Introdução
O presente trabalho teórico-analítico explora e investiga as possibilidades da atual política pública de avaliação da educação superior brasileira, materializada por meio do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), como meio de resistência ao conservadorismo. Com intenção de abranger a totalidade do sistema educacional de nível superior no país, o SINAES articula três modalidades de avaliação: avaliação institucional, avaliação de cursos e avaliação de estudantes. Instituído pela Lei nº 10.861 (BRASIL, 2004), de 2004, sua concepção está ligada historicamente às diversas tentativas de elaboração de uma política de avaliação educacional capaz de compreender a complexidade da educação superior do país. No SINAES concentram-se atributos das perspectivas de avaliação como regulação, controle e supervisão e da avaliação como meio formativo-pedagógico.
A educação superior brasileira é multifacetada, porque caracteriza-se heterogênea e com destacada participação do setor privado como agente relevante (SAMPAIO, 2000). Com elevada quantidade de estudantes e instituições, torna-se imprescindível a atuação do Estado na avaliação desse segmento educacional. O poder público tende a observar criticamente a educação ofertada e, nesse sentido, as políticas públicas de avaliação têm importante significado. Mais que atribuir juízo de valor, políticas de avaliação educacional devem ser indutoras de qualidade, pois por meio delas é possível refletir e modificar práticas.
Enquanto elemento de reflexão e mudança, políticas de avaliação educacional tornam-se campo de lutas entre concepções conservadoras e progressistas de educação. Compreende-se o conservadorismo na área educativa como ideologia que defende conceito orgânico de sociedade, fundamentada em valores tradicionais e na permanência de hierarquias, bem como a continuidade do status quo social (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998; CORREIA, 2013). Assim, em concordância com Bertolin (2018), no contexto da educação superior brasileira apontam-se disputas entre a educação enquanto mercadoria, que reduz dimensões coletivistas, tecniciza processos formativos-pedagógicos e mantem estruturas sociais, e o entendimento de educação como bem público e social.
Devido à magnitude do setor privado com fins lucrativos na educação superior brasileira (SAMPAIO, 2000), políticas educacionais de avaliação têm se configurado como instrumentos reprodutores de processos tecnicistas em educação, constituindo-se meros elementos de controle. Contudo, assim como em Silva e Franco (2019), defende-se a pedagogia da avaliação, ou seja, que esta promova aspectos de (trans)formação social, mediante questionamento de tradições e hierarquias sociais, que muitas vezes carregam preconceitos e opressões dentro de si; é com esse sentido que a avaliação educacional torna-se política pública de resistência. Compreende-se esse ato de resistir como práxis que envolve a esperança de defender a educação para a equidade, a justiça social e o desenvolvimento coletivo, em detrimento de posições hegemônicas as quais têm coisificado a existência humana (FREIRE, 2007; TEODORO, 2003).
A partir do exposto, analisa-se a construção do SINAES, com foco em seus limites e possibilidades enquanto política educacional. De modo a sustentar a análise, o estudo vale-se de revisão bibliográfica e análise documental como procedimentos metodológicos. A bibliografia consultada e discutida relaciona-se às temáticas da educação superior, das políticas educacionais e da avaliação educacional. A análise documental foi realizada em documentos oficiais (Leis, Portarias, Decretos, entre outros) e institucionais. O diálogo entre as referências teóricas presentes na literatura e os documentos permitiu conduzir hermenêutica focada na dialeticidade entre contexto social e contradições envolvidas. Como forma de expor possíveis efeitos do SINAES, utiliza-se a abordagem teórica do ciclo de políticas (BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD, 1992) como recurso investigativo.
O texto inicia-se com breve panorama sobre a educação superior no Brasil. Em seguida apresenta o histórico da concepção do SINAES, discutindo sua implementação e modificações durante o processo. Por fim, explora e analisa possíveis efeitos da atual política de avaliação ao público envolvido (alunos, professores, gestores, entre outros), demonstrando suas possibilidades enquanto meio de resistência ao conservadorismo.
Educação superior no Brasil: situando o SINAES
A educação superior no Brasil tem características singulares. Além de diversos tipos de organização acadêmica (Institutos, Faculdades, Centros Universitários e Universidades), o sistema concentra relevante presença do setor privado como principal provedor educacional. Embora existam Instituições de Educação Superior (IES) públicas, a dimensão e relevância do setor privado se dá não somente pelo fator quantitativo, mas pelo caráter histórico de constituição da educação superior no país. Segundo Cunha (1980) e Sampaio (2000), as primeiras instituições de nível superior surgiram no Brasil a partir do século XIX, com a chegada da família real portuguesa, e estavam diretamente ligadas à profissionalização das camadas mais abastadas da população. Ademais, as primeiras instituições, mesmo mantidas pelo Estado, cobravam taxas de seus estudantes.
A construção do sistema de educação superior brasileiro pautou-se pela forte presença do setor privado. Em diferentes momentos e por contextos variados, a iniciativa privada foi consolidando-se como majoritária nesse nível educacional (SAMPAIO, 2000). Dados do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais (INEP) evidenciam essa magnitude. No Brasil, das 2.448 instituições, mais de 88% (2.152) pertencem ao setor privado (INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS EDUCACIONAIS, 2018). Como no quantitativo de instituições, o segmento também é o que concentra o maior número de matrículas, pois das 8.286.663 matrículas, cerca de 75% (6.058.623) estão na iniciativa privada (INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS EDUCACIONAIS, 2018). Outrossim, o setor privado recebe o maior número de ingressantes: dos 3.226.249 alunos que ingressaram na Educação Superior em 2017, mais de 81% (2.636.663) iniciaram estudos em instituições privadas (INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS EDUCACIONAIS, 2018).
Em 1997, o Decreto nº 2.306 regulamentou de forma clara, em seu artigo 4º, “as instituições de ensino superior, com finalidade lucrativa” (BRASIL, 1997) e com isso o cenário da educação superior brasileira sofreu alterações. O setor privado passou a conceber lógica rentista, fundamentada na prestação de serviços educacionais com o objetivo lucrativo. Ao considerar a perspectiva do capital financeiro e a quantidade de instituições, o setor passou a funcionar pela lógica da concorrência (MONFREDINI, 2013). Essas mudanças têm trazido implicações diretas e indiretas na formação oferecida, no trabalho docente, entre outros. Para grande parte das IES privadas, como forma de garantir sua existência nesse cenário, a quantidade de alunos tornou-se tão ou mais importante que a qualidade e as condições de ensino ofertadas.
A busca pela sobrevivência institucional mediante a concorrência ocorre, segundo Oliveira (2009, p. 740), em razão da “transformação da educação em objeto de interesse do grande capital, ocasionando uma crescente comercialização do setor”. Composta por um setor privado preponderante e um setor público minoritário, a educação superior no Brasil pode ser classificada como “quase mercado”, pois, não se trata de uma gestão “estatal-centralizada-burocrática” e nem de um “mercado-concorrencial-perfeito” (SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p. 876).
O ambiente de quase mercado consolida-se como cenário contraditório. A reflexão realizada por Chauí (1999) sugere que vivemos o período no qual as IES deixam de ser instituições sociais, orientadas pelo caráter ético educacional, para tornarem-se organizações prestadoras de serviço, com o objetivo de alcançar lucros, resultados, boa performance, sendo estes medidos pela quantidade de egressos e sua iniciação no mercado trabalho. Assim, nesse contexto, o Estado necessita agir como órgão mediador, a fim de impedir a produção, reprodução ou ampliação de possíveis desigualdades e problemas.
O panorama atual indica a dimensão do setor privado para a educação superior brasileira. Ainda que haja IES públicas, é evidente o contexto privatista, portanto, a avaliação educacional surge com o intuito de atribuir valor e de garantir a qualidade da educação ofertada. No atual quase mercado, uma política pública de avaliação educacional torna-se mais que relevante, imprescindível. Com o contingente tão grande de estudantes e instituições, o Estado busca avaliar o funcionamento do sistema, mas afinal, como ele está fazendo isso? E sobre quais fundamentos? Para compreender essas questões é necessário observar o processo histórico de construção das políticas de avaliação anteriores ao atual SINAES, pois assim será possível apreender princípios que nortearam a criação do Sistema e suas possibilidades enquanto política pública.
SINAES: entre antecedentes, elaboração e conceitos
O SINAES, assim como qualquer política pública, é uma construção histórico-social, isto é, permeado por relações contraditórias, dialéticas, entre diversos interesses de variados segmentos da sociedade (AFONSO, 2009). De forma a percebê-lo desta maneira, cabe explorar aspectos fundamentais para sua concepção que foram construídos ao longo da trajetória das políticas de avaliação da educação superior no Brasil.
A avaliação sistemática de instituições e de cursos da educação superior brasileira foi iniciada em 1977 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (ROTHEN, 2018). Contudo, a primeira tentativa relevante de constituir uma política pública, enquanto sistema de avaliação da educação superior no Brasil, foi a criação do Programa de Avaliação da Reforma Universitária (PARU), em 1983. Ainda no regime militar, ocorrido entre os anos de 1964 e 1985, o PARU concebia características investigativas, ou seja, de levantamento de dados e indicadores. Seu caráter, portanto, consistia na “busca, indagação, investigação que fundamentaria ações futuras”, o que o diferenciava de documentos afirmativos e propositivos posteriores (BARREYRO; ROTHEN, 2008, p. 135). A avaliação no PARU foi entendida como forma de conhecimento sobre a realidade, como método capaz de refletir sobre práticas educativas. Com o objetivo de realizar uma pesquisa de avaliação sistêmica, o Programa recorreu à avaliação institucional, considerando a avaliação interna como procedimento privilegiado. Ao considerar essa modalidade avaliativa, o PARU foi o precursor de experiências de avaliação posteriores (BARREYRO; ROTHEN, 2008). O PARU não chegou a apresentar resultados efetivos em razão de sua desativação em 1984.
Com a redemocratização do país, em 1985 foi instituída a Comissão Nacional para Reformulação da Educação Superior (CNRES), com o objetivo de reformular o sistema de educação superior (BRASIL, 1985). O resultado do trabalho da Comissão é o relatório “Uma Nova Política para a Educação Superior Brasileira” (COMISSÃO NACIONAL PARA REFORMULAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, 1985). O trabalho da CNRES evidenciava a necessidade de nova política abrangente para a educação superior e não somente de uma lei com diretrizes. O relatório também indicava que a avaliação da educação superior fosse realizada incluindo as seguintes dimensões: avaliação de cursos, avaliação de alunos, avaliação de professores, avaliação didático-pedagógica do ensino, avaliação de servidores técnicos e administrativos e avaliação de carreiras (ZAINKO, 2008).
Sem colocar o resultado do trabalho da Comissão imediatamente em ação, em 1986 o Ministério de Educação (MEC) criou internamente o Grupo Executivo da Reforma da Educação Superior (GERES) (BRASIL, 1986). Constituído por cinco integrantes que exerciam funções no MEC, o GERES teve como função elaborar uma proposta de reforma universitária e contou como ponto de partida o relatório final da CNRES (BARREYRO; ROTHEN, 2008).
O relatório final do GERES foi discutido com os setores envolvidos, entretanto a lógica do documento não chegou a um consenso efetivo sobre a avaliação na educação superior. Barreyro e Rothen (2008, p. 145) destacam que:
A avaliação, na visão do GERES, teria a função primordial de controlar a qualidade do desempenho da Educação Superior, especialmente a pública. No caso do setor privado, o próprio mercado faria a regulação, pois esse setor depende do sucesso do seu produto para obter os recursos para a sua manutenção e expansão. Assim nessa lógica, o financiamento da Educação Superior cumpriria, para o setor público, o mesmo papel que o mercado tem em relação ao privado.
A partir das tentativas de experiências anteriores, uma nova política pública de avaliação do nível superior teve início. Em 1993, o MEC instituiu o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB) (BRASIL, 1993). A criação do PAIUB foi relevante para a posterior introdução do SINAES, pois seus objetivos estimulavam a participação das IES, fator que seria retomado com a criação da atual política. Segundo Zainko (2008, p. 829), o Programa buscava “articular, viabilizar e financiar a avaliação da Educação Superior, estimulando a adesão voluntária das instituições a esta prática avaliativa”.
Apesar de o documento do PAIUB defender a ideia de que toda avaliação seria institucional, fez-se a opção de iniciar o processo de avaliação pelo ensino de graduação. Escolha justificada pela repercussão que o ensino de graduação tem na sociedade e pelo fato de que a pós-graduação já vinha sendo avaliada por uma agência governamental, a CAPES. Essa opção iria ter uma influência não desejada pelos seus autores, a saber, na política de avaliação como regulação, implantada no governo Fernando Henrique Cardoso: a avaliação seria dos cursos de graduação e não da instituição. (BARREYRO; ROTHEN, 2008, p. 147-148).
Ainda que observasse as instituições, o PAIUB não apresentava avaliação abrangente de estudantes. De modo a garantir essa prática, em 1995, pela Lei nº 9.131 (BRASIL, 1995), foi instituído o Exame Nacional de Cursos (ENC), que ficou popularmente conhecido como “Provão”. O Censo da Educação Superior e a Avaliação das Condições de Ensino (ACE) também eram instrumentos de avaliação na época, embora de “menor importância e com escassa relação entre si”, de acordo com Dias Sobrinho (2010, p. 203). Conforme esse autor, os resultados desses instrumentos, especialmente do Provão, “serviam de base para os atos regulatórios de credenciamento e recredenciamento de instituições e reconhecimento de cursos” (DIAS SOBRINHO, 2010, p. 204).
A implantação do Provão se fez em contradições. Por ser um modelo imposto pelo MEC, sem consulta e sem discussão pública, recebeu críticas de boa parte da comunidade, sobretudo de especialistas em avaliação (DIAS SOBRINHO, 2010). Mesmo garantindo sua existência por alguns anos, o Provão tinha deficiências. O Exame foi apresentado como modelo objetivo e seus resultados podiam ser divulgados de maneira quase que inquestionável, entretanto, estava longe de se consolidar como sistema de avaliação que contemplasse a complexidade educacional do nível superior do país.
Comparado com outras nações, o processo histórico da avaliação no âmbito da educação superior no Brasil é recente (ZAINKO, 2008) e, como mencionado, as primeiras tentativas de elaborar um sistema de avaliação desse segmento surgiram nos primeiros anos da década de 1980. Todos esses movimentos políticos tiveram relevância para a constituição do SINAES. O processo de elaboração do atual Sistema de Avaliação teve início em 2003, quando o MEC definiu, por intermédio da Secretaria de Educação Superior (SESu), a Comissão Especial de Avaliação (CEA) (BRASIL, 2003). A Comissão entregou no mesmo ano o relatório “Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior SINAES: bases para uma nova proposta da Educação Superior” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003).
Em sua formulação, o SINAES fundamentava-se na articulação entre duas concepções sociológicas e epistemológicas de avaliação: a regulação e a avaliação educativa. Em seu documento de proposição, também está estabelecida a educação como “direito social e dever do Estado” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003, p. 63). A proposta da Comissão entendia que “o Estado supervisiona e regula a educação superior para efeitos de planejamento e garantia de qualidade do sistema” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003, p. 64). Entretanto, no caso do SINAES, essa prática estaria integrada em movimento dialógico com a avaliação educativa, esta que promove consciência institucional ao incluir o compromisso com a qualidade da atividade pedagógica e que questiona “os significados da formação e dos conhecimentos produzidos em relação ao desenvolvimento do país, ao avanço da ciência e a participação dos indivíduos na vida social” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003, p. 64). Assim, a atual política de avaliação surgiu como forma de superar a concepção e a prática da “regulação como mera função burocrática e legalista” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003, p. 64). Neste sentido, a regulação não se esgota em si, pois articulada à avaliação educativa torna-se também uma prática “formativa e construtiva” (COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO, 2003, p. 64).
Nota-se que o SINAES passou por um longo processo político de diálogo até sua constituição. Segundo Saravia (2006), o processo de elaboração de uma política pública pode ser visto de modo sequencial, iniciando-se com a estipulação de uma agenda até a avaliação dos efeitos da política em si. Articulando esse apontamento com a elaboração e implementação da atual política de avaliação, é possível relacionar a coerência entre a criação de um sistema como o SINAES e a necessidade do Estado em avaliar a educação superior brasileira de modo a contemplar sua complexidade. Convergindo com Saravia (2006), Kingdon (2006, p. 221) afirma que:
[...] podemos considerar que a formulação de políticas públicas é um conjunto de processos, incluindo pelo menos: o estabelecimento de uma agenda; a especificação das alternativas a partir das quais as escolhas são feitas; uma escolha final entre essas alternativas específicas e a implementação dessa decisão.
Contudo, Subirats (2006) e Villanueva (2006) consideram que o principal problema na elaboração de políticas públicas encontra-se na definição do problema gerador de políticas. No caso de políticas de avaliação educacional, estas devem considerar as peculiaridades dos sistemas nos quais estão inseridas. A missão do SINAES, ou de qualquer outra política como tal, é garantir a qualidade da educação ofertada, sem perder a perspectiva do cenário de dualismos da educação superior no Brasil, isto é, ensino público e ensino privado, concorrência e cooperação, retorno social e lucros.
Em contexto tão complexo, somente um sistema articulado de concepções e práticas de avaliação poderia sustentar-se. Com vistas aos pontos positivos e aos negativos das políticas precedentes, o SINAES tem em sua criação uma variada gama de recursos que possibilitam ao Estado regular e aprimorar todo o sistema nacional de educação superior. Todavia, como outras políticas educacionais, o Sistema passou por mudanças durante sua implementação e tem recebido reformulações periodicamente.
Implementação, modificações e a hipertrofia do ENADE
Como forma de consolidar uma política pública de avaliação educacional sustentável e perene, em 2004, o governo reestruturou a avaliação na educação superior assumindo aspectos das políticas anteriores e incorporando novos. Baseada no documento elaborado pela CEA, a Lei nº 10.861 (BRASIL, 2004) instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Mais que um instrumento ou programa, o SINAES surgiu como um sistema ao articular três modalidades de avaliação: “(1) avaliação institucional (avaliação externa e autoavaliação); (2) avaliação de cursos e (3) avaliação do desempenho dos alunos pelo ENADE (Exame Nacional de Desempenho do Estudante)” (BRASIL, 2004). Com exceção do Exame Nacional de Desempenho do Estudante (ENADE), as duas outras modalidades de avaliação são realizadas por meio de visitas de avaliadores ligados ao MEC (BRASIL, 2004).
Segundo Dias Sobrinho (2010, p. 208), o SINAES “se realiza como uma ideia básica e integradora que se materializa em determinadas práticas articuladas entre si, com a finalidade de produzir efeitos e alcançar objetivos coerentes e consistentes”. Com base em resultados amplos de avaliação e não somente em um único instrumento ou teste, a regulação promovida pelo Sistema tornou-se mais confiável.
O SINAES também estabeleceu que toda IES deveria constituir sua Comissão Própria de Avaliação (CPA), com as atribuições de “condução dos processos de avaliação internos da instituição, de sistematização e de prestação das informações solicitadas pelo INEP” (BRASIL, 2004). A partir das CPAs, o Sistema reconhece e respeita a “identidade, a missão e a história das IES”, conforme destacado por Polidori (2009, p. 445). Diferente de políticas anteriores, a existência das CPAs tende a garantir as possibilidades da avaliação educativa, isto porque sua atuação propicia a emergência e a ampliação da cultura de avaliação no interior das IES.
O SINAES, enquanto política pública, tenta sustentar o conceito mais complexo de educação superior, cuja essência não é somente a profissionalização, mas a formação integral de cidadãos-profissionais. A referência é a sociedade e as complexidades da humanidade, não apenas o mercado. Portanto, prevalece o princípio de educação como bem e direito humano e social, dever do Estado, ligada ao projeto de país, sendo ela avaliada, independentemente se oferecida pelo próprio Estado ou pela iniciativa privada (DIAS SOBRINHO, 2010; SANTOS, 2011).
Contudo, algumas mudanças no SINAES começaram a acontecer logo após seu lançamento. O Decreto nº 5.773, de 2006 (BRASIL, 2006), desequilibrou as concepções que constavam na elaboração original do Sistema. Em seu primeiro artigo, o decreto estabeleceu que a regulação seria realizada por “atos administrativos autorizativos do funcionamento de instituições de Educação Superior e de cursos de graduação e sequenciais” (BRASIL, 2006) e que as avaliações da atual política constituiriam “referencial básico para os processos de regulação e supervisão da Educação Superior, a fim de promover a melhoria de sua qualidade” (BRASIL, 2006). Se em sua criação o SINAES tinha objetivos educativos de aperfeiçoamento das IES, e equilibrava a regulação e a supervisão com a avaliação educativa, com o estipulado no decreto, passou a ter seus resultados apenas como instrumentos autorizativos e de acreditação.
Em sequência ao decreto citado, as Portarias nº 40, de 2007, republicada em 2010 (BRASIL, 2010), nº 4, de 2008 (BRASIL, 2008a), e nº 12, de 2008 (BRASIL, 2008b), que respectivamente instituíram o e-MEC (sistema de gerenciamento de dados entre as IES e o MEC), o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o Índice Geral de Cursos (IGC), consolidaram o SINAES como política pública com tendências à classificação em redução de suas capacidades de formação.
Os novos índices, IGC e CPC, sendo um construído a partir do outro, e ambos estipulados predominantemente com resultados do ENADE, aumentaram a relevância do Exame e fortaleceram sobremaneira a avaliação de estudantes como eixo fundamental da atual política de avaliação.
Com a divulgação anual do resultado do IGC, o índice tornou-se base para rankings e classificações. Sguissardi (2008, p. 858) alertou que o IGC, divulgado “com festa pela grande mídia” poucos dias após sua criação, foi visto por muitos especialistas que ajudaram a elaborar e implantar o SINAES como sua “mais completa negação”. O ENADE como elemento central do Sistema vai contra os princípios de avaliação educativa e global que nortearam a elaboração do SINAES e que se sustentavam no diálogo intersubjetivo entre as três modalidades de avaliação.
Barreyro (2008) destaca que a avaliação institucional, em conjunto com a autoavaliação, até então fundamentos do SINAES, parecem não ter tanta relevância no ranking das instituições divulgado pelo Ministério da Educação, apesar de continuarem vigentes. A avaliação da educação superior a partir de resultados do exame de estudantes, levou Leite (2008, p. 840) a afirmar que o atual ENADE relembra os tempos de Provão, constituindo-se como “ENADÃO”. Entre superlativos passados e presentes, o que se percebe são diversas práticas no interior das IES em busca de garantir bom desempenho de estudantes no Exame. Por tratar-se de um quase mercado, ter bons resultados nos rankings é uma forma mercadológica de apresentar a qualidade de seu produto e consolidar a sobrevivência institucional. Diversos estudos, tais como os de Alonso (2012), Molck (2013), Pimenta (2013), Valluis (2014) e Silva (2016), exploram e discutem variadas ações realizadas com o intuito de garantir boa performance no ENADE e nas outras avaliações do SINAES.
Atribuir valor e/ou definir qualidade a partir de um único indicador é possível, mas problemático. O ENADE hipertrofiado traz problemas com relação à heterogeneidade da educação superior do país, diferenças que se desdobram entre instituições, conteúdos de cursos, culturas, entre outros. Em sua análise, Cardoso (2015) afirma que as práticas atuais de avaliação do SINAES negligenciam as identidades institucionais e regionais em uma nação com dimensões continentais e de grande diversidade cultural. Entretanto, esses desafios à atual política estão em consonância com as dificuldades enfrentadas por qualquer avaliação. A práxis avaliativa envolve-se na complexa missão de definir o conceito de qualidade e, portanto, do que seria bom ou ruim.
Concorda-se que a atual política de avaliação tenha problemas e deve ser aperfeiçoada, mas, apesar de dificuldades, o SINAES sustenta-se como importante recurso avaliativo. Seus aspectos negativos não podem incapacitar o desejo social de aprimorá-lo e garantir o equilíbrio entre regulação burocrática e avaliação formativo-educativa, e entre as três modalidades avaliativas que o integram.
Silva e Melo (2000, p. 95) afirmam que a implementação é considerada como o “elo perdido” na elaboração de políticas públicas, pois é o momento no qual os diversos interesses se confrontam efetivamente e por vezes prejudicam a execução do projeto. Com o SINAES não foi diferente, sua proposta inicial concebia a coexistência entre regulação e avaliação educativa, mas as mudanças ocorridas em sua implementação desequilibraram esses aspectos e ampliaram as características de regulação e supervisão legalista-burocrática. Entretanto, mesmo com arranjos e rearranjos, em comparação com políticas anteriores, o atual sistema é o mais perene e sustenta caminhos, indícios, características e indutores educativos, como a presença e a articulação da cultura de avaliação por meio das CPAs.
Apesar de suas reformulações, o SINAES contempla potências formativas e, enquanto política indutora de qualidade, produz efeitos relevantes. Como resistência ao conservadorismo, concentra em seus processos avaliativos possibilidades de inquietações e transformações à realidade social contemporânea.
Efeitos e possibilidades de uma política pública educacional: a avaliação como meio de resistência
Dentre as diversas abordagens de análises de políticas públicas educacionais, destaca-se o ciclo de políticas proposto por Ball (1994) e Bowe, Ball e Gold (1992). O ciclo é uma abordagem pós-estruturalista e, de acordo com Mainardes (2006, p. 55), o processo político é entendido como “multifacetado e dialético, necessitando articular as perspectivas macro e micro”. Essa concepção hermenêutica propõe cinco contextos: contexto da influência, contexto da produção de texto, contexto da prática, contexto dos efeitos e resultados e contexto da estratégia política. Estes contextos estão relacionados, sem uma dimensão temporal, sequencial ou linear (BALL, 1994; MAINARDES, 2006). De forma sucinta, apresentam-se articulações teórico-analíticas fundamentadas nos cinco contextos do ciclo de políticas, em busca de compreender o SINAES.
No ciclo de políticas educacionais, o contexto de influência é quando “os grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado” (MAINARDES, 2006, p. 51). É nesse contexto que, geralmente, as políticas são iniciadas e fortemente debatidas, com influências dos vários setores interessados. Considerando o PARU como etapa inicial, a elaboração do atual Sistema passou por processo histórico de aproximadamente vinte anos. Para chegar ao que se conhece hoje como SINAES, foram realizadas discussões que envolveram diversos atores e entidades ligadas, diretamente ou não, à educação superior. Cabe ressaltar que o SINAES foi criado após a constituição da Comissão Especial de Avaliação da Educação Superior, esta que mobilizou esforços para um diálogo aberto em busca do desenvolvimento de um sistema abrangente e eficaz.
O contexto da produção de texto, dentro do ciclo de políticas, se constitui como a produção textual e o texto legal em si. Tendo uma relação “simbiótica, porém não evidente ou simples” com o contexto de influência (MAINARDES, 2006, p. 52). Os textos políticos estão articulados com a linguagem do interesse público, portanto, “representam” a política educacional (MAINARDES, 2006, p. 52). Ainda que haja debate acerca dos textos legais referentes ao SINAES - em razão das ideias que permeavam sua concepção e sua atual forma -, eles estão diretamente relacionados à política em questão e representam claramente o que está proposto pelo governo.
No que se refere à prática, é onde a política está sujeita à interpretação e recriação dos diversos sujeitos políticos, é onde a política produz efeitos, consequências e implicações que podem representar mudanças e transformações substanciais e significativas na política original (MAINARDES, 2006). Como comentado, o SINAES envolveu e relaciona-se a uma série de atores, e todos eles contribuem na interpretação e recriação dessa política.
O contexto da prática está diretamente relacionado ao dos efeitos e resultados. Na abordagem do ciclo de políticas os resultados ou efeitos preocupam-se com questões de “justiça, igualdade e liberdade individual” (MAINARDES, 2006, p. 54). Nesse contexto, políticas deveriam ser analisadas em termos do seu impacto e das interações com o meio social. É possível classificar os efeitos, tais como de primeira e segunda ordem:
Os efeitos de primeira ordem referem-se a mudanças na prática ou na estrutura e são evidentes em lugares específicos ou no sistema como um todo. Os efeitos de segunda ordem referem-se ao impacto dessas mudanças nos padrões de acesso social, oportunidade e justiça social. (MAINARDES, 2006, p. 55).
Como exemplo, destaca-se a relevância do ENADE. O SINAES requer atenção por parte de instituições de ensino, de gestores e de alunos. Portanto, a partir das exigências no Exame, podem ocorrer alterações nos currículos de cursos. Mudanças desse tipo indicam, em convergência com o ciclo de políticas, efeitos de primeira e segunda ordem.
As reformulações as quais o SINAES tem sofrido dialogam com o contexto da estratégia política. No ciclo de políticas, esse contexto envolve a identificação de um conjunto de atividades que seriam necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada (MAINARDES, 2006). As lutas sobre os objetivos do SINAES ou como este deve funcionar - seja como política de mera regulação ou como sistema regulatório articulado à avaliação educativa - indicam tensões levantadas por esse contexto.
Por ser política pública de grandes dimensões, o SINAES gera variadas consequências. Professores, coordenadores de curso, alunos, instituições e outros sujeitos estão imbricados nos processos avaliativos do Sistema. Dentre as possíveis contribuições dessa política educacional, destaca-se sua premissa como avaliação educativa, indutora de novas práticas.
Analisa-se o SINAES com a concepção de avaliação enquanto práxis social, conforme outros autores (AFONSO, 1999, 2009; FRANCO, 1990; LÜDKE, 1987, 1989; PERRENOUD, 1989), portanto considera-se o juízo de valor em suas variadas e complexas relações sociais como fundamento epistêmico do processo avaliativo (DIAS SOBRINHO, 2002; SILVA; FRANCO, 2019).
A ideia de avaliação educativa presente no SINAES é recurso para transformação social. Em sua concepção subjaz a investigação e a valoração de um dado fenômeno, situação ou objeto educacional, na busca de compreendê-lo e desenvolvê-lo a partir de um conjunto de critérios construídos a priori, com reformulações ao longo do processo.
O conceito e as práticas de avaliação educativa estão permeados por pedagogia crítico- formativa. Políticas de avaliação baseadas nessa concepção superam seu caráter meramente legal-burocrático e tornam-se potentes recursos pedagógicos (AFONSO, 2009; DIAS SOBRINHO 2008). Essa perspectiva epistemológica e sociológica aproxima-se do paradigma de avaliação emancipatória, o qual, conforme Saul (2010), caracteriza-se como processo de descrição, análise e crítica da realidade, visando transformá-la. Destina-se, portanto, à avaliação de programas educacionais ou sociais e está situado numa vertente político-pedagógica cujo interesse principal é emancipador, libertador e provocador de crítica, de modo a libertar os sujeitos envolvidos de condicionamentos deterministas.
Como política que contempla a avaliação educativa, nota-se o SINAES como meio de resistência ao conservadorismo moderno. Essa vertente política define-se como conservação de um presente eterno, pois, segundo Souza (2015, p. 7), de um lado blinda o presente em relação às utopias revolucionárias e:
[...] De outro, projetando-se contrários às ‘utopias’ reacionárias, aferradas que são às formas do passado. Com essa blindagem ‘presentista’ (nem passado - reacionário, nem futuro - revolucionário, somente o presente importa), o conservadorismo moderno acredita estar se movendo em bases ‘progressistas’, uma vez que rejeita, equalizando, tanto as ‘utopias’ revolucionárias, quanto reacionárias, ambas concebidas, pejorativamente, como idealizações potencialmente ‘totalitárias’.
Contudo, ao rejeitar o passado e o futuro, o conservadorismo tende a conviver - aliás com destacada passividade - com desigualdades sociais reais. Para Löwy (2015), o conservadorismo em atual avanço no Brasil também traz o culto à violência e a intolerância às diferenças em seu interior, geradores de ódio e opressão. O pensamento conservador tende a manter relações hierarquizadas, representadas por opressores e oprimidos, frutos, muitas vezes, de condutas racistas, homofóbicas, xenofóbicas e misóginas. Essas relações são enfrentadas pelo paradigma emancipatório-educativo de avaliação, pois este defende o devir humano e a possibilidade de desenvolvimento e aperfeiçoamento da vida social como forma de construir sociedades equânimes e pacíficas.
As três modalidades de avaliação do SINAES, em especial os instrumentos e processos avaliativos de instituições e cursos, como modo de enfrentamento ao conservadorismo concentram formas indutivas de alteração da qualidade de práticas pedagógicas. A partir da educação, como já afirmou Freire (1987, 2016), é possível educar pessoas e estas transformarem a realidade social.
Ao solicitar a inclusão de conteúdos sobre questões étnico-raciais, ambientais, garantia de direitos humanos e de diversidade social; ao buscar garantir infraestrutura acadêmica e práticas de extensão com responsabilidade social, os instrumentos de avaliação do SINAES (INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS EDUCACIONAIS, 2017a, 2017b) propiciam a reflexão e a construção de novas condutas éticas-políticas. São com essas possibilidades que a atual política de avaliação da educação superior constitui-se como resistência ao conservadorismo. Ainda que possam ser pequenas mudanças, exigências ou normas, mesmo com características formais-burocráticas, as intenções contidas nesses elementos avaliativos fomentam o debate e a inserção de conteúdos e práticas pedagógicas outrora inexistentes ou ignorados. Talvez sejam pequenos indícios, mas simbolizam relevantes passos na busca pela equidade, consistindo como elementos no esforço para a construção de justiça social no país.
Considerações finais
Políticas públicas educacionais geram debates constantes, definições e redefinições motivados pelas variações do contexto político no qual estão inseridas. Os caminhos futuros do SINAES podem ser de ampliação de suas características educativas ou de sua total transformação em mero instrumento burocrático. Não há como prever o que ocorrerá. Todavia, o Sistema opera atualmente como gangorra entre as duas concepções presentes em seu documento de proposição, com momentos pendendo para a regulação-supervisão e outros para a avaliação enquanto meio pedagógico-formativo.
Ainda que o SINAES tenha deficiências e limitações, este estudo encerra-se reiterando a complexa missão da atual política pública de avaliação, isto é, considerar e observar a diversidade do sistema de educação superior do Brasil, os desafios que nele constam e aprimorá-lo. Somente o SINAES não é a solução para todas as dificuldades e nem mesmo é o grande problema. É esta lógica que propicia sua caracterização como recurso de resistência.
O avançar do conservadorismo não é e nem será enfrentado com ações simples, pode e deve ser rebatido com atividades políticas em diversos campos. A avaliação educacional é um deles. As lutas no interior do SINAES, ou melhor, os rearranjos em suas concepções e instrumentos avaliativos são fundamentais para a constituição, o estímulo e o reforço de movimentos de confronto às posições conservadoras.
Acredita-se que, atualmente, o SINAES já apresenta e induz práticas que pouco a pouco auxiliam na resistência ao pensamento conservador, mas isto pode ser aperfeiçoado e ampliado. Para tanto é necessário repensar suas práticas burocráticas e fomentar parte daquilo que consiste a atual política de avaliação da educação superior, ou seja, um sistema de avaliação educativa, com foco na melhoria de cursos e de instituições, mediante a cultura e processos de autoavaliação realizados pelo público envolvido.