1 Introdução
No Brasil, assim como em outros países, a educação de alunos com deficiência ocorreu, durante muitos anos, em espaços segregados. Um longo caminho foi percorrido até o momento atual, em que os alunos têm a matrícula legalmente garantida nas escolas regulares. Inúmeras leis, decretos e normas técnicas foram publicadas para garantir esse direito às crianças com deficiência (Borges, 2015).
A garantia desse direito está pautada no princípio de que a diversidade é uma característica humana e de que a aprendizagem deve ajustar-se às necessidades individuais. É necessário, portanto, o desenvolvimento de práticas e estratégias inclusivas, buscando aprimorar habilidades e diminuir barreiras que impeçam a inclusão e a aprendizagem dos alunos com deficiência.
O acompanhamento do aluno com deficiência deve se dar em todas as etapas, iniciando-se na Educação Infantil, momento em que serão estimuladas novas aprendizagens, conhecimentos e habilidades das crianças. Um dos objetivos da Educação Infantil é ampliar o universo de experiências das crianças, especialmente quando se trata da educação dos bebês e daquelas bem pequenas, uma vez que, em ambas as etapas, são desenvolvidas habilidades muito próximas aos contextos familiar e escolar, como a socialização, a autonomia e a comunicação (Base Nacional Comum Curricular [BNCC], 2018; Pasqualini & Martins, 2020).
A primeira infância consiste em um período de construção de diversos circuitos neurais, acomodação de novas experiências e aprendizagens, o que é estratégico para o desenvolvimento da criança, tendo impacto ao longo do ciclo vital e no sucesso escolar futuro (Noronha e Souza et al., 2019). A primeira infância também é considerada um período chave para o desenvolvimento da criança. Assegurar uma Educação Infantil que contribua com qualidade para esse processo é imprescindível e foco da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento sustentável no Brasil (ONU, 2015). É essencial, portanto, a implementação de práticas educativas inclusivas na Educação Infantil, baseadas nos conhecimentos da área do desenvolvimento infantil e suportadas por avaliação das especificidades de cada criança, oferecendo, ainda, à criança a oportunidade de desenvolver habilidades fundamentais para o sucesso na escolarização posterior (Barbosa & Gobatto, 2021; Carvalho & Schmidt, 2021).
Conhecer as crianças é condição essencial para o planejamento das propostas pedagógicas necessárias a cada uma, bem como para o acompanhamento e a identificação dos progressos no seu desenvolvimento. Para tanto, o uso de ferramentas de avaliação e de observação que permitam subsidiar os pais, professores e outros profissionais na identificação do perfil de funcionalidade da criança é fundamental para o processo de planejamento. O perfil de funcionalidade indica as características funcionais individuais, incorporando dimensões sensoriais, mentais, do movimento, da linguagem e do comportamento (Simeonsson et al., 2003).
McLaughlin et al. (2015) afirmam que é importante definir o perfil de funcionalidade da criança para que se estabeleça uma abordagem que possa ser determinada de acordo com as características biológicas e fisiológicas dessa criança, contribuindo, assim, para o seu desempenho escolar. Para a compreensão do perfil de funcionalidade, seja em uma criança com deficiência ou não, é necessária uma observação em seu ambiente e contexto social natural, pois assim é possível compreender como a criança explora suas habilidades em relação aos desafios propostos pelas atividades e interações.
Desse modo, a avaliação deve oferecer informações acerca das habilidades, necessidades e características gerais que a criança possui, de forma a integrar o seu perfil de funcionalidade, subsidiando a escolha do professor por metodologias e estratégias de ensino e aprendizagem. Contudo, é importante enfatizar que o processo de avaliação é multifatorial e envolve não só a atuação do professor, sua interação com os alunos e o ambiente físico da sala de aula, mas também os recursos instrucionais e metodologias disponíveis, as relações que se estabelecem no contexto escolar, a política educacional vigente, além da família dos alunos e eles próprios como sujeitos do processo (Secretaria de Educação Especial [SEESP], 2006).
A busca na literatura por recursos que pudessem subsidiar a prática docente na perspectiva inclusiva apontou um número reduzido de instrumentos focados na identificação do perfil funcional do aluno que pudessem ser utilizados para subsidiar a prática docente no processo de avaliação no contexto escolar. Além disso, os instrumentos encontrados ora enfatizavam a busca por diagnóstico, ora eram específicos para profissionais de saúde, em sua maioria baseados no modelo médico focados no corpo e na reabilitação, não levando em consideração os fatores ambientais e o contexto social da criança, corroborando os achados de Glat et al. (2012).
Um dos instrumentos identificados com foco no desenvolvimento da criança de 0 a 6 anos, período característico da Educação Infantil, foi a Ficha de Observação do Desenvolvimento Mental de Criança proposta por Helena Antipoff. Essa ficha tinha como finalidade auxiliar os pais, profissionais e professores que atuavam diretamente com a criança na observação e registro do seu desenvolvimento. Foi publicada originalmente em 1939, tendo sido revista nos anos de 1953, 1969 e 1981.
Helena Antipoff (1892-1974) chegou ao Brasil em 1929 para trabalhar em Minas Gerais, no contexto das reformas educacionais que ocorriam em vários estados brasileiros. Com uma sólida formação em Psicologia, Antipoff era uma representante de sua época, dedicada à infância, principalmente a dita “anormal”. Antipoff acreditava que, quanto maior o conhecimento, por parte dos professores, acerca dos alunos e de seu desenvolvimento nas diferentes idades, maior seria a eficácia da ciência e da arte pedagógica; o conhecimento sobre as condições biopsicossociais dos escolares poderia melhorar a forma de acompanhamento dos alunos, e mais seguros seriam os dados disponibilizados aos legisladores do ensino para que este fosse reformado e melhorado (Borges, 2015; Hudson & Borges, 2020; Minas Gerais, 1932).
Sobre a observação das crianças com deficiência, a fim de conhecê-las, Antipoff afirmava que a personalidade do “excepcional” (palavra que denomina o que hoje engloba o público da Educação Especial) surge com maior clareza depois da convivência com ele, em situações diversas, em ambientes e com pessoas diferentes. Segundo ela, jamais a educação e o ensino se tornarão eficazes se for deixado de lado o estudo da criança viva, do aluno-indivíduo, sem o cuidado indispensável de compreender a fundo todos os mecanismos biopsicológicos que o fazem crescer e desenvolver-se às avessas (Antipoff, 1992).
Mesmo em uma época de evidência do modelo médico, Antipoff indicava a necessidade de ampliar o olhar sobre o desenvolvimento para questões relacionadas ao contexto social e a outros fatores não biológicos. Ela afirmava que, para educar uma criança com deficiência, deve-se conhecê-la sob seus diversos aspectos, quais sejam: físicos, intelectuais, afetivos e sociais (Antipoff, 1992). Antipoff buscava uma avaliação/observação da criança ou da criança com deficiência para além das questões da estrutura e função do corpo. Preocupava-se menos com o diagnóstico e mais com a identificação de fatores que interferissem no desempenho de atividades e na participação da criança no contexto escolar. Essa posição de Antipoff, manifestada em seus escritos, vai ao encontro do que propõe a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), criada no ano de 2001, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a partir do modelo biopsicossocial.
A CIF é uma classificação internacional que busca proporcionar uma linguagem unificada e padronizada assim como uma estrutura de trabalho para a descrição de estados relacionados com a saúde. Essa classificação consiste em duas partes: funcionalidade e incapacidade (atividade e participação) e fatores contextuais (fatores ambientais e fatores pessoais). A funcionalidade e a incapacidade abrangem funções do corpo, estruturas do corpo e atividade e participação. Os fatores contextuais abrangem o meio ambiente no qual o indivíduo vive e os fatores pessoais que estão relacionados às questões particulares da vida de cada indivíduo, incluindo fatores como sexo, idade e estilo de vida. Nesse sentido, a classificação permite registrar perfis úteis da funcionalidade, incapacidade e saúde dos indivíduos em vários domínios (Noonan et al., 2009; OMS, 2020).
Mesmo se configurando como instrumento desenvolvido no campo da saúde, a CIF se configura também como importante instrumento de interseção entre a área da saúde e da educação, podendo aproximar os profissionais das duas áreas, pois aprimora a descrição das condições de saúde e de deficiência com informações focadas no aprendizado e no desenvolvimento, ajudando a “superar abordagens passadas usadas na descrição ou rotulação de incapacidade que podem ter levado à segregação ou discriminação na educação” (OMS, 2013, p. 66). Além disso, a CIF auxilia no encaminhamento da avaliação funcional da pessoa com deficiência e no planejamento de intervenções, processos orientados por uma perspectiva positiva da deficiência, que enfatiza a atualização e ampliação das capacidades funcionais e a participação social do indivíduo, a partir do contexto da escola inclusiva (Oliveira et al., 2021; OMS, 2013).
Embora a CIF venha ganhando notoriedade como uma classificação que desloca a questão da doença para uma perspectiva mais ampla, ainda são poucas as investigações que tratam da importância da CIF na Educação Especial, em particular no que se refere à aproximação das possibilidades e dificuldades apresentadas pelos alunos com deficiência inseridos no contexto escolar. O diagnóstico por si não prevê a descrição do sujeito em seu estado funcional, tampouco o tipo e nível de apoios e cuidados que cada sujeito requer para desenvolver seu potencial de desenvolvimento e aprendizagem (Oliveira et al., 2021).
A Ficha de Observação de Helena Antipoff, apesar de ter sido desenvolvida há mais de 90 anos, apresenta uma visão ampla do desenvolvimento infantil, que propõe conhecer a criança por meio da observação em seu ambiente natural, a partir de informações necessárias para uma conduta mais adequada de acordo com as habilidades da criança. A partir dessas considerações, foi proposta a comparação da ficha de Antipoff com a CIF, com o objetivo de compreender as possíveis conexões entre os dois instrumentos e a possibilidade de reorganização da ficha para uso na atualidade, na perspectiva de uma avaliação biopsicossocial, indo ao encontro do que preconiza a Lei Brasileira de Inclusão – Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015.
Considerando os poucos estudos existentes que tratam da CIF e educação, enfatiza-se a relevância do instrumento criado por Helena Antipoff voltado a subsidiar a prática docente com crianças com ou sem deficiência e com foco na Educação Infantil. Além disso, sua perspectiva para uso no contexto escolar como estratégia para inclusão das crianças com deficiência pode auxiliar o professor a conhecer seu aluno e planejar ações. Portanto, o objetivo deste estudo foi resgatar a Ficha de Observação proposta por Helena Antipoff e compará-la à versão mais atual da CIF de 2020, seguindo as regras de conexão de Cieza et al. (2002, 2005, 2019), para que a ficha de Antipoff possa ser utilizada como instrumento de avaliação inicial e identificação do perfil de funcionalidade da criança com deficiência no contexto da Educação Infantil.
2 Método
Este estudo teve como objetivo realizar a conexão entre a Ficha de Observação Mental da Criança de Helena Antipoff (1981) e a CIF por meio das regras de Cieza et al. (2002, 2005, 2019) e cumpriu as exigências éticas, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP-UFMG), Parecer nº 5.266.637.
Inicialmente, foi realizado o levantamento dos escritos originais de Helena Antipoff, existentes na Fundação Helena Antipoff, localizada na cidade de Ibirité, Minas Gerais (MG), e na Sala Helena Antipoff, na Biblioteca Central da UFMG. Os escritos escolhidos estão relacionados ao período de 1929 a 1992 e têm relação com a Educação Especial, desenvolvimento infantil, aos conceitos relacionados à deficiência e a instrumentos de avaliação.
Dentre os achados, obteve-se acesso a quatro versões da Ficha de Observação do Desenvolvimento Mental da Criança, datadas de 1939, 1953, 1969 e 1981, todas similares no seu conteúdo, apenas com pequenas mudanças de ajustes gramaticais e da língua portuguesa. Optou-se por utilizar a versão mais atual, publicada em 1981, para estudo mais aprofundado e realização da conexão com a CIF. A escolha do instrumento deu-se pela reconhecida importância das contribuições de Helena Antipoff para a Educação Especial no Brasil; pelo foco da ficha em crianças de 0 a 6 anos, que devem frequentar a Educação Infantil; e, ainda, pela flexibilidade do instrumento, desenvolvido para utilização de pais, profissionais de saúde e professores, para conhecimento do funcionamento e desenvolvimento da criança, com ou sem deficiência. Mesmo com o título voltado ao desenvolvimento mental, a ficha analisa outros aspectos do desenvolvimento da criança.
A ficha de Antipoff possui 318 itens a serem observados, levando-se em consideração a idade cronológica da criança e distribuídos nas seguintes categorias: (1) Movimentos e Hábitos Gerais; (2) Sentidos e Percepções; (3) Memória e Conhecimentos; (4) Linguagem e Inteligência Verbal; e (5) Comportamento Social. A partir da observação da criança, o examinador deve indicar se a criança realiza a ação e o momento em que aquela ação se tornou um hábito, além de indicar observações que julgar necessárias (Antipoff, 1981).
Para avaliar a conexão entre a CIF e a Ficha de Observação de Antipoff, foi usada a versão mais recente da CIF (OMS, 2020), que inclui os itens relacionados a crianças e jovens. Para o procedimento de conexão, este estudo contou com a colaboração de duas pesquisadoras que possuem conhecimento sobre a estrutura conceitual e fundamentos taxonômicos da CIF, estando também familiarizadas com as regras de vinculação da CIF para associação entre os conceitos mensurados pelos itens do instrumento e os componentes e categorias da CIF, seguindo as regras de Cieza et al. (2002, 2005, 2019). Registra-se que as pesquisadoras aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
As pesquisadoras, de forma independente, fizeram a identificação dos principais conceitos/construtos de cada item da ficha e, posteriormente, a associação de cada um dos construtos identificados com as categorias da CIF, atualizando o instrumento à nomenclatura atual. Para tanto, inicialmente, elas identificaram a proposta principal da informação a ser relacionada, para posteriormente determinar o conceito significativo. Além da identificação do conceito significativo, foi avaliada a existência de um conceito principal e de conceitos adicionais para cada item da ficha. Buscou-se, assim, fazer a conexão do conteúdo da ficha de Antipoff com a CIF, de forma que esta última fosse capaz de traduzir a informação contida na ficha, e não o contrário (Cieza et al., 2019; Paiva et al., 2021). Finalizada a análise pelas pesquisadoras colaboradoras, o material foi devolvido para comparação dos documentos. As discordâncias entre as colaboradoras foram sanadas pela avaliação da equipe de pesquisa.
Após a vinculação final, foi realizada uma análise descritiva dos itens do instrumento, contendo o número total de conceitos significativos ligados a categorias nos componentes da CIF (atividades e participação; funções e estruturas do corpo e fatores ambientais) e o número de conceitos significativos que não puderam ser vinculados (codificados como não definidos, não cobertos, condição de saúde). Também foi realizado o cálculo do coeficiente de concordância entre os dois examinadores pelo índice de Kappa, conforme sugerido por outros estudos (Sigl et al., 2006). O valor Kappa varia de -1 (ausência total de concordância) a 1 (concordância total). Valores Kappa superiores a 0,8 são considerados muito bons, níveis entre 0,6 e 0,8 são considerados bons e níveis menores que 0,6 são considerados baixos (Hulley et al., 2008).
3 Resultados
Tendo como base as regras de conexão propostas por Cieza et al. (2002, 2005, 2019), dos 318 itens da Ficha de Observação do Desenvolvimento da Criança, 104 (32%) estão relacionados ao componente Função do Corpo; 173 (54%) ao componente Atividade e Participação; 22 (6%) estão relacionados a ambos os componentes (Função do Corpo e Atividade e Participação); e 19 (5%) não foram relacionados a nenhum dos componentes da CIF. O coeficiente de concordância entre os examinadores foi considerado bom (Kapa=0,789). A Tabela 1 apresenta a análise descritiva da conexão dos itens da ficha, por tópico, com a CIF.
Categorias da ficha | CIF | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Funcionalidade e incapacidade | Fatores contextuais | ||||||
FC | EC | AP | FC&AP | FA | FP | NC | |
Movimentos/Hábitos Gerais | 24 (23,1%) | - | 99 (57,2%) | 8 (36.3%) | - | - | 5(26,3%) |
Sentidos/ Percepção | 39 (37,5%) | - | 16 (9,2%) | 3 (13,6%) | - | - | - |
Memória/Conhecimentos | 27 (26%) | - | 7 (4,2%) | 1 (4,7%) | - | - | 4 (21%) |
Linguagem | 4 (3,8%) | - | 29 (16,7%) | 10 (45,4%) | - | - | 2 (10,6%) |
Comportamento Social | 10 (9,6%) | - | 22 (12,7%) | - | - | - | 8 (42,1%) |
Total | 104 | - | 173 | 22 | - | - | 19 |
Nota. FC=Funções do Corpo; EC=Estrutura do Corpo; AP=Atividade e Participação; FC&AP= Funções do Corpo e Atividade e Participação; FA=Fatores Ambientais; FP=Fatores Pessoais; NC=Não classificado.
Os itens não relacionados com a CIF estão elencados na Tabela 2, por aspecto, da ficha de Antipoff. Nenhum item da ficha foi correlacionado ao componente Estrutura do Corpo, que trata do funcionamento das estruturas do corpo propriamente ditas, como as partes anatômicas – órgãos, membros e seus componentes. Também não foi identificada conexão dos itens da ficha ao tópico Fatores Contextuais, que inclui os componentes Fatores Ambientais e Fatores Pessoais.
Categorias da ficha | Item |
---|---|
Movimentos/ Hábitos Gerais |
Desaparece o reflexo de agarrar. Predominância da mão direita para pegar objetos. Tenta dançar. Aperta voluntariamente as pálpebras. Franze os lábios para assobiar. |
Sentidos/ Percepção | - |
Memória/ Conhecimentos |
Colocado na posição de mamar, antes de receber e ver a mamadeira, abre a boca e volta a cabeça. A mãe não é reconhecida. Ao ver a mamadeira, faz movimento de sucção. Tranquiliza-se, quando está chorando por fome, ao ver a mamadeira. |
Linguagem |
Fala designando-se na 3ª pessoa. Indicações de objetos/pessoas de preferência na figura. |
Comportamento Social |
Chora ao ouvir outras crianças chorando. Assusta com barulho forte e olha para um adulto. Quando em perigo, pede auxílio para um adulto. Agrupamento. Espera retirar objetos da mesa, antes de pedir a sobremesa. Grupos menos pacíficos. Jogos coletivos com predomínio de grupos de três crianças. Descobre os defeitos dos pais. |
A Tabela 3 apresenta um exemplo da conexão de alguns itens da ficha de Antipoff à CIF. Nota-se que há um crescente de itens relacionados com o componente Atividade e Participação com o avanço da idade da criança. A codificação completa da ficha pode ser solicitada aos autores deste estudo.
Idade | Item da ficha | Domínio da CIF ao qual o item se relaciona | Conceito principal | Categoria mais precisa da CIF |
---|---|---|---|---|
Ao nascer | Segurando a criança pelo nariz, a criança move os braços, mãos e ombros. | Funções do Corpo | Funções Neuromusculoesqueléticas e Relacionadas ao Movimento | b750 Funções relacionadas ao reflexo motor |
1 ano | Discrimina a cor branca. | Atividades e Participação/ Funções do Corpo | Aprendizagem e Aplicação do Conhecimento/ = Funções Sensoriais e Dor | b210 Funções da visão b156 Funções da percepção |
2 anos | Repete pequenas palavras (4 sílabas). | Funções do Corpo/Atividade e Participação | Funções mentais |
b167 Funções mentais da linguagem d132 Aquisição de linguagem d159 |
3 anos | Nomes de objetos usuais (chave, relógio, moeda, lápis etc.). | Atividades e Participação | Comunicação | d330 Fala |
Dentre os oito domínios relacionados ao componente Função do Corpo, a ficha apresenta conexão com quatro deles: Funções Sensoriais e de Dor, Funções Neuromusculoesqueléticas e Relacionadas ao Movimento, Funções Mentais e Funções da Voz e da Fala. Dentre as nove áreas da vida relacionadas aos componentes Atividade e Participação, a ficha apresenta conexão com sete delas: Aprendizagem e aplicação do conhecimento, Comunicação, Mobilidade, Cuidado Pessoal, Tarefas e demandas gerais, Vida comunitária social e cívica e Relações e interações interpessoais. A Tabela 4 apresenta em quais domínios e áreas da vida propostos pela CIF, cada categoria da Ficha de Observação foi associada.
Categorias da ficha | Funções do Corpo | Atividade e Participação |
---|---|---|
Movimentos e Formação de Hábitos Gerais | Funções neuromusculoesqueléticas e relacionadas ao movimento | Aprendizagem e aplicação de conhecimento |
Funções sensoriais e de dor | Mobilidade | |
Funções mentais | Comunicação | |
Cuidado pessoal | ||
Sentidos e Percepção | Funções sensoriais e de dor | Aprendizagem e aplicação do conhecimento |
Comunicação | ||
Funções mentais | Mobilidade | |
Memória e Conhecimentos | Funções sensoriais e de dor | Aprendizagem e aplicação do conhecimento |
Funções mentais | Tarefas e demandas gerais | |
Linguagem | Funções da voz e da fala | Aprendizagem e aplicação do conhecimento |
Funções mentais | Comunicação | |
Comportamento Social | Funções sensoriais e de dor | Aprendizagem e aplicação do conhecimento |
Comunicação | ||
Funções mentais | Cuidado pessoal | |
Vida comunitária, social e cívica | ||
Relações e interações interpessoais |
4 Discussão
Os resultados deste estudo apontam para a existência de conexão entre a Ficha de Desenvolvimento Mental da Criança de Helena Antipoff, e a CIF, a partir do uso das regras propostas por Cieza et al. (2002, 2005, 2019). Os itens da ficha foram relacionados ao tópico Funcionalidade e Incapacidade da CIF, considerando os componentes (a) Funções e Estruturas do Corpo e (b) Atividade e Participação. Observou-se que (1) não houve conexão entre os itens da ficha e o domínio Estruturas do Corpo, (2) há um movimento das conexões do componente Função do Corpo para Atividades e Participação, (3) a maioria dos itens da ficha foram relacionados ao componente Atividades e Participação e (4) não houve conexão entre os itens da ficha e os Fatores Contextuais.
A ausência de itens codificados no domínio Estruturas do Corpo, bem como a forte conexão com o componente Atividade e Participação, enfatiza que o objetivo da avaliação não está pautado na detecção de uma condição de saúde, um diagnóstico ou de limitações físicas. Indica que a ficha busca avaliar as funções do corpo em associação com habilidades funcionais relevantes para o desempenho das atividades no contexto domiciliar e da escola, evidenciando um ponto positivo do instrumento na direção da perspectiva biopsicossocial proposta pela CIF (OMS, 2020)
A relação da maioria dos itens com o domínio Atividade e Participação também pode ser explicada pela visão que Antipoff tinha sobre o desenvolvimento infantil. Embora a ficha não tenha sido construída na perspectiva da CIF, Antipoff dizia ser importante identificar os itens no contexto real da criança. Ela afirmava que a criança deveria ter oportunidade de vivenciar a infância para que se tornasse um adulto saudável, pois apenas podendo, de fato, “ser pequena”, a criança conseguiria fabricar os tijolos da sua futura personalidade e, assim, ser um adulto mais saudável e em harmonia com a sociedade. Essa reflexão acentua a visão interacionista de Antipoff no que se refere ao processo de desenvolvimento infantil, reforçando a importância da participação da criança nos diferentes contextos, bem como a relevância do ambiente sociocultural na vida humana (Luz, 2011).
Antipoff destacava a necessidade dos pais e professores deslocarem sua percepção para colocá-la em sintonia com as necessidades específicas da criança, distinguindo o caminho da participação e do conhecimento de seus modos de organização (Luz, 2011). O que se espera é que a criança passe a desempenhar e participar das atividades do cotidiano, se desenvolvendo da maneira esperada, o que corrobora os estudos de Dunford e Bannigan (2011), Frolek Clark e Kingsley, 2020 e Mandich e Rodger (2006), que afirmam que a participação em ocupações infantis contribui para o desenvolvimento físico, cognitivo, social e afetivo da criança e influencia diretamente na saúde e no bem-estar infantil e da família.
O número de itens relacionados ao domínio Funções do Corpo e a redução desta conexão à medida que a criança fica mais velha está diretamente relacionada à estrutura da ficha e com os estudos que embasaram sua construção. A ficha está estruturada de acordo com os marcos do desenvolvimento infantil, de forma que o observador possa pontuar de forma categórica os marcos do desenvolvimento já alcançados. A construção da ficha foi pautada nos estudos de Alfred Binet6, Charlotte Buhler7, Jean Piaget8, Arnold Gesell9, entre outros médicos e psicólogos comportamentais da época, os quais propunham estudar o desenvolvimento infantil sob diversos aspectos, incluindo a saúde, o contexto familiar e a interação das crianças com o meio (Antipoff, 1939).
O desenvolvimento infantil é parte fundamental do desenvolvimento humano, que se expressa em continuidade e mudanças nas habilidades motoras, cognitivas, psicossociais e de linguagem, com aquisições progressivamente mais complexas nas funções da vida diária e no exercício do papel social. O acompanhamento adequado do desenvolvimento da criança possibilita a identificação precoce de alterações que demandam abordagem oportuna pelos profissionais e familiares que com ela lidam. Portanto, torna-se imprescindível utilizar instrumentos que auxiliem os profissionais na detecção de possíveis alterações do desenvolvimento infantil (Souza et al., 2018).
Dada a importância do acompanhamento do desenvolvimento infantil para uma melhor atuação e intervenção na infância, o Ministério da Saúde brasileiro vem atualizando a forma de acompanhar o crescimento das crianças brasileiras e, em 2020, foi lançada a versão mais atual da Caderneta da Criança, como instrumento norteador para a promoção da saúde. O instrumento conta com uma série de informações sobre direitos, cuidados e desenvolvimento infantil, trazendo também um capítulo com os principais marcos do desenvolvimento infantil, de 0 a 9 anos de idade (Souza et al., 2018). Esses marcos estão acompanhados de dicas para estimulação precoce de forma resumida e pode-se observar a importância do acompanhamento desses marcos para uma intervenção também precoce caso a criança demonstre atraso para adquirir as habilidades necessárias para o seu desenvolvimento (Crespi et al., 2020).
A ausência de itens relacionados aos fatores contextuais que compõem o ambiente físico, social e de atitude no qual as pessoas vivem e conduzem sua vida (OMS, 2020) também pode estar relacionada aos estudiosos que embasaram sua proposta e ao período de sua implementação, em que predominava o modelo médico. Nesse modelo, a deficiência não é entendida em relação ao meio social, mas como uma vivência individual de cada sujeito. Essa ausência pode caracterizar uma limitação do instrumento à luz do modelo proposto pela CIF, pois definir fatores ambientais que são barreiras para o desenvolvimento infantil é imprescindível para uma intervenção individualizada e eficaz (Cardoso et al., 2012). Entretanto, a importância do ambiente e do contexto social para o desenvolvimento infantil nunca foi negligenciado por Antipoff.
Os fatores contextuais representam o histórico completo da vida e do estilo de vida do indivíduo, incluindo os fatores ambientais e fatores pessoais. Na CIF, os fatores ambientais são organizados em dois níveis: individual e social, sendo os fatores individuais relacionados aos espaços como domicílio, local de trabalho e escola; já os sociais se relacionam com as estruturas sociais formais e informais como regras de conduta ou sistemas predominantes na comunidade ou sociedade (OMS, 2020). Levando em consideração o momento político e histórico no qual a ficha foi desenvolvida, o olhar para a avaliação desses fatores certamente ainda se apresentava restrito, ao contrário do que se espera atualmente.
Apesar disso, Luz (2011) afirma que Antipoff preocupava-se em observar o desenvolvimento e os comportamentos da criança e como estes eram influenciados pelo meio. A aplicação da ficha deveria ser feita a partir de observação direta, no contexto real da criança e para além das indicações das habilidades adquiridas; o examinador deveria registrar todo e qualquer fator que influenciasse positiva ou negativamente o desenvolvimento e aprendizado da criança em local específico previsto no instrumento (Antipoff, 1939). A ficha proposta por Antipoff preocupava-se com a identificação de fatores que interferissem no desempenho de atividades e na participação da criança nos diferentes contextos, especialmente o escolar, na direção do proposto pelo modelo biopsicossocial, que sustenta a CIF. Considera-se fundamental, portanto, a inclusão de itens que reflitam esse aspecto da avaliação, permitindo a utilização da ficha de forma mais qualificada.
A Ficha de Observação foi criada quando o modelo médico era preponderante, porém, ao conhecer bem seus itens, percebe-se a proximidade com os itens da CIF. Essa proximidade se dá porque Antipoff não buscava diagnóstico, mas, sim, conhecer a criança por meio da observação, incluindo os fatores sociais, ambientais, as habilidades e aptidões especiais, para, a partir disso, promover uma educação baseada nas suas funcionalidades sob a perspectiva biopsicológica. As ideias de Antipoff sobre educação são coerentes com sua perspectiva do desenvolvimento infantil, alertando para a importância do respeito às crianças e para a necessidade de garantir a sua participação nas instituições educativas.
A participação das crianças nas ocupações infantis na escola e na comunidade é essencial para o seu crescimento e desenvolvimento, visto que é por meio delas que as crianças desenvolvem habilidades, envolvem-se em situações compartilhadas com outras pessoas, aprendem a se expressar, constroem significados, aprendem a desempenhar o papel ocupacional de estudante e desenvolvem aspectos relacionados ao brincar e às relações interpessoais (Law et al., 2006; Ziviani & Muhlenhaupt, 2006). Para que a participação ocorra de forma efetiva, é necessário desenvolver estratégias baseadas no perfil de funcionalidade da criança, levando em consideração que esse perfil muda ao longo do tempo e das experiências que a criança vive.
Os resultados apontam, ainda, que a ficha de Antipoff, apesar de publicada originalmente em 1939, segue a tendência atual de avaliar a criança de forma multifatorial, sistêmica e processual, conforme o modelo da CIF. A ficha pode ser considerada atual, apesar de ter sido concebida no século passado, e se apresenta como um instrumento de avaliação interessante para identificação do perfil de funcionalidade da criança. Além disso, foi pensada para uso de pais e professores, auxiliando na proposição de estratégias de aprendizagem específicas no contexto escolar, focando em uma fase importante da vida da criança. Nessa direção, a ficha pode atender a carência de instrumentos relacionados à CIF para avaliação e acompanhamento da criança com deficiência na primeira infância, traçando um perfil de funcionalidade, em que as dimensões para a avaliação podem incorporar processos neurofisiológicos básicos, bem como funções mentais e comportamentais, como sugerido por Simeonson et al. (2003). Ressalta-se que, apesar de ser um instrumento longo (318 itens), a ficha não deve ser aplicada na totalidade. A observação da criança, tendo a ficha como instrumento de avaliação, deve ser feita considerando a idade biológica da criança; caso ela não tenha atingido os marcos de sua idade, o observador deve buscar observar os marcos correspondentes às idades imediatamente anteriores.
Em relação às crianças com deficiência, a ficha pode ser explorada para utilização no contexto escolar, possibilitando ao educador verificar possíveis alterações no seu desenvolvimento. Os alunos com deficiência matriculados no sistema regular de ensino, tendo como perspectiva a educação inclusiva, poderão ser beneficiados com um sistema de avaliação que tem por foco a funcionalidade, pautado nos preceitos da CIF, uma vez que o conhecimento sobre suas demandas educacionais específicas poderá servir de base segura para a elaboração e implantação de programas de ensino individualizado (Oliveira et al., 2021).
São poucas as pesquisas que tratam da importância da CIF na educação, especialmente no conhecimento a respeito das possibilidades e dificuldades apresentadas pelas crianças com deficiência na escola. O diagnóstico por si não define o sujeito em seu estado funcional, tampouco o tipo e nível de ajuda que cada criança precisa para o seu desenvolvimento e aprendizagem. A importância da CIF na educação dá-se por ser um modelo que possibilita uma avaliação da criança de modo não reducionista, privilegiando suas possibilidades de participação no ambiente com vistas a intervenções mais adequadas (Hollenweger, 2013; Oliveira et al., 2021).
5 Conclusão
Os resultados do presente estudo demonstraram que a maioria dos itens da Ficha de Observação de Helena Antipoff puderam ser codificados e relacionados à estrutura da CIF, demonstrando que o instrumento, mesmo tendo sido formulado no ano de 1939, segue a tendência atual de avaliar os componentes de funções do corpo, bem como os componentes de atividade e participação, aproximando-se do modelo biopsicossocial.
Além disso, os resultados mostraram que a Ficha de Observação pode beneficiar pesquisadores, clínicos, pais e professores, uma vez que o instrumento não é restrito e oferece a oportunidade para obter informações que ultrapassam a perspectiva do modelo biomédico tradicional. A ficha pode ser preenchida no contexto diário da criança, além de ajudar o professor a conhecer a criança por meio do seu desenvolvimento e, assim, traçar um planejamento específico baseado nas habilidades que a criança possui. Esse processo leva em consideração também as habilidades que a criança ainda precisa para alcançar os marcos do desenvolvimento, durante a fase de aquisição de suas primeiras habilidades motoras, cognitivas e comportamentais.
Uma limitação observada nos itens da ficha foi o fato de não haver conexões com os fatores contextuais. Apesar da limitação, o uso da ficha por professores e outros profissionais poderá ajudar a sistematizar o planejamento pedagógico para promoção do desempenho funcional e da participação nos diferentes contextos.
Como estudos futuros, sugere-se a atualização da ficha com reformulação da sua nomenclatura e inclusão de colunas que identifiquem a realização ou não dos itens indicados, a identificação dos fatores contextuais, como, por exemplo, a identificação da necessidade de ajuda para realização das atividades, o nível e a caracterização do suporte necessário. Além disso, considera-se necessária a avaliação do seu uso no contexto escolar por professores, para avaliação de crianças com deficiência com vistas à proposição de planos de ensino individualizados, contribuindo para o desenvolvimento e aprendizado desse público.