Introdução
Só podemos nos tornar presença no mundo povoado por outros que não são como nós, um mundo de pluralidade e diferença
A deficiência múltipla decorrente da infecção do Zika vírus não se caracteriza apenas por um conjunto de duas ou mais deficiências – de ordem física, sensorial, mental, entre outras – associadas, como comumente é definida na legislação nacional e na literatura científica (BRASIL, 2006; ROCHA, 2014, 2018). As crianças que nasceram com deficiência múltipla em decorrência da Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV) apresentam, também, em sua maioria, problemas crônicos complexos de saúde. As discussões epidemiológicas no perfil de condições de saúde com o incremento de condições crônicas, incluindo aquelas de transmissibilidade infecciosa, vêm sendo realizadas desde a década de 1990 (MOREIRA; GOLDANI, 2010). A definição de Condição Crônica de Saúde (CCC) engloba tanto as doenças crônicas quanto as infecciosas e as mais variadas deficiências, devido a características em comum como: temporalidade e continuidade do cuidado, controle de sintomas e longitudinalidade da atenção, intervenção e suporte/apoio, conforme definição da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2003).
A manifestação de uma CCC em um período em que o aprimoramento neuropsicomotor fisiológico ainda está em desenvolvimento, como na infância, acarreta um forte impacto na vida do indivíduo e de seus familiares (COHEN et al., 2011; MOREIRA et al., 2017). Muitas vezes a sua vida e de seus familiares passa a ser regida pela CCC, afetando toda a interação dessa criança na escola e na sociedade, repercutindo no desenvolvimento de sua funcionalidade e na participação nas atividades de vida diária e sociais (SÁ et al., 2015). No caso de nossas investigações com pessoas com deficiências múltiplas severas, temos realizado as análises e as intervenções a partir do debate intersetorial que envolve as discussões e os avanços na área de CCC, como é o caso de crianças com SCZV (SÁ et al., 2019; PLETSCH; MENDES, 2020; PLETSCH; ARAUJO; ROCHA, 2020).
Quando nos referimos ao termo funcionalidade no caso de crianças com deficiências múltiplas em decorrência da SCZV, destacamos aquilo que a criança pode ou não realizar em sua vida diária, considerando as funções dos órgãos e dos sistemas, estrutura do corpo, as limitações da atividade e restrições de participação educacional e social no ambiente em que esses indivíduos vivem (OMS, 2003). Em outras palavras, empregamos aqui o uso do termo “funcionalidade” a partir do conceito introduzido pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF (WHO, 2007), que o compreende como uma interação dinâmica entre problemas de saúde e fatores contextuais, tanto pessoais quanto ambientais. Entendemos, assim, a deficiência não como um atributo da pessoa, mas resultado da interação social, pois ambientes não acessíveis ampliam a deficiência ao impor barreiras à participação e à inclusão dessas pessoas. Essa perspectiva toma como referência o modelo social de deficiência que a compreende como um fenômeno social e não como influência direta e única das lesões corporais (DINIZ; BARBORA; SANTOS, 2009).
Tomando como base essa discussão, este artigo apresenta resultados de um estudo piloto realizado com duas crianças com deficiências múltiplas em decorrência da SCZV para analisar a participação e o apoio familiar dado a elas em atividades realizadas em casa. Após a pandemia mundial provocada pelo novo “coronavírus” (SARS-CoV-2), declarada pela OMS em 11 de março de 2020, também analisamos a participação e os suportes oferecidos a essas crianças na escola.
Nosso pressuposto é de que a participação em casa, na escola ou na comunidade afeta de forma positiva a funcionalidade e, consequentemente, o desenvolvimento dessas crianças, desde que sejam oferecidos os devidos apoios e suportes. Igualmente, compreendemos que, na perspectiva da funcionalidade humana, a participação e os aspectos contextuais, sejam os ambientais ou pessoais, são importantes elementos a serem analisados quando se considera a participação do sujeito na vida social e escolar. As limitações na execução das atividades diárias impostas pela deficiência, associadas às restrições na participação, certamente afetarão o desempenho da criança no meio familiar, escolar ou na comunidade. Nossa hipótese é de que a analisar e conhecer a participação da criança em atividades em casa e na escola são essenciais para propor intervenções de forma colaborativa e intersetorial, de modo a favorecer sua funcionalidade, participação educacional e social e contribuir para a melhora da sua qualidade de vida e bem-estar.
Premissas teóricas e aspectos metodológicos
A pesquisa qualitativa desenvolvida de forma colaborativa com os participantes do Fórum Permanente de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Baixada e Sul Fluminense1 integra uma das etapas do projeto multidisciplinar que articula 55 pesquisadores de diferentes instituições (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ; Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio; Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc; Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz; Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP; e Instituto Fernandes Figueira - IFF) para desenvolver estudos e ações intersetoriais entre educação, saúde e assistência social na promoção da escolarização e do desenvolvimento de crianças com SCZV na Baixada e Sul Fluminense (PLETSCH, 2018, 2019). Informamos que o projeto foi aprovado no Comitê de Ética da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Protocolo nº 135/2021 (Processo nº 23083.031153/2019-40).
Para colher as informações, realizamos entrevistas com as mães de duas crianças com deficiência múltipla em decorrência da SCZV, matriculadas em turmas de Educação Infantil de escolas de dois municípios da Baixada Fluminense, e aplicamos o instrumento Participation and Environment – Children and Youth (PEM-CY)2, desenvolvido na Universidade de Boston, para avaliar a participação em diferentes contextos de crianças e jovens até 17 anos de idade: em casa, na escola e na comunidade. Para as entrevistas, realizadas de forma virtual pela plataforma zoom, utilizamos um questionário semiestruturado com questões socioeconômicas e contextuais. Para coletar as informações com o PEM-CY, foi realizada uma visita domiciliar com dois pesquisadores, os quais seguiram os protocolos de segurança epidemiológicas de prevenção da COVID-19. Importante mencionarmos que o PEM-CY foi validado para a realidade brasileira (MONTEIRO, 2017; GALVÃO et al., 2018), mas ainda não foi aplicado em crianças com deficiência múltipla. O Quadro 1 a seguir sistematiza as informações sobre os(as) participantes.
Participante Família | Filho(a) | Caracterização |
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Camélia - mãe, 23 anos de idade | Ana Flor – 4 anos | Nasceu com a SCZV e apresenta deficiência múltipla, classificação pelo GMFCS NÍVEL V3, usa cadeira de rodas manual adaptada; utiliza como dispositivos para adaptação: órtese para braços e pernas (AFO), não é oralizado, não tem mobilidade nas mãos e nos braços. |
Clara – mãe, 36 anos de idade | João – 4 anos | Nasceu com SCZV e apresenta deficiência múltipla, classificação pelo GMFCS NÍVEL V, usa cadeira de rodas manual adaptada, não é oralizado, tem mobilidade limitada nas mãos e nos braços. |
O PEM-CY é formado por um conjunto de perguntas sobre a participação das crianças ou dos jovens em diferentes atividades em casa, na escola e na comunidade. Neste artigo, apresentamos somente os resultados sobre a participação das crianças nas atividades em casa, com o intuito de avaliar se elas necessitam de muito apoio para realizá-las, pouco apoio ou nenhum apoio em função de sua deficiência múltipla. Foram analisados, também, aspectos contextuais como condições da moradia, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região, as condições sociais e econômicas da família, assim como a existência de uma rede de apoios/suportes para as mães.
Para a análise qualitativa dos dados, empregamos os referenciais da teoria bioecológica e sistêmica do desenvolvimento humano de Uri Bronfenbrenner (2012), atualmente denominada de “modelo bioecológico”. Essa perspectiva enfatiza que a interação entre diversos fatores (criança, família e ambiente social/comunitário), com foco na qualidade e no contexto das relações com esses ambientes, favorece o desenvolvimento infantil. Consideramos que essa perspectiva se articula ao modelo de funcionalidade humana, abordada anteriormente.
Falar em desenvolvimento humano implica considerar que ele ocorre contextualmente com base nos componentes dinâmicos e inter-relacionados do modelo PPCT propostos por Bronfenbrenner, a saber: a) Pessoa, compreendida a partir de suas características biopsicológicas e daquelas construídas na interação com o ambiente; b) Processo, visto como o responsável pelo desenvolvimento e dá-se por meio da interação recíproca e cada vez mais complexa entre um ser humano e outras pessoas, objetos e símbolos em um ambiente imediato, que Bronfenbrenner chamou de processos proximais; e c) Contexto, que se refere aos contextos de vida da pessoa e é analisado por meio da interação de quatro níveis ambientais sistematizados no Quadro 2 a seguir. Para o autor, esses sistemas estão organizados como um encaixe de estruturas concêntricas, compondo o que ele denomina de meio-ambiente-ecológico.
Nível | Explicação dada pelo modelo bioecológico |
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Microssistema | Caracteriza-se pelo ambiente em que a pessoa vive experiências pessoais diretas: família, escola, creche. |
Mesossistema | Ocorre quando há interrelações e influências recíprocas entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa participa ativamente. |
Exossistema | Inclui elementos do sistema que não envolvem a pessoa como um participante ativo, mas nos quais ocorrem eventos que afetam aquilo que acontece em um dos microssistemas. |
Macrossistema | É composto pelo padrão global de ideologias, crenças, valores, religiões, formas de governo, culturas e subculturas presentes no cotidiano das pessoas. |
Para Bronfenbrenner (1992, 1996, 2012), o desenvolvimento infantil ocorre conforme a criança se envolve ativamente com o ambiente físico e social, assim como ela o compreende e o interpreta. As relações entre um indivíduo em atividade e o contexto no qual ele a realiza e o multinível ecológico constituem a força do desenvolvimento humano. Segundo essa perspectiva, o indivíduo existe em um nível mais íntimo, formado por um conjunto de estruturas entrelaçadas que, juntas, compõem seu contexto ecológico (MARTINS; SZYMANSKI, 2004; BRONFENBRENNER, 2012; CHRISTMANN, 2019). Esse modelo prioriza o estudo do desenvolvimento humano no seu contexto de vida real, de forma a vislumbrar todo o sistema ecológico no qual ele ocorre bem como as interações nele estabelecidas.
Ao refletirmos sobre o desenvolvimento de uma criança com deficiência à luz do modelo bioecológico, compreendemos a importância de um ambiente enriquecido, assim como das dimensões das relações dessa criança com os meios sociais mais próximos, como a família e a sua cultura. Portes et al. (2013) destacam que a potencialidade de risco ou de proteção dos fatores está diretamente relacionada às condições ambientais e de desenvolvimento em que a criança está integrada, destacando, assim, que as potencialidades estão diretamente voltadas às condições ambientais ou contextuais as quais estão inseridas.
Em um estudo acerca dos programas de intervenção precoce da Educação Infantil, conforme a perspectiva bioecológica, Cappelaro-Kobren et al. (2020) apontam que esse nível educacional representa um microssistema de grande influência no desenvolvimento humano e pode criar oportunidades de identificação e respostas efetivas aos problemas do desenvolvimento. Os autores afirmam ainda que a intervenção voltada a crianças de zero a 6 anos tem por objetivo responder às necessidades apresentadas pelas crianças com alterações no desenvolvimento ou que estão em risco de apresentá-las.
Sá et al. (2019) relatam a experiência de construção de um projeto intersetorial, centrado na relação entre saúde e educação, articulando as famílias com crianças vivendo com a SCVZ, e ações de formação continuada para os profissionais de educação que atuavam com elas. O foco era justamente contribuir com a inclusão escolar de crianças com múltiplas deficiências nascidas com a SCZV. Os resultados da pesquisa apontaram que essa aproximação se revelou essencial à transição das crianças com SCZV, que tendem a ocupar hospitais e clínicas, para o ambiente da escola, que é por excelência “lugar de criança”. Nesse sentido, investir na relação família e escola para favorecer a participação e o bem-estar de crianças com deficiência múltipla, de forma integrada e colaborativa, por meio de programas e de ações educacionais, favorece a participação e o desenvolvimento de suas funcionalidades em contextos plurais e diversos como é a escola inclusiva (BRASIL, 2008, 2015).
No campo dos estudos sobre deficiência, a CIF representa um marco para a discussão da participação ao relacioná-la à perspectiva social da funcionalidade e condicioná-la a fatores contextuais. De acordo com a CIF, a participação representa a interação das habilidades da criança ou do adolescente com o ambiente físico e social em que eles estão inseridos (SANTOS, et al., 2016). Na maioria das crianças com deficiência, sobretudo naquelas com deficiências múltiplas mais severas, as habilidades funcionais são elementos que podem modificar a sua participação, como dito anteriormente (KING et al., 2003; ANABY et al., 2012, 2013).
O conceito de participação é complexo e, muitas vezes, polissêmico. Tomaremos aqui a ideia de que a participação está sob influência tanto dos fatores pessoais da criança e de sua família, mas também dos fatores ambientais. Compreendemos, desse modo, que a participação é uma construção multidimensional, diretamente afetada por fatores relativos às características da criança, da sua família e de seu ambiente (BRONFENBRENNER; MORRIS, 2006). Dada a dependência da criança em desenvolvimento, aqui especificamente de crianças com deficiência múltipla em decorrência da SCZV, os elementos físicos e sociais do ambiente têm um impacto significante na sua funcionalidade ao concebê-la na interação dinâmica entre a sua deficiência e as condições de saúde e os fatores contextuais, incluindo fatores pessoais e ambientais. No entanto, não podemos esquecer que os indivíduos possuem um papel ativo diante da situação social na qual se encontram inseridos, uma vez que suas atitudes contribuem também para (re)definir uma determinada situação social. Tomando essas premissas como pano de fundo, apresentamos, a seguir, a discussão dos resultados da pesquisa.
Participação, cuidado e funcionalidade da criança na perspectiva da mãe/família
No caso das crianças desta pesquisa, o cuidado e a participação estão diretamente interligados, considerando as suas demandas de apoio e suporte humano e/ou de tecnologia assistiva, as quais são permanentes na realização de atividades cotidianas como alimentar-se, cuidados com a higiene, assim como frequentar e participar das atividades escolares, como evidenciado nas respostas dadas no PEM-CY. O apoio e o suporte para atividades de vida diária e de ensino na escola são fundamentais para promover o desenvolvimento da funcionalidade e a participação de crianças com deficiência múltipla.
Muitas dessas crianças, assim como é o caso das participantes desta pesquisa, não são oralizadas e demandam o uso da comunicação alternativa para se comunicar, ter autonomia e participação nas suas escolhas na vida cotidiana (ROCHA, 2018). Por exemplo, introduzir a ideia de escolha por meio do sim e do não é determinante para ampliar as possibilidades dessas crianças, seja na escolha do que preferem comer, vestir, seja, principalmente, para o desenvolvimento de formas alternativas de comunicação por pranchas ou recursos digitais em tablets. A comunicação alternativa (CA) – que integra a área de tecnologia assistiva (TA)4 – envolve desde gestos e expressões faciais a diversas formas gráficas, como modo de efetuar a comunicação de pessoas que não conseguem utilizar a linguagem verbal. Ainda, considera os propósitos de promover e suplementar a fala e o de garantir uma nova alternativa, caso não haja a possibilidade de desenvolvê-la (ROCHA; PLETSCH, 2018). Sobre as formas de comunicação com os seus filhos, as mães participantes desta pesquisa relataram que os compreendem pelo olhar, pelo sorriso e até pela forma como choram.
A mãe de João já introduziu a ideia de escolha dando sempre mais de uma opção para o filho. Ela relatou que essa estratégia tem sido muito importante para compreender melhor os desejos do filho no que diz respeito ao que ele gosta e não gosta. As conquistas do filho, mesmo que pequenas, são motivo de comemoração: “Aprendi a dar valor às coisas mínimas, qualquer coisa que ele faz, eu vibro, vibro com pequenas conquistas” (Clara, mãe de João, em entrevista, 18 de janeiro de 2021). Essa estratégia é fundamental para que novas ações e programas mais sistematizados de comunicação alternativa sejam introduzidas para João. Ademais, a comunicação favorece a estruturação da linguagem e do pensamento por meio da apropriação do sistema simbólico, aspecto central para a aprendizagem e, consequentemente, para o desenvolvimento (ROCHA; PLETSCH, 2018).
A esse respeito, chamou nossa atenção, apesar de não ser objeto desta etapa da pesquisa, o relato das mães sobre a importância da entrada do(a) filho(a) na escola. As mães optarem em matricular os(as) seus(suas) filhos(as) em escolas comuns, as chamadas escolas inclusivas, por acreditarem que ali iriam se desenvolver mais ao interagir com outras crianças. Uma das hipóteses de nossa investigação, a ser confirmada após o fim da pandemia, na fase da pesquisa a ser realizada na escola, é a de que a matrícula dessas crianças em turmas comuns de ensino, com os devidos suportes, favorece o seu bem-estar e, por conseguinte, qualifica a sua escolarização e as suas condições de saúde. Santos et al. (2016, p. 3117) já havia constatado que a participação no ambiente escolar é “[...] um ponto importante para promoção de saúde, desenvolvimento, crescimento e sociabilidade”.
Cabe mencionarmos que nos apropriamos do conceito de bem-estar da Organização Pan-Americana da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) que o entende como “[...] estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de enfermidade ou invalidez” (OPAS; OMS, 2016, n.p., grifo nosso). Podemos considerar, em uma primeira perspectiva, que o significado de bem-estar pode ser a noção subjetiva de sentir-se bem, não ter queixas, não apresentar sofrimento somático ou psíquico, nem ter consciência de qualquer lesão ou prejuízo do desempenho pessoal ou social. Contudo, bem-estar também significa condição de satisfação das necessidades (conscientes ou inconscientes, naturais ou psicossociais). Nos seres humanos, implica a satisfação das necessidades biológicas – o bem-estar físico; das necessidades psicológicas – o bem-estar mental; e das necessidades sociais – o bem-estar social (GALINHA; RIBEIRO, 2005). Vejamos os relatos das mães sobre a escola inclusiva:
Apesar de ela ser “especial”, ela é uma criança que tem uma personalidade única. Ela é uma criança que é muito difícil de gostar de uma criança, só que aqui na minha casa eu tenho três sobrinhos que conviveram muito bem com ela e ela conviveu muito bem com eles. Literalmente, muito bem, ela interagia com eles e eles com ela. Então, pelo convívio com os meninos, eu percebi que eles faziam bagunça, e ela também queria fazer bagunça junto. Eles brincavam, eles falavam alto e ela balbuciava ou, então, ela gritava. Isso me fez querer pôr ela em uma escola comum com outras crianças. Não só pelo fato de estar com outras crianças, mas também as tarefas escolares dela ajudavam ela de alguma forma. A rotina dela na escola, ver outras crianças, a professora falar e ela reconhecer o que a professora está falando... Até mesmo em casa, quando a professora mandava vídeos, ela reconhecia a voz dela, os deveres poderiam passar hoje, mas se amanhã você repetisse o que estava escrito ela já entendia o que era, ela sabia o que era porque ela esboça um sorriso. Ela presta muita atenção. Então, eu acredito que essas foram as melhoras dela depois de ir para a escola inclusiva. Acredito que tenha sido a convivência com outros alunos, as tarefas, a adaptação dela na escola. (Camélia, mãe de Ana Flor, em entrevista, 11 de janeiro de 2021).
Moro em frente a uma escola e todos os dias antes da pandemia ficava em frente da minha casa bem na hora da saída das crianças. Meu filho ficava todo feliz e sorridente vendo as crianças brincando e saindo da escola. Observei que ela queria interagir e foi isso que me fez optar por uma escola inclusiva. Além disso, defendo a inclusão por acreditar que as crianças que conviverem com o meu filho serão menos preconceituosas com outras pessoas com deficiências. (Clara, mãe de João, em entrevista, 18 de janeiro de 2021).
Como podemos inferir, a entrada na escola dessas crianças na perspectiva das mães tem sido importante e tem afetado de forma positiva para a participação e o desenvolvimento funcional de seus filhos. Nesse sentido, temos defendido que propor ações intersetoriais entre educação, saúde e assistência social, tomando como referência o modelo social de deficiência e a funcionalidade humana para essas crianças requer repensar a função social da escola como instituição que, ao acolher a diversidade, amplia as possibilidades de desenvolvimento dos alunos (DAINEZ; SMOLKA, 2019; PLETSCH; ARAUJO; ROCHA, 2020; PLETSCH; SOUZA, 2021). Igualmente, aponta para a importância do trabalho colaborativo entre os diferentes profissionais com as famílias dessas crianças para compartilhar informações, conhecimentos para além das fronteiras disciplinares de cada área (SÁ et al., 2019). Desenvolver ações ampliando a ideia do “atendimento centrado na família empregado na saúde” para outras áreas, como a da educação e a da assistência social, parece ser um caminho necessário para garantir não apenas os direitos sociais de crianças com deficiência múltipla em decorrência da SCZV, mas efetivar programas de intervenção para a promoção do seu desenvolvimento integral. Acreditamos que a escola pelo papel central que ocupa na vida das crianças e de suas famílias é o espaço por excelência para a orquestração de ações intersetoriais.
Outro dado da pesquisa se refere aos cuidados da vida diária do(a) filho(a) e da organização de sua rotina, seja educacional ou de terapias semanais, a qual fica sob a responsabilidade das mães, conforme já indicado em estudos anteriores (PLETSCH; MENDES, 2020; FLEISCHER; LIMA, 2020; LIMA; SOUZA, 2021). A mãe de Ana Flor – residente em Belford Roxo que fica na 73º posição do Estado do Rio de Janeiro no IDH, com 0,684, – disse que, quando precisa de ajuda, pode contar com os pais e os irmãos, mas que a responsabilidade de cuidar é dela. Ela nos relatou que “[...] quando se tem um filho especial a vida muda muito, tive que abrir mão de meus sonhos, abri mão de praticamente tudo para cuidar dela” (Camélia, mãe de Ana Flor, em entrevista, 11 de janeiro de 2021). Já a mãe de João – moradora de São João de Meriti com IDH 0,719, na 34º posição no Estado do Rio de Janeiro – nos relatou que, apesar de ter o apoio do marido, da filha e dos pais, a maior parte dos cuidados fica sob a responsabilidade dela. Ambas as mães tiveram de parar de trabalhar após o nascimento das crianças e, atualmente, têm o benefício de prestação continuada e, em 2020, receberam também o auxílio emergencial do Governo Federal oferecido durante a pandemia da COVID-19.
Na saúde, o conceito de cuidado – do inglês care – tem sito vastamente discutido nos últimos 20 anos. A literatura tem se estendido, e algumas definições do que consiste em cuidado e modalidades de cuidar têm se aperfeiçoado e ampliado. O termo “care” é de difícil tradução pela sua polissemia; no entanto, podemos considerar como cuidado, solicitude, preocupação com o outro, estar atento às suas necessidades, que são significados presentes em sua definição (AGOSTINI, 2019). Hirata (2012, p. 286) define care “[...] como o tipo de relação social que se dá, tendo como objeto outra pessoa”. Gilligan (1993) propõe a lógica da ética do cuidado centrada nas relações interpessoais e que valoriza a responsabilidade, capacidade de resposta que inclua o afeto, a atenção com o outro apoiada na compreensão do mundo humano (KUHNEN, 2010; HIRATA, 2012; AGOSTINI, 2019). No entanto, compreendemos, em acordo com Fietz e Mello (2018), que a multiplicidade de discursos, em diferentes áreas do conhecimento, torna-se justamente a potência para pensar as questões da deficiência a partir das relações de cuidado. As autoras destacam que o cuidado é uma categoria-chave para abrir novos diálogos do campo de conhecimentos, saberes e práticas.
Compreendemos, assim, que a discussão do conceito de cuidado, relativa ao campo da educação, tem grande pertinência, ao falarmos de educação inclusiva, por exemplo, de crianças com a SCZV, as quais demandam maior apoio em sala de aula para poderem participar efetivamente dos processos de ensino e de aprendizagem. É o que Kittay (2012) concebe como uma questão de justiça social, por ser um princípio ético e moral da própria condição humana, com base na premissa da interdependência que rege as relações humanas. Em seu livro Learning from my daughter, a autora estabelece uma articulação de uma ética do cuidado para atender às “necessidades genuínas” e aos “desejos legítimos” das pessoas com deficiência ou doenças crônicas. Kittay (2012) articula não apenas como indivíduos como sua filha enriquecem as vidas daqueles que cuidam deles, mas também como devem ser os relacionamentos de carinho e os deveres que esses relacionamentos envolvem.
Como podemos depreender desta discussão, o conceito de cuidado aqui discutido está entrelaçado à ideia de redes de apoio e suporte, seja familiar, seja na escola. Apesar dos avanços legais nessa direção com a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) - Lei Nº 13.146/2015 (BRASIL, 2015), ainda enfrentamos inúmeros desafios, pois nem todas as redes de ensino têm profissionais de apoio. A mãe de João nos relatou que ela mesma fica em sala de aula para apoiar a professora com o seu filho. Dessa forma, a mãe, que poderia ter o momento que o filho está na escola para cuidar de si, acaba assumindo uma responsabilidade que deveria ser institucional. Ela nos disse que
[...] fico exausta, chego da terapia, tenho que correr e preparar o almoço do João para levar ele para a escola, se tivesse um mediador eu poderia voltar para casa, almoçar com calma, fazer as atividades domésticas, descansar e depois pegar o meu filho na escola. Eu continuo na escola para lutar pela escola pública e para o meu filho ter um mediador. (Clara, mãe do João, em entrevista, 18 de janeiro de 2021).
O profissional mediador ou agente de apoio à inclusão, como também tem sido denominado em algumas redes de ensino, está previsto na LBI como profissional de apoio escolar (BRASIL, 2015).
Sobre o perfil e o papel desse profissional em sala de aula, ainda existem inúmeras dúvidas. Muitas redes têm contratado profissionais sem a devida qualificação ou até mesmo estagiários para qualquer criança que apresente alguma deficiência. Entretanto, nossas pesquisas realizadas no âmbito do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) têm mostrado que a maioria das crianças demanda apenas de intervenções mais estruturadas e de ações de manejo de sala de aula que podem ser realizadas pelos professores, desde que tenham condições de trabalho para tal, como turmas com menos alunos, material didático e outros recursos necessários para uma ação docente qualificada. Esse não é o caso de crianças com deficiências múltiplas como João e Ana Flor. Eles demandam o apoio permanente de alguém, inclusive para se alimentar e realizar a sua higiene pessoal. Entendemos que, para casos como esses, o profissional de apoio deve atuar de forma colaborativa com os demais profissionais da instituição escolar, participar do planejamento educacional individualizado (PEI) e mediar as intervenções pedagógicas em parceria com a professora (CAMPOS, 2016; CAMPOS; PLETSCH, 2018).
Além da falta do profissional e apoio, a mãe também relatou ficar preocupada com as faltas do filho na escola porque muitas terapias são agendadas no mesmo horário. Infelizmente, por falta de ações intersetoriais, ainda vivenciamos essas situações justamente com crianças que demandam de maior intervenção educacional para a sua aprendizagem e para o seu desenvolvimento, aspecto central para apropriar-se de conceitos fundamentais para melhorar a sua autonomia e a sua qualidade de vida, como é o caso da comunicação alternativa. Além disso, como pressupõe a perspectiva bioecológica de Bronfenbrenner e outras que tratam do desenvolvimento humano, como a histórico-cultural de Vigotski, é na interação com a diferença que nos constituímos, aprendemos e desenvolvemos, pois “[...] o ser humano não apenas é ou está, mas se constitui como um vir a ser” (PLETSCH, 2015, p. 21). Para crianças com deficiência múltipla severa, a escola tem um papel determinante para que elas desenvolvam novas formas de funcionamento mental/simbólico, a partir de atividades escolares que possibilitem a apropriação de conceitos, seus significados e sentidos para estruturar a linguagem e o pensamento, já discutido anteriormente.
Aliás, ambas as mães participantes desta pesquisa relataram a falta de apoio que tiveram do Estado para garantir os seus diretos e os devidos tratamentos terapêuticos para o(a) filho(a). A mãe de João entrou na justiça para garantir o tratamento de fisioterapia e outros tão importantes para o filho. A mãe de Ana Flor relatou que fará o mesmo, pois tem apenas um dia de fisioterapia por semana para a filha, e isso é insuficiente ante as demandas que a filha apresenta e as possibilidades de melhorar a sua funcionalidade, inclusive no que diz respeito a uma maior independência para se alimentar e uso de pranchas de comunicação alternativa, por exemplo.
Camélia, mãe de Ana Flor, nos relatou, também, sobre as dificuldades que enfrenta para se deslocar por falta de transporte acessível. Segundo ela, essa realidade acaba impactando no acesso aos tratamentos de saúde necessários para a filha, assim como em atividades de lazer da família. A Baixada Fluminense, constituída por quase 4 milhões de habitantes, possui enormes problemas sociais, aumento da violência urbana, falta de saneamento básico, de água potável em vários bairros dos 13 municípios da região, de oferta de equipamentos de saúde, além de problemas de acessibilidade de toda ordem e tantos outros que impactam nas condições de bem-estar social de sua população. Essa realidade torna-se ainda mais difícil para as pessoas com deficiências e suas famílias que demandam de acessibilidade urbana, de transporte e de serviços públicos de saúde que são insuficientes ou precários na região.
Ainda sobre esse aspecto, as entrevistadas relataram a importância de sua participação no projeto “Juntos”, desenvolvido no Instituto Fernandes Figueira (IFF) da Fiocruz, sob a coordenação de Sá et al. (2019). O projeto de pesquisa e extensão focava o desenvolvimento de ações com as mães sobre os cuidados e intervenção precoce junto aos seus filhos. Segundo o relato de Clara, foi durante uma aula no projeto que as mães se deram conta que seria importante:
Unir as nossas vozes, tem valor uma voz quando tem o peso de várias vozes juntos, aí a gente começou a estudar e ver que em outros estados já tem uma associação, já tem uma ONG que luta pelos direitos das crianças com SCZV e aqui no Rio não tinha. Foi assim que começamos a madurar a Associação de famílias de crianças com a SCZV Lotus. (Clara, mãe de João, em entrevista, 18 de janeiro de 2021).
Como podemos depreender, projetos colaborativos dessa natureza são fundamentais para ampliar os conhecimentos dessas famílias sobre os seus direitos e as possibilidades de desenvolvimento de seus(suas) filhos(as). Ademais, essa é a dimensão social da pesquisa científica, pois se a “[...] ciência não contribuir para resolver os problemas da vida, há de servir para muito pouco” (GARCIA, 2003, p. 23).
Considerações finais
Os principais resultados da pesquisa aqui apresentada trazem dados e informações importantes para as etapas futuras do projeto, mas também para a elaboração de ações e de propostas educativas necessárias para garantir os direitos educacionais e sociais das crianças com SCZV e suas famílias. Também apresentam evidências sobre a necessidade de adaptação de instrumentos de coleta de dados como o PEM-CY, considerando a realidade social e a desigualdade social de países como o Brasil, assim como a sua aplicação para crianças e jovens com deficiências múltiplas. Durante a aplicação, tivemos de introduzir novas questões sobre a participação das crianças nas atividades em casa, avaliando se elas necessitavam de muito, pouco ou nenhum apoio para realizá-las, em função de sua deficiência múltipla. Os resultados do PEM-CY mostram que as crianças demandam apoio permanente para participar das atividades em casa. Além disso, também ficou claro que as mães buscam, por meio de estratégias mais elaboradas ou mais intuitivas, melhorar constantemente a participação e a funcionalidade do(a) filho(a) em casa, com a família e na escola.
Outro aspecto que já foi sinalizado em diferentes pesquisas é o impacto emocional e social na vida das famílias das crianças que nasceram com a SCZV. As famílias reestruturaram-se amplamente, tendo as mães de parar de trabalhar para se dedicar integralmente aos cuidados do(a) filho(a), o que impactou de forma negativa nos rendimentos familiares e em sua condição social.
Apesar dos avanços legais em matéria de direitos educacionais e sociais das pessoas com deficiência no Brasil, a pesquisa mostrou que as famílias não se sentem apoiadas pelo Estado, tendo de, com frequência, acionar o Judiciário para obter atendimentos essenciais de saúde. No caso da mãe de João, a falta de suporte adequado também ocorre na escola, mas ela continua acreditando na educação pública e espera que, em breve, seu filho tenha um mediador para apoiá-lo nas atividades escolares.
Por fim, os dados da investigação piloto aqui apresentados nos fornecem importantes pistas sobre as necessidades e as urgências das famílias e das crianças com SCZV que chegaram em 2019 e 2020 na escola. A articulação dos diferentes níveis da perspectiva bioecológica de desenvolvimento humano, em diálogo com as premissas da funcionalidade e do modelo social de deficiência, mostrou-se profícua para a elaboração de programas e políticas intersetoriais para o desenvolvimento integral dessas crianças, melhora na qualidade de vida e do seu bem-estar. Por isso, investir em pesquisas científicas colaborativas com as famílias e profissionais que atuam com essas crianças é fundamental, assim como promover programas de formação continuada para os profissionais envolvidos.