Roubo | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Árabe | 1 | 1 (2,5%) | |||||
Espanholaa | 5 | 1 | 6 (14,5%) | ||||
Italiana | 1 | 1 (2,5%) | |||||
Marroquina | 1 | 1 (2,5%) | |||||
Portuguesa | 1 | 1 | 4 | 14 | 2 | 7 | 29 (70,5%) |
Serviab | 2 | 2 (5,0%) | |||||
Turca | 1 | 1 (2,5%) | |||||
TOTAL | 1 | 1 | 4 | 24 | 2 | 9 | 41 |
FONTE: Elaborado pelo autor a partir dos Autos Criminais da 4ª Vara - Capital (PARÁ, 1900-1925).
Notas: a) uma do sexo feminino; b) todas do sexo feminino
Com relação à atividade profissional, dos 41 menores, 11 (27%) eram funileiro, eletricista, mercador ambulante, marítimo, barbeiro, carroceiro, embarcadiço, carteiro e estudantes; 09 (22%) dos menores não tinham nenhuma profissão; 04 (20%) dos menores eram pedreiro, carpinteiro, açougueiro e cigana; e, por fim, 03 (15%) dos menores eram caixeiro e comerciante. No caso dos imigrantes portugueses, havia, de um lado, os que “trabalhavam no plantio e na criação de animais, mas também podiam ser serralheiros, padeiros, sapateiros, carpinteiros, criados de servir, calafates, alfaiates, pescadores e aguadeiros” (CANCELA, 2012, p. 36) e também no comércio. De outro lado, havia o caso de portugueses que conseguiam enriquecer com os negócios da borracha, inclusive proprietários de inúmeros seringais.
Os casos dos menores imigrantes portugueses e a colônia correcional Santo Antonio do Prata
No livro de Registro de Menores Recolhidos da Colônia Correcional Santo Antonio do Prata (CCSAP) (PARÁ, 1921), constata-se a lista de internos egressos da Colônia no ano de 1921 (a última da Colônia do Prata) antes da sua extinção. É importante destacar que menores portugueses faziam parte do grupo que era composto por 56 internos, dentre os quais se encontravam brasileiros de diversas regiões e estrangeiros de diversas nacionalidades. A maioria dos internos no CCSAP tinha entre 18 e 20 anos6. Todavia, uma pesquisa nominal nos processos judiciais no acervo do CMA (Centro de Memória da Amazônia) mostrou que alguns desses internos tinham passagens pelas chefaturas de polícia na menoridade.
Nos livros de ingresso no CCSAP (PARÁ, 1921), encontram-se 05 imigrantes portugueses que, após serem acusados de crimes, foram encaminhados para a colônia correcional e tiveram suas vidas atreladas à justiça paraense que tentava controlar o acentuado número de menores que estavam se envolvendo com práticas criminosas no início do século XX. Entre os casos de menores imigrantes portugueses, encontra-se o do menor, solteiro e analfabeto, Manoel Dantas da Costa, o qual nasceu em Portugal, na Villar do Monte. O referido menor chegou a terras paraenses com apenas 14 anos de idade e trabalhou algum tempo como açougueiro na capital (PARÁ, 1915). Não possuía residência fixa, o que lhe fez ser qualificado nas chefaturas de polícia como “vagabundo habitual”, adjetivo que marcou sua trajetória de vida, desde a menoridade até a fase adulta.
O primeiro processo judicial em que Dantas foi réu é datado do ano de 1915 (PARÁ, 1915), quando tinha 19 anos, pelo crime de furto, como indica a seguinte nota do jornal Estado do Pará: “Iniciou-se o processo-crime de furto de que é réu Manoel Dantas da Costa, sendo este qualificado, e, em seguida ouvida a 1ª testemunha de accusação” (JORNAL ESTADO DO PARÁ, 1915, p. 2). Dantas ficou preso por um tempo até que foi solto via habeas corpus. Em liberdade, cometeu mais alguns crimes, o que lhe fez retornar aos “xadrezes” das chefaturas de polícia paraense. Caracterizava-se como um imigrante que, desde a sua menoridade, estava envolvido com questões criminais. Dantas, pelo crime cometido, foi encarcerado na cadeia pública São José e seu nome foi lançado no Rol dos Culpados7. No primeiro julgamento no Tribunal do Jury que ocorreu em 9 de setembro de 1920 (PARÁ, 1920), ele foi absolvido. Contudo, a promotoria recorreu à decisão do júri pelo fato de Dantas ser visto como incorrigível, ou seja, pelas inúmeras reincidências, passou a ser considerado um criminoso incapaz de ser corrigido. Em razão dessa sentença, a pedido do juiz do caso, foi submetido a um novo julgamento no qual foi condenado a cumprir pena na Colônia Correcional Santo Antônio do Prata (CCSAP). Dantas deu entrada na referida instituição em 25 de agosto de 1921.
No Livro de Entrada dos menores no CCSAP, em 1921, consta que Dantas era “arrombador”, o que lhe acarretou ter “inutilizado das 3 phalanges da mão direita e uma cicatriz na mão (palma) esquerda”. Enquanto esteve internado no CCSAP, teve um “comportamento regular”. Contudo, na madrugada de 04 de outubro de 1921, Dantas foge “por uma das janellas da Colônia, que conseguiu arrombar”. No dia 05 de outubro, foi capturado em S. Luiz e, em 23 de outubro, “regressou á capital, por ordem do Exmo. Snr. Desembargador chefe de polícia, por se achar visivelmente doente” (PARÁ, 1921).
Para implementação das diretrizes de destinação desses menores, o Estado se valeu de algumas instituições correcionais. No século XIX, podemos destacar como exemplo a Polícia (coerção), os Juízes de Órfãos (assistência) e a Arsenal de Marinha (disciplinamento) que se tornaram centrais nesta destinação, promovendo atividades correcionais de menores em condições de orfandade e criminalidade, pois exemplificavam a ordem positivista da contenção dos distúrbios familiares e sociais pelo disciplinamento coercitivo e adestramento do corpo e do espírito8. Essas diretrizes serviriam somente para os menores de nacionalidade brasileira, excluindo os menores estrangeiros.
As Ordenações Filipinas, no século XVI, são o primeiro momento do ordenamento jurídico da penalização criminal de menores de idade. Suas diretrizes influenciaram diretamente a ordenações jurídicas do código penal do Império e, posteriormente, da República. Dentre essas diretrizes, surge a discussão sobre o chamado “jovem adulto”, o qual consistia no indivíduo que tinha entre 17 e 21 anos, cuja idade poderia ter um certo grau de discernimento do ato criminoso que cometeu e que poderia ser interpretado pelo julgador, podendo esse infligir a pena que poderia ser diminuída ou de morte. Segundo as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal se encerrava aos 7 anos e a maioridade penal absoluta aos 21 anos (BRASIL COLÔNIA, 2020).
Segundo Soares (2020), o código penal de 1890 estipulou que a irresponsabilidade penal seria atribuída ao menor com idade até 9 anos. Ainda segundo a autora, quanto ao menor de 14 anos e maior de 9 anos, ficou estabelecido o critério biopsicológico, fundado na ideia do “discernimento”, estabelecendo-se que esse se submeteria à avaliação do magistrado. Observa-se que, com essa codificação, ficou mantido o sistema do “discernimento”, havendo apenas a exclusão apriorística e com presunção absoluta de incapacidade ao jovem infrator que ainda não tivesse completado 9 anos de idade. Além disso, aqueles que ainda não ultrapassassem a marca etária dos 14 anos poderiam vir a ser alvo de um estudo casuístico para que pudessem vir a ser considerados, ou não, capazes de responder criminalmente pela conduta praticada. Portanto, fica constatado que a concepção de discernimento fez parte da parcela histórica e legislativa do aparato punitivo relacionado ao tratamento de indivíduos menores de idade envolvidos com atos delitivos.
Outra questão, considerada uma inovação na penalização de menores, foi que o Código Penal passou a prever encaminhamento de menores maiores de 9 anos e menores de 14 anos para instituições disciplinares. No Pará, temos como exemplo a Colônia Correcional do Prata, que, como veremos mais adiante, atuou nos finais do século XIX e no primeiro quartel do século XX. Cabe enfatizar que foi no final do século XIX que houve um impulso transformador na maneira de tratar a criminalidade infantil e juvenil, conduzindo-a à seara educativa e reformadora. Sobre a égide da República (1889), por outro lado, as destinações desses menores, independente da nacionalidade, seriam as instituições correcionais. Essas instituições “tendo como objetivos educar, formar, proteger e corrigir menores abandonados buscava entre várias funções combater o crime, o abandono do menor, a criança na rua”. A proposta “visava preparar a criança para o mundo do trabalho”, assim “estaria domesticando e controlando as classes perigosas” (MARCÍLIO, 1998, p. 208).
Foi para uma dessas colônias correcionais que Manoel Dantas foi recolhido em 1921: a Colônia Correcional Santo Antônio do Prata (CCSAP). O Prata foi uma das principais instituições na qual os menores recolhidos das ruas da capital do Pará eram internados. Essa colônia se assemelhava aos inúmeros asilos de menores criados por todo o país, como o “Asilo de Menores abandonados no Rio de Janeiro, criado pelo chefe da polícia carioca, Alfredo Pinto Vieira Melo, em 1907, para o abrigo de crianças recolhidas nas ruas do Rio de Janeiro” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 19).
A CCSAP não nasceu para fins correcionais de menores. Em 1898, a colônia é criada como um “núcleo indígena” com o intuito de introduzir no cotidiano da vida dos índios, particularmente os da etnia Tembé - grupo de preponderância numérica -, “elementos da vida civilizada” (RIZZINI; SCHUELER, 2011). Segundo Rizzini e Schueler (2011), foi um grande “projeto pedagógico” organizado em parceria entre o Estado e a Igreja Católica9 e que resgatava em vários aspectos a experiência dos aldeamentos do século XIX.
A Colônia estava localizada “na região da nascente do rio Maracanã e banhado pelo rio Prata, considerada salubre e possuidora de terras férteis pelas autoridades e missionários, além da vantagem do fácil acesso à capital Belém” (RIZZINI; SCHUELER, 2011, p. 88). Facilidade que se ampliou quando da implementação de uma estrada que ligava o núcleo à estrada de ferro, que, por sua vez, ligava Belém à cidade interiorana de Bragança. A ação pedagógica do núcleo visava tanto à educação de meninas como de meninos. Em seus primeiros momentos de funcionamento, tinha um caráter tipicamente escolar e posteriormente um caráter de internato (SILVA, 2019). O objetivo inicial era “de civilizar e catequizar índios, inserindo-os no trabalho regular e educando seus filhos, na associação com o governo” (RIZZINI; SCHUELER, 2011, p. 93), contudo, a atuação missionária se expandiu aos propósitos de controle social e disciplinamento dos filhos dos pobres
Foi com as ações do governador Augusto Montenegro que Colônia Correcional Santo Antônio do Prata se tornou efetivamente um internato para menores delinquentes10. Suas ações correcionais baseadas na disciplina e no trabalho a salvaram de ser extinta em 1903. Em mensagem enviada ao Congresso do Estado do Pará, Montenegro elogiava as ações pedagógicas da CCSAP que tinha por intuito corrigir e educar os menores que se envolviam com a criminalidade.
Conto também reservar no instituto masculino alguns lugares para os pequenos vagabundos que pullulão nesta cidade. O meu illustre antecessor tentou com resultados profícuos este excelente meio, senão de correção pelo menos de educação destes infelizes, que se perdem nas nossas ruas e que são recrutas certos de enorme phalange de criminosos (PARÁ, 1903b).
O antecessor mencionado por Augusto Montenegro foi o governador Paes de Carvalho, que governou o Pará de 1897 a 1901. Ele também teve um papel importante nas transformações dos primeiros objetivos na instituição11. Foi no governo de Paes de Carvalho que se determinou o recebimento gratuito de “menores vagabundos” na instituição enviados pela polícia (MUNIZ, 1913). Todavia, foi a partir de 1903 que o governo autorizou o custeio de dois internatos que reuniam índios e crianças das cidades. Conforme informa Rizzini e Schueler (2011), quando se chamava Instituto da Infância Desvalida Santo Antônio do Prata, a instituição “consistia em educar menores de 6 anos a 20 anos, de ambos os sexos”. A instituição recebia “a) filhos de índios; b) órfãos pobres; c) moral e materialmente abandonados; d) filhos de réus condenados sem meios de subsistência; e) vadios e vagabundos” (RIZZINI; SCHUELER, 2011, p. 93).
Entretanto, nos últimos anos de sua existência da CCSAP, na condição de Colônia Agrícola Correcional, houve uma alteração em sua finalidade central de ser uma instituição correcional para menores, tomando a configuração de uma cadeia pública. Isso acontece em virtude de que passou a aceitar não apenas os menores “vadios e vagabundos”, mas menores e adultos ladrões, cotistas de vigários, descuidistas, vigaristas, estupradores, pederastas e alcoólatras.
A inserção de maiores de idade na Colônia Correcional do Prata faz crer que a perda de sua função primeira - correção e educação de menores - fez com que a instituição adquirisse alguns dos problemas que acometiam o seu funcionamento. Os problemas internos e externos enfrentados na instituição eram semelhantes com os de uma cadeia pública.
No interior da instituição correcional, dois problemas internos e externos eram recorrentes. O primeiro foi o aumento das desavenças entre os internos que culminavam em agressões físicas, como são os casos do paraense Romualdo Augusto Pinheiro, Vulgo “Caboclo Romualdo”, de 20 anos, que, em 16 de novembro de 1921, “travou no xadrez, lucta com um seu companheiro, sendo ferido no braço esquerdo e sobre o olho direito”, e do baiano Norberto Fabrício, vulgo “Bahia”, de 25 anos, que, em 15 de novembro de 1921, “foi dispensado desse logar, devido ao mal comportamento tendo sem motivo justificado esbofeteado um de seus companheiros” (PARÁ, 1921). O segundo problema diz respeito às recorrentes fugas de menores.
No ano de 1921, o livro de registro de menores recolhidos da CCSAP assinala 10 fugas e 04 recapturas. A primeira fuga ocorreu no dia 4 de outubro de 1921 com os portugueses Manoel Dantas da Costa, que nesse ano tinha 24 anos completos, e seu patrício Antonio Fernandes Santos, vulgo “Estrella”, de 29 anos, ambos arrombadores. Houve também o caso de Antonio Ferreira, vulgo “Cavallo Cego”12, goiano de 20 anos que cumpria pena por aplicar o conto do vigário nas praças de Belém. Foram recapturados no dia posterior a fuga: Manoel Dantas da Costa e “Cavallo Cego” em São Luiz no Maranhão e “Estrella” no município de Igarapé Açu no Pará.
Outras 03 fugas foram registradas no mês de novembro. A principal delas ocorrida no dia 28 de novembro e teve a maior quantidade de internos (04), sendo um deles o português José Bernardino da Costa, de 25 anos. As questões referentes a Manoel Dantas, que continuamente encontrava-se em estado de crime, trazem à tona a problemática da reincidência criminal de menores em Belém, na qual o menor estrangeiro se torna mais um problema a ser combatido pelas autoridades policiais.
O português José Bernardino, analfabeto, nasceu em Coimbra no ano de 1896, tinha 14 anos quando chegou no Pará, em 1914, vindo só do Amazonas. Em terras paraenses, trabalhou por algum tempo como carroceiro. Foi preso e condenado pela primeira vez em 1915 por roubo, cumprindo a pena na cadeia pública São José. Era um “indivíduo de péssimos costumes”, conforme é relatado no processo em que foi acusado por vadiagem (PARÁ, 1923, p.372).
Por sua trajetória criminal, foi internado na Colônia Correcional do Prata, em 11 de novembro de 1921. Na colônia, o menor Bernadino participou de pelo menos duas fugas: uma como vimos em novembro de 1921 e outra em janeiro de 1922 - “A 16 evadiu-se as 2 ½ horas da tarde sendo capturado por volta das 10 horas da noite” (PARÁ, 1921).
Por volta de 1923, Bernadino “foi preso, as quatro e meia da madrugada, do dia 28 de agosto, próximo passado quando se achava em flagrante acto de vadiagem” (PARÁ, 1923, p.372). No auto de prisão flagrante consta que foi preso “vagando” “no areal do Port Pará”. Como tantos outros, Bernadino foi preso mais pela sua trajetória criminal que por algum ato criminoso. Podemos constatar isto no próprio auto de flagrante quando o subprefeito, Manoel Fonseca da Cunha, diz que a prisão de Bernardino foi necessária “por saber que o referido indivíduo vadio e gatuno era conhecido da polícia” (PARÁ, 1923).
Podemos constatar este poder discricionário utilizado pela Polícia nas caracterizações dos “suspeitos”. Esta parcialidade revela-se nas denominações atribuídas sobretudo aos ofendidos, que nos processos aparecem com constância adjetivados de “gatunos”, “criminosos” ou “delinquentes” sem prova de culpa. Exemplos são vistos nas anotações dos depoimentos das testemunhas e do policial condutor do flagrante delito. Além de relatarem o que a testemunha disse que viu, acabavam registrando qualificativos que revelavam o que a testemunha ou a Policia pensava do acusado (PINTO, 2008, p.164).
Bernardino rechaça os qualitativos dados a ele de “vadio” e “gatuno”, afirmando que possui residência e “que é carroceiro e que trabalha com uma carroça pertencente a José Pequeno; [...], em uma estância denominada ‘Páo Preto’; onde ganha quando tem serviço a fazer a quantia de cinco mil reis diario, que é com esse dinheiro que se alimenta” (PARÁ, 1923). Todavia, o que se ver nos processos é que as informações dadas por esses acusados raramente eram checadas pelos agentes da segurança pública. Alguns deles até tinham moradia e emprego, contudo essas informações eram, em muitas ocasiões, negligenciadas pelas autoridades13, inclusive havendo críticas de muitos advogados de defesa.
Observando o Código Penal da República de 1890 (BRASIL, 1890), em seu artigo 399, pode-se entender a tônica desses discursos com mais propriedade. O código é enfático ao determinar que, para não ser considerado “vadio”, era necessário “exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida” e não ter “domicilio certo em que habite”. Sendo considerado vadio, o indivíduo poderia pegar uma pena de prisão “cellular por quinze a trinta dias”14, além da obrigatoriamente de assinar o Termo de Tomar Ocupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. Para os estrangeiros, havia ainda um agravante. No artigo 400, há uma complementação do artigo 399 que diz que, quando adulto, se o Termo de Tomar Ocupação fosse “quebrado” e o “infractor” caísse na reincidência, poderia ser deportado. Importante destacar que o significado de “deportado” não se aplicava apenas para estrangeiros, migrantes nacionais poderiam ser “deportados” para seu lugar de origem ou para outros estados.
Ao refletir sobre a reincidência criminal e, consequentemente, os criminosos reincidentes, Foucault (1987) pontua que foi por meio da “noção de reincidência” que, em finais do século XVIII, os juristas passaram a direcionar seus olhares não mais para o criminoso como somente “autor de um ato definido por lei”, mas como um “sujeito delinquente” que “manifesta seu caráter intrinsecamente criminoso”. Daí deriva-se a concepção de “jovem delinquente”.
Observando a realidade francesa, Foucault (1987) traz duas questões pertinentes à reincidência de criminosos, são elas: 1) a detenção provoca a reincidência, pois, depois de sair da prisão, têm-se mais chances de retorno do que havia antes de primeira detenção, o que mostra o fracasso das casas de detenção e correção para esses jovens; e 2) as condições dadas aos detentos libertos os condenam “fatalmente” a reincidência. Questões que de fato foram constados nos casos dos jovens portugueses que, ao saírem da prisão, continuavam com dificuldades de encontrar trabalho, caindo, assim, em algum momento de suas vidas, no crime de vadiagem.
Considerações finais
A criminalidade de menores imigrantes na capital do Pará nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do XX se configurava como um grande problema para as autoridades. Os casos dos imigrantes Dantas e Bernadino ilustram não somente a realidade dos portugueses, mas também a situação de outros imigrantes que tinham uma vida “irregular”, ou pelas situações de “vadiações” de rua, envolvendo-se com várias tipologias de crimes como desordens, embriaguez, vadiagem, furto, roubo, gatunagem, defloramento, homicídio etc.
A situação desses menores causava um problema central perturbando a população e, principalmente, ameaçava a estabilidade da ordem pública na cidade de Belém e municípios adjacentes. As autoridades policiais mantinham recorrentemente a vigilância cotidiana dos menores que perambulavam pelas ruas da cidade. A captura desses infratores, que geralmente eram encaminhados às delegacias e passavam a conviver com “perigosos criminosos”, tornou-se alvo das autoridades.
Com o período da Belle Epoque, Belém se tornou uma cidade atraente para os estrangeiros que vinham a procura de trabalho. O número de imigrantes estrangeiros cresceu consideravelmente, principalmente de menores portugueses, propiciando a apreensões dessa população que praticava algum crime. Dependendo da natureza do crime cometidos por menores imigrantes, as autoridades judiciais os indiciavam criminalmente a cumprir pena na Cadeia São José. Contudo, diversos setores da sociedade paraense passaram a defender a remoção desses menores para instituição de recolhimento, afastando-os do centro da cidade.
Para conter o acelerado número de menores imigrantes envolvidos com a criminalidade na capital do Pará, foi criada a casa de correção Colônia Correcional Santo Antônio do Pará (CCSAP), a qual recebeu os menores portugueses Dantas e Bernadino. O ingresso dos menores na CCSAP se dava por sentença do Juiz de Direito, que determinava o tempo da permanência na instituição disciplinar. Na CCSAP, os menores tinham que se adaptar ao regime rígido de trabalho na tentativa de regeneração pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho. A educação correcional tentava incutir nas mentes e corpos dos menores infratores hábitos de produção, além de mudanças de comportamentos adequados ao convívio social.
O projeto educacional do CCSAP deixava muito a desejar na sua proposta de correção dos menores criminosos. Havia muitos casos de menores imigrantes que fugiam da instituição e praticavam novamente outros delitos, como no caso do português Bernadino. Era recorrente a reincidência de menores no crime. Infelizmente, as fontes que foram utilizadas não permitem afirmar que as fugas eram geradas pelo rígido disciplinamento pelo qual eram submetidos, mas, certamente, os castigos físicos, as punições, o isolamento, a falta de comunicação com o mundo exterior e, sobretudo, o enclausuramento motivavam as constantes fugas da instituição. A recuperação dos menores dependia do nível de rebeldia e de tolerância para com o tratamento dispensado ao interno.
Manter os menores imigrantes em colônias correcionais, como no caso do CCSAP, era uma forma de colocá-los sob a vigilância e o controle do Estado. Indiscutivelmente, as colônias correcionais agrícolas, como o Santo Antônio do Prata no Pará, bem como as colônias militares, os internatos, institutos, asilos, reformatórios, educandários e os orfanatos, eram concebidos como um espaço ideal para o disciplinamento do corpo e mente dos internos. Além do mais, tais instituições eram idealizadas como espaços para instruir, abrigar e educar menores envolvidos com a criminalidade. Referente aos casos dos imigrantes estrangeiros, particularmente dos portugueses, não havia, por partes das autoridades públicas paraenses, uma adequada política de imigração que atendesse aos menores em estado de crime.