1 INTRODUÇÃO
O ano de 2020 será lembrado como o ano de um acontecimento de repercussão mundial por conta da pandemia que o novo Coronavírus (Covid-19) tem causado. Mesmo não sendo nosso foco aqui adentrar o problema da pandemia, se tornou impossível iniciar qualquer debate hoje sem mencioná-la. Logo, sendo o nosso tema o fenômeno da migração (TEIXEIRA, BRAGA, BAENINGER, 2012), de imediato nos lembramos das populações migratórias por ela atingidas e que se encontram à sombra das luzes midiáticas, não sendo alvo da preocupação pública à medida de importância do fenômeno. Se o fenômeno da migração é circunstância que direciona determinado ente, o migrante, sendo ele ente diferenciado (ser-aí/Dasein) de qualquer outro meramente dado (logo, sua fixação é provisória), qual sua relação com o espaço, espacialidade, mundo? Como pensar a espacialidade a partir do movimento de não fixação ao qual o migrante se encontra lançado?
A perspectiva deste ensaio é a de uma incursão filosófica no fenômeno da migração, a partir de uma delimitação conceitual – espacialidade. Como o tratamento da questão pode ampliar a compreensão do fenômeno? Nossa proposta é uma abertura ao tema, considerando-a enquanto experiência do pensar, que per si tomamos enquanto dimensão formativa. Supomos abrir com essa perspectiva uma compreensão a mais acerca deste modo de ser.
2 MIGRAÇÕES, MUNDO E ESPACIALIDADE
Sabemos serem muitas as comunidades que compartilham modos de vida em migração, o que implica pensar em dois pontos, aparentemente opostos, que as constituem: a mobilidade, mas também a habitabilidade do mundo. Em termos globais, no contemporâneo encontramos populações em migrações. No Brasil, basicamente, por conta da sazonalidade que a esfera do trabalho impõe em relação aos mais variados setores de economia em todas as regiões do País (assim como no interior de uma mesma região). Ainda na América Latina, registramos o fenômeno da migração na Venezuela; a do México para os E.U.A.; na Europa, com refugiados de guerras civis de outros continentes, como as populações oriundas de Estados em desintegração política (a exemplo do caso da guerra e dos refugiados da Síria), repercutindo impasses nas relações internacionais; da África para a Europa (e Brasil, entre outras nações fora da Europa); do Leste europeu; da Ásia. Estes são os exemplos mais conhecidos e divulgados na mídia e por algumas ONG’S3. Além destas imposições, encontramos um trânsito intenso intercontinental de populações que se movimentam em função da necessidade e/ou interesses de estudos (não só universitário, sabemos, constituindo a mobilidade acadêmica). O escopo do fenômeno, conforme referimos, é global, multifacetado, complexo. Porém, guardando as especificidades de cada população, a nosso ver, encontramos um elemento comum entre elas. Nesse sentido, acompanhamos Menezes, quando afirma:
[...] embora o migrante tenha uma vida marcada pela permanente mobilidade, há sempre uma localidade que representa a referência de fixação [...] Assim, esses são lugares de memória e de pertencimento, pois simbolizam as redes de relações familiares, de amizade e de vizinhança
(MENEZES, 2012, p. 27).
Quanto a estes dois pontos enunciados (mobilidade e fixação), ensaiamos o seguinte: Se, como a autora afirma na sequência do texto, “A condição de mobilidade não expressa, portanto, desenraizamento, desagregação familiar, mas, antes, uma permanente recomposição e ressignificação de suas redes de relações sociais” (p. 27), parece-nos, justamente, que o desenraizamento merece ser tomado em seu elemento existencial importante, correspondente à espacialidade. Com isso, podemos aprofundar mais o fenômeno da migração. Digamos que este é o esforço de compreensão hermenêutica ao qual nos propomos aqui: situado hermeneuticamente e, por isso, reconhecidamente a certa distância do fenômeno das migrações. Contudo, ainda assim, na proximidade do que está aí, o fático, algo que é (HEIDEGGER, 2012b, p. 13), porque ao modo existencial do ser-aí lhe é próprio ser-no-mundo (In-der-Welt-seins).
A pergunta de cunho ontológico com a qual nos dispomos de início em relação ao tema é: O que há na existência, no âmago dos homens, que, mesmo em mobilidade migratória, mantém o sentido de habitabilidade referente à casa? Por que há uma necessidade da casa? (no sentido simbólico que ela confere, de abrigo e acolhimento). O que vem a ser a casa, ente possível de habitabilidade, de espacialidade? O que há de sentido comum entre os homens em relação à casa, em sua habitabilidade na espacialidade?
Se o desenraizamento, ao contrário do que se pode indicar como mera perda de raiz (des-en-raiz), acentua a lembrança e presentifica outra vez a terra no retirar-se dela, parece-nos igualmente que estamos em uma circularidade relacionada primeiramente ao âmbito existencial e provocada mediante variações em cada facticidade. Terra e solo emprestam a imagem ao desenraizamento de caráter ôntico, de ordem fática (mas, guardando o sentido ontológico, da raiz na terra), no acontecimento da vida cotidiana em sua mediatidade. Para o leitor de Heidegger (2010), vem logo uma correspondência de amplitude ontológica do sentido próprio do habitar (Bauen4): o homem constrói a casa e a cultiva desde esse construir. Isto está em primeiro plano como disposição pré-ontológica para a habitação: “habitar é o traço fundamental do ser-homem” (HEIDEGGER, 2010, p. 128). Habitamos a casa e antes mesmo, o sentido que ele, o habitar, confere. Nascemos já habitando o mundo (em sentido psicanalítico, antes mesmo do nascimento). Nessa direção nos orienta uma filosofia na lida com a existência, considerando previamente que “[...] ao Dasein é essencialmente inerente: o ser em um mundo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 63). Jamais fora dele e de sua complexidade.
Sob este prisma, mostram-se variações concernentes aos modos de uso, modos de ser, como construir sua morada em referência às condições do lugar, por exemplo. Podemos deixar o ente casa partir, mas o que nela se cultivou, se leva consigo ao deixá-la. Mas o que se leva junto consigo? O existencial (existenciais estruturam o ser-aí) da possibilidade e a disposição em habitar e cultivar. Esta é a essencialidade da coisa. Ou seja, encontramos uma circularidade hermenêutica operando, o que vem a se mostrar com a imagem do desenraizamento refletindo as migrações.5
As populações constituídas nos movimentos das migrações experimentam o (des)norteamento existencial em radicalidade: um desenraizamento do modo de ser, advindo de deslocamento territorial, de mudança brusca de onde a vida se encontra circunscrita. Por isso, a perda da habitação implica perda de espacialidade. A espacialidade só pode se dar a partir de um ôntico, que é a raiz da existência (HEIDEGGER, 2012a, p. 63): o solo, a casa. Aí se encontra o espaço tornado espacialidade no qual se movimenta a existência, no seu ritmo temporal - próprio ou impróprio. Humanos habitam a terra e, sendo nela, aspiram modos de ser com os quais possam edificar-se: “A terra é o sustento de todo o gesto de dedicação” (HEIDEGGER, 2010, p. 129).
Mas, na essencialidade, o que habitamos originariamente, quer dizer, existencialmente? Habitamos mundo, o qual “é o ente sempre a cada vez acessível e coerente. Mundo é o que é acessível” (HEIDEGGER, 2011, p. 253). Mundo, em termos da fenomenologia hermenêutica, é próprio do ser-aí que o forma e por ele é formado, de um modo radicalmente diferente de cachorros, gatos e galinhas - árvores e pedras também - e é o que Heidegger destaca no § 42, d’Os conceitos fundamentais da metafísica. Por que referir mundo aqui? Porque o caráter fundamental do ser-aí é relacional: o que diz ser-mundo é sendo com-o-mundo. O que é formar mundo? Conferir sentido é o que se pode dizer, de modo muito breve, por enquanto.
O fenômeno da migração, compreendendo os movimentos de emigração e imigração, enquanto fenômeno antropológico e social remete aos primórdios da humanidade. Suas causas se transformaram ao longo da história, porque a realidade é um continuum dinâmico e complexo, tal qual a espacialidade, um estar-sendo do ser de cada existência, caracterizado pela singularidade e relacionalidade que provoca o humano a buscar novas situações e condições de vida, permanentemente. Também ouvimos dizer que fenômeno migratório possui características próprias, porque o migrante torna-se, em alguma medida, um estrangeiro. Todavia, em nosso entendimento, algo para além da antropologia, do homem enquanto tal, ainda pode ser dito a partir da compreensão da ontologia fundamental que se mostra como fenomenologia hermenêutica, analisando e explicitando ser e ente. Nesse sentido, como podemos explicitar algo do fenômeno?
Segundo nossa perspectiva, o migrante se (des)encontra, radicalmente, a partir de um local físico determinado, mas, ainda assim se encontra “codeterminado” (HEIDEGGER, 2012a, p. 341) em sua existencialidade. É este elemento existencial permanente que o mantém enquanto humano que busca habitação. E, em situações de migração, como aquelas marcadas por violências e afrontas à dignidade, interpela por justiça, hospitalidade e reconhecimento. No entanto, em vista de uma abertura de caráter ontológico à qual nos dispomos, vale lembrar o esquecido no que se refere à própria compreensão do termo mundo, que repercute na análise da espacialidade, para além do espaço. Repercute, igualmente, na compreensão do que vimos, comumente, chamando como “outro” e, por conseguinte, do imigrante como outro. Nesse sentido, queremos lembrar algo fundamental:
“Os outros” não significa algo assim como o todo dos que restam fora de mim, todo do qual o eu se destaca, sendo os outros, ao contrário, aqueles dos quais a-gente mesma não se diferencia no mais das vezes e no meio dos quais a-gente também está
(HEIDEGGER, 2012a, p. 343).
O termo espacialidade, portanto, se liga a outros como espaço e mundo.
3 ESPACIALIDADE, ESPAÇO E MUNDO
Questão igualmente fundamental é a distinção formal entre espaço e espacialidade6, mas, que, na via ontológica, se interpenetram: “O espaço só pode ser concebido em referência ao fenômeno do mundo”7 (HEIDEGGER, 2012a, p. 329). Pensar espaço dissociado de mundo não repercutiria aqui uma abertura hermenêutica. Espaço, espacialidade, mundo é como se encontra o ser-aí8. Logo, o sentido que nos mostra a ontologia fundamental, em seu caráter originário, é o de que ser-aí é relacional. Pode-se esquecer deste caráter de “ser-com com outros” mesmo não deixando de ser o “ente-do-interior-do-mundo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 345 e 343 respectivamente). Lembrando o ponto fundamental: mundo estrutura o nosso modo de ser-aí e, por isso, dizemos que somos relacionais em essência e assim podemos nos compreender na via da autocompreensão de ser-mundo. Estamos desde sempre em-mundo. Nesse sentido, ser-aí concerne a ser-mundo.
Seguindo, delimitamos a questão da espacialidade enquanto acadêmica, ou seja, tendo em vista este fático para uma aproximação com o fenômeno da migração. Consideramos as incidências de processos migratórios contemporâneos, seus limites e possibilidades para pensar a espacialidade não como um espaço dado, mas como relacionalidade e acolhimento daquilo que se apresenta no movimento da cotidianidade do ser-aí, o que inclui a educação.
Segundo Mallard (2013, p. 85),
O estrangeiro, na qualidade de migrante, passa a ser dentro das políticas atuais um excedente por vezes tanto inadmissível quanto inassimilável. Contrariamente às políticas ativas de um passado relativamente recente que atraía e oferecia possibilidade de inserção para os estrangeiros, assistimos a políticas passivas, senão restritivas.
Se o problema de migrações é de ordem política, ele não é menos de ordem existencial (e não se trata aqui de eleger um modo mais dramático do tratamento do problema). Somos, fundamentalmente, relacionais. Há sempre o sentido do que vem a ser o codeterminado, conforme referimos acima. Dito de outro modo,
Ser-no-mundo é basicamente aquele que, mergulhado na compreensão e orientado pela ocupação cotidiana, se move em contextos significativos já prévia e parcialmente descobertos por uma pré-compreensão do mundo que o circunda
(SARAMAGO, 2008, p. 58).
A análise da autora parece reforçar o escopo da nossa interpretação: contextos significativos são aqueles que provocam a abertura do ser-aí e o encontro consigo mesmo mediante as questões do mundo e, em alguma medida, acionam a pré-compreensão dele mesmo enquanto aquele que se sabe aí (da). Estende-se à Universidade este entendimento, na medida em que ela propicia este encontro no acontecimento da espacialidade acadêmica. A expressão “espaço público”, só remete à sua vigência própria. À espacialidade acadêmica concerne pensar sobre modos possíveis de ser-no-mundo, incluído aí seu próprio modo-de-ser.
O ser-aí é um modo de existência aberto ao mundo circunstancial, não sendo uma existência acabada e determinada, mas um estar sendo permanente que, cada vez mais, se constitui em um existir híbrido e complexo. Segundo Heidegger (2012a, p. 201), “mundo” é um termo polissêmico: ele nos chega enquanto ôntico, mas contém uma estrutura ontológica, sinalizando a complexidade dos modos de ser que perfaz sua totalidade. A espacialidade corresponde ao modo de ser de cada existência, que é singular, tramada na existencialidade, esta é sua significância, da qual se pode dizer de uma mudança paradigmática que a ontologia fundamental traz ao século XX. Ser está imbricado ao tempo, no qual se (des)vela. Nesse sentido, a espacialidade é o elemento fundamental do ser-aí (em termos mais prosaicos, do humano). Esse aspecto nos leva a compreender o aluno desde a sua experiência de vida, o que pressupõe transcender todo e qualquer empirismo ou cartesianismo, porque a experiência humana nunca se encerra em si mesma, é acontecimento permanente e um contínuo reestabelecimento de sentido de si.
Logo, mundo precisa ser entendido como uma conexão de significados atribuídos no e com o relacional, de onde a espacialidade é concebida enquanto elemento formativo justamente por essa prerrogativa.
Este endereçamento do homem à prerrogativa de ser-em-mundo sustenta o sentido da espacialidade mais do que sua imediatidade, o que acontece também no universo acadêmico, enquanto mais um modo de ser-mundo. Assim, atribuímos ao ente “parede” uma significância na medida em que marcas do ser-em-mundo podem ser nela visualizadas. Atribuir é uma possibilidade do ser-aí. Atribui-se sentido porque é da essencialidade do ser-aí poder e dispor-se a fazê-lo. Mas a compreensão deste enredo hermenêutico não está à vista assim de imediato. Ela pede um olhar atento, mais demorado, do ente privilegiado que somos ao que ali emerge e que está lançado na temporalidade por estes mesmos ou outros entes privilegiados. Isto é um pouco da fenomenologia da espacialidade, a qual buscamos mostrar. De fato, a partir deste entendimento, nada poderia ser tomado de modo solto no espaço público da filosofia, porquanto, ela mesma impõe que se mostre sua própria espacialidade. Assim, o caráter formativo do filosofar tem a ver com efeitos da pergunta por aquilo que está ali, fixado no mundo. Trata-se de uma abertura enquanto ser-em-mundo, “do modo como nos movimentamos de início e na maioria das vezes cotidianamente em nosso mundo” (HEIDEGGER, 2011, p. 229. Destaques do autor). Nesse sentido, “O espaço só pode ser concebido em referência ao fenômeno do mundo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 329).
A noção de mundo vincula-se à compreensão do humano enquanto ser-aí, existência, abertura. O modo de ser-no-mundo remete a uma diferenciação entre o humano e as coisas, pois enquanto as coisas estão meramente “no mundo”, o humano é mundo, pois somente ele possui um mundo, ou seja, é capaz de se perguntar sobre o seu próprio ser (HEIDEGGER, 2011). É por isso que ser-junto ao mundo implica uma atitude de empenhar-se no mundo, de relacionar-se com ele, transformá-lo, revelá-lo. Daí a compreensão de o homem ser formador de mundo, sendo “ao mesmo tempo servo e senhor” (HEIDEGGER, 2011, p. 229). Enquanto ser-aí (Dasein), o ser humano é aquele que produz mundo e, concomitante, se encontra produzido por ele. Daí, sua condição codeterminada.
A espacialidade dos entes que não tem o modo do ser-aí é geralmente determinada por áreas de conhecimento outras, a partir da distância e da proximidade. Estas também são determinadas pelo modo de ser cotidiano do ser-aí pelo uso e manuseio das coisas, nas ocupações cotidianas com os entes intramundanos que estão à mão (HEIDEGGER, 2012b). Lígia Saramago retoma o núcleo da questão do ser para Heidegger:
Na estrutura do mundo, essa relação com os objetos à sua volta determina-se como um “por meio de...” ou “a fim de que...”, que norteiam a aproximação pragmática do Dasein em direção a estes.
(SARAMAGO, 2008, p. 57)9
Mas não apenas isso: o conceito significa, especialmente, o modo de ser de um determinado ente, o humano, e como ele afeta e é afetado no campo relacional. Como ele provoca e é provocado nesse campo que é, propriamente, a expressão de mundanidade que o humano, e só ele, constitui. E o que está à mão nem sempre significa que está ao alcance da mão, literalmente falando, esse modo de “proximidade” não pode ser medida ao modo cartesiano, mas pela disposição no mundo humano a partir da existência enquanto o existir mesmo 10 (HEIDEGGER, 2012a; 2012b). Trata-se de uma disposição para abrir, fazer, espaços, pois na medida em que o ser-aí é abertura, as coisas chegam e o que nos resta é uma espécie de “acolhimento” a ser feito. E elas chegam independentemente de querermos ou não.
4 ESPACIALIDADE, MUNDO, EDUCAÇÃO
Sob esse prisma - de uma abertura existencial, o ente privilegiado se compreende na espacialidade. A formação é esse devir constante. Nesta perspectiva, “a educação é a concessão de autoridade para o mundo, não só por falar sobre o mundo, mas também e, sobretudo, por dialogar (encontrar, comprometer-se) com ele” (MASSCHELEIN & SIMONS, 2013, p. 98).
As estruturas físicas, em si mesmas, não cumprem um papel formativo direto, o que não implica atribuir-lhes importância secundária na academia. Ao contrário, as estruturas físicas e pedagógicas adequadas à educação universitária tem uma real contribuição nas formações, pois interferem na construção de sentido e na percepção da abrangência da própria espacialidade.
Efetivamente, a universidade resulta do conjunto de relações existentes entre agente, no âmbito do ensino, pesquisa, extensão, e todas as práticas necessárias à sua manutenção. Portanto, a espacialidade acadêmica se mostra tanto em uma sala de aula, quanto fora dela, sendo o seu caráter formativo mais amplo do que imediatamente podemos asseverar.
Logo, a mera circulação ali de pessoas não significa que haja influência formativa. É preciso mais. E esse “mais” tem relação com a criação de aberturas para acolher, significar e se relacionar com a vida e a aprendizagem, transcendendo as condições impostas pela cotidianidade que, por vezes, impedem de identificar possibilidades outras do ser-aí. Em outras palavras, o que caracteriza a escola e a universidade, guardadas as devidas diferenças que lhes são próprias, é a intencionalidade de ensinar e pesquisar questões do mundo, estando nele. E é nesta dinâmica do processo de ensino e aprendizagem que se abrem também as possibilidades ao inusitado, resultando no exercício de aproximação entre as pessoas. Se, como dissemos, a mera circulação de pessoas no espaço não implica necessariamente formação, o que a provoca?
Vejamos: uma parede, por exemplo, pode ser somente uma parede, mas na medida em que nela vemos a finalidade de comunicar atividades ou informações outras de cunho educacional, avisos que dão acesso ao universo acadêmico, resultados de pesquisas, isso traz sinais da vigência de sentidos de aproximação entre as pessoas e, de imediato, vinculam à utilizabilidade concernente ao homem formador e em formação de e com-mundo (HEIDEGGER, 2011).
Neste instante, cabe uma paragem junto ao ponto do termo “vinculação” suscitada aqui. Stein, acompanhando o passo rigoroso de um filosofar na explicitação “do homem com o acontecer do ser”, chama atenção ao que Heidegger está mostrando com o termo:
O homem está ‘numa vinculação’ diz o mesmo que: o homem acontece como homem ‘num uso’ que chama o homem para guardar a diferença ontológica que não se deixa elucidar nem a partir da presença, nem a partir do que se apresenta, nem a partir da relação mútua de ambos
(HEIDEGGER apud STEIN, 2001, p. 198).
E o que nos faz ver a diferença ontológica no tema em questão, da migração, fenômeno que deixa ver o ente, mas oculta a questão do ser? O fato de sermos, fundamentalmente, todos e cada um, em-mundo. Toda e qualquer questão relativa ao homem precisaria operar a partir desta prerrogativa.
No que concerne à educação em sua preocupação com a formação humana, a questão da espacialidade vem a ser uma dimensão formativa primordial, porque (des)vela a diferença fundamental entre ser e ente. O esquecimento desta diferença confunde o próprio sentido originário da educação quando fixa uma formação do ente pelo ente, mantendo-se no ritmo de um círculo vicioso (vitiosum).
Parece-nos que a problemática surge na medida em que os lugares formativos, tidos como oficiais acabam reduzindo os campos de experiência e existência do ser-aí à perspectiva meramente utilitarista, aprisionando-o às amarras da cotidianidade, expressas, muitas vezes, nas condições precárias nas estruturas dos estabelecimentos de ensino. A redução dos campos de experiência tem a ver, portanto, com o “esquecimento do ser” enquanto modo-em-abertura em espacialidade. Portanto, o problema parece concernir a uma constrição da espacialidade em sua possibilidade de abertura.
Segundo Flickinger,
Reduzido ao mero cumprimento de expectativas provindas, sobretudo, do mercado de trabalho e de suas demandas profissionais, o processo de formação não consegue explorar o potencial do educando; muito pelo contrário, impõem-se-lhe exigências que o empurram a tomar caminhos predefinidos sem o questionamento de sua concreta adequação
(FLICKINGER, 2011, p. 163).
O autor levanta uma crítica ao modo predominante da formação em nosso contemporâneo, o qual pouco ou nada tem de compromisso com o ser-no-mundo no modo autêntico de ser. Predominantemente, o que temos hoje é um caminho de repetição do dado, de esquecimento do como ser-aí na sua propriedade, ou seja, na sua singularidade. O modo autêntico refere-se, justamente, com a atenção, escuta, cuidado com a singularidade própria a cada um. A formação tem se afastado mais e mais de sua propriedade de ser singular, mais do que um ente à mão. A diferença ontológica entre um e outro tem sido deixada de lado no âmbito institucional.
No entanto, a esses aspectos acima mencionados, soma-se ainda um último, a capacidade de gerar “crises” que a temporalidade, a mundanidade, contém. Se tempos atrás se podia dizer: “nem as escolas, nem as universidades oferecem aos alunos e estudantes o que entendo como fases de profunda desorientação que os levem a ver-se irritados nos seus hábitos, interesses ou ideais” (FLICKINGER, 2011, p. 164), hoje, a desorientação se encontra em alta. Porém, se a desorientação comporta um sentido de negatividade, também podemos dizer que contém uma ambivalência fortuita, pois, pode suscitar uma abertura outra. Desorientar-se em face do vigente pode ser um modo de existir para além dele mesmo. De inventar e reinventar existências. A espacialidade acadêmica tem desvelado modos de existência que podem vir a atualizar o próprio sentido de universidade, enquanto universo plural (não por nada, ela é, hoje, uma instituição alvo de ataques mais conservadores).
Nesta perspectiva, a experiência de desorientação tem sua importância guardada para que possamos avivar o sentido importante atinente ao tema das migrações, pois, de início cumpre ter a clareza hermenêutica. Quando se coloca a expressão “outros”, há que se compreender que não se trata “dos que restam fora de mim”, se estamos assumindo o modo de ser-com-mundo. Este nos parece o ponto hermenêutico fulcral para dar vigência ao vigor do tema em sua dimensão formativa. Igualmente, se trata de uma disposição a ser elaborada em termos de uma complexa demora formativa, com a qual opera-se a vigência da espacialidade.
A espacialidade acadêmica tem sua importância por conta da “vocação profissional”11 que ela contempla, reunindo no jogo fundamental entre filosofia e ciência, os elementos do mundo fático para pensarmos de modo mais rigoroso fenômenos que o fático nos oferece. Contingencialmente,
[...] o próprio ser-aí carece de uma meditação continuamente nova sobre as posturas fundamentais em relação ao todo do ente, uma meditação, porém, que seja diretamente determinada pela respectiva situação histórica do ser-aí e atue sobre essa situação
(HEIDEGGER, 2008, p. 9).
E qual é a situação hoje em relação às migrações? Trazer permanentemente ao desvelamento o tema, sempre mais e mais – e com diferentes enfoques, porque o todo do ente só se mostra por seus ângulos, o que nos sinaliza que apenas no modo perspectivado de seu tratamento é possível encontrar acesso. Se, com Heidegger (2008), compreendemos que a verdade não é um fundamento da consciência e de um eu se impondo sobre outros, já sabemos que ela é tão somente o próprio desvelar-se do ser. Nada além disto; esta é a sua essência. Portanto, a verdade não opera como uma lei universal, senão como um instante existencial, próprio ao ser-aí. Isso equivale a dizer que na academia, assim como em outros cantos do mundo, espacialidades vão constituindo-se enquanto instantes de verdades.
Vale lembrar, a partir do que ensaiamos aqui: em sendo a espacialidade o elemento fundamental do homem, cumpre às instituições educacionais, não só promover políticas de acolhimento relativas às migrações como manter a perspectiva da abertura do tratamento da questão em sua forma polissêmica, tal como concerne ao mundo mesmo.
Se os autores deste texto ousaram pensar um tema cujo fático supostamente não alcançam, o esforço empreendido guarda o sentido hermenêutico destas palavras: “O que nos é totalmente próximo e se mostra todo o dia como compreensível já é no fundo o mais distante e incompreensível” (HEIDEGGER, 2011, p. 229). Portanto, a tarefa ainda está posta a todo aquele que se detém na interpretação do mundo.