*
uma senhora varre o chão
sob câmeras de segurança
vista de soslaio
por outros olhos minúsculos
azuis -
pastilhados
entre fissuras de concreto por onde uma gramínea irrompe
sob o risco
do salto que se move
em cinzas
circulam
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
(das equações inexatas)
gostam de guardar fatos, memórias, fórmulas, filosofemas, teoremas
enquanto uma prova inevitável
pode mudar tudo
(sons de motores)
transitam para nenhuma parte
no retângulo de borda infinita
guardado pela silhueta de esmeraldas
que se eleva boquiaberta - para o céu e -
balões vermelhos ascendem
indiferentes aos olhares das vidraças
da Repartição
(seguranças em ronda: “tu não podes”)
gostam dos alívios
da razão
contemplam de dentro da indiferença
o louco atravessando em prantos
em trapos arrasados pelas causas e efeitos
estatelados
(todos debandam
para as ruas laterais)
indiferentes à senhora de vassoura na mão
que varre seu destino
sem querer
nada mais que nada
abaixo de nuvens que transitam
de estação em estação
*
bicicleta em ziguezague
atravessa a calçada e corta o pátio
veloz
inundado de luz
capacete mochila bermuda
dentes
tênis óculos cabelos olhos
dentes
capacete cabelos mochila verde brisa
dentes
camiseta mãos olhos capacete dentes verde mochila cabelos dentes óculos
toc-toc das botas de alguém
observado por muitos
enquanto outros lendo
apressados
tranquilos
pensativos
passam
circulam
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
vento gelado
segurança rondando
odores de cigarro
cartaz na janela: vigiar e punir
brincam no centro do pátio
percorrem as escadarias
coqueiros e araucária
impregnam-se nas páginas do livro
enroscam-se nas pernas do casal que cochicha
ofuscam as câmeras de segurança
enredam-se nos aros da bicicleta
tremem
riem
esvaem
*
motores
um vendedor de cookies passeia
em meio à multidão
- justo ele que evita drogas -
cookies feitos pela mãe
cookies que pagarão seu curso de socorrista
cookies num tupperware transparente
circulam e circulam e circulam
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
de motores
e cookies
vendedor fala
vendedor anda
vendedor respira
vendedor sonha
vendedor lamenta
vendedor canta
vendedor gira
olha ao redor
tem fome
esfria
um homem desvia da senhora que arrasta sua maleta
outros correm
- dos cookies? -
folhas e um saco de lixo voam
planam
arrastados pela súbita ventania
dos espaços intersticiais da Repartição
vendedor oferece um cookie
para a moça sentada
fresco, saboroso, doce
*
escada em dobras
pernas
(compõem cinco pares)
pernas
em grupo
galanteiam
meia calça e sapatos
o andar da moça da limpeza
sacos de lixo
(contrapeso)
corpo-pêndulo
mãos nos bolsos
cotovelo-asa
(vai e vem)
espera
pés em ventosa
calcanhares
aderem ao asfalto da Repartição
grude
pneus de bicicleta
pessoas em contorno refletem da janela
imagem borrada
encontro de texturas
(contrapeso)
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
a mulher mexe muito os braços e fala
*
há algo no ar
vento gélido
metade sombra, metade sol
um guarda-chuva fechado
colunas recortam
e vão-livre
espadas de um São Jorge
benzedeiras
flores em cacho
uma menina arruma o cabelo
passagem ao centro
periferia ocupada
(traços gastos)
clima invertido
céu de ontem
(afago)
bordas infinitas
em braçadas vão de um lado ao outro
morna a água
vidros sujos
das janelas solicitam
(traços gastos)
frestas cinzas em mandalas coloridas
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
calma matinal
*
uma ordem se atira do décimo primeiro andar
cumpra-se!
nono
oitavo
sétimo
sexto
quinto
quarto
terceiro
segundo
primeiro
recolhida por alguém que passa distraído pelo pátio
(enquanto pássaros trançam ar)
alunizar
estatutos, regimentos, portarias
um avião de papel atravessa a janela do quinto andar, em direção à rua
chuva de regulamentos
(todos correm)
atrás
embaixo
ao lado
em cima
saltando
pulando
gritando
repetindo
(retornam)
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
(silêncio absoluto)
*
três cães caminham
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos que passam
(eles representam os sobreviventes)
param diante da senhora que varre
(ela se queixa de algo
fala demais, todos ao redor se sentem ameaçados)
“destes não gosto” -
o do meio: "não vives como um cão?"
situada no interior de algum mal entendido que ela mesma não podia desfazer, ouve pequenos cliques, estalidos
(cheiro de flores)
os três cães andam em círculos
param por um instante. traçam trajetórias caóticas. se posicionam no centro do pátio. circulam novamente. levantam-se nas pontas das patas. dançam. desenham coreografias complicadas. saltam uns sobre os outros.
de novo de novo e de novo
latidos uivos mais latidos
(a música fugitiva, repetitiva)
ela larga a vassoura e se precipita sobre eles
tapa os ouvidos
ouve chiados
a matéria sonora parece desossar tudo ao seu redor
(a fragilidade, a doença, a nudez)
ela e os cães: trocam de lugar
ela pede que se afastem
a gravidade aprofunda
os cães flutuam como balões
o coração acelera
os três cães circulam novamente. executam movimentos estranhos.
(ela os olha multiplicada)
os cães evoluem desenhando figuras insólitas mudando de forma e posição
venceram-na.
o silêncio é interrompido pelos motores
pessoas transitam para nenhuma parte
no retângulo de borda infinita
guardado pela silhueta de esmeraldas
que se eleva boquiaberta - para o céu e -
sobre azuis - pastilhados -
balões vermelhos ascendem
indiferentes aos olhares das vidraças
da Repartição
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
da câmera de segurança que testemunha o êxtase de um coração que bate sozinho -
veloz
*
o branco sobre o chão de concreto gasto
(sol entre nuvens)
esconde as manchas, os encontros e os passos apressados
(que desviam)
torres de metal suportam
tudo ganha altura
um teto
consola
esconderijo que recorta
o retângulo em sombra de bordas definidas
acomoda o que deve chegar
a lona -
habitat de olhares curiosos
repartido o espaço de ir
recortes no trajeto
passo torto que descompassado move
(outro lugar)
intervenção branca
invenção de sombras
vista de cima
a cobertura leve
dança com o vento
da janela alta
caçamba
trânsito interrompido
(está tudo branco agora)
como se atravessasse os cabelos azuis
e a estampa florida do casaco
(fusão glacial)
gostam de atravessar de um lado a outro
gostam dos deveres e das obrigações
gostam de pedalar bicicletas
gostam de exigir
gostam das flores
gostam do cheiro do café
gostam de galantear
gostam de protestar
gostam dos cães que passam
gostam de aconselhar
gostam de consolar
gostam dos juízos
sons agudos martelam o espaço
fissuras -
em obras