Introdução
No que diz respeito ao racismo contra os povos indígenas, não raro, este tem sido negado ou interpretado pela via do preconceito e/ou da discriminação, como se estes termos operassem como um tipo de eufemismo para as situações racistas a que estes povos vêm sendo submetidos historicamente. A existência do racismo tem sido denunciada pelos próprios indígenas e por pesquisadores da temática. De acordo com Peixoto (2017, p. 28-29): “No cont exto brasileiro, o racismo contra indígenas é explícito, mas raramen te é identificado como tal. [...] Quando passou a ser reconhecido, o racismo foi relacionado à violência que atinge a população afrodescendente e não os indígenas”. Conforme considerações dessa autora, isto se deve ao fato de os povos indígenas “não serem compreendidos na categoria, socialmente construída, raça”1 (PEIXOTO, 2017, p. 54). Em sua pesquisa com estudantes universitários na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a pesquisadora constatou que:
Os indígenas, especialmente a partir de suas inserções na universidade, começam a nomear e a denunciar o racismo historicamente arraigado na sociedade. Denunciam o racis mo institucional que os deixou a margem das políticas públicas de igualdade racial e denunciam as violências que sofrem cotidianament e. Os indígenas nomeiam para denunciar e assim contribuem para uma sociedade mais justa. (PEIXOTO, 2017, p. 54).
Milanez e outros (2019, p. 2161) analisam o racismo contra os povos indígenas como “um dos aspectos mais invisibilizados do racismo no Brasil”. Esses autores discutem o vazio na literatura brasileira a respeito deste tipo de racismo e apresentam depoimentos e reflexões de caráter prático e teórico sobre racismo por parte de autores indígenas, a fim de contribuir para o reconhecimento do racismo como um sistema estruturado contra as populações indígenas.
Segundo considerações de Bonin (2016, p. 10), o “racismo diz respeito a um processo de produção de hierarquias que tem por base o humano e a partir do qual são estabelecidas categorias de superioridade e inferioridade”. Adotando a perspectiva de Bonin (2015),
Brighenti (2015) situa o racismo contra indígenas a partir da violência (física e simbólica) praticada contra estes povos por ações e omissões do Estado num contexto de colonialidade do poder. Para esse autor, “a violência simbólica também resulta em violência física, porque ao depreciar o outro, este se torna vulnerável a ações de terceiros, que justificam suas práticas pelo poder exercido sobre a suposta inferioridade do outro” (BRIGHENTI, 2015, p. 106).
Diante do exposto, racismo contra indígenas existe, sim! Sob esta perspectiva, o preconceito, a discriminação, a violência, os maus tratos, a omissão ou a restrição de direitos são entendidos como manifestações do racismo.
A democracia é afetada quando os direitos fundamentais dos indivíduos ou grupos são afetados, pois o exercício da democracia pressupõe a criação, a manutenção e a ampliação de direitos fundamentais relacionados à vida, à subsistência, à participação política e à organização social. Gosto de pensar, parafraseando Miguel Arroyo (2008, p. 71) que os povos indígenas são “sujeitos de direitos”. Têm direitos a: “terra, justiça, igualdade [de oportunidades], liberdade, trabalho, dignidade, saúde, educação...”. Têm, sobretudo, direito de serem eles mesmos. Direito à diferença. Direito à diversidade de histórias, línguas, epistemologias e culturas. Quantos forem os mais de trezentos (diferentes) povos que habitam este solo, tantas são as possibilidades de afirmação de suas diferenças históricas, socioculturais, linguísticas (entre outras), e são, também, tantas as possibilidades de extensão/expansão de seus direitos.
A história tem revelado que, à época da conquista europeia, os povos indígenas somavam milhões e, atualmente, no Brasil, de acordo com o último censo (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010), são 896.917 pessoas. Sendo que 572.083 vivem em áreas rurais/reservas/terras indígenas e 324.834 habitam áreas urbanas - mais de um terço (1/3) da população. São mais de 300 grupos étnicos ou povos diferentes, falando 274 línguas, e há, ainda, os povos isolados, que evitam o contato com a sociedade. Só no estado de Mato Grosso do Sul, há mais de oitenta mil indígenas,2 presentes em 29 municípios, representados por 8 etnias: Guarani, Kaiowá, Terena, Kadwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató (SECRETARIA DE ESTADO DE CIDADANIA E CULTURA DO MATO GROSSO DO SUL, 2019). Chamorro e Combès (2015, p. 20) ainda identificam os Chamacoco, Ayoreo e Camba como povos indígenas que vivem no estado, mas que são, geralmente, omitidos nos dados oficiais, somando 11 grupos étnicos indígenas no Mato Grosso do Sul. A Reserva Indígena de Dourados, em suas duas aldeias Bororó e Jaguapiru, possui em torno de 17.000 indígenas de 3 grupos étnicos: Kaiowá, Guarani e Terena (TROQUEZ, 2019).
Estes povos são sujeitos de direitos. Eles conquistaram a garantia do direito à diferença na Constituição Federal de 1988, após muitas lutas e movimentos sociais. Na constituição de 1988, ficaram resguardados, também, os territórios de ocupação tradicional dos povos indígenas, o direito à saúde e à educação diferenciada. O artigo 231 da Constituição assegura direitos humanos, culturais, sociais e políticos aos indígenas (BONIN, 2016). Desta forma: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988).
Os povos indígenas têm direito a atendimento diferenciado em saúde e à educação diferenciada, com reconhecimento de suas pedagogias e processos próprios de aprendizagem (BRASIL, 1988). Este dispositivo da Constituição foi normatizado em outros documentos legais a fim de criar a Escola Indígena enquanto categoria específica de escola localizada em áreas indígenas com participação das comunidades indígenas, com professores e gestores indígenas, materiais didáticos específicos e diferenciados (BRASIL, 2012). As garantias relativas à saúde e à educação estão relacionadas à questão territorial, pois é no território que as comunidades realizam seu modo de ser e/ou de existir. Desta forma, a questão da terra está sempre vinculada às outras pautas quando o assunto é a temática indígena (OLIVEIRA, 1995).
Vivenciamos, na atualidade, no Brasil, uma série de violências contra os territórios dos povos indígenas, frequentemente invadidos por madeireiros e garimpeiros ilegais que causam danos ao meio ambiente, poluem suas águas, desmatam as florestas e, em tempos de Covid-19, levaram a contaminação para suas famílias. Conflitos envolvendo ruralistas e indígenas acabam em agressões físicas e até mortes, e muitas vezes o Estado se omite. Os conflitos, violências e omissões revelam/ evidenciam a face perversa do racismo contra os povos indígenas no Brasil (BONIN, 2016).
Neste trabalho, discuto o racismo contra indígenas no Brasil num contexto de colonialidade. Faço uso de pesquisa bibliográfica e de técnicas de análise documental. Para tal, utilizo os seguintes documentos e/ou fontes: Nota de repúdio contra o racismo e a censura à coordenadora da COIAB Nara Baré (APIB, 2020); Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988); Projeto de Lei nº 490 (BRASIL, 2007); Recurso Extraordinário 1.017.365/SC (BRASIL, 2020); Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo Coronavírus (Covid-19) no Brasil, do Instituto Socioambiental (2021), entre outros. Trato das origens históricas do racismo contra indígenas, com recuo à época colonial; apresento suas manifestações atuais, através de exemplos contemporâneos; e discuto maneiras pelas quais a educação pode enfrentá-lo. Situo as origens do racismo contra indígenas no início do processo de colonização europeia; enfatizo que este manifesta-se através de ações, omissões e/ou restrições de direitos; e discuto o potencial da educação no sentido de evidenciar as formas do racismo e de combatê-las, na busca por descolonizar currículos através de rupturas epistemológicas, da construção de novos paradigmas, da realização de uma educação intercultural e de práticas pedagógicas diferenciadoras.
As questões que nortearam o trabalho foram: quais as origens do racismo contra os povos indígenas no Brasil? Como ele se manifesta? Como a educação pode enfrentá-lo?
No sentido de atender a essas questões, organizei o texto da seguinte forma: primeiramente falo das origens históricas do racismo contra indígenas; a seguir, apresento algumas de suas manifestações; depois, discuto maneiras pelas quais a educação pode dar sua contribuição no enfrentamento do problema; e, por último, trago as considerações finais.
O trabalho procurou atentar aos preceitos éticos em pesquisas sobre seres humanos, pois não se trata de pesquisa com seres humanos, mas refere-se a grupos humanos específicos, no caso, os povos indígenas. Tomou o cuidado de evitar conceitos e/ou generalizações que prejudiquem ou causem danos à imagem da população-alvo e de outros grupos envolvidos.
Origens do racismo contra indígenas
O racismo não é um fenômeno recente. Suas raízes remontam a períodos bastante remotos. No advento da conquista europeia, as centenas de povos originários das Américas foram denominados, genericamente, “índios” pelos colonizadores. Este termo trouxe, desde o início, as marcas do preconceito, da discriminação, do ocultamento das diferenças. E as ações e omissões que se seguiram no processo de colonização revelaram práticas etnocêntricas, marcadas pela diferença colonial, a partir da qual os europeus trataram os povos originários como inferiores e selvagens. O europeu, diante do outro, buscou mostrar sua superioridade cultural, religiosa e racial. Na concepção cristã medieval houve uma restrição da humanidade, da virtude e da racionalidade aos cristãos europeus (FERREIRA NETO, 1997; MELIÁ, 1990; MIGNOLO, 2013; TROQUEZ; NASCIMENTO, 2020).
O racismo constituiu-se a partir da falsa ideia de que haveria diferenças biológicas entre os seres humanos e que estas diferenças marcariam determinadas “raças” como superiores e outras como inferiores. Ideia construída dentro de um projeto de colonialismo e colonialidade que marcou profundamente o encontro/ confronto com europeus e centenas de povos indígenas.
Mignolo (2013) relacionou o processo de classificação, inferiorização/subalternização/ rebaixamento e/ou hierarquização das populações originárias de colonialidade (do poder, do ser e do saber). Desta forma, a classificação e a hierarquização tornaram-se “assunto epistêmico na construção da colonialidade do poder” (MIGNOLO, 2013, p. 24). A partir deste projeto, as diferenças culturais foram transformadas em “valores e hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, pelo outro” (MIGNOLO, 2013, p. 24). Ainda segundo esse autor: “A diferença colonial é uma estratégia fundamental, antes e agora, para rebaixar populações e regiões do mundo.” (MIGNOLO, 2013, p. 24). Com o processo de colonização e da instituição da diferença colonial, os povos indígenas passaram a ser classificados, hierarquizados e subalternizados. E, pelo olhar europeu, foram vistos como: inferiores, selvagens, primitivos, negros da terra que, civilizados, poderiam ser aproveitados para a mão de obra (TROQUEZ; NASCIMENTO, 2020).
Ferreira Neto (1997) discute a questão da alteridade e do etnocentrismo, no Ocidente, que marcou por muito tempo a historiografia ocidental e, particularmente, a brasileira. Há que destacarmos que as iconografias (pinturas, desenhos), cartas e/ou relatos de viajantes produzidos nos tempos da Colônia, em sua maioria, evidenciaram um quadro exótico dos povos originários das Américas, destacando características pontuais e descontextualizadas para apresentá-los como primitivos, selvagens e/ou canibais.
Mancini e Troquez (2009) denunciam a construção de estereótipos e preconceitos contra os povos originários na escrita da história tradicional brasileira. Nesta direção, a produção do projeto historiográfico e identitário da nação foi marcado por ideias de eugenia, através das quais os indígenas foram representados como “hostis”, “atrasados”, “preguiçosos” e vistos como um empecilho ao desenvolvimento da civilização. A história oficial omitiu a violência da conquista e da colonização europeia, apagou os indígenas como agentes de suas histórias, mostrando-os como vítimas, postos no passado, vinculados a uma ideia de primitivismo. Por outro lado, a literatura brasileira, em boa medida romantizada, apresentou o indígena como “o bom selvagem” através de imagens estereotipadas relacionadas a uma ideia de folclore, posto num mundo mágico/imaginário e/ou fictício. Segundo Brighenti (2015, p. 109), “Associadas à área da ciência, a literatura e as artes também tiveram sua participação na criação do pensamento racista sobre os povos indígenas, contrapondo o ‘bom selvagem’ aos ‘temíveis botocudos canibais’.”
Essas imagens estereotipadas construídas pela historiografia tradicional e pela literatura foram, por muito tempo, o repertório sobre os povos indígenas a compor os livros e materiais didáticos, o que ajudou a reforçar os preconceitos e a discriminação. Por outro lado, a diversidade das histórias, epistemologias e/ou saberes/conhecimentos próprios e culturas dos povos originários também foram sistematicamente omitidos nos currículos e materiais escolares por meio de “um processo de hierarquização de conhecimentos, culturas e povos” (GOMES, 2012, p. 102).
Processo esse que ainda precisa ser rompido e superado e que se dá em um contexto tenso de choque entre paradigmas no qual algumas culturas e formas de conhecer o mundo se tornaram dominantes em detrimento de outras por meio de formas explícitas e simbólicas de força e violência. Tal processo resultou na hegemonia de um conhecimento em detrimento de outro e a instauração de um imaginário que vê de forma hierarquizada e inferior as culturas, povos e grupos étnico-raciais que estão fora do paradigma considerado civilizado e culto, a saber, o eixo do Ocidente, ou o ‘Norte’ colonial. (GOMES, 2012, p. 102).
Sob esse mesmo paradigma, os projetos de escolarização historicamente destinados aos indígenas procuraram sufocar as diferenças entre os povos através de práticas civilizatórias e integracionistas que objetivavam pacificá-los, colonizar suas mentes e corpos e integrá-los à sociedade não índia. Os processos educacionais impostos aos povos originários, por muito tempo, desconsideraram suas epistemologias, seus modos de ser e de viver, pois intencionavam moldar corpos e mentes com objetivos notadamente civilizatórios, cuja finalidade principal seria transformá-los em trabalhadores nacionais. Neste processo, a resistência indígena era interpretada como indolência ou preguiça.
A negação de suas histórias próprias, de suas práticas socioculturais, de sua ancestralidade, relacionadas à ocupação territorial e à realização de seus modos próprios de existência, tem sido usada para a desapropriação e invasão de suas terras. Contudo, os povos indígenas resistiram enquanto povos diferenciados e permanecem resistindo através de movimentos sociais, articulando-se localmente, nacionalmente e internacionalmente na busca por seus direitos, sobretudo pelo respeito à diferença.
O racismo foi produzido a partir de um projeto colonial de negação do outro e de negação das suas diferenças. As ideias errôneas, as generalizações, as simplificações, os estereótipos e os preconceitos atravessaram os séculos, veiculados em princípio artesanalmente pelos desenhos, pinturas e relatos de viajantes, e mais contemporaneamente pelos livros, pela mídia e por materiais escolares, dão sustento a manifestações racistas contra os povos indígenas.
Manifestações do racismo
O racismo manifesta-se através de atos violentos, do desprezo, de maus tratos, da veiculação de estereótipos e preconceitos, de manifestações de ódio, de ataques, restrições e/ou omissões de direitos relativos a território, a saúde e a alimentação, entre outros. De acordo com Peixoto (2017, p. 30), “o racismo pode ocorrer através de: (1) discriminação externalizada em atitudes explícitas; (2) do pre conceito, concebido no íntimo das pessoas, que naturaliza percepções e sutilezas; e (3) na segregação de grupos em determinados ambien tes”.
Casos de racismo velado ou explícito em atos violentos praticados contra os territórios e os corpos indígenas são cotidianos e denunciados frequentemente pela mídia, sobretudo por canais ligados ao Movimento indígena nas redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook). Os próprios indígenas postam notícias e textos diversos que denunciam violências e várias formas de racismo contras seus povos. Por exemplo, em 07 de agosto de 2020, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) publicou a “Nota de repúdio contra o racismo e a censura à coordenadora da COIAB Nara Baré”, no site oficial da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (2020). Segundo a matéria: “Governo Brasileiro veta participação da coordenadora da COIAB Nara Baré em reunião da OEA [Organização dos Estados Americanos] sobre povos indígenas e Covid-19, que teria acontecido em 09/08/2020.”
Em Dourados, Mato Grosso do Sul, cidade marcada pelo agronegócio e pela presença indígena em seu entorno, manifestações de racismo contra os povos indígenas são constantes. No ano de 2020, os primeiros casos de Covid-19 na cidade tiveram relação com os frigoríficos localizados no município nos quais trabalhavam alguns indígenas da Reserva Indígena de Dourados. Na ocasião, surgiram manifestações preconceituosos/racistas na mídia local contra os indígenas, como se eles/ elas fossem os culpados pela disseminação da doença na cidade.
Com as políticas de inclusão, muitos jovens indígenas têm ingressado nas universidades ou outras instituições de ensino superior, nos cursos de formação específica nas faculdades interculturais ou em cursos diversos. No último caso, os estudantes indígenas ficam mais expostos a situações de racismo, pois ficam mais isolados de seu grupo no interior das instituições. São muitas as denúncias de preconceito/ discriminação e/ou ocultação/invisibilização sofridos por estudantes indígenas nos cursos superiores, e neste contexto os professores têm papel fundamental, sobretudo no sentido de intervir em determinadas situações, como as descritas por uma estudante entrevistada por Silva (2018, p. 120):
Nunca me senti parte da universidade, eu estava ali porque eu precisava cumprir os quatro anos, mas nunca falei pra mim mesma: ‘Não, você faz parte desse grupo, você pertence’. Mas agora, no meu curso, na minha turma, até que eu consegui me identificar. Mas aí é que tá, outra coisa que eu ia falar pra você. Tinha o grupo dos índios, era nós quatro, que tipo assim, trabalho tudo era nós quatro, então estava ali! Aí até no dia da nossa colação de grau a nossa oradora identificou os grupos e tinha o grupo dos índios, estava lá na fala dela.
Concordo com as considerações desse autor em dizer que os docentes “poderiam intervir para que tal discriminação não ocorresse, visto que sua omissão simboliza ou representa uma forma de racismo institucional praticado por um agente da estrutura acadêmica” (SILVA, 2018, p. 120).
Historicamente, os povos indígenas foram atacados em seus direitos básicos, sobretudo no que diz respeito à questão territorial, pois seus territórios vêm sendo invadidos e espoliados desde que as primeiras caravelas europeias aqui chegaram. As políticas fundiárias do Império e da República, como a Lei de Terras de 1850 e os processos de criação de reservas indígenas, a partir de 1910, foram extremamente desfavoráveis aos povos indígenas, restringindo seus territórios de ocupação tradicional e obrigando-os a viver em espaços restritos, muitas vezes impróprios à reprodução de suas dinâmicas materiais e culturais/ simbólicas.
As terras ou territórios indígenas é onde os povos indígenas reproduzem sua existência, suas línguas, seus modos próprios de vida, suas tradições culturais, e é responsabilidade do Estado demarcar, proteger, fazer respeitar seus limites. O usufruto é exclusivo das comunidades indígenas. De acordo com a Constituição: “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.” (BRASIL, 1988). Contudo, temos assistido, cotidianamente, em nosso país a ataques aos territórios indígenas, seja por garimpeiros, madeireiros ou posseiros, entre outros invasores, e, o que é pior, o Estado parece estar inerte ou até mesmo participar de tudo isto. Bonin (2016, p. 2), ao tratar da ação/omissão do Estado no que diz respeito à luta pela terra dos povos indígenas no Brasil, pontua que: “Apesar do conjunto de garantias relativas à posse e usufruto exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, é precisamente a terra o estopim de conflitos e de muitas das violências praticadas contra eles, na atualidade.”
Acompanhamos, em 23 de junho de 2021, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no Congresso Brasileiro, a votação do Projeto de Lei nº 490 (BRASIL, 2007), o qual defende o Marco Temporal, segundo o qual somente devem ser consideradas terras indígenas para fins de demarcação aquelas que os povos indígenas conseguirem comprovar que estavam sob suas posses em 5 de outubro de 1988, ocasião da promulgação da Constituição Federal. Mesmo sob protesto de lideranças indígenas de praticamente todas as áreas indígenas do país e de diversos segmentos da sociedade favoráveis aos indígenas, por ferir direitos conquistados na Constituição Federal, o Projeto de Lei nº 490 (BRASIL, 2007) foi aprovado na Comissão, ficando para ser analisado em 30 de junho de 2021 no supremo Tribunal Federal (STF), através do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC (BRASIL, 2020),3 o que não aconteceu porque outras pautas tiveram a primazia e a votação no STF foi postergada. Tal projeto trata do “Marco Temporal”, segundo o qual somente poderão ser consideradas terras indígenas aquelas que já estavam em posse dos povos indígenas na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Tal projeto é totalmente desfavorável aos indígenas, pois ignora que muitos territórios indígenas estavam em litígio nesta data, desconsidera os povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros. E, por mais bizarro que isto possa parecer, os indígenas foram agredidos em Brasília quando faziam suas manifestações pacíficas contra a votação do Projeto de Lei nº 490 (BRASIL, 2007), em 2021.
Em 2021, durante manifestações dos povos indígenas em diversas rodovias pelo país, denominadas “Levante pela terra”, em defesa da garantia de seus territórios e pela votação favorável à sua causa, no que diz respeito à “tese do Marco Temporal”, presenciamos várias reações racistas por parte de segmentos contrários a suas demandas. Não raro, as reações vinham atravessadas por falas carregadas de estereótipos corriqueiros, segundo os quais os indígenas seriam “preguiçosos”, estariam “atrapalhando o desenvolvimento/progresso”, “querem terras demais”, “vivem às custas de benefícios sociais do governo”. Estas falas têm sido recorrentes e já foram desconstruídas por Oliveira (1995).
As falas generalizantes e racistas revelam, entre outras coisas, ignorância e/ou desconhecimento de causa, pois mostram que boa parte das pessoas que discriminam os povos indígenas desconhecem os motivos históricos reais de suas manifestações. Não conhecem as regras de distribuição dos benefícios sociais, tampouco conhecem a história de luta pela terra e os direitos conquistados pelos povos indígenas. É notável como alguns estereótipos são recorrentes e demostram a ignorância das pessoas que deles se utilizam. É importante mencionar os indígenas que foram explorados na sua mão de obra como “negros da terra”; os Terena que lutaram bravamente na Guerra do Paraguai e os que ajudaram a construir as linhas telegráficas no Sul de Mato Grosso; os Guarani e os Kaiowá que foram explorados nos barracões das fazendas e nos ervais da Companhia Mate Laranjeira e ainda sofreram com a violenta expropriação de seus territórios de ocupação tradicionais. A mão de obra pesada e barata, em muitos lugares, ainda é a indígena. Basta dar uma espiadinha nos Guarani e nos Kaiowá colhendo maças, hoje, no sul do país, ou recolhendo o lixo de nossas cidades, fazendo asfaltos, abrindo covas nos cemitérios... É importante também registrar os mestres, doutores e doutoras indígenas que estão estudando e ocupando espaço nas instituições universitárias, entre outras, de nosso país.
No que diz respeito ao direito à saúde, durante a Pandemia do coronavírus (2020-2021), muitas foram as denúncias contra o Estado sobre negligências e descasos com a saúde indígena. É notória a precariedade das condições de vida e subsistência a que estão submetidas algumas áreas indígenas, com escassez de água e alimentos. Nestes casos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem denunciado a deficiência da ação do Estado em favor da garantia dos direitos fundamentais dos indígenas nacional e internacionalmente. Em 03 de agosto de 2020, Eloy Terena, indígena, advogado da APIB, discursou no STF quando entrou com uma Ação por descumprimento de preceito fundamental (DPF, 2020). Segundo ele, há uma sistêmica omissão do governo federal em implementar medidas sanitárias que visem proteger a vida dos povos indígenas. Na ocasião, pediu também a retirada imediata dos madeireiros e garimpeiros das terras indígenas. Em resposta, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em votação unânime dos ministros, que o Governo Federal adotasse medidas de proteção aos povos indígenas durante a Pandemia do novo coronavírus. Entre outras coisas, a elaboração e cumprimento de um plano de enfrentamento da Covid-19. Contudo, deixaram fora da decisão a retirada dos invasores que estão em 7 terras indígenas, territórios invadidos ilegalmente.
Há invasores ilegais em terras indígenas que levam a doença para suas famílias. Em algumas áreas, no contexto da pandemia, não houve nenhum controle ou barreira sanitária promovida por parte dos órgãos do Estado. Os próprios indígenas e seus aliados que se mobilizaram e trataram de proteger suas áreas. Em diversas áreas do país, muitas lideranças indígenas jovens e idosas perderam a vida em decorrência da Covid 19. A situação ficou tão crítica que o governo brasileiro atual passou a ser considerado “genocida” por boa parte dos segmentos sensíveis aos povos indígenas. Podemos entender que esta omissão por parte do Estado e seu aparelhamento se configura como um tipo de racismo institucional. Como discutido por Brighenti (2015, p. 103):
Na contemporaneidade, a violência é fundamentalmente institucional, seja na ação do Estado brasileiro reduzindo direitos como a não demarcação dos territórios e a implantação de obras desenvolvimentistas que afetam esses povos, seja na omissão, imiscuindo-se e permitindo assassinatos e invasão das terras indígenas.
No sentido de canalizar e potencializar recursos materiais e simbólicos para suprir a ausência do Estado e ajudar os povos indígenas no enfrentamento da Pandemia nas áreas indígenas do cone sul do estado de Mato Grosso do Sul, um grupo de professores universitários, profissionais da saúde, profissionais liberais, indígenas e sensíveis à causa criaram uma grande rede de apoio em 2020. O grupo articula-se, principalmente, por WhatsApp para passar informações, fazer campanhas, discutir estratégias de enfrentamento da Pandemia e levantar recursos.
De acordo com informações obtidas na Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, do Instituto Socioambiental (2021):
O acompanhamento da evolução do novo coronavírus entre as populações indígenas representa um grande desafio. Embora os números oficiais informem sobre a dinâmica de notificação, eles não refletem necessariamente a extensão da pandemia. Ademais, a falta de desagregação dos dados dificulta o reconhecimento das regiões e dos povos mais afetados. Outro problema grave é a ausência de dados sobre indígenas que vivem fora de Terras Indígenas homologadas, o que inclui tanto citadinos como populações que aguardam a finalização do longo processo de demarcação de suas terras.
Nesse contexto, o ISA disponibiliza os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), os quais consideram outras fontes de dados no sentido de dimensionar melhor as consequências e a extensão da Pandemia entre os indígenas. De acordo informações disponibilizadas no site, em 15 de abril de 2022, conforme dados oficiais, os casos em terras indígenas somavam 65.065 e os óbitos em terras indígenas somam 904; e, conforme dados contabilizados pela APIB, os casos confirmados entre indígenas somavam 70.962; os indígenas mortos pela Covid-19 somavam 1.300 pessoas e 162 povos ou etnias foram afetados pela doença (dados atualizados em 15 de abril de 2022).4 “Os números são superiores aos notificados pela Sesai, que tem contabilizado somente casos em terras indígenas homologadas” (ISA, s.d.).
Com o advento das vacinas contra a Covid 19 e a priorização dos indígenas na fila, um fato irritante foi o anúncio inicial das autoridades sanitárias de que só iriam vacinar os indígenas que estivessem localizados em áreas demarcadas ou nas reservas indígenas. Como forma de controle e/ou estratégia de invisibilização/ apagamento, só eram “reconhecidos” aqueles que estavam “submetidos” ao regime da “tutela” do Estado nos moldes impostos: dentro das reservas.
Concomitante a tudo isto, cotidianamente, os indígenas são vítimas de chacotas, perjúrios e difamações, que são formas sutis de racismo. Diante de tudo isso, perguntamos: o que a educação pode fazer?
A educação no enfrentamento do racismo
No sentido de pensar o papel da educação no enfrentamento do racismo contra indígenas, na direção da efetivação da equidade racial e de uma sociedade de direitos, concordo com Garcia (2006, p. 15), ao afirmar que:
[...] temos sempre um sonho de escola, apesar de todas as críticas às utopias, nós temos. Quando educamos, sempre somos direcionados por uma utopia, um sonho a ser realizado. Não se trata de um sonho que nos satisfaz pelo sonho e nos paralisa. É um sonho, uma utopia que nos move para a ação [...]. Então... se nós sonhamos com uma sociedade mais democrática, mais justa, mais respeitosa, mais rica, mais plural, em que as diferenças possam se expressar... [...] a nossa militância está sobretudo na escola, está no esforço por fazer uma escola melhor.
Recai sobre a educação ou sobre seus profissionais algumas questões: o que pode a educação? Como a educação pode contribuir para combater o racismo contra indígenas? Gosto de pensar na Pedagogia da Autonomia de Freire (1996), que mais do que dar respostas prontas, ou indicar “um caminho”, nos apresenta desafios diante da “dimensão utópica da educação”. Que nos desafia a colocar-nos, como sujeitos éticos, sujeitos “da procura” e “da decisão”.
Para Freire (1996, p. 17), o enfrentamento dos tratamentos discriminatórios de “raça, classe e gênero” (leia-se racismo) é uma questão de “rigorosidade ética”, a qual deve ser “inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou adultos”.
O seu potencial transformador é sempre um imperativo que se impõe sobre a educação. Precisamos acreditar nela enquanto possibilidade e processo de formação de pessoas para construção de uma sociedade melhor, sem a ilusão de que ela é a salvadora do mundo.
Essa dimensão teleológica e dinâmica - o ‘para que’ ela serve - é a essência de ser da educação; a justificativa pela qual ela é associada à ideia de progresso. Nesse sentido, costumamos imaginar a educação sobrecarregada de possibilidades, a salvação laica, o meio para conseguir vencer o status quo que nos é dado, romper limites e impulsionar a realidade de cada indivíduo além das possibilidades que lhe são dadas. (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 10).
Não podemos desistir desta “dimensão utópica da educação” e aqui destacamos a necessidade da educação antirracista. Se “Historicamente, o currículo escolar no Brasil legitimou as epistemologias do colonizador que promoveu a subjugação, a subalternização e a inferiorização dos saberes dos povos tradicionais africanos e indígenas.” (MARQUES; CALDERONI, 2016, p. 301), precisamos promover processos educativos capazes de romper com esta premissa. Segundo Gomes (2012, p. 102), “Só compreendendo a radicalidade dessas questões e desse contexto é que poderemos mudar o registro e o paradigma de conhecimento com os quais trabalhamos na educação. Esse é um dos passos para uma inovação curricular na escola e para uma ruptura epistemológica e cultural.”
Nesse sentido, para combater o racismo, torna-se importante que este seja reconhecido e evidenciado. Segundo Milanez e outros (2019, p. 2178), “Para os povos indígenas, é de suma importância reconhecer o racismo como um sistema estruturado contra essas populações. Sistema esse que se constitui em várias dimensões, como a epistêmica, a política, cosmológica, a institucional, e assim por diante.” Peixoto (2017, p. 27) também defende que “Racismo Contra Indígenas: reconhecer é combater.” Temos, então, este desafio à frente: evidenciar as formas de racismo e combatê-las.
Mancini e Troquez (2009) discutem aspectos de uma prática educativa comprometida eticamente com a temática indígena. Segundo essas autoras, esta prática passa pela ideia de desconstrução de estereótipos e preconceitos sobre os indígenas. E isto deve ser feito a partir do oferecimento de informações e conhecimentos adequados sobre as populações indígenas na direção da construção de novos paradigmas. E, neste sentido, pensamos na educação decolonial (WALSH, 2009).
Se pensamos o problema do racismo a partir do processo de colonização e da ideia de colonialidade, é importante que pontuemos, segundo Walsh (2009), uma educação voltada à interculturalidade crítica, a qual pressupõe o respeito ao existir e ao resistir e que permite pensar em processos de educação decoloniais. Essa autora defende a interculturalidade crítica enquanto um “projeto político, social, epistêmico e ético”, como “estratégia que tenta construir relações - de saber, ser, poder e da própria vida - radicalmente distintas” (WALSH, 2009, p. 21-23). Para essa autora, o termo “decolonial”,5 sem o “s”, marca uma distinção com o significado de descolonizar em seu sentido histórico clássico e provoca um posicionamento contínuo de transgressão, insurreição e luta (WALSH, 2009).
Os espaços de formação docente (inicial e/ ou continuada) são lugares privilegiados para tanto. Para que isso seja possível, é necessário, no entanto, partir de uma metodologia que seja capaz de acessar as subjetividades e despertar a consciência decolonial e produzir atitude decolonial. Nesse caminho é fundamental, para além da obtenção do conhecimento teórico, que se desenvolva uma pedagogia comprometida com valores legados pela sabedoria ancestral dos diversos povos que compõem nosso país (e não apenas de um deles). (SILVA, 2021, p. 129).
Nessa direção, precisamos pensar projetos de estudos e pesquisas; pensar políticas curriculares e de formação de professores; pensar currículos e práticas pedagógicas; pensar produção de materiais escolares e livros didáticos que deem visibilidade aos povos indígenas, a suas diferenças históricas, socioculturais, linguísticas, epistemológicas, que deem visibilidades às produções indígenas, pois há uma rica produção realizada por intelectuais, professores, artistas e demais autores indígenas disponível em sites/portais, livros, entre outros suportes.
Os educadores já vêm elaborando algumas formas de enfrentamento do racismo e suas diversas manifestações. Como resultado das lutas de determinados segmentos sociais favoráveis às causas indígenas e dos afrodescendentes, foi sancionada a Lei nº 11. 645, de 2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas nas escolas de Educação Básica de todo o país (BRASIL, 2008). Esta é uma política curricular que deve ser utilizada a favor dos povos indígenas e afrodescendentes, no sentido de “descolonizar os currículos” e de dar visibilidade a seu protagonismo, seus direitos, sua diversidade, suas produções culturais; no sentido de contribuir com a construção de saberes, conhecimentos, significados e discursos mais favoráveis em relação aos povos indígenas.
Segundo considerações de Apple (2009), frequentemente, o conhecimento oficial que constitui os currículos escolares não inclui as experiências históricas e as expressões culturais relacionadas às mulheres, aos negros, aos indígenas e a outros grupos menos poderosos. A inclusão disto implica no desenvolvimento de uma educação comprometida com a equidade, com a visibilidade de todas as pessoas e com a desconstrução de estereótipos e preconceitos recorrentes no conhecimento oficial tradicionalmente veiculado, especialmente por meio de livros e manuais didáticos (MANCINI; TROQUEZ, 2009). Uma educação que permita que as vozes “silenciadas no currículo” sejam ouvidas. Desta forma, a discussão sobre processos de educação diferenciada é um desafio a ser enfrentado, especialmente no que diz respeito à formação dos educadores.
Os indígenas são sujeitos de direitos e têm a garantia do direito à diferença conquistado a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), após muitas lutas e movimentos sociais. Um direito importante é a educação diferenciada a qual deve ser realizada em escolas específicas, nas áreas indígenas, nas suas línguas maternas, por professores e gestores de suas comunidades étnicas, com materiais escolares diferenciados que respeitem suas diferenças socioculturais e históricas.
No que diz respeito aos indígenas que estudam em escolas urbanas e em universidades, devem ser pensadas propostas curriculares e pedagógicas adequadas que contemplem a interculturalidade e o mesmo respeito às diferenças almejado para as escolas indígenas, no sentido de produzir uma discriminação positiva (CORTESÃO; STOER, 2006). Conforme esses autores, isto pode ser realizado a partir de práticas de diferenciação pedagógica. Práticas que possibilitam não apenas a inclusão de conteúdos históricos e culturais a respeito dos afro-brasileiros e indígenas no currículo, mas, também, a gestão ou o tratamento (no sentido de cuidado) das diferenças nas instituições de ensino, a partir da ideia de interculturalidade (TROQUEZ; SILVA, 2020). No sentido de romper com prescrições e práticas curriculares hegemônicas, a escola deve diversificar-se internamente para atender às diferenças dos indivíduos a partir de “pedagogias diferenciadoras” (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 228).
Segundo Cortesão e Stoer (2006), o desenvolvimento dessas práticas reclama um determinado tipo de professor: o professor inter/multicultural. Os docentes fazem uso de “dispositivos de diferenciação pedagógica” guiados pelo princípio da igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso no processo de escolarização de grupos diversificados. São exemplos de dispositivos pedagógicos a construção de genealogias, a contação de histórias pelas crianças, o recurso a jogos e brincadeiras, entre outros. Para Candau (2009, p. 9):
[...] a interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados.
Nessa perspectiva, cumpre destacar a importância da educação intercultural no enfrentamento do racismo contra indígenas.
Considerações finais
O racismo contra os indígenas, comumente negado ou interpretado pela via do preconceito e/ou da discriminação, é um fato recorrente na atualidade que precisa ser reconhecido para ser combatido. Aproximadamente 521 anos pós conquista, colonização e processos (sutis ou explícitos) de colonialidade que resultaram em classificação, hierarquização, subjugação e inferiorização de corpos, epistemologias e sistemas culturais diversos de centenas de povos originários, o racismo persiste. Tais povos seguem resilientes e resistentes, lutando e fazendo o enfrentamento a diferentes manifestações de racismo.
Conforme discutido, o racismo contra indígenas tem raízes históricas, já nos primeiros desenhos ou pinturas dos viajantes, no projeto historiográfico da nação “branca”, nos livros e materiais didáticos, na mídia atual: imagens estereotipadas, generalizações e simplificações ou omissões ajudam a produzir racismos generalizados, institucionais, individuais.
O racismo, por sua vez, se manifesta na sutileza de uma palavra “maldita” ou não dita, nas ações, agressões e/ou omissões do Estado ou de um infeliz indivíduo que traz consigo, ainda, o ranço do etnocentrismo - aquele olhar altivo de quem acha que “tem o rei na barriga”, mas que, no caso, só tem lombriga mesmo.
Diante do que foi possível discutir, nos limites do artigo, perguntamos: o que pode a educação? E não desistimos de acreditar no seu potencial formador (ou desformador) e transformador no sentido da promoção de uma educação decolonial capaz de evidenciar as formas de racismo e de combatê-las. Que possibilite a construção e implementação de políticas públicas e de formação de professores que objetivem descolonizar os currículos através de rupturas epistemológicas e da produção de novos paradigmas. Nesta direção, apostamos na interculturalidade crítica e na “construção de relações - de saber, ser, poder e da própria vida - radicalmente distintas” (WALSH, 2009, p. 23).
Nessa via, uma premissa da qual não podemos abrir mão é a da sociedade democrática e a da afirmação dos povos indígenas como sujeitos de direitos. Precisamos lutar pela construção de políticas públicas, de projetos e de práticas de interculturalidade crítica que materializem as conquistas legais voltadas para os anseios/interesses, conhecimentos e valores dos povos indígenas. E que seus direitos sejam respeitados e a democracia prevaleça neste país.