Introdução1
Há pelo menos cinco décadas os homens brasileiros são marcados por anúncios sobre uma “crise da masculinidade”, discurso de tal modo circulante que se tornou clichê, lugar-comum na contemporaneidade. No bojo dessa “crise” estariam as diversas mudanças no comportamento masculino, as transformações em seus papéis sociais e, com elas, a compreensão do surgimento de um “novo homem”. Entretanto, se verdadeira, a denominada crise da masculinidade tem sido sustentada por explicações amparadas em argumentos como a feminização da sociedade e a escassez de sólidos modelos masculinos. Explicações responsáveis por destinar aos homens lugares subalternos nas relações sociais de poder, privilégio e prestígio, invertendo uma lógica que, durante muito tempo, sustentou a métrica das desigualdades entre homens e mulheres. Isso significa que um modelo de masculinidade, um tipo idealizado de homem, estaria em declínio e, mesmo, em extinção. Um modelo de homem que estaria em apuros.
Os indícios da propalada crise seriam facilmente identificados, segundo os argumentos masculinos: fracasso escolar de meninos, desemprego masculino, dificuldade imposta na sedução de mulheres (quando qualquer abordagem poderia ser enquadrada como assédio), violência conjugal de mulheres contra homens, alienação parental materna, índices de suicídios cometidos em função da rejeição e do abandono de suas parceiras (DUPUIS-DÉRI, 2022). Analisada com prudência, a noção de uma crise da masculinidade precisa ser problematizada, uma vez que ela pode mascarar a realidade levando à compreensão de que “todos os homens estariam em crise”, ou que todos teriam a mesma sensação de “identidade universal masculina”, ora em ruínas.
Afinal, estariam de fato os homens vivenciando uma crise? Ou eles apenas produziriam discursos a seu respeito? Por um lado, existindo, a crise seria apenas uma questão de percepção particular e efêmera, ou um atributo de realidade social, material e objetiva? Por outro, inexistindo, em que medida e como o seu discurso estaria atrelado à uma ofensiva antigênero? Responder essas e outras questões é o maior desafio deste Corpos, gêneros e sexualidades, que parte dos referenciais teóricos dos estudos de gênero, com destaque para os estudos sobre masculinidades, e da teorização mais geral do feminismo, para a leitura e a compreensão do cenário político brasileiro atual e a sua relação com o fenômeno da retórica antigênero.
Para capturar a variedade de compreensões que invocam o conceito de gênero, a estrutura do texto foi construída na forma de uma abordagem teórico-analítica, entre tantas outras possíveis, orientada por uma abordagem tanto intersubjetiva como macrossociológica. Um exercício de uma sociologia mais reflexiva, que faz uso do que pode ser caracterizado como uma “imaginação sociológica”, nos termos de Mills (1969) para, como ação reflexiva, compreender os cenários políticos e culturais do Brasil após a ascensão da ultradireita no país na eleição de presidencial de 2018. Um movimento científico que considera que:
Diante das transformações contemporâneas das sociedades ocidentais, metáforas, imagens e novos conceitos floresceram na linguagem sociológica para tentar descrever a natureza do mundo em que vivemos e como ele se difere do que conhecemos até agora (MOLÉNAT, 2009, p. 172, tradução nossa).
Obviamente, o registro de uma primeira cautela é necessário: não é porque, talvez, trate-se de um discurso, que a tese sobre a crise da masculinidade não tenha relativo efeito sobre a realidade. Um discurso de crise pode parecer crível, ainda que inexistam desordens de fato e mesmo que um sistema generificante não esteja verdadeiramente ameaçado ou desestabilizado.
Ser macho no Brasil: crise, ou discurso de crise?
Ao considerar o panorama em que os discursos sobre uma crise da masculinidade circulam, é possível perceber que uma gama de recursos simbólicos e bastante representativos têm, gradativamente, ganhado contornos em espaços produzidos pela academia, pela literatura, pela mídia e pelas redes sociais virtuais de relacionamentos. Isso significa que o debate sobre a masculinidade povoa diversas esferas do cotidiano da vida social: das conversas informais às instituições e aos relacionamentos afetivos. Apenas a título de exemplo, a Revista Veja, há cerca de 20 anos, anunciava, em três manchetes diferentes, que o homem seria o super-herói fragilizado, aquele de quem se esperaria a construção de um novo papel. Tratam-se das seguintes chamadas de capa: “Homem: o super-herói fragilizado” (REVISTA VEJA, 2001); “O novo homem: ele desenvolveu a sensibilidade, interessa-se pelos filhos, assume e exibe emoções, preocupa-se com a aparência, aprecia culinária e apurou seu senso estético. É forte, mas tem estilo. Está nascendo o macho do século 21” (REVISTA VEJA, 2003); e “Homem: o homem em seu novo papel” (REVISTA VEJA, 2004). Igualmente, também a Revista Cult, provavelmente destinada a outro público, diverso daquele a quem a Revista Veja elege como interlocutor, em edição de 2019, produziu o dossiê “Cartografias da masculinidade”, cuja chamada problematizava, em sua capa, aspectos como “os fantasmas do mito viril, o colapso da lógica identitária, os destinos do masculino e as maneiras plurais de ser homem” (CULT, 2019).
Na contemporaneidade, também as redes sociais se apresentam como um grande acervo de produções de perfis sobre o tema. Entre hashtags, anúncios de produtos e serviços, postagens patrocinadas, podcasts, lives, likes, status, stories, diversos aspectos reúnem e atraem os homens para falarem sobre suas experiências culturais e sociais de masculinidades e consumirem aquelas de seus pares. Aparentemente, não de forma isolada, grupos, páginas e perfis parecem gravitar em torno de um objetivo bastante particular de propagar ou de defender um determinado (e determinante) tipo de ser macho no Brasil. Os recursos parecem funcionar como uma representação masculina de nosso tempo que merece (e precisa) ser lida criticamente. Ao produzir conteúdo, gerar engajamentos e monetizar por acessos ou likes, o tema da masculinidade inaugura um canal comunicativo nas redes sem precedentes históricos, ainda que seu alcance não conteste necessariamente a arena da dominação masculina no interior das dinâmicas sociais generificantes.
O ineditismo desse cenário é a crescente proliferação de conteúdos específicos sobre os e destinados aos homens. Uma rápida consulta, no buscador da empresa Google (GOOGLE, 2023), apresenta mais de 271 mil ocorrências de páginas no idioma português dedicadas à expressão “crise da masculinidade”. Os números impressionam pela diversificação dos materiais disponíveis, que variam da divulgação científica, aos cursos sobre como os homens deveriam se portar (verdadeiros coaching de masculinidade) e suas convocações discursivas ao consumo de novas tendências. O conteúdo, variado, pode ser acessado por arquivos em diversos suportes audiovisuais ou em formato de imagens e textos.
Somados a outros idiomas, os conteúdos e as produções encontradas na internet alcançam bilhões de visualizações. Em alguns desses canais de comunicação, conduzidos por homens, o objetivo principal parece ser alertar outros homens das supostas opressões experimentadas na sociedade por conta dos movimentos feministas. Esse movimento masculino nas comunidades virtuais, que cada vez mais ganha espaço na cultura de mídia, sugere a leitura de inversão das desigualdades nas relações de gênero. Recentemente, por exemplo, o país se deparou com discussões em fóruns da internet sobre os red pill, termo utilizado para designar um homem isolado e livre. Os conteúdos produziam a imagem do homem vinculada à força, à violência contra outros homens e a situações de humilhação e brutalidade contra as mulheres. Um caso nacional específico ganhou notoriedade nas redes virtuais, protagonizado por um digital influencer que oferece cursos, mentorias e palestras sobre masculinidade e que conta com um público de mais de 300 mil seguidores/as em perfis de suas redes sociais. Essa pessoa foi alvo de críticas de mulheres ao aparecer em um vídeo relatando não ter aceitado o convite de uma mulher para consumir cerveja, uma vez que ele consumia outra bebida. Segundo ele, a atitude da mulher, interpretada como “dominadora”, visava testar os seus ideais masculinos. Esse indivíduo escreveu livros em que “denuncia” como os comportamentos femininos poderiam arruinar a vida do homem moderno. Iguais a esse perfil há muitos outros destinados a movimentar o debate masculinista2 e a oferecer formação para os homens que estão dispostos a “despertarem” da opressão que acreditam viver. Embora o movimento masculinista possua dimensão transfronteiriça, no Brasil, sobretudo após a ascensão da extrema-direita ao poder político, o discurso da crise da masculinidade ganhou forma, tamanho, cor e muitas vozes. Características que ameaçam o direito e a liberdade das mulheres, bem como todas as suas conquistas.
Apesar disso, se, por um lado, a consulta ao Google não exprima o resultado de conhecimentos científicos críveis e de qualidade legitimada; por outro, pode-se destacar, ao menos de maneira hipotética, que, ainda assim, parte considerável do repertório se encontra disponível na forma de comunicações de pesquisas, além de acessível para consulta em bibliotecas, livrarias e museus virtuais. E, se a premissa de que as redes sociais e os magazines de circulação destinados ao grande público podem aproximar as pessoas e possibilitar trocas de saberes, intercâmbios culturais e produção de conhecimento, ainda que não contem com tanto prestígio acadêmico e social, essas ferramentas também podem inclinar o interesse sobre as masculinidades em direção a determinadas tendências, reposicionando os homens sobre os assuntos do momento. Para Nóbrega (2010),
[...] a mídia passa a ser um espaço - se não o primordial - em que diversos modelos de sujeitos e de posicionamento são ofertados às pessoas. [...] Dentro da mídia, as redes sociais [...] configuram-se como um cenário amplo em que é permitido construir e divulgar a - ou as, já que o plural revela-se sempre mais adequado para falar de identidade - concepção identitária que se deseja (NÓBREGA, 2010, p. 96).
Analisar a maneira como a masculinidade vem sendo retratada, apontando a não-politização do tema por parte de vários veículos de comunicação, pode indicar quais são as experiências sociais de masculinidades compartilhadas pelos brasileiros. Assim, mesmo que os conteúdos produzidos apresentem novas maneiras de ser homem e, embora tais conteúdos não estejam comprometidos, de fato, com a construção de políticas de masculinidades que pretendam equilibrar a estrutura de gêneros, deslocando e reorganizando as relações sociais de poder entre homens e mulheres, a sua circulação pode oferecer indícios sobre o que se tem entendido a respeito de uma “crise da masculinidade”. Medrado (1998) destaca, por exemplo, que:
Do ponto de vista do telespectador, as produções discursivas publicitárias ampliam o leque de repertórios disponíveis aos sujeitos, possibilitando a produção de novos sentidos e a construção de versões diversas sobre si próprios e sobre o mundo a sua volta (MEDRADO, 1998, p. 147).
Dessa forma, os discursos produzidos notadamente por e para os homens, construídos a partir de repertórios que circulam no imaginário social mais recente sobre a masculinidade, funcionariam como mecanismos de eficácia pedagógica. Eles educam. Incorporados pelo mundo social a partir da reprodução midiática, os discursos podem provocar o entendimento de que a legitimação de uma crise da masculinidade passa por uma institucionalização consagrada de uma realidade sensível. Agindo no campo das subjetividades, sua consagração pode acontecer na discussão infinitesimal da reprodução da cena cotidiana social, em jogos de interações tanto objetivos como simbólicos, na forma de inculcação e de incorporação insensíveis, contribuindo para a formação de sujeitos de um determinado tipo, como ressaltou Sabat (2013):
Podemos considerar que a publicidade é um dos mecanismos educativos presentes nas instâncias socioculturais. Ela não só possui características como prazer e diversão, mas também educa e produz conhecimentos. Ao funcionar como um mecanismo que educa e produz conhecimentos a publicidade contribui para produzir identidades. Ela ajuda a “fazer” sujeitos de um determinado “tipo”. [...] As imagens produzem uma pedagogia, uma forma de ensinar as coisas do mundo [...]. A publicidade não inventa coisas, seu discurso, suas representações, estão sempre relacionadas com o conhecimento que circula na sociedade (SABAT, 2013, p. 150).
Ao endereçarem3 mensagens sobre uma masculinidade em crise, sem questionar suas origens, sua edificação ou seus interesses, remetentes e destinatários, esses discursos tendem a reforçar os benefícios financeiros e simbólicos, criando nichos de mercado. O discurso da crise constrói, assim, o seu próprio nexo de causalidade: se estão em crise, os homens precisam se reinventar; se estão em crise, eles precisam consumir uma nova forma de ser homem no mundo moderno. Assentada na prateleira do senso comum, a crise, amplamente anunciada, pode ser apenas o exemplo de uma perfumaria barata. Dupuis-Déri (2012a) destaca que a compreensão histórica indica que, pelo menos no Ocidente, os homens alegam estar em crise não apenas desde as últimas cinco décadas, mas desde os últimos cinco séculos! Ao analisar especificamente três períodos (o Séc. XVII na Inglaterra, a Revolução Francesa no Séc. XVIII e a passagem do Séc. XIX para o Séc. XX), o autor destaca como a recorrência do discurso é promissora. Tal discurso serviria para justificar a (re)afirmação de um tipo de masculinidade heteronormativa, que tentaria se estabelecer hegemonicamente como forma “real” de ser homem (DUPUIS-DÉRI, 2012a).
No entanto, atualmente, talvez um consenso nos estudos sobre masculinidades produzidos no Brasil seja o de que esse determinado tipo de masculinidade heteronormativa hegemônica (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013) funcionaria mais como uma configuração que busca legitimar a posição dominante dos homens na sociedade e que tenderia a justificar a subordinação das mulheres e de outras formas marginalizadas de ser e de estar homem4. Nessa concepção, a tentativa de normatização da orientação sexual heterorreferencial, nos termos de Connell (1995), exprimiria certo prestígio cultural, econômico e social. Apesar disso, ainda que um determinado tipo de masculinidade, dentro de um campo de correlações de forças em conflito e de interesses dispersos, possa ser definido como hegemônico, é importante salientar que a sua compreensão deriva de múltiplas formas de vivenciar e/ou de exercer a ordem prática das masculinidades. Formas que podem existir de maneiras conflitantes entre si, e mesmo no interior de cada experiência socializadora masculina. Formas que podem gerar rendimentos e benefícios, e que, igualmente, podem representar um alto custo social de existência.
O Atlas da Violência, por exemplo, indica que em 2017 o Brasil atingiu o seu maior nível intencional de letalidade. Uma realidade que evidenciou a quase unanimidade da participação masculina nesse cenário: do total de 65.602 casos notificados de homicídios, 94,4% foram praticados contra homens (BRASIL, 2019d, p. 06). Já os dados do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), apontam que, no mesmo ano de 2017, os homens representavam 96% dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no país (BRASIL, 2019c, p. 27). Seguindo apontamento similar, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) revelou que a população privada de liberdade, também em 2017, era composta por cerca de 94,43% de homens (BRASIL, 2017, p. 11). Ou seja: além de vítimas, os homens são também os principais algozes de atos de violência, de criminalidade e de letalidade no país.
Os dados referentes à violência contra a mulher, no Atlas da Violência, indicam que houve um crescimento feminicídios no Brasil em 2017. Foram de cerca de 13 assassinatos por dia (BRASIL, 2019d). De acordo com o relatório, 4.936 mulheres foram mortas naquele ano. O maior número registrado desde 2007, configurando crescimento de 30,7% de homicídios de mulheres durante a década de 2007-2017. O Atlas indica ainda que 28,5% dos feminicídios ocorreram dentro da própria residência da vítima e que esses seriam, muito provavelmente, os casos de assassinatos decorrentes de violência doméstica (BRASIL, 2019d). Por fim, algumas ressalvas críticas. A primeira, a de que os dados podem, ainda, e infelizmente, estar subnotificados. A segunda, a de que a flexibilização da posse e do porte de armas de fogo no Brasil, estimulada pelo último governo, pode vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência (BRASIL, 2019d, p. 42). A simples leitura dessas estatísticas sinaliza a urgência de se considerar o gênero como uma categoria central nas políticas destinadas à segurança pública e à garantia dos direitos de crianças, mulheres, homossexuais, travestis e transexuais - maiores vítimas da masculinidade.
Tanto os homens como as masculinidades se inscrevem e estão inscritos em diferentes processos de socialização, mas também em maneiras dispersas de sociabilidade. Tais processo de socialização (re)produzem maior ou menor disposição para o trabalho e o diálogo, maior ou menor tolerância às próprias frustrações, diferentes possibilidades de criação de laços afetivos e vínculos dos arranjos familiares, não se conformando completamente com os papéis sociais disponibilizados em nossa cultura. Igualmente, tampouco os sujeitos talvez se reconheçam integralmente com as imagens corporais masculinas padronizadas, ou se sintam completamente satisfeitos e plenamente reconhecidos em suas orientações sexuais, ou, ainda, acomodados e seguros a uma única forma específica e determinada de ser homem. Assim, a masculinidade gravitaria em torno de outros eixos interseccionais5 como os de classe social, de corpo, de raça, de sexualidades e de território.
No entanto, como muitas vezes a realidade pode escapar dos modelos teóricos, a representação clássica (que de tão singular se apresenta Sui generis) não se sustentaria por si só. Salvo por um único objetivo: aquilo que motiva o interesse de existência de uma “masculinidade modelar”, heteronormativa hegemônica, é a manutenção da própria existência de um modelo. Obviamente o peso das estruturas sociais também violenta determinadas masculinidades subalternizadas, desviantes, distantes da homogeneização dos parâmetros daquilo que seria um “ideal” de homem ou de masculinidade6. Ideal projetado, desejado, perseguido, divulgado como passível de ser alcançado, reconhecido, valorado e autorreferenciado.
Ora, tentar conciliar ou subverter o atendimento das expectativas da masculinidade ideal, produzida por demandas normativas sociais da vida real, não é uma tarefa simples. O anúncio de uma crise da masculinidade produz estereótipos eficazes, narrativas sobre “homens como os de antigamente” que se mantêm intactas. Uma imagem perdida e distante no tempo, como o retrato desbotado de uma época em que os homens eram potentes, viris, provedores e tinham no mercado de trabalho e na competitividade suas maiores referências, visto de um contexto em que os homens estariam fragilizados e “afeminados”. Homens que antes levavam o sustento para casa e que tinham no mercado do trabalho e na rivalidade as suas maiores referências e que agora se sentem oprimidos, desprestigiados e presos à paisagem doméstica. Homens para os quais a família e os aspectos reprodutivos nunca foram prioritários e que, agora, passam a ser cobrados por suas ações e escolhas. Homens que, de tão vigorosos e voltados para a esfera pública, orgulhar-se-iam de si mesmos por não terem que disputar e dividir com as mulheres, na vida privada, os cuidados dos/as outros/as - nem de si mesmos, nem de sua prole. É esse modelo específico de homem ideal que vivenciaria, então, uma crise. O homem “alfa”, “cabra macho”, conservador orgulhoso de si, o “homem de verdade” convicto de sua sexualidade, o “chefe da família” provedor que, repise-se, talvez, nunca tenha realmente existido em plenitude para todos, “agora”, estaria em risco.
Para e por alguns homens, a propalada crise é uma questão profundamente incômoda. Em parte, porque coloca questões cujas respostas não lhes são conclusivas. Em parte, porque os coloca diante de questões sobre as quais sequer desejam refletir. Questões como os aspectos sobre o corpo das mulheres, a sua autonomia sexual e o direito reprodutivo, os assédios moral e sexual, a importunação. Também questões sobre a igualdade de remuneração profissional e ainda temáticas sobre as quais os homens raramente têm que lidar no espaço público, tais como: respeito, segurança e igualdade de oportunidades.
A crise da masculinidade seria, então, o valor a ser pago no acerto de contas de homens que não suportariam ser contrariados por terem como crença, infundada, que aquilo que possuíam como direitos, representaria, na realidade, uma confortável e útil zona de manutenção de sua dominação - ainda que uma zona realmente eficaz e bastante proveitosa apenas para uma pequena parcela deles, cujos rendimentos lhes estariam garantidos no mercado das masculinidades. É preciso, igualmente, considerar que os diversos discursos e as diversas imagens sobre as masculinidades circulantes em nossa sociedade, historicamente construídas sob a égide de uma contínua crise, norteiam as diferentes experiências que esses sujeitos estabelecem na relação com as mulheres, suas pautas e seus interesses. Assim, a construção das masculinidades tem sido, recorrentemente, marcada pela presença (ou pela ausência) da relação que os homens estabelecem com elas, com o(s) feminismo(s) e com tudo aquilo que pode representar uma identidade, uma estética feminina e/ou feminilidade performática.
Estudos sobre as masculinidades: novos conceitos, velhas práticas?
Em texto fundante sobre a dominação masculina, Bourdieu (2017) realizou importantes provocações sobre a construção social das diferenças entre os homens e as mulheres. Para o autor, as diferenças historicamente construídas passaram a ser vistas como justificativas naturais para as desigualdades determinadas pelo sexo. Assim, parte das identidades masculinas tenderia a reproduzir uma compreensão - tanto teórica, pois localizada no campo das ideias, como de ordem prática e material, pois localizada no campo dos costumes - das mulheres, ou de um determinado tipo de identidade feminina, como parte de um espaço subalterno e em consonância com a dominação masculina. Na dinâmica da arena social, o patriarcado fabricaria tipos de masculinidades que reproduziriam estereótipos, estigmas e preconceitos responsáveis por atos que poderiam variar da extrema omissão parental masculina, à opressão e à violência contra crianças, mulheres, homossexuais, travestis e transexuais. Assim, do mesmo modo em que as mulheres seriam submetidas a uma socialização de inculcação para uma condição de docilidade e de subalternidade, tornando-se exemplos da “bela, recatada e do lar”, os homens também aprenderiam a dominação e experimentariam a cultura do ódio e da violência contra todos/as e contra tudo o que pudesse representar uma ameaça à masculinidade ideal (BOURDIEU, 2017).
No Brasil, a emergência do campo especializado nos estudos sobre as masculinidades teve como um de seus principais marcos também a tradução do Corpos, gêneros e sexualidades “Políticas da masculinidade”, de Connell (1995). Apesar disso, a existência do interesse sobre a temática talvez possa ser reconhecida, ainda que de maneira incipiente, desde a década de 1970, a partir da publicação de “Sociologia da paternidade”, de Juritsch (1970). E, mais tarde, em 1987, outra obra marcaria definitivamente a introdução do tema e o seu interesse no país: o livro “O poder do macho”, de Saffiot (1987). Uma investigação profunda sobre a gênese dos estudos sobre masculinidades no Brasil, ainda por ser feita, talvez indicasse que os grupos de pesquisas e de trabalhos sobre as mulheres, criados em diversas universidades pelas feministas, tenham sido os verdadeiros responsáveis pela introdução e pela produção do interesse científico em ter os homens como objetos de análise. Guardadas as diferenças políticas, suas intencionalidades e seus objetos ou métodos de estudos, entre os grupos das intelectuais pioneiras, os trabalhos passaram não apenas a discutir teoricamente as desigualdades entre homens e mulheres, a partir de uma perspectiva de poder nas relações de gênero e entre os sexos, mas também a problematizar as desigualdades culturais, sociais, educacionais e econômicas, que marcam homens e mulheres; inaugurando, assim, um novo campo teórico de profunda densidade investigativa e política.
Ou seja, os estudos sobre masculinidades só puderam ganhar espaço após a inserção do campo de estudos de gênero no cenário acadêmico. E isso se deve ao trabalho metódico de muitas mãos de mulheres calejadas pelo ativismo e pela militância7. Como categoria de análise privilegiada, o gênero se constituiu como uma referência dos estudos relacionais entre homens e mulheres, permitindo atenção às especificidades masculinas social e historicamente construídas, e aos seus efeitos, tanto sobre os homens, como sobre as mulheres. Construção social, os estudos sobre gênero produziram um debate ainda mais inclinado para as questões sociais e políticas, afastando-se da centralidade do determinismo biológico que o termo sexo carregava8. A definição dada por Scott (1995) foi fundamental nesse processo: ela possibilitou um entendimento mais amplo da categoria, considerando as relações sociais, os símbolos culturalmente disponíveis, os conceitos normativos, as instituições e a organização social como elementos inter-relacionados, que comporiam a definição de gênero e a sua relação política. Conforme definiu a autora,
o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais, [...] as formas particulares e contextualmente específicas pelas quais a política constrói o gênero e o gênero constrói a política (SCOTT, 1995, p. 89).
Fenômeno social e ao mesmo tempo construção de campo científico-analítico, os estudos sobre masculinidades já partiam, originalmente, de uma problematização sobre a crise da masculinidade. Talvez, influenciados pelo movimento da segunda onda feminista e pelo crescente movimento homossexual, esses estudos se constituíram como um campo que avançou ao longo de todo os anos 1990 e pelas décadas seguintes (HEILBORN; CARRARA, 1998). Uma mirada alargada e exploratória dos estudos sobre masculinidades desenvolvidos no Brasil indica que as pesquisas que possuem como centralidade os homens e as masculinidades apresentam em comum o alto grau de consistência na busca da compreensão, da descrição e da explicação das masculinidades (SULZ; CARDOSO, 2016).
A partir dos anos 2000, o Brasil experimenta uma explosão numericamente representativa de estudos interessados nos homens. Organizados a partir de referenciais teóricos e procedimentos metodológicos diferentes, os trabalhos têm sido responsáveis por um constante revigoramento do campo de estudos sobre masculinidades. No entanto, apenas mais recentemente o predomínio do pensamento produzido pelos centros acadêmicos tradicionais tende a ceder lugar à interlocução com outros/ as intelectuais, notadamente localizados/as na periferia do tabuleiro internacional: trabalhos produzidos fora do eixo norte América-Europa passaram a dar maior visibilidade às noções mais locais e àquelas referentes às masculinidades latino-americanas, negras, periféricas ou transgressoras, como são os casos dos trabalhos desenvolvidos por Aguayo; Nascimento (2016); Albuquerque Júnior (2012); Andrade; Herrera (2001); Barduni Filho, 2017; Cáceres et al. (2006; 2011); Cardoso (2004); Miranda (2021); Miranda et al. (2023); Santos (2012); Silva (2022); Sulz (2020); Valdés; Olavaría (1998) e Viveros Vigoya (2018). Como característica dessa mistura autoral, metodológica e teórica, o próprio campo tem aproveitado, em seus estudos, do lugar da análise da mestiçagem e do hibridismo cultural.
Crise da masculinidade, ofensivas antigênero e antifeminismo de Estado: uma Hydra moderna?
O discurso de uma crise da masculinidade acompanha, tanto no Brasil como em muitos outros países, movimentações políticas que bradam contra uma “ideologia de gênero” (sic)9; neologismo produzido pela extremadireita conservadorista10, que não possui qualquer vínculo com o que cientificamente se constituiu e que se consagrou como o profícuo campo de estudo de gênero. Sua fabricação é uma contraestratégia do Vaticano, na esteira da “IV Conferência Mundial de Mulheres”, realizada em Beijing, na China, no ano de 1995, para tentar neutralizar os movimentos feministas (CORRIDOR, 2019). Outros grupos conservadoristas, religiosos ou laicos, adotaram o termo, e, ao declararem lutar contra a “ideologia de gênero” (sic), o que fazem verdadeiramente é uma oposição aberta aos avanços em direção a uma maior equidade entre homens e mulheres, além da oposição à ampliação dos direitos da população LGBTQIA+ (AMORIM; SALEJ, 2016). Trata-se, portanto, de uma forma de manifestação antifeminista.
Como argumento discursivo, a ideia de uma “ideologia de gênero” (sic) nega a complexidade e a pluralidade de diferentes estudos dos campos das Ciências Sociais e Humanas que analisam e que se comprometem com as emancipações de homens e de mulheres. Seu aspecto reducionista visa justamente agir como uma forma de minar o vigor científico produzido pela academia. Felizmente, seus/ suas defensores/as padecem ainda de relativo isolamento acadêmico. Essas pessoas não possuem trânsito, tampouco credibilidade, entre os pares realmente sérios e comprometidos dos campos de estudos de gênero, corpo e sexualidades, ou de estudos sobre masculinidades e dos estudos feministas. Distante de congressos e das publicações qualificadas, a fábrica mentirosa de discursos conservadoristas trabalha na divulgação de erros, cosmovisões equivocadas e senso comum, dialogando apenas entre seus/ suas iguais, sem nenhum respaldo científico. A questão que talvez se imponha aos/às cientistas brasileiros/as é: até quando?
De caráter meramente especulativo, intencionalmente errôneo e anticientífico, com morada nos terrenos dos dogmas de fé, ainda que a ciência biológica possa muitas vezes ser utilizada como recurso de enquadramento dos corpos, e a ciência psicológica como recurso para o enquadramento comportamental, quando e da forma que lhes convém, uma premissa, talvez, precise ser ressaltada: se é verdade que ninguém sai de onde nunca entrou, talvez a última fronteira de resistência aos grupos conservadoristas sejam as universidades públicas, haja vista a disputa de narrativas já presente nas casas legislativas de todo o país11. Não por acaso, a base da produção científica tem sido tão duramente atacada no Brasil nos últimos anos, desde que instituído o golpe que, fantasiado de impeachment depôs justamente do cargo a única mulher democraticamente eleita Presidenta da República, Dilma Rousseff. Embora careça de densidade teórica, de profundo conhecimentos cultural, histórico e social, a ofensiva antigênero não se apresenta necessariamente nova, ainda que talvez faça uso de alguns recursos inovadores na tentativa de alcançar e de capturar cada vez mais pessoas.
Propagada por uma campanha compartilhada por setores ultraconservadores, notadamente de origem neoliberal, a efervescência do discurso antigênero mobiliza diversos atores, seja no cenário da política institucional, seja no cenário midiático e das redes sociais, em uma disputa por hegemonia política, representação partidária e recursos financeiros, na tentativa não apenas de reconceitualização do campo dos estudos de gênero, mas também de disputa dos campos das Políticas Públicas e dos Direitos Humanos. Como projeto reacionário de poder, a retórica da ofensiva antigênero precisa ser compreendida como uma rede complexa, minuciosamente arquitetada e de caráter transfronteiriço que tenta minar no Brasil as conquistas sociais e as políticas públicas fundadas, sob grande pressão dos movimentos sociais, desde a redemocratização do país ocorrida em 1985 e do advento da Constituição Federal de 198812. Conquistas que não se trataram de mera liberalidade ou concessão do Estado brasileiro, mas, antes, do resultado do engajamento de sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos assumidamente democráticos e progressistas.
Assim, talvez a ofensiva antigênero possa ser representada como uma Hydra moderna. Habitando o atoleiro da consciência coletiva, suas várias cabeças de serpente crescem e se regeneram, na constante e perversa tentativa de controlar, matar e devorar pessoas, subjetividades, desejos e fantasias. Considerar a ofensiva antigênero como uma questão real (CONNELL, 2016), tomando-a como um problema tanto simbólico como material de nosso tempo, tem sido um árduo trabalho para os/as acadêmicos/as socialmente comprometidos/ as13. Os tentáculos da movimentação política ultrarreacionária dessa Hydra são ora bastantes visíveis, ora menos perceptíveis entre aqueles/ as que estejam fora da esfera conservadorista de sua reprodução. A Hydra moderna tenta se locomover por todos os lados, como serpente que, em movimento, aglutina ideias preconceituosas e criminosas, marcadamente sexistas, misóginas, homofóbicas e transfóbicas, mas também classistas e racistas. Para além de um trabalho de convencimento, na arena pública, da importância dos estudos de gênero, também é preciso um profundo esforço de desmistificação de invenções equidistantes da realidade como “kit gay” (sic), “mamadeira de piroca” (sic), “gayzização do espaço escolar” (sic), ou um estatuto da “legalização da pedofilia” (sic). É que as chamadas fake news caminham juntas, tentando pautar ainda o reconhecimento da união homoafetiva, a completa abolição do aborto ilegal, a liberdade religiosidade manifestada por cultura afro-brasileira, ou ainda a manutenção das ações afirmativas e das políticas de cotas, bem como de outras garantias constitucionais como o direito dos povos tradicionais, quilombolas e ribeirinhos à terra.
Buscando gerar certo “pânico moral”, a retórica antigênero tenta esconder a disputa pela política, colocando em sua zona de ataque os direitos fundamentais das pessoas localizadas em grupos minoritários, a parte materialmente mais visível da sociedade em vulnerabilidade. Enfim, tentativas de criação de um pânico que envolvem a produção de uma naturalização de uma ordem moral, algo como a busca por um “éden perdido”, localizado em um passado distante, em que as mulheres teriam sido submissas aos homens e em que a sociedade funcionaria a partir de um padrão de operação binária entre os sexos. Um tempo, para alguns/ algumas, realmente feliz, um tempo em que as coisas funcionavam. Um paraíso perdido que, tal como a saudosa masculinidade heterorreferenciada, talvez nunca tenha realmente existido. E ainda que a sua parcial existência pudesse ser reconhecida, ela teria gerado enormes ônus sociais. A partir das confluências de interesses dos campos econômico e religioso, a ofensiva antigênero pode ser encarada como uma amálgama sem nenhuma razoabilidade que tenta articular pontos aparentemente diferentes e sem relação entre si14. As cabeças da Hydra se movimentam da esfera mais efêmera e particular da vida humana, às instituições mais sólidas e constitucionalmente forjadas na República.
Dissecar as estratégias dessa ofensiva, conhecer os seus discursos, seus/suas agentes e igualmente a produção de suas agências e de seus agenciamentos, é um movimento desafiador, uma vez que, ao contrário daquilo que se estabelece à luz de um Estado de Direito, ela se movimenta sorrateiramente às sobras da sociedade. Sua retórica busca justamente fazer uso de ferramentas institucionais e democráticas naquilo que se apresenta, se não totalmente nova, ao menos na contemporaneidade inovadora: avançar sobre as conquistas democráticas, em um claro afrontamento às conquistas dos direitos inalienáveis à pessoa. Um movimento antidemocrático surgido dentro do regime democrático, uma posição de cerceamento de direitos dentro de um estado constitucional, uma tentativa de produção de um antifeminismo a partir e de dentro do próprio Estado (JUNQUEIRA, 2022). Sobre isso, Dupuis-Déri (2020) afirma que o antifeminismo seria não um movimento, mas um “contramovimento” (DUPUIS-DÉRI, 2020, p; 83) que poderia ser compreendido como:
todo gesto (ação ou discurso) individual e coletivo que busca frear, parar ou fazer recuar o feminismo - que é um movimento em direção à igualdade e à liberdade das mulheres frente aos homens -, o antifeminismo de Estado designaria, então, as ações pelos agentes e pelas agências de Estado para frear, parar ou fazer recuar as mobilizações do movimento feminista (no Estado ou fora do Estado) (DUPUIS-DÉRI, 2020, p. 85).
Quando tomou posse na Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro realizou uma reforma administrativa que extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secadi/MEC) sem transferir a maioria das suas competências para outra estrutura organizacional. Somente a alfabetização continuou a ter um lugar, mas com uma mudança radical na abordagem (BRASIL, 2019b; 2019a). Ocorre que a Secadi era a responsável, entre outros aspectos, pela transversalidade de gênero15 no âmbito do MEC, assim como pela interface do Ministério com a agência nacional de políticas para as mulheres e com o organismo permanente de participação e controle social da sociedade civil na estrutura do Governo Federal no que concernia às políticas para as mulheres. Depois da reforma administrativa, o MEC passou a não contar mais com um órgão responsável por esse trabalho de articulação.
Um dos resultados imediatos da reforma administrativa do início da gestão Bolsonaro foi a completa ausência de política, programa ou ação do MEC específica para as mulheres: no portal do Ministério, uma busca pelas palavras-chave “gênero” e “feminismo” não conduzia a nenhum resultado depois do início do governo em 2019 (BRASIL, 2023). O ato inicial de Bolsonaro de extinção da Secadi levou à inação da estrutura central responsável pela gestão da educação básica e superior inativa face à agenda feminista. Essa ação pode ser considerada, então, por exemplo, uma ação antifeminista de Estado.
O antifeminismo de Estado, claro, é ele também bastante heterodoxo. E nisso talvez resida a sua insistência em existir. É que, de maneira geral, ele também conta com a contribuição de algumas mulheres (não feministas), bem como de neoliberais em defesa do Estado mínimo (ainda que desejem o socorro econômico governamental na forma de incentivos fiscais e/ou tributários), de pessoas negras em tese relativamente emancipadas (que denunciam a pauta dos movimentos negros como “vitimismo”) e mesmo de homossexuais “comportados/as” (contrários/as às lutas da comunidade LGBTQIA+). Em todos esses casos não parece coincidência que a agenda conservadorista pulverizada guarde em si um projeto mais ou menos comum: a conquista do Estado para a transformação por seu interior, via modificação das direções e dos fluxos históricos das conquistas de políticas públicas. Assim, o antifeminismo de Estado se manifesta como um projeto político de poder e não se sustenta sem os/as seus/suas variados/as agentes e sem as suas diferentes formas de agenciamentos (DUPUIS-DÉRI, 2012b). Se, por um lado, os/as agentes não são apenas homens em crise; por outro, suas formas de agenciamentos circulam por discursos de ódio em variados suportes, de maneira anônima ou não. Nessa trama social, uma verdadeira batalha de narrativas age, produzindo categorias poderosas de mobilização política, que circulam com o mesmo vigor em espaços tão diferentes como os púlpitos de igrejas, os grupos de redes sociais ou as casas legislativas.
Talvez possa parecer mais óbvio hoje que movimentos supremacistas, neofascistas e neonazistas, sejam, majoritariamente, compostos por homens brancos que empunham a bandeira da crise masculina; defensores de uma masculinidade que se afasta tanto do feminino como do feminismo. Rótulos e slogans genéricos operam como disposições de percepção e de classificação que representam o “outro” como uma ameaça. Ameaça à frágil sexualidade masculina, ao seu modelo de família, à pureza da infância, à liberdade de sua crença religiosa e de seu senso moral e, em última instância, ameaça à própria segurança nacional. Em resumo, ameaça a tudo o que for diferente de um homem branco, heterossexual, cristão e representante das frações da classe média. Agindo à revelia da Lei, mas em nome do direito da liberdade, falsas premissas de agentes desonestos/as acabam por reiterar práticas criminosas de homofobia, misoginia, racismo, sexismo e transfobia. Os maiores exemplos dessas práticas residem também na constante tentativa de patologização de práticas homoafetivas ou de expressão da transexualidade, além da defesa anticientífica e criminosa de terapias de reconversão sexual.
Atentos a esse cenário, em 2015, grupos de pesquisa e instituições de promoção de direitos civis, divulgaram no Brasil o documento intitulado “Manifesto pela igualdade de gênero na educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras”. O material destacava o repúdio à forma deliberadamente distorcida com que o conceito de gênero vinha sendo tratado nas discussões públicas no país e denunciava a tentativa de grupos conservadoristas em instaurar o pânico social, ao defenderem, abertamente e sem subterfúgios linguísticos, o banimento à noção de igualdade de gênero do debate educacional, ainda que o Brasil fosse signatário de diversos tratados internacionais de promoção da igualdade sexual e de gênero e de defesa e garantia dos direitos das mulheres16.
O ano de 2015 marcou assim o crescimento de discursos conservadoristas que ameaçavam (e que ainda continuam a ameaçar!) as conquistas sociais promovidas nos tempos dos governos progressistas e democráticos do Partido dos Trabalhadores. Entre 2002 e 2015, os avanços puderam ser comprovados pela maior participação de mulheres, homossexuais, transexuais, negros/as e trabalhadores/as em diferentes esferas da vida social, seja na ocupação de novos postos no mercado de trabalho, seja na participação na vida universitária ou nos espaços públicos decisórios das representações políticas. Aspectos que o golpe de 2016 fez produzir sensíveis retrocessos.
A ascensão da extrema-direita ao poder político em 2018 favoreceu a experiência, por quatro anos, de um sopro autoritário de amarga lembrança dos tempos da ditadura civil-militar brasileira de 1964-1985. Tempo conservadorista e persecutório, em que toda uma geração de pessoas, de conhecimentos historicamente acumulados e de políticas públicas, esteve em risco. Dialeticamente, no entanto, se as condições políticas apontavam para freios e retrocessos, foi justamente nesse momento que os/as estudiosos/as, ativistas e militantes exerceram com maior determinação as diretrizes científicas e políticas nas investigações que buscavam manter as produções no campo dos estudos de corpo, gênero, sexualidades, masculinidades e feminismos. O conservadorismo político que então assolou o país e cujas prorrogações conservadoristas ainda hoje são incertas, obriga a comunidade científica brasileira (e democratas e progressistas em geral) a manter-se atenta e unida contra as retóricas da ofensiva antigênero.
Pensamentos à guisa de conclusão
No Brasil, como em praticamente toda a parte do mundo ocidental, o feminismo provocou e interrogou os homens e as masculinidades ao lhes contradizer e ao denunciar a desigualdade entre os gêneros, muitas vezes tendo os homens como frutos ou representantes do patriarcado, ou mesmo beneficiários solidários de seus rendimentos. Como pano de fundo, a justa manifestação pelos direitos e pelas relações equânimes passou a ser representada, no senso comum, como um efusivo combate, como uma verdadeira guerra dos sexos, contra instituições e pessoas que representavam a dominação masculina: os homens. Eles manifestam se sentirem acuados.
Foi a força propulsora e resistente do feminismo que pareceu lançar luz à sociedade sobre a existência de uma real crise, tão injusta e desigual, como perversa e persistente. Foram as mulheres e suas agendas políticas que passaram a incomodar certos homens e certos modelos de masculinidades, ao recusarem deliberadamente desempenhar o papel familiar ou sexual que lhes foi designado, quando passaram a transgredir as normas do sexo e a decidirem sobre seus corpos e as escolhas de seus/suas parceiros/as. Enfim, quando passaram a contestar, resistir e subverter um tipo de mundo que parece ter sido inventado por, para os e pelos homens.
Nessa perspectiva, a propagada crise da masculinidade, assim como os contramovimentos antigênero e antifeminista, constituiriam, antes de mais nada, uma reação conservadora aos feminismos e às suas conquistas, o efeito backlash - estratégia política da extremadireita que lança mão dos discursos da crise da masculinidade, das retóricas antigênero e antifeminista, para ascender ao poder e nele tentar permanecer.
No que concerne à eleição presidencial de 2018, por exemplo, as mulheres constituíam uma das principais frentes de enfrentamento à extrema-direita. Na data de 29 de setembro de 2018, ocorreu a maior manifestação organizada pelas mulheres de toda a história do Brasil. Ela mobilizou centenas de milhares de pessoas em diferentes cidades em todo o país e também fora dele. A marcha, #EleNão, que começou em uma rede social, a partir da convocação publicada em página de mulheres unidas contra Bolsonaro e criada por uma mulher negra da Bahia, clamava contra o sexismo, a misoginia, o neofascismo, o racismo e a LGBTfobia. Rapidamente, no dia seguinte à manifestação, imagens de mulheres nuas quebrando símbolos religiosos, muitas tomadas emprestadas de outras manifestações ocorridas fora do Brasil anos antes, começaram a circular nas redes sociais.
O exemplo da marcha #Elenão ilustra bem a força feminista existente no Brasil atual. Na contramão, também ressalta a fúria de um contramovimento antifeminista organizado e que age em paralelo ao movimento feminista. Não é surpreendente, então, que o antifeminismo tenha sido utilizado durante aquela eleição como estratégia política da extrema-direita e que a ofensiva antigênero tenha seja utilizada da mesma maneira durante toda a gestão de governo de homens...
... Em crise com a sua masculinidade!
Para a Profa. Dra. Inês Assunção de Castro Teixeira (UFMG).
Para o Prof. Dr. Luiz Carlos Cancellier de Olivo (UFSC).
In memoriams.