1 Introdução
Entre 2003 e 2016, houve uma ampliação das instituições, dos campi, dos cursos e das vagas ofertadas na educação superior no Brasil, com destaque para a expansão das universidades e dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia. A partir dessa expansão, o país chega a 2019 com 63 universidades federais públicas em atividade e 6 em implantação. Nesse sentido, Lima et al. (2021, p. 20) afirmam:
O reflorescimento da educação superior pública e gratuita no país ocorre predominantemente nos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Convencidos de que a elitização do acesso à instituição universitária é uma das formas de exclusão social, ambos os governos se mobilizam para criar as condições oportunas à presença de 30% dos jovens entre 18 e 24 anos na educação superior, meta prevista no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001).
Essa expansão da educação superior ampliou o contingente de estudantes de graduação pretos(as) e pardos(as) nas universidades, tendo aumentado sua presença de 160.527, em 2003, para 613.826, em 2018 (ANDIFES, 2019), com os discentes de graduação negros – pretos e pardos – e indígenas compondo 61,1% do total, como indica o Censo dos Estudantes das Universidades Federais. Também houve ampliação dos estudantes originários de famílias de baixa renda, pois se, em 2003, 42,8% dos discentes pertenciam a famílias que tinham renda de até 1,5 salários-mínimos per capita, em 2018, esse contingente atingia 70,2% do total (ANDIFES, 2019). Também em 2003, 37,5% dos discentes tinham cursado o ensino médio exclusivamente em escolas públicas, enquanto em 2018 esse percentual engloba 60,4% (ANDIFES, 2019). Ampliou-se, também, a presença feminina nas universidades, com o percentual de mulheres atingindo 54,6% em 2018 (ANDIFES, 2019).
Nesse contexto, das 63 universidades implantadas no Brasil, duas detêm caráter internacionalizado, ambas criadas em 2010. A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que tem como foco a cooperação internacional com os países africanos da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), e a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), voltada à América Latina, particularmente aos países do MERCOSUL (UNILA, 2020).
Situada no Ceará, em duas pequenas cidades, Redenção e Acarape, a aproximadamente 60 km da capital do estado, Fortaleza, a UNILAB (2020, grifos do original) é vocacionada “para a cooperação internacional e compromissada com a interculturalidade, a cidadania e a democracia nas sociedades”, enfatizando o “intercâmbio acadêmico e solidário com Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste”. Fortaleza, com população estimada em 2,7 milhões de pessoas (IBGE, 2019), convém sinalizar, é uma das cidades mais populosas do país. A UNILAB também possui um campus na Bahia, em São Francisco do Conde. Sua criação, ampliando o acesso à educação superior, inseriu-se na prioridade conferida pelos governos Lula e Dilma às relações Brasil-África, no contexto da cooperação solidária sul-sul (SPELLER, 2021), e às políticas de promoção da igualdade racial no Brasil, considerando as lutas e pautas de um conjunto variado de agentes sociais, incluso o movimento negro (GALA, 2021).
Na UNILAB, é ainda mais acentuada a presença de segmentos populares, mulheres, negros e indígenas, sendo possível falar em uma universidade marcada pelo pluralismo histórico e pela inter-historicidade (SEGATO, 2012). Apenas para ilustrar, 82,8% dos discentes de graduação presencial no Ceará se autodeclaram negros – pretos e pardos – e indígenas (UNILAB, 2019). Em 2019, há, na UNILAB no Ceará, 3894 discentes de graduação presencial (UNILAB, 2019), com 3016 brasileiros, inclusos 125 indígenas ou quilombolas, 12 timorenses e 866 africanos – com 223 angolanos, 53 cabo verdianos, 507 guineenses, 35 moçambicanos e 48 são tomenses (UNILAB, 2019).
Para compreender a intensidade da presença de discentes africanos – dos países anteriormente indicados – e timorenses na UNILAB, cabe indicar que, entre 2011 e o primeiro semestre de 2019, quando o Programa Estudantes Convênio – Graduação (PEC-G)1 selecionou 1632 estudantes em todo o país, a UNILAB recebeu 2124 discentes (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019; UNILAB, 2019). Portanto, a UNILAB acolheu, considerando o ingresso dessas nacionalidades através do PEC-G, mais estudantes estrangeiros do que todas as outras universidades brasileiras juntas. Não é à toa que Timbane (2020, p. 33) afirma:
A UNILAB é uma instituição rica sob o ponto de vista da cultura, das línguas e de práticas pedagógicas versáteis uma vez que os professores adaptam (a todo momento) suas metodologias para atender estudantes de culturas diversas, de formações iniciais diferentes e de línguas diferentes.
Nesse contexto, nosso grupo de extensão e pesquisa vem desenvolvendo ações de extensão e pesquisa desde 2015, com foco na análise dos impactos urbanos da implantação da UNILAB nas duas cidades e em como os discentes vivenciam o cotidiano acadêmico e urbano.
A partir dessas ações, e considerando que somos docentes/egressos da instituição, brasileiros e guineenses, vivenciamos o cotidiano universitário-urbano com muita intensidade nos últimos anos, percebendo sua densidade e complexidade. Aos poucos, nossa atuação foi requerendo a incorporação de referenciais teóricos e metodológicos e a coleta/produção, sistematização e análise de dados empíricos.
De modo mais direto, necessitamos constituir e incorporar categorias, estratégias e metodologias de atuação e investigação. Assim, este artigo apresenta vetores teórico-empíricos que conformam um arcabouço analítico em construção, o qual – pretende-se – fundamentará o aprofundamento e o desenvolvimento das intervenções, investigações e análises. Assim, sistematizamos e apresentamos reflexões e construções teórico-empíricas que podem apoiar a atuação do Grupo, considerando e articulando múltiplas escalas – nano, micro, meso, macro – que atravessam e constituem a universidade e o urbano.
Ao partilharmos achados analíticos e registrarmos memórias do cotidiano vivenciado, buscamos fomentar um entendimento mais aprofundado de uma instituição densa e complexa como uma universidade interiorizada e internacionalizada. Nesse sentido, compreendemos que os achados e questões teórico-empíricas aqui apresentadas podem gerar insights e fundamentar/instigar análises em que as situações e experiências cotidianas em escala micro e nano adquiram relevância analítica, sem descuidar de articulações transescalares, inclusive sendo aplicadas em outros objetos de investigação.
O artigo se apoia em dados secundários e primários, articulando metodologias que integram um viés etnográfico influenciado pela cartografia social, assim como a análise de documentos e a efetivação de rodas de conversa, intercâmbios, questionários, entrevistas e sketches. Cabe destacar, porém, que, embora apresentando dados coletados em diários de campo e, de modo geral, decorrentes da própria imersão dos autores no campo, este artigo não se trata de acentuar o viés etnográfico, em que a descrição densa de situações concretas e uma multiplicidade das falas comporiam a narrativa aqui desenvolvida2.
O trabalho se estrutura, além da Introdução e das Considerações Finais, em quatro tópicos. O primeiro discute teórica e empiricamente o campo universitário-urbano e os subcampos; o segundo agrega aos esquemas cognitivos e aos sentidos partilhados um viés neopragmático, articulando as categorias distúrbio e situações problemáticas, além de apresentar cotidiano e experiência; o terceiro evidencia a centralidade da dimensão conflitual na dinâmica cotidiana no campo; e o quarto evidencia dois ciclos identificados no campo, discutindo suas características e implicações.
2 Um campo universitário-urbano singular
Aos poucos, fomos construindo o entendimento de que a Universidade e as duas cidades compõem um campo universitário-urbano, onde convivem e interagem variados agentes sociais, ocupando posições, mobilizando recursos, exercendo poder e recriando – estrutural e disposicionalmente – o próprio campo. Trata-se de um universo social relativamente autônomo, estruturalmente delimitado por um conjunto de posições distintas e coexistentes (BOURDIEU, 2004). Assim, o campo vai se constituindo à medida em que se instituem e reproduzem estruturas, as quais circunscrevem posições e agregam capitais, cabendo destacar as estruturas institucionais/burocrático-administrativas, mas também estruturas informais, particularmente as vinculadas ao que caracterizaremos, um pouco à frente, como subcampos e polos.
Ao ingressar – e permanecer – no campo, cada agente (individual, coletivo e/ou institucional) institui/ocupa posições que permitem o acesso e operação de capitais existentes/mobilizados – econômicos, políticos, sociais, culturais, intelectuais, estéticos, éticos, técnicos, simbólicos (BOURDIEU, 1996a; 2004). Os capitais evidenciam recursos atuais ou potenciais e as posições delimitam o acesso a esses capitais, considerando, em alguns casos, exclusividades, privilégios e monopólios no exercício do poder e na formação de decisões (BOURDIEU, 2007). Assim, o campo revela, em diferentes ciclos e conjunturas, uma distribuição específica – e desigual – de instrumentos e meios para o exercício do poder, evidenciando a objetividade de um lugar hierarquizado, onde se agrupa e interage um conjunto variado de agentes (BOURDIEU, 1996b; 2004; ORTIZ, 2003). Mais do que isso, a atuação no campo envolve a aplicação recursiva e motivacional de estoques de conhecimento e habilidades continuamente mobilizados (PETERS, 2006). Nesse sentido, configurando sensos práticos (BOURDIEU, 1996b), as disposições impelem e habilitam cada agente, a partir de sua trajetória, a interagir e a definir a melhor postura e escolha em cada situação, tornando-o apto e inclinado a realizar determinadas transações, permitindo-o enfrentar as situações cotidianas – considerando as tensões, interpelações, condicionamentos e interdependências existentes (MACHADO, 2015, 2017; MACHADO et al., 2017).
Desse modo, estruturas e disposições socialmente constituídas condicionam e mediam as práticas cotidianamente efetivadas pelos agentes (BOURDIEU, 1996a), cabendo falar no caráter situado e interdependente das ações sociais (ELIAS, 2001), com cada agente sendo interpelado e tensionado por relações, agentes e forças diversas. Nesse contexto, constituem-se interesses, expectativas e motivações singulares, e, portanto, situar-se em um campo remete a sentir/produzir forças e/ou efeitos (BOURDIEU, 2007), com as ações cotidianas inscrevendo-se em processualidades com certo grau de sequencialidade e cumulatividade, marcadas por enredamentos e mutualidades. Nessa perspectiva, as processualidades revelam dinâmicas de individuação, inscritas em uma “configuração de elementos, forças ou linhas que atuam simultaneamente”, mas também marcadas por um “devir em constante movimento”, guardando, portanto, “a potência do movimento” (KASTRUP; BARROS, 2015, p. 77).
Nessa perspectiva, a UNILAB parece constituir-se, no Ceará, associada às cidades de Redenção e de Acarape, enquanto um espaço social – um campo universitário-urbano – onde convive um conjunto variado de agentes sociais, evidenciando lutas, razões e paixões que se intensificam, assim como interesses, expectativas e motivações que se sobrepõem e tensionam (BOURDIEU, 1996b).
Todavia, como analisar esse cotidiano experiencial no campo? Mais do que isso, de um modo que não implique em assumirmos uma perspectiva determinística quanto aos condicionamentos que compõem o campo? Através do entendimento de que tensionamentos, contradições e paradoxos permitem/requerem um refazer-se e, mais do que isso, descontinuidades, mudanças, rupturas e linhas de fuga.
Para mergulhar no cotidiano do campo, inclusive compreendendo que há estruturas que extrapolam o próprio campo, mobilizamos o paradigma indiciário (GINZBURG, 1989) associado a uma sociologia do cotidiano (PAIS, 1993) e a uma geo-história de longa duração, entrelaçando as práticas cotidianas às “tramas finas das estruturas” urbanas de longa duração (BRAUDEL, 1965; PAIS, 2005). Cabe destacar que, ao nos referimos aos indícios, estamos mobilizando um “método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores”, ou, dito de outra forma, os “pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ‘baixos’” (GINZBURG, 1989, p. 149-150). Nesse sentido, o foco analítico nas “cenas banais da vida cotidiana” permite “fazer insinuar o social, através de alusões sugestivas ou de insinuações indiciosas” (GINZBURG, 1989, p. 143), instigando a conversão do “quotidiano em permanente surpresa” (PAIS, 1993, p. 106), desnaturalizando e problematizando o que parece normal, absolutamente estável, coerente, ordenado e transparente.
Além dessas articulações teórico-empíricas, cabe indicar referenciais associados aos migrantes, às diásporas e ao urbano, os quais reforçam a compreensão da intensidade, densidade e complexidade do campo.
2.1 Migrantes Temporários e Diásporas
A intensidade, densidade e complexidade do campo associa-se ao fato da UNILAB ser uma universidade marcada pela presença de estudantes que são migrantes temporários, em um contexto de interiorização e de cooperação internacional na educação superior (SUBUHANA, 2005; 2007; GUSMÃO, 2012; HELENO, 2014; BARROS, 2015; RIBEIRO, 2015; MENEGHEL; AMARAL, 2016).
Ao nos referirmos aos migrantes temporários, estamos remetendo a estudantes originários: a) de variados distritos, localidades, sítios e núcleos urbanos da Região do Maciço de Baturité, composta por 13 municípios, inclusive Redenção e Acarape (Vide Figura 1); b) de outras regiões e municípios do Ceará, particularmente da Região da Grande Fortaleza (Vide Figura 1), e também de outros estados do país, advindos de áreas rurais, de pequenas e médias cidades e de metrópoles; c) de outros países, particularmente o Timor Leste e os países africanos da CPLP – Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
As vivências estudantis inscrevem-se em mobilidades e fluxos e são atravessadas por subalternidades associadas à colonialidade e à inserção periférica do país no capitalismo global. Essa condição inscreve esses estudantes em diásporas, conformadas por redes, fluxos e circuitos. Aqui cabe destacar, como indicam Silva e Morais (2012, p. 174), que “a diáspora figura como conceito justamente para reforçar a ideia de multilocalidade, porque não pressupõe um sujeito vinculado somente a um limite geopolítico específico”. Esse elemento reforça a ideia de que as experiências vivenciadas pelos discentes no campo universitário-urbano são atravessadas por múltiplas escalas.
Considerando a migração temporária, vivencia-se uma ampla diversidade estudantil, com clivagens identitárias envolvendo classe social, nacionalidade, raça, etnia, gênero, sexualidade, religiosidade, ideologia política, língua e cultura. Nesse contexto, ganham relevância os “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” (MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 20), destacando-se os “entre-lugares” (BHABHA, 2013, apudMIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 38) e os “hibridismos” enquanto categorias significativas (BHABHA, 2013 apudMIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 40). Não é à toa, portanto, que o que Simas (2019) destaca como a diáspora é lugar de sofrimento e tragédia, evidenciando fragilidades, sensibilidades afloradas, distanciamentos, desenraizamentos e perdas, mas é também lugar de invenção, renovação, recriação, considerando que se trata de lugar de trânsito, de movimento, de passagem, de múltiplas encruzilhadas.
2.2 Um Urbano Ampliado e Intensificado
A universidade se espraia, no Ceará, pelas duas pequenas cidades – Redenção e Acarape –, com a presença estudantil inscrevendo-se em um cotidiano urbano complexo e vice-versa, com as cidades enraizando-se e compondo os espaços acadêmicos. Redenção e Acarape são cidades praticamente conurbadas e suas manchas urbanas reduzidas permitem deslocamentos através de caminhadas, sendo um elemento essencial às cidades, com a convivência cotidiana face a face envolvendo os agentes acadêmicos, particularmente milhares de estudantes e os moradores que ali já residiam.
O caráter acadêmico-científico interiorizado, internacionalizado e associado à migração temporária e às diásporas impacta intensamente o urbano3, implicando na constituição de um urbano paradoxal, marcado, ao mesmo tempo, por ritmos lentos, a priori, considerando tratar-se de pequenas cidades interioranas, e de ritmos rápidos, intensos e transescalares, em virtude da incorporação de outros agentes, processualidades, estruturas, fluxos e redes. Revela-se, portanto, um urbano marcado pela proximidade e ritmo lento do interior e do rural, e, ao mesmo tempo, marcado pela intensidade, pela velocidade, por múltiplas escalas e por distanciamentos – tensionados e questionados, por vezes – associados às migrações em contextos de diásporas, mas também às desigualdades e segregações urbanas e às hegemonias e subalternidades que se estruturam, reproduzem e reconfiguram continuamente.
A partir da implantação da UNILAB, ao mesmo tempo em que preservam certas características de pequenas cidades interioranas, as urbes são paradoxalmente atravessadas por maior intensidade de processualidades, fluxos e redes, inscrevendo em si novas funções urbanas – assentadas em dimensões profissionais, acadêmicas e científicas –, ampliando seu raio de influência. Nesse contexto, seus moradores são interpelados continuamente por tensões entre: (a) diferentes ritmos, lógicas, epistemes e ontologias urbanas, particularmente se considerarmos um urbano ampliado em virtude das diásporas e das virtualidades que se amplificam; (b) tradições e inovações, permanências e mudanças; (c) passados, presentes e futuros que se interpelam, tensionam, refuncionalizam e ressignificam – para ilustrar, envolvendo, por exemplo, negritude e racismo nas cidades.
Nesse contexto, as juventudes estudantis emergem como agentes urbanos, sociais e políticos relevantes, com tensões, conflitos e disputas intensas, compondo o cotidiano no campo. Essa centralidade de uma dimensão conflitual relaciona-se aos processos e dinâmicas urbanas de ocupação, acesso, uso, regulação, construção e posse/propriedade da terra urbana, das diferentes partes que compõem as cidades, considerando-se espaços privados e públicos.
Evidencia-se, então, um urbano marcado pela intensificação das dinâmicas urbanas, por uma multiescalaridade e por articulações mais complexas entre o material, o imaterial e o virtual. Nesse sentido, também cabe considerar que, como toda periferia do sul global, o espaço conformado pela universidade e pelas duas pequenas cidades é marcado por violências, violações de direitos e privações em várias ordens e escalas (MACHADO et al., 2017, 2019). Revela-se um urbano marcado por desigualdades, segregações e questões urbanas que impactam reiteradamente o cotidiano vivenciado, atingindo, particularmente, os discentes em sua vida cotidiana (LANGA, 2016; MACHADO et al., 2017, 2019; MALOMALO, 2018), evidenciando opressões associadas ao colonialismo, à colonialidade e ao capitalismo.
Ao mesmo tempo, evidenciam-se resistências, estratégias, táticas e linhas de fuga em constante reconstrução no campo, ainda mais se considerarmos que são muitas as expectativas associadas à UNILAB, considerando democratização, interiorização, cooperação com a África, reparação histórica, direitos humanos e geração de alternativas ao desenvolvimento. Nesse contexto, o campo é profundamente marcado por ativismos, militâncias e movimentos sociais – de mulheres, de gênero, negros, indígenas, quilombolas, africanos, afrodescendentes, trabalhadores, dentre outros (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019)4.
3 Entre o trabalho do sentido e a lida com situações problemáticas
Considerando as questões anteriores e entendendo que o campo é “campo de forças, e também de lutas que visam transformar esse campo de forças” (BOURDIEU, 2003, p. 38), a constituição de subcampos pode evidenciar vetores relevantes à análise. Nesse sentido, Alvarez (2014, p. 18-19) indica como os subcampos se constituem através de disputas interpretativas ou discursivas, carreando
[...] linguagens, sentidos, visões de mundo pelo menos parcialmente compartilhadas, mesmo que quase sempre disputadas, por uma espécie de gramática política que vincula as[/os] atoras/es que com eles se identificam.
Variados subcampos vão se constituindo e compondo o campo universitário-urbano – feministas, africanos, negros, indígenas, quilombolas, estudantes, de religiões afrodescendentes, sindicais, dentre outros. Ao mesmo tempo, é possível avaliar que o subcampo burocrático-institucional – com suas instâncias, dinâmicas, reuniões, cargos, órgãos, decisões, capitais e posições – atravessa e integra todos os demais subcampos.
Desse modo, cada subcampo gera gramáticas próprias e um universo de sentidos partilhados, constituindo frames (NUNES, 2013), ou paradigmas interpretativos (ALVAREZ, 2009), entendendo-se o frame como um “quadro que organiza a percepção e a experiência e que constrange a interpretação, constituindo também uma condição necessária para sua existência” (NUNES, 2013, p. 151). É possível falar, portanto, em “comunidades interpretativas ou discursivas”, com os discursos constituindo “um universo de significados que se traduzem ou se (re)constroem ao fluir ao longo de diversas teias político-comunicativas, norteando as estratégias e identidades das[/dos] atoras/es que se coligam nesse campo” (ALVAREZ, 2014, p. 18-19). Porém, nem os subcampos, nem os frames e as interpretações estão constituídos a priori.
Um subcampo emerge à medida que um conjunto de agentes mobiliza, constitui e opera interpretações, discursos e narrativas próprias. As interpretações e avaliações coletivas se entrelaçam à própria constituição, continuidade ou fragilização dos subcampos e dotam de sentidos os processos e as situações cotidianas experienciadas pelos agentes, com esses se articulando “através de redes político-comunicativas – ou melhor, teias ou malhas – reticuladas” (ALVAREZ, 2014, p. 18).
Desse modo, o cotidiano vivenciado no campo evidencia como as dimensões e as dinâmicas cognitivas, discursivas e simbólicas detêm centralidade e relevância nas vivências e lutas políticas cotidianas, as quais transitam entre o formal e o informal.
Porém, mesmo considerando esse “trabalho do sentido” (CEFAÏ, 2017a, p. 190), avaliamos que um enfoque pragmático enriquece a percepção, deslocando o foco analítico da categoria discurso para a categoria experiência. Nessa perspectiva, podemos falar no distúrbio (CEFAÏ, 2017a) enquanto uma categoria que permite indiciar aquilo que perturba a ordem natural das coisas, o que aparentemente estaria estabelecido, normalizado, naturalizado, o que seria aceito de modo espontâneo, emergindo, portanto, como uma alteração da atitude natural, uma desorientação que pode derivar e se expressar “na passagem à atitude reflexiva” (CEFAÏ, 2017a, p. 192). Nesse sentido, Cefaï (2017a, p. 191) indica como o distúrbio “costuma nascer de provas afetivas, sensíveis ou avaliativas que perturbam a base de evidência das coisas da vida cotidiana e levam a fazer investigações para elucidar em que consiste esse distúrbio”. E, mais do que isso, cabe entender que a experiência transcende as “vivências intersubjetivas”, remetendo a um “habitat experiencial” (CEFAÏ, 2017a, p. 191), o campo, na perspectiva aqui trabalhada, envolvendo sentidos afetivos e estéticos, experimentações práticas e trocas interacionais (CEFAÏ, 2017a).
A partir dessas referências e questões, cabe destacar que a “passagem” para uma atitude reflexiva conceitualmente envolve dinâmicas de definição e lida com os distúrbios, instituindo “situações problemáticas” experienciadas cotidianamente, envolvendo, por exemplo, situações marcadas por desigualdades e segregações urbanas, machismo, racismo, xenofobia e LGBTfobia. Aos poucos, e a partir de certas experiências vivenciadas, podem constituir-se condições que tensionam o que até então era percebido, sentido e vivenciado como normal, natural, aceitável, instituindo-se situações problemáticas que evidenciam a emergência processual de uma dinâmica pública, política e cognitiva, o que ocorre de modo mais ou menos intuitivo, espontâneo e informal, evidenciando a passagem do privado para o público, o deslocamento do que era até então, considerando da ordem do particular para uma ordem política/pública.
Desse modo, a passagem do distúrbio para a situação problemática evidencia que determinados conjuntos de agentes buscam, em algum grau, entender, explicar, representar e controlar as experiências vivenciadas. Não é à toa, portanto, que:
Quando Dewey (2003) descreve a emergência do coletivo de exploradores, investigadores e experimentadores que forma um público, faz referência a essa dimensão experiencial, indissociavelmente afetiva, cognitiva e normativa, ancorada no presente, mas abrindo para horizontes de passado e presente, em que convicções “pessoais” vão se formar, se reforçar e se exprimir em um processo de “coletivização” e de “publicização” de um caso, de um problema ou de uma causa. (CEFAÏ, 2009, p. 26)
Considerando essas ancoragens teórico-empíricas, percebemos que o campo universitário-urbano analisado se evidencia como centralmente marcado por uma dimensão conflitual, em um cotidiano que transcende a mera formalidade acadêmica ou os limites estreitos de uma dinâmica acadêmica stricto sensu. Nesse sentido, à medida que os agentes no campo vão lidando pragmaticamente com as situações cotidianas experienciadas, vão constituindo, em alguns casos, mediações coletivas significativas (BLUMER, 1980; CEFAÏ, 2009, 2017a, 2017b), cabendo destacar a relevância dos subcampos nesses processos.
Como é possível intuir, a definição e a forma de lidar com situações problemáticas não se desvincula, portanto, de um trabalho do sentido, mas vai além dele, ao se inscrever em mobilizações em público, em preocupações e problemas partilhados e, de modo geral, ao compor uma “capacidade de sentir em comum [...] que se realiza por intermédio de uma atividade coletiva” (CEFAÏ, 2017a, p. 196). Desse modo, evidencia-se a constituição de “mediações de experiências coletivas” com certa sequencialidade e cumulatividade, particularmente nos subcampos, cabendo destacar que:
A mediação de uma experiência coletiva é, aqui, capital para que o distúrbio seja problematizado e publicizado e para que as pessoas saibam com o que estão lidando e o que fazer com isso. [...] Em outras palavras, geram um campo de experiência coletiva com modos de ver, dizer e fazer de sentido comum, articulados por uma rede de números, categorias, tipos, relatos e argumentos disponíveis que permitem apreender um estado de coisas como um problema identificável e reconhecível (CEFAÏ, 2017a, p. 192).
Assim, a constituição do campo ocorre à medida que conjuntos de agentes “delimitam problemas que têm alcance público” (CEFAÏ, 2017a, p. 197), com a “trajetória de um problema público” ordenando “um horizonte de engajamentos, de preocupações, de sensibilizações e de mobilizações em seu entorno”, vinculando “processos de associação, de cooperação e de comunicação” (CEFAÏ, 2009, p. 16). Cabe falar, portanto, para além do trabalho do sentido, de práticas cotidianas que envolvem operações de ajuste e de coordenação das tarefas (CEFAÏ, 2009), mesmo que efetivadas de modo mais ou menos espontâneo. Nessa processualidade, a constituição de mediações coletivas e de subcampos se entrelaça, fixando “hábitos de cooperação e de conflito” e fornecendo “parâmetros de experiência cognitiva e normativa” (CEFAÏ, 2009, p. 19).
Para ilustrar, em um contexto onde confluem estudos e discussões acadêmicas no âmbito do feminismo e dos estudos de gênero e distúrbios envolvendo desigualdades e violências de gênero, emerge, aos poucos, um movimento feminista coligado com um movimento LGBTQIA+, configurando esquemas interpretativos, discursos e situações problemáticas singulares. Porém, também aos poucos e a partir de certos episódios significativos, algumas mulheres, estudantes de países africanos, vão constituindo práticas e discursos que revelam que não se sentem representadas por esse feminismo que é entendido, em alguns momentos, como brasileiro ou ocidentalizado. Emerge, então, uma situação em que o “consenso presumido”, da unidade de um pretenso movimento feminista universal, é tensionado, em que uma situação problemática se constitui, com um conjunto de mulheres buscando lidar com ela, conformando experiências coletivas compartilhadas, constituindo outras formas associativas, interpretações e discursos. Conseguem, assim, aos poucos, escavar o campo, conformando lugares ou posições próprias e constituindo-se enquanto agentes distintas, ativas e reconhecidas (MACHADO; GOMES; SILVA, 2021).
4 A centralidade da dimensão conflitual no cotidiano experienciado
Variados episódios evidenciam a centralidade da dimensão conflitual no campo, diversas vezes evidenciando a confluência entre estruturas de longa duração e situações cotidianas vivenciadas, revelando, para além da rotina que se repete, um conjunto de episódios racistas, machistas, LGBTfóbicos e xenófobos. Aos poucos emergem distúrbios, com alguns se tornando situações problemáticas. No período analisado, esse contexto se agravou no campo em virtude do fortalecimento de segmentos, discursos e práticas neoconservadoras, neofascistas e neonazistas no Brasil, com rebatimentos no campo. Destacamos três episódios significativos: em 18 de junho de 2016 emerge uma denúncia de estupro envolvendo estudantes da UNILAB; em 20 de outubro de 2017 ocorre uma tentativa de feminicídio no interior da UNILAB; em 09 de julho de 2019 é lançado o Edital Transgêneros da UNILAB, gerando repercussão nacional, anulado pela Pró-Reitoria de Graduação/Reitoria em 17 de julho.
A denúncia de estupro em 2016 gerou tensão entre professores brasileiros e de países africanos, percebida, por exemplo, em assembleia com a presença de centenas de pessoas, principalmente docentes e discentes, no Pátio da Liberdade, com as falas revelando uma tensão crescente, com acusações de racismo e xenofobia emergindo e o conflito interpessoal evoluindo ao ponto, quase, de agressão física. A situação somente foi contida por intervenção de uma professora, liderança do subcampo de Mulheres/Gêneros, que conseguiu conter os ânimos. Cabe indicar que houve outras denúncias de violência sexual envolvendo discentes da UNILAB, em momentos anteriores e posteriores a esse episódio. Os episódios mais graves geraram, em vários momentos, denúncias públicas e debates virtuais e presenciais, nos corredores, nas salas de aula, nas redes e grupos virtuais, em reuniões institucionais e em assembleias dos segmentos da comunidade acadêmica, muito marcados por tensões e conflitos. De modo geral, de um lado, o grupo de gênero e de mulheres denunciou, e, de outro, uma parte dos professores, professoras e discentes de países africanos questionou, em alguns casos, a forma como as denúncias estavam sendo realizadas, efetivando ou tangenciando um viés racista e/ou xenofóbico – mesmo não intencionalmente.
A tentativa de feminicídio envolveu tiros no campus de Acarape, no turno da noite, com a vítima e o agressor sendo estudantes da Instituição. Em uma sexta-feira à noite, com a presença de mais de mil pessoas, dentre eles docentes, discentes, técnicos, seguranças e terceirizados, os tiros ocorreram no campo do Palmares, gerando pânico, com centenas de pessoas sem saber o que exatamente estava acontecendo diante dos tiros desferidos, correndo, buscando se proteger, descendo escadas. A estudante foi atingida, mas sobreviveu. Nos dias que se seguiram, variados relatos circularam, e o medo, a ansiedade, a revolta e a tristeza foram patentes, com estudantes, particularmente, evidenciando muito sofrimento emocional/psicológico. Algumas lideranças, coletivos e entidades buscaram reagir, para denunciar e lidar com toda a situação. Um dos episódios mais significativos envolveu um sarau poético e musical na Praça do Obelisco, um tradicional ponto de encontro das juventudes estudantis em Redenção, marcado por muita emoção, gerando um espaço e uma situação de catarse coletiva e de denúncia e enfrentamento às violências contra mulheres.
Outro episódio que causou grande repercussão foi a anulação do Edital Transgêneros, em julho de 2019, justificada por argumentos de viés jurídico, gerando muitas críticas e alguma resistência, incapazes, porém, de reverter a anulação àquele momento.
Esses episódios e processos nos permitem perceber como o campo e os subcampos vão se constituindo à medida que é tensionado o “consenso presumido da experiência do senso comum” e posta “à prova a atitude natural dos indivíduos que a compõem” (CEFAÏ, 2009, p. 27), revelando a instituição de lugares de ação coletiva a partir do enfrentamento de situações problemáticas. Essa dinâmica é intensificada no campo universitário-urbano em questão se consideramos o caráter de repartição pública e de espaço acadêmico-científico, assim como a intensa presença de movimentos sociais, com esses vetores dotando de centralidade na dinâmica cotidiana o escrutínio público, a prestação de contas e a crítica reiterada. Assim, a dinâmica cotidiana do campo revela “a forma de verdadeiras deliberações em que nos expomos aos pontos de vista dos outros e os levamos em conta numa perspectiva ampliada” (CEFAÏ, 2017a, p. 196), em vários momentos, inclusive, enfatizando acentos dramáticos, expressivos, performáticos – o que se percebe ao experienciarmos cotidianamente o campo, a tal ponto que vários agentes afirmam, em momentos diferentes, coloquialmente, como a UNILAB é intensa! Ao mesmo tempo, essa dinâmica também é intensificada a partir das tensões no espaço urbano, envolvendo os moradores mais antigos, residentes antes da implantação da Universidade, e os novos moradores, particularmente as juventudes estudantis, articuladas a complexas mudanças urbanas.
Considerando esses episódios, é possível falar na emergência de um subcampo feminista e/ou de gênero, com uma grande variedade de agentes (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Entendemos que em cada subcampo pode haver um ou mais polos, que tensionam, mobilizam, agregam e polarizam. Um desses polos envolve predominantemente feministas brasileiras e ativistas LGBTQIA+ (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Esse grupo assumiu posturas de denúncias ao machismo e ao sexismo em diversos momentos, inclusive em relação a denúncias de casos de estupro envolvendo discentes da instituição (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Destaca-se, portanto, ao ter como bandeira o enfrentamento às violações de direitos e às violências contra as mulheres e a comunidade LGBTQIA+, constituindo um núcleo de políticas de gênero e sexualidade, ativo, também, a partir de grupos de extensão e pesquisa.
Esse subcampo foi capaz de efetivar a Portaria do Nome Social na UNILAB, em dezembro de 2014; instituir um núcleo no âmbito da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Estudantis; realizar exposições artísticas, campanhas e um curso de Defensoras e defensores dos direitos à cidadania, com três edições em 2016, 2017 e 2018; ter membros escolhidos para a Diretoria da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), em 2016, e para o Conselho Estadual de Direitos Humanos, em 2017; e lançar um Edital Transgêneros UNILAB, em julho de 2019. Constituiu alianças com lideranças nacionais no enfrentamento às violências contra as mulheres (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019); inseriu-se em instâncias representativas estaduais, nacionais e internacionais e buscou fazer confluir diferentes bandeiras de luta, no âmbito do enfrentamento às violências e violações de direitos.
Aos poucos, foi se constituindo outro polo nesse subcampo das mulheres e dos gêneros, formado por mulheres negras africanas, discentes da UNILAB, onde se destacam formas associativas, como a Rede Internacional de Mulheres Africanas (RIMA) e o Coletivo Solidariedade Africana (SOLAFRO), revelando regimes de ação e práticas cotidianas próprias. Esse polo buscou se distinguir do outro, confluindo em alianças com os homens africanos, sendo possível indiciar, também, certo panafricanismo, embora difuso e tenso, a lhe constituir (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Constituindo referências, discursos e práticas próprias, em alguns momentos contrapôs-se publicamente ao que avaliava como percepções, imagens e imaginários inadequados, englobando africanos/africanas, inclusive em episódios de maior intensidade dramática. Nesse sentido, denunciava o que percebia como falas preconceituosas, mesmo que não ditas intencionalmente, de viés racista e machista.
Esse polo entendia, assim, que haveria uma visão homogênea e pretensamente universal sendo construída e reforçada pelo grupo feminista formado majoritariamente por brasileiras. Essa visão homogênea apresentaria, mesmo de modo não intencional, as mulheres africanas, as discentes, particularmente, como submissas aos homens, não autônomas e, portanto, marcadas pelo machismo e pelo patriarcado5. A essa visão, as discentes africanas contrapõem, em diferentes situações, a diversidade africana, a existência de tradições de viés étnico, em que as mulheres assumiam posições e papéis preponderantes diante dos homens, dentre outros argumentos. Questionavam, particularmente, certas falas do outro polo por entenderem que estas – mesmo quando não intencionalmente – terminavam por fortalecer e legitimar discursos racistas, os quais construíam imagens dos homens africanos, dos discentes, particularmente, como sendo homogêneos, marcados por uma cultura e uma sexualidade que os situaria no âmbito de um imaginário selvagem (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).
O subcampo de gêneros/mulheres parece não ter conseguido articular vetores teórico-empíricos “em-comum” (MBEMBE, 2017), capazes de instituir a agregação de forças e a atuação conjunta diante de outros agentes e, particularmente, diante de situações problemáticas concretas experienciadas. Há uma fragmentação que, mesmo detendo funcionalidade nas disputas internas de poder, fragiliza a capacidade dessas agentes em disputar hegemonias no campo, inclusive ao deslocar os enfrentamentos fundamentais para disputas no interior do próprio subcampo. Desse modo, o subcampo parece demarcado em dois grupos, que não têm conseguido dialogar entre si, o que pode, inclusive, estar ocultando e não fortalecendo uma multiplicidade de agentes e de expressões associativas, discursivas e de práticas que mais recentemente vem emergindo e coexistindo no campo – por exemplo, as mulheres quilombolas e indígenas, assim como as próprias mulheres originárias das pequenas cidades, com experiências extremamente relevantes, embora não diretamente participantes do subcampo.
Assim, essa divisão parece não estar abrindo espaço para “pluralidades, contradições e conflitos que caracterizam o campo feminista mais amplo”, considerando, inclusive, “processos de descentramento no interior desses feminismos plurais” (ALVAREZ, 2014, p. 41, grifos do original). Mesmo reconhecendo a relevância, a potência e as conquistas do subcampo, a fragmentação parece andar de mãos dadas com uma fragilização mútua, dificultando um fortalecimento assentado na construção de elementos em-comum, não se percebendo a constituição de diálogos horizontais mais orgânicos, pontos de convergência e/ou interseção, ações conjuntas e alianças relevantes dentre os polos indicados.
Também é possível pensarmos em outros subcampos, com variados formatos associativos e regimes de ação, como os movimentos negro, indígena e quilombola, os discentes africanos e o movimento estudantil, interseccionando-se ou entrelaçando-se em alguns casos.
Nesse contexto, os subcampos revelam uma capacidade de se constituir, escavando o campo, constituindo lugares sociais e políticos anteriormente inexistentes, participando de instâncias político-institucionais e conformando ações públicas e/ou institucionais significativas. Nesse sentido, é importante perceber que, na lida dos agentes com situações problemáticas, evidenciam-se interdependências entre variados agentes, pois cada conjunto de falas e ações dialoga com ou responde a falas e ações de outros agentes.
Ao mesmo tempo, a dinâmica burocrático-institucional e acadêmica atravessa todos esses subcampos, marcada por rotinas e episódios variados, experienciada nas instâncias colegiadas, nos cursos e institutos, nas salas de aula, nos eventos e atividades de pesquisa e extensão, nos corredores, pátios e cantinas, nas reuniões e assembleias, nos vários espaços das cidades, privados e públicos, revelando, muitas vezes, lutas políticas mais ou menos continuadas, grupos e movimentos sociais ativos, inclusive nos variados processos eleitorais – para reitoria, coordenações e direções, por exemplo – e nas dinâmicas de formação de decisões. Considerando esse vetor, discutiremos agora algumas mudanças conjunturais no campo, as quais revelam a presença de dois ciclos significativos e distintos, particularmente entre 2015 e 2019.
5 Caracterizando dois ciclos no campo
O campo universitário-urbano é fortemente marcado por “diásporas múltiplas e multidirecionais, muitas vezes sobrepostas e interconectadas” (ALVAREZ, 2009, p. 749), emergindo fortemente, portanto, uma ontologia e uma episteme, em que se destacam fronteiras e pontes (DE CERTEAU, 1998, p. 209). Aqui, dialogando com De Certeau (1998, p. 203-209), entendemos que o relato detém “um papel decisivo”, entendido como “um ato culturalmente criador”. Nessa perspectiva, o relato, “fundador de espaços”, tem “poder distributivo e força performativa”, assumindo “a função primeira de autorizar o estabelecimento, o deslocamento e a superação de limites”, evidenciando “dois movimentos que se cruzam (estabelecer e ultrapassar o limite)”, destacando-se, então, “a fronteira e a ponte” (DE CERTEAU, 1998, p. 209, grifos do autor). Efetuando continuamente “operações de demarcação”, o relato institui e recria a tensão constitutiva entre “a fronteira e a ponte, isto é, entre um espaço (legítimo) e sua exterioridade (estranha)” (DE CERTEAU, 1998, p. 209-212).
Nesse sentido, esse campo universitário-urbano singular, tão marcado pelo pluralismo histórico e pela inter-historicidade (SEGATO, 2012), amplia as áreas de contato entre variados agentes, com o relato, a fronteira e a ponte constituindo-se enquanto categorias significativas para desvelar sua dinâmica cotidiana.
No campo, entrelaçam-se rotinas que se reiteram e episódios inesperados, ocorrendo por vezes uma relatoria corriqueira e sequenciada, mas também falas de impacto, se desdobrando, separando e atando, em um jogo cotidiano, em que as situações, relatos e práticas são reiteradamente discutidas e interpretadas. Nesse contexto, espelhos múltiplos revelam distinções, reconhecimentos, reciprocidades e disputas, com cada conjunto de agentes lidando com os distúrbios e situações problemáticas e, ao mesmo tempo, buscando escavar, constituir e manter certo lugar de poder. Nesse sentido, inclusive, certos relatos e práticas buscam deslegitimar ou interditar outras lideranças, fragilizando suas influências junto a grupos e comunidades específicas. Estão em jogo as capacidades de mobilizar, articular e influenciar de modo mais duradouro segmentos e grupos da comunidade acadêmica, com os agentes constituindo e ocupando posições, lançando mão de capitais variados, operando disposições sociais requeridas nas situações cotidianas e fazendo emergir relatos, presencial e virtualmente. Em todas essas processualidades, revelam-se fronteiras e pontes.
Nos últimos anos, indícios apontam para mudanças de conjuntura no campo. A UNILAB deteve cinco reitores e uma reitora até o final de 2019, todos pro tempore, configurando o que podemos delimitar como dois grandes ciclos no campo.
O primeiro ciclo envolveu as gestões de Paulo Speller (2010-2013), Nilma Lino (2013-2014) e Tomaz Aroldo (2015-2016), no contexto anterior ao impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016. Nesse período, destacam-se a força do Instituto de Humanidades e Letras (IHL), pelo menos até o final de 2014, e uma dinâmica de múltiplas reuniões institucionais e assembleias com dezenas de participantes, várias delas conjuntas, com técnicos e estudantes. Aqui, ainda, prevalece certo viés de inocência, esperança e utopia, com intensidade nos diálogos, disputas e mobilizações e certa facilidade na coletivização das ações, com manifestação e envolvimento docente. O ano de 2015 é significativo nesse sentido. Aos poucos, essa potência vai se esvaindo, vão ocorrendo fragmentações – o IHL foi reorganizado em três institutos diferentes – e desencantos, por exemplo, vinculados a episódios como mudanças nos cargos e a realização de uma eleição para reitoria, com ampla participação da comunidade acadêmica, não decorrendo, porém, a escolha da lista tríplice pelo conselho superior da Universidade.
A mudança na dinâmica e clima existentes no campo vai ocorrendo gradualmente, com a exclusão da representação do IHL na vice-reitoria, em dezembro de 2014, seguida por vários outros episódios internos e externos, como, por exemplo, além dos já indicados, as mudanças na chefia do governo federal. No primeiro ciclo, um cotidiano de aspirações democráticas ainda está posto, com foco na superação da pró-temporalidade e na consolidação institucional da Universidade.
No segundo ciclo, marcado pelas gestões de Anastácio Queiroz (2017-2018) e Alexandre Cunha (2018-2019), ocorre uma restrição na esfera e na dinâmica pública existentes no campo, com a redução dos momentos, das instâncias, das situações e dos processos democráticos, em que emergiam divergências e interpelações mútuas, configuravam-se alianças e oposições, mediavam-se conflitos e tomavam-se decisões. Diminuem os espaços de escuta e convivência cotidiana típicos da conjuntura anterior (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019), e há um deslocamento para as casamatas da institucionalidade vigente, fragilizando e rompendo processualidades horizontalizadas e ascendentes, fortalecendo a concentração, a centralização e as dinâmicas descendentes do poder político. Esse ciclo se efetiva e reitera ao subalternizar certos grupos e forças políticas, buscando impor certa dinâmica inercial (BOURDIEU, 1996a) no campo do poder, no campo universitário-urbano. Aqui, cabe compreender brevemente o campo do poder enquanto:
[...] o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital ou, mais precisamente, entre os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão (BOURDIEU, 2004, p. 52).
Nesse segundo ciclo, ganha centralidade a “reprodução da estrutura do campo do poder”, marcada pela “distribuição dos poderes e privilégios entre as diferentes categorias de agentes engajados nessa concorrência”, estando em jogo “a conservação ou a transformação da estrutura do campo”, da cultura institucional e dos princípios de poder dominantes (BOURDIEU, 2003, p. 36).
Considerando essas questões, o novo ciclo parecia evidenciar, em meados de 2019, pontos de não retorno, ainda mais se considerarmos que se tratava de uma instituição onde o status de construção inicial – considerando-se a implantação da UNILAB a partir de 2011 – habilita uma conformação iniciática que tende a se reiterar e permanecer. Nesse sentido, não haveria mais lugar, no imaginário em constituição no campo, para “possíveis incompatíveis” (BOURDIEU, 1996a, p. 34), recusas heroicas ou arriscados lances democráticos, considerando, inclusive, a confluência entre o ciclo interno e a conjuntura nacional. Estamos aqui entre 2017 e 2019, cabendo lembrar o contexto mais geral do país, que aponta para um esgarçamento da cidadania, ataques a direitos e retrocessos democráticos, cenário que se desdobra e capilariza no campo universitário-urbano aqui discutido, nas micro e nanoescalas cotidianas. Assim, o que parece estar em jogo é a implantação da “lei fundamental do campo” (BOURDIEU, 1996a, p. 34) e a estruturação do campo do poder, conformando um repertório de escolhas das quais aparentemente não se poderia fugir, e que eram percebidas e vivenciadas, àquele momento, em meados de 2019, como absolutas e quase irreversíveis em seus efeitos imediatos e em suas implicações de média duração. Tal parece ser o drama a desenrolar-se nesse ciclo na UNILAB.
Não se trata somente de mudanças no imaginário e da própria illusio (BOURDIEU, 1996a, 1996b), pois elas recriam as hegemonias e subalternidades, impactando as normas, as estruturas e as disposições sociais requeridas, com os diferentes agentes adaptando-se de modo mais ou menos conformado e competente ao cotidiano que se recria. Os próprios relatos se modificam, com a dimensão pública reduzindo-se e ganhando corpo formas de relatoria como fofocas, fake news e boatos, e, ao mesmo tempo, circunscrições corriqueiras administrativa e burocraticamente formalizadas e tendencialmente restritivas. Ao mesmo tempo, proliferam conflitos interindividuais nos diferentes setores administrativos, com denúncias de assédio moral e aumentando assustadoramente os processos administrativos, denunciados como detendo, alguns deles, o caráter de perseguição política.
As dinâmicas de publicização costumam restringir-se a funções, formas, situações e públicos muito específicos, fortalecendo-se dinâmicas que buscam dissipar, ocultar ou destruir histórias, memórias e personagens do passado institucional que não se enquadram na nova hegemonia em constituição. Ao mesmo tempo, é possível indiciar procedimentos de sujeição, de amenização de tensões e de fragilização de contraposições através de performances e relatos que incluem louvações e agradecimentos presenciais e virtuais, em listas de e-mails, por exemplo. Emerge, portanto, uma dinâmica simbólica da sujeição/submissão, com práticas cotidianas que tendem a transparecer como hegemônicas, pontuando posições e constituindo vínculos e compromissos relevantes ao campo. A essa emergente dinâmica se associam sanções/proveitos “materiais ou simbólicos” (BOURDIEU, 1996a, p. 66), assim como hierarquias no campo do poder, com um núcleo hegemônico e, ao mesmo tempo, um conjunto de agregados subalternos (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).
É possível intuir, inclusive, uma performance pautada pelo que poderíamos nomear como “certo extremo de teatralização”, efetivada por esses agregados subalternos, enquanto os agentes do núcleo hegemônico central parecem experienciar uma “desnecessidade de teatralização”. Ao exercitar esse extremo de teatralização, alguns agentes mobilizam signos próprios à esquerda e/ou aos movimentos sociais, deslocando-os para uma dinâmica individualista de poder, em que certos indivíduos inscreveriam em si – por decorrência de características associadas ao gênero, à raça e à nacionalidade, por exemplo –, de modo automático, características relevantes, as quais cacifariam a ocupação de posições na institucionalidade, transferindo-as automaticamente para os cargos ocupados e as estruturas institucionais de que participariam. Essa individualização carreia em si uma despolitização autoritária, pois o que se observa, por vezes, é que se exercitam lógicas e práticas – para não falarmos em performances – marcadas por tradicionalidades, e, por que não dizer, por traços de colonialidade, à revelia de construções ou diálogos sistemáticos, persistentes, coletivos e/ou democráticos, mesmo que, em alguns casos, essas performances/relatos tentem expressar o inverso.
Os extremos de teatralização e a incorporação de signos rebeldes e das lutas sociais parecem vivificar valores e sentimentos comuns ao contexto, marcado pela influência neoconservadora e neofascista, não raras vezes através da criação de inimigos imaginários a serem enfrentados, por exemplo, em embates – eleitorais ou não – que envolvem cargos e posições institucionais, assim como em disputas discursivas públicas. Desse modo, a composição teatralizada efetiva a classificação apriorística de inimigos, superficialmente demarcados, deslocando o foco das análises e intervenções políticas para questões secundárias e constituindo, em alguns casos, performances e/ou relatos que tangenciam a exclusão ou destruição do inimigo – performances e relatos que deslocam o foco das substâncias para as formas. Não raramente, atacam-se mais os indivíduos que, ao deterem certo capital político, evidenciam-se como capazes de gerar polos alternativos de poder e de agregar públicos percebidos como reserva/monopólio de segmentos que performam a teatralização extrema.
Um viés que também compõe esse ciclo é a fragilização do compromisso dos agentes com projetos, emergindo e prevalecendo uma lógica pragmática do poder político, buscando legitimidade em uma alegada ou implícita competência técnica e administrativa, avessa à política e ao político. Nesse sentido, cabe mencionar o deslocamento – semântico, mas também ético e político – das práticas e posicionamentos ancorados em valores e projetos, por outros, assentados na lógica, na sensibilidade e na racionalidade da oportunidade política, ou, mais propriamente, do que é oportuno em cada situação concreta, fortalecendo posturas e práticas individualistas. Decorre que o político é pragmaticamente reduzido à conquista e à manutenção de posições de poder, dividindo a comunidade acadêmica entre os que se inscrevem e os que não se inscrevem nessa nova performance.
Nesse contexto, também se instituem formas de gratificação material e simbólica e instrumentos de consagração que buscam criar a sensação de que tudo está indo bem e está sendo feito adequadamente, e de que haveria lugar para todos. Desse modo, esvaziam-se potenciais lugares de contraposição, de oposição e de conflito, embora, ao mesmo tempo, também se esvaziem as construções de consensos enquanto elementos essenciais à dinâmica do campo. Esvaziado o conflito enquanto elemento legítimo – do ponto de vista da teoria da democracia (MIGUEL, 2014) –, o consenso é reduzido a construções efetuadas por elites restritas, com as decisões sendo comunicadas à comunidade acadêmica, já com o caráter de fato posto e/ou irreversível. Em paralelo a isso, cabe falar no que pode ser nomeado como lógica do cansaço, do desgaste e do esgotamento, marcada pela sucessão de atos e decisões que repõem/reinscrevem reiteradamente uma questão ou tema no cotidiano institucional, no âmbito de uma lógica burocratista, esvaziando o caráter político das questões em pauta e deslocando as decisões das instâncias democráticas colegiadas para as margens técnicas ou para os centros políticos da estrutura institucional – ambos inatingíveis aos que não compõem o campo do poder. Nesse contexto, há denúncias, inclusive, de não cumprimento, pela reitoria, de decisões formadas no Conselho Superior da Universidade.
Esse novo ciclo, portanto, evidencia um deslocamento ideológico do centro de gravidade do/no campo (BOURDIEU, 1996a), cabendo até mesmo falar na possibilidade de estar em curso uma reforma institucional, intelectual e moral (GRAMSCI, 2002). Desse modo, a lei fundamental do campo, seu nomos (BOURDIEU, 1996a), parece conjugar elementos que reiteram uma lógica da divisão, tal qual um caleidoscópio quebrado que espatifa fragmentos múltiplos. Assim, reconstituem-se divisões entre os competentes e os não competentes, administrativa e tecnicamente, entre os sensatos e os não sensatos, entre os que detêm legitimidade e os que não detêm, entre os técnicos e os que “querem fazer confusão”, dentre outras. Divisões essas que fundamentam a não necessidade ou impossibilidade da crítica e da oposição, conformando um contexto marcado pelo fim da história e pela pós-verdade. O conflito e a crítica são entendidos, assim, como desnecessários e indesejáveis, quando não reveladores, aprioristicamente, de incompetências. Essas divisões e concepções se reforçam através da incorporação subalternizadora de certos segmentos nas marcas performáticas da extrema teatralização, configurando táticas de desmobilização, bloqueio e interdição a potenciais oposições e resistências, variadas vezes incorporando e neutralizando indivíduos e grupos, ao enredá-los às malhas do poder que buscam se fazer hegemônicas.
Em meados de 2019, portanto, parece ter cessado o tempo do “extra-ordinário” (BOURDIEU, 1996a, p. 86). As temporalidades de utopias e sonhos – e também de heroísmos – estão sendo atravessadas por desencantamentos e frustrações sobrepostas, mantendo-se, talvez, um pouco da extrema lucidez (BOURDIEU, 1996a, 1996b) – a nos tensionar – que perpassa os tempos iniciáticos da constituição de um campo.
Sintetizando, e comparando os dois ciclos indicados, se no primeiro poderíamos ter a percepção da constituição, mesmo que breve e incipiente, de arenas públicas no sentido indicado por Cefaï (2017a, p. 204, grifos do original), no campo, no segundo período, essa dimensão pública parece ter efetivamente se esvaído:
A arena pública é coproduzida como um fórum de discussões: o fato de que os pontos de conflito tenham de ser defendidos e justificados e de que as posições adversas devam ser criticadas e invalidadas implica operações de avaliação, deliberação e julgamento. Em tal arena pública, seus representantes exigem explicações, tomam posições e respondem às críticas. Trocam argumentos que se tornam cada vez mais conformes ao public interest. George H. Mead descreve esse modo de se alçar no horizonte da comunidade moral e do reconhecimento mútuo entre atores como sendo o da adoção da perspectiva do Outro generalizado. [...] Seres humanos têm uma capacidade de transcender seus interesses egoístas para realizar figuras do interesse público.
Porém, para além dessa pretensa hegemonia em construção, há que perceber que, ao mesmo tempo, os interstícios, as franjas e as brechas que atravessam e também constituem o campo, parecem conformar – mesmo de modo intuitivo, espontâneo, latente e fragmentário – uma política e uma estética das periferias e subalternidades, enredando estratégias e táticas marcadas pelas esquivas, ou, mais propriamente, pelas gingas, insinuando potências, linhas de fuga e devires minoritários (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). Nesse sentido, a imersão no campo permitiu identificar indícios que revelam uma dinâmica cotidiana mais densa e complexa.
Isso pôde ser intuído, por exemplo, em evento realizado em dezembro de 2019, intitulado Pensando a África a partir da UNILAB e a UNILAB a partir da África (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Falas de discentes e docentes africanos expuseram a variedade e a intensidade das insatisfações no campo, com relatos referindo-se a violências, violações de direitos, desigualdades e distinções internas, a par do que cabe nomear como desencantamento com o Projeto UNILAB, expresso, por exemplo, na fala de um docente africano, que se referiu à instituição como engodo. Também houve, nesse evento, uma evocação das memórias das lutas e resistências estudantis, inclusive em suas potencialidades de construção de identidades e de escavação de lugares próprios no campo (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Alguns estudantes direcionaram suas falas para um colega docente, desanimado e cansado dos desgastes vivenciados no campo, indicando de modo direto e público: “Você não tem o direito de cansar e desistir, embora entendamos que é uma decisão muito pessoal! Mas nós estamos aqui há mais tempo que você e não desistimos, e já lutamos muito, e conseguimos conquistas que cabem preservar” (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).
Também cabe falar do coletivo informal autonomeado como Professoras no Samba, capaz de tensionar, desmobilizar, fazer fluir e tornar porosas certas fronteiras, reconstituindo espaços e situações capazes de recriar, mais do que vínculos, regimes associativos, de pertença e ações (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Em atuação fora do espaço da UNILAB, esse coletivo vem sendo capaz de mobilizar mulheres situadas, a priori, em um amplo espectro político, ideológico e de movimentos sociais, deslocando a dinâmica de mobilização social para o que pode ser aprioristicamente entendido como um modus operandis infra ou pré-político. Porém, se dialogamos com certos autores e concepções, percebemos, nessa experiência, a interligação que envolve micropolítica/política do cotidiano e mesopolítica institucional, mantendo uma presença no campo através de astúcias e gingas capazes de reconformar potencialmente as estratégias e as táticas existentes, mesmo deslocadas das centralidades institucionais vigentes, as quais se fazem hegemônicas (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).
Do mesmo modo, o jogo de futebol semanal das estudantes guineenses é espaço para exercitar o conflito, a contradição e sua mediação, para escutar, desabafar, gerar o apoio, o vínculo e o compromisso mútuo, manter a convivência reiterada, a força coletiva e os sentidos partilhados (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019) – potências a nos falar das tensões que atravessam o campo, mesmo quando mais imediatamente tudo parece estar normal, bem ou dominado.
Assim, é importante perceber vetores empíricos significativos a emergir e se refazer, considerando-se os dois ciclos indicados e destacando a importância de problematizarmos se/como eles se manterão ativos ou serão substituídos por ciclos diferentes, após 2019.
6 Considerações finais
O momento da gênese de um campo é teórica e empiricamente significativo, posto que é quando emergem e se constituem agentes que “traduzem os seus discursos articuladores e começam a enunciar outros universos de significados, outras visões de mundo, e assim, talvez, configurar outros campos discursivos de ação” (ALVAREZ, 2014, p. 47). Mais do que isso, constituem-se campos de poder, modos de lidar com situações problemáticas e ciclos singulares.
Nesse contexto, revela-se um campo onde se configuram comunidades interpretativas e mediações experienciais coletivas, com agentes que lidam com situações problemáticas de modo cotidiano e reiterado.
Embora os migrantes temporários internacionais pareçam estar experienciando dinâmicas de crescente subalternização, vários indícios sinalizam sua vitalidade, sua força, sua presença ativa e criativa. Para além do imediatamente visível, ou melhor, das aparências mais imediatas – e pretensamente hegemônicas – do campo, cabe perceber fluxos, movimentos, intensidades, tensões e conflitos que indiciam devires e potências significativas. Estes, mesmo minoritários, fragmentários e latentes, compõem esforços de contraposição, resistência e geração de alternativas, ainda que nos interstícios, franjas e periferias do campo.
Se pensarmos nas performances, nos regimes estéticos (BOURDIEU, 1996a, 1996b) e nas figuras que compõem o campo, a percepção do fim dos tempos heroicos e da chegada do fim da história e da pós-história se restringiria às hegemonias que se instituem e reiteram, não indiciando as pequenas e capilarizadas astúcias e gingas que atravessam o cotidiano e também o compõem. Desse modo, cabe perceber deslocamentos para os interstícios, as periferias, as margens, assentadas em insatisfações e desgastes que se acumulam, embora, muitas vezes, sejam invisíveis enquanto um vetor importante em meados de 2019. Desse modo, embora esteja presente o risco da prevalência continuada dessa forma hegemônica, interditando uma democratização efetiva, outros espaços de possíveis evidenciam-se ativos.
Cabe, portanto, dar continuidade a essa análise em outro momento, utilizando, inclusive, o arcabouço analítico aqui apresentado, discutindo criticamente o que ocorre no campo a partir de 2020.