Introdução
A nossa fala desvela, delata, relata, invade quem ouvi-la ou lê-la. (ALVES, 1986, p. 13 apudSILVA, 2014, p. 51).
Nosso ponto de partida para pensar, viver, enfrentar e sofrer racismo na sociedade brasileira é a educação. Assim sendo, ao longo deste texto, trazemos à tona algumas considerações importantes sobre cotidiano escolar e racismo à brasileira1.
A construção discursiva deste texto entrelaça-se com a representatividade e considera o modo como os sujeitos criam as representações de si e sobre si, pelas relações com a linguagem verbal e não verbal. A nosso ver, a educação comprometida com os debates étnico-raciais tem na representatividade uma estratégia valiosa para favorecer o enfrentamento do racismo e apoiar a construção identitária positiva de crianças e de adolescentes pretas e pretos no espaço escolar.
Em sua pesquisa, Cavalleiro (1998) aponta para a ausência da representatividade de pessoas negras nas ações de uma escola de Educação Infantil, onde não havia negros nos cartazes e nem nos personagens de livros infantis2. Essa ausência sistêmica da representação do negro em fotos e livros contribui para que crianças negras queiram pertencer ao grupo branco e rejeitem o seu igual, favorecendo a baixa-estima e a exclusão escolar de crianças e de adolescentes negras e negros.
Criar práticas pedagógicas atravessadas pelas discussões étnico-raciais ainda é um desafio para muitos professores, apesar da Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003). No contexto educacional que Cavalleiro desenvolveu sua pesquisa, em 1998, a educação não dispunha dos dispositivos legais e oficiais atuais. Atualmente, professoras e professores da Educação Básica têm à disposição da sua prática pedagógica uma legislação que favorece a valorização da educação étnico-racial, podendo mitigar o fortalecimento do racismo estrutural no contexto escolar.
Como perspectiva metodológica, seguimos o caminho da “escrevivência”, termo delineado por Evaristo (1995) em sua tese de Doutorado, que conquistou visibilidade nos anos 2000. Diante da potência que o termo carrega, seu emprego generalizado nos preocupa, pois escrevivência carrega histórias de mulheres negras e traz um registro marcado pela ancestralidade, dores, sexismo e racismo. A banalização do termo pode permitir seu esvaziamento, por isso, ao utilizá-lo neste texto, cercamo-nos de alguns cuidados, adotando a escrevivência como uma escrita teórica-metodológica reveladora de experiências de professores pretos com a Educação Básica.
A escrevivência é uma escrita de nós, entendendo esse “nós” por mulheres pretas que têm a urgência de firmar sua história para existir, sobreviver e resistir. Ela tem uma relação íntima com a escravização e abarca a síntese de um sujeito coletivo, marcado pela interseccionalidade raça e gênero. Evaristo (1995) assinala que escreviver não é um movimento para ninar a Casa Grande; pelo contrário, é a expressão de uma história sofrida, imposta pela escravização e pela colonização.
Embora o termo seja criado nos limites da literatura, sua empregabilidade escapa de qualquer limite literário, tanto que aparece como metodologia em pesquisas acadêmicas, mesmo sem estar atravessado pela escrita de mulheres negras. Diante das apropriações do termo “escrevivência” e da sua potencialidade, neste artigo, fazemos uso do conceito para trazer à tona experiências docentes atravessadas pelas discussões do racismo, da representatividade e da pedagogia antirracista. Rosane Borges defende a Escrevivência como um “[...] princípio conceitual-metodológico com potência para suportar as narrativas dos excluídos, uma vez que considera as várias matrizes de linguagem para tecer memória e construir história” (NUNES, 2020, p. 22).
Evaristo (2020b) aponta para o necessário incômodo que a escrita de mulheres negras precisa provocar no interior da produção científica hegemônica, marcadamente branca. Escreviver é um sinal da virada epistêmica, de uma força engajada à militância nos escritos e nos movimentos políticos de mulheres negras.
Por escrevivência, a autora define a escrita de nós, trazendo à tona a escrita de mulheres pretas - atravessada por dores em função do racismo que atravessa a vida de mulheres pretas brasileiras. “Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado” (EVARISTO, 2020b, p. 30). Para a referida autora, a escrevivência traz a voz da mulher negra, que se apropriou da escrita para trazer à tona sua ancestralidade e as mazelas da escravização:
Escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida. Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me auto inscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é só minha. Por isso, repito uma pergunta reflexiva, que me impus um dia ao pensar a minha escrevivência e de outras. Indago sobre o ato audacioso de mulheres que rompem domínios impostos, notadamente as mulheres negras, e se enveredam pelo caminho da escrita [...]. (EVARISTO, 2020b, p. 30).
Ao amalgamar ação e reflexão, notamos a importância de trazer à tona nossa escrevivência na Educação Básica, principalmente na educação brasileira, que caminha vagorosamente no que diz respeito à incorporação da Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2003). A proposta metodológica da escrevivência nos aproxima de Kilomba (2019), que pontua a importância de trazermos para o texto acadêmico nossas histórias. “Eu sou quem descreve minha própria história e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político” (KILOMBA, 2019, p. 28).
Nesse sentido, nossa proposta central é refletir sobre nossas vivências cotidianas em sala de aula da Educação Básica e a importância da representatividade na valorização das identidades étnico-raciais. Para tal, o texto está estruturado da seguinte maneira: iniciamos com uma breve reflexão sobre o processo de construção racial no Brasil e, logo após, discutimos o racismo, a estética e a representatividade negra. Nossas experiências como professores na Educação Básica são destacadas nas duas seções finais.
Construção racial brasileira
A escravidão no Brasil, oficialmente, teve seu término marcado pela promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, sob a concessão da princesa Isabel3. Contudo, hoje, no século XXI, compreendemos que essa tal liberdade não passa de uma falácia de libertação. A “liberdade” desestruturada manteve em curso o projeto político e ideológico escravocrata, que reverbera até os dias atuais nos corpos negros. Essa libertação de cunho legal e protocolar encontrou formas de conservar e manter a estrutura colonial e os privilégios da branquitude e, por consequência, manteve pretos e pretas sob os grilhões da sujeição, ressignificando algumas de suas novas-velhas formas racistas.
Embora nos termos da lei a escravidão esteja extinta, a ausência de políticas públicas nas áreas de saúde mental, cultura, trabalho, geração de renda e inclusão perpetua o sistema escravocrata. O racismo, erva daninha estrutural e estruturante de nossa sociedade (GOMES, 2017), ainda é responsável por manter a sujeição do povo preto, cuja liberdade não foi equitativamente vivida.
Ao negro, o sistema brasileiro deixou de herança a exclusão, a subalternização, o desemprego, a fome, a violência, as péssimas condições de moradia, o epistemicídio, o racismo e o genocídio de sua juventude. Trata-se de um racismo violentamente sofisticado que fragiliza identidades e atravessa a subjetividade, ferindo a construção da identidade negra, que se constitui em um contexto de fortes marcas e dores advindas do racismo estrutural. Munanga (2010) ressalta:
Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira. (MUNANGA, 2010, n.p.).
Diante do impacto do racismo estrutural (ALMEIDA, 2018; GOMES, 2017), a sociedade pressiona negros e negras a elaborarem táticas de sobrevivências, mecanismos de defesa e outras formas de proteção, que só negros e negras entendem. Quando falamos de táticas, explicitamos “manhas” para enfrentar e resistir ao racismo. Nessa perspectiva, Ramos (2017) reflete:
Silenciosamente comecei a me lembrar das várias vezes que um branco, sem nem notar, se portou como dono do meu querer. Sem nenhuma cerimônia, muitas vezes, brancos se comportam como superiores, se atribuindo autoridade que nunca foi dada por mim..., mas eles se “sabiam” no direito. O que me faz pensar como a cor da pele é, sim, uma espécie de patrimônio, que ter faz conquistar inclusive postos e vozes de comando. (RAMOS, 2017, p. 126).
O racismo estrutural tece, com fio de seda e lâmina de navalha, sua perversidade, que se manifesta na linguagem verbal e não verbal e nas práticas sociais que atravessam a constituição da subjetividade da população preta. A sociedade racista engendra uma história nociva contra o povo preto, estabelecendo, de forma sutil, quando não bastante agressiva e violenta, um modus operandi que sufoca e asfixia até a morte. O racismo exerce efeito caleidoscópico que corrobora sua perpetuação na medida em que há um exercício intenso de negar a existência do outro sem ser confrontado. É quase uma convenção social não o confrontar.
Trazemos as discussões políticas e ideológicas que atravessam o racismo, com base em Munanga (2010), que ressalta que o termo “raça” surge para designar a classificação de espécies. No entanto, oportunamente é redimensionado ou banalizado, conforme interesse do grupo dominante, que usa o termo “raça” para fins de hierarquização das diferenças, promovendo a ascensão de um grupo e oportunizando a dominação de outro. Os estudos sobre raça são manipulados para explicar um sistema de exploração do outro pelo outro.
Para refletirmos sobre racismo e suas consequências, torna-se necessário observarmos o processo de construção racial em nosso país. Trata-se de uma questão muito ampla e complexa, na qual o discurso negativo da miscigenação foi revertido em positivo e, conjuntamente com uma política de estado, incentivou o branqueamento (MELO; SILVA JUNIOR; MARQUES, 2020). Nesse sentido, no Brasil, a invenção da raça4 está atravessada por diversos momentos como a colonização (escravidão), a abolição da escravidão, a ciência da raça, a miscigenação, a democracia racial e a valorização da negritude (MUNANGA, 1986; SALES JR., 2006; SCHWARCZ, 1994), com discursos que causaram grandes efeitos nas relações sociais.
Os primeiros navios com carregamento de corpos negros5 começaram a chegar ao Brasil logo nas primeiras décadas de 1500. Os africanos eram escravizados em seus países de origem e vendidos como mercadoria em nosso país. Naquele momento, eram animalizados, considerados não humanos. No período pós-abolição, esses negros foram jogados nas ruas sem que houvesse uma política para que pudessem construir uma vida como libertos; com isso, passaram a exercer subatividades e realizar trabalhos similares aos que realizavam no período da escravidão.
Com o intuito de eliminar os negros no Brasil6, começaram a surgir as políticas de branqueamento. Assim, no século XIX, ganharam força a ciência da raça e os discursos higienistas, pregando a superioridade da raça branca, principalmente no que se refere ao aspecto intelectual. O projeto de branqueamento buscava mostrar que as raças não brancas eram inferiores, e a ciência procurava mostrar que a miscigenação enfraquecia a raça branca. No entanto, a ideia da miscigenação baseada na vitória do elemento branco sobre o elemento negro contribuiu para que o Brasil se tornasse um “laboratório da miscigenação” (SCHWARCZ, 1994, p. 140). Com o desejo de promover o cruzamento inter-racial e contando com a força do homem ariano, de acordo com Nascimento (2016), no período de 1921 a 1923, a Câmara dos Deputados discutiu uma série de leis que impediam a entrada de homens negros em nosso país. Era a busca pelo ideal da brancura.
Já a década de 1930 ficou marcada pelo mito da democracia racial7, pelo desejo de divulgar a ideologia de nacionalidade morena e a integração das raças. Esse fato corroborou, de maneira muito forte, a integração social do negro, a partir da subordinação (MELO; SILVA JUNIOR; MARQUES, 2020). Foi nesse momento que, de acordo com Nascimento (2016), Gilberto Freyre fundou o lusotropicalismo, que significa a ideia de que os portugueses construíram com sucesso o paraíso racial na América, valorizando a ideia do mestiço. No entanto, o próprio Nascimento (2016) buscou desmistificar a ideia de democracia racial e valorização da mestiçagem, mostrando que os mestiços eram frutos do estupro de mulheres negras classificadas pelos homens brancos como inferiores e objetificadas sexualmente.
Nessa perspectiva, a difusão do mito da democracia racial tem como efeito o disfarce e o silenciamento do racismo, provocando uma suposta cordialidade racial (SALES JR., 2006) como forma de acomodar relações raciais fruto de códigos de sociabilidades, nas quais a presença do negro é tolerada a partir da ideia de clientelismo e do patrimonialismo. Assim, impera um discurso de não ditos e injúrias raciais que estabilizam as diferenças hierárquicas entre as raças na busca de mostrar a harmonia e a ausência de problemas entre elas8 (SALES JR., 2006). É relevante destacarmos que o período da ditadura militar reforçou a importância da miscigenação e a vendeu como um atrativo turístico, em especial as mulheres miscigenadas e negras, que foram transformadas em comodities mundo a fora e apresentadas como disponíveis para visitas (MELO; SILVA JUNIOR; MARQUES, 2020).
O discurso negacionista do racismo9 voltou a vir à tona em nosso país com a fragilização do sistema democrático, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Os grupos da extrema-direita começaram a alegar que os problemas raciais em nosso país foram criados pelos governos de centro-esquerda e passaram a difundir o discurso da meritocracia10. Dessa forma, tais discursos - igualdade racial, democracia racial, meritocracia - acabam dificultando o enfrentamento das desigualdades raciais e corroborando a inferiorização da raça negra.
A trama que possibilitou a construção deste texto evidencia que não nos calamos diante do racismo estrutural. Ancorados nas possibilidades que a legislação nos oferece, com destaque para a Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2003), adentramos o cotidiano da educação para confrontar e enfrentar o racismo nas suas diversas formas de manifestação, desenvolvendo, no cerne da escola pública, uma pedagogia marcadamente comprometida com as relações étnico-raciais que marcam o nosso lugar de fala.
Racismo, estética e representatividade negra
Escolhemos enfrentar o racismo que, por séculos, dissemina ódio e dor, fazendo vítimas e perpetuando formas de ver e de sentir o mundo. Iniciamos esta seção com Fanon (2008), que destaca o enraizamento dos estereótipos, marcando as representações sociais11 que constituem e aprisionam pretos e pretas. Para o autor, ao enfrentar essa situação, criamos um mecanismo para que seja possível uma autolibertação, pois, como vítimas do racismo, inculcamos o medo, a submissão, a subalternização de nossa estética em função do racismo estrutural e estruturante de nossas práticas.
Uma questão importante é a relação da representatividade com o racismo, uma vez que as formas de encarar e de reelaborar o mundo constituem as representações que temos de nós como sujeitos, por meio das sujeições que nos submetem e somos submetidos em função do racismo.
A estética e a representatividade são tão fortes que se perpetuam por intermédio de estereótipos reforçados entre os negros. Vejamos o seguinte trecho:
Assim, grande parte das representações hegemônicas sobre os homens negros recaem sobre o nosso corpo, nos hipersexualizando, nos desumanizando, ou seja, destituindo-nos dos prestígios, recursos e prerrogativas de sermos “homens-humanos”. O pênis (seu tamanho e desempenho) dá a tônica nas relações entre os homens em geral, mas principalmente entre homens negros e brancos. (SILVA JUNIOR, 2019, p. 177).
Apesar de o autor destacar as representações de homens negros, o mesmo acontece com as mulheres que, ao longo da história, tiveram suas identidades reduzidas a determinados atributos físicos e estéticos. Certamente, trata-se de formas de representações estereotipadas que se conservam intactas, corroborando a permanência e a manutenção da hierarquização racial. Essas representações cristalizam-se porque o racismo ainda opera de maneira violenta nas relações estéticas, sociais, econômicas e políticas. A citação anterior aproxima-se bastante desta apresentada por Fanon (2008, p. 152): “Agora podemos propor um padrão. Para a maioria dos brancos, o negro representa o instituto sexual (não educado). O preto encarna a potência genital acima da moral e das interdições”. Ainda sobre essa manutenção de representações que se constituem no âmago racista, Berth (2020, p. 139) revela que “[...] muitos homens negros que se pensam empoderados e que são até militantes ativos ostentam sua imagem e parecem ter orgulho dela, realçando inclusive aquilo que não deveriam: estereótipos”.
É assustadora a forma violenta com a qual pretos e pretas forjam suas identidades estéticas e representações a partir do racismo estrutural e estruturante, que marca sua existência. Não é por acaso que, no cotidiano da Educação Infantil, as crianças pequenas idolatram marcadores da branquitude e reproduzem discursos acerca da superioridade branca. Durante as brincadeiras e as interações na creche, já ouvimos de crianças negras o desejo de serem brancas ou a autodeclaração como branca, mesmo quando eram pretas retintas. “Malcolm X, em um de seus emocionantes discursos para as massas que lutavam contra as violências do racismo nos Estados Unidos, perguntou: ‘Quem te ensinou a odiar seu cabelo, seu nariz, a cor da sua pele?’” (BERTH, 2020, p. 120).
Neste texto, chamamos atenção para a necessidade de ampliarmos as discussões sobre estética e representatividade na luta antirracista. No que diz respeito à representatividade:
É por meio da representação que a identidade e a diferença passam a existir, um pensamento que Silva acentua ao afirmar que representar “significa, nesse caso, dizer: “essa é identidade”, identidade é isso” [...]. Esse valor signo da representação acaba por ligar identidade e diferença a sistema de poder, pois como o autor ainda relembra, é privilégio dos que detém o poder de representar assumir o poder de definir e determinar a identidade, de forma que questionar a identidade e a diferença equivale a questionar os sistemas de representação que lhes dão suporte. (SILVA, 2014, p. 52).
Quando enveredamos pela representatividade, consideramos que os sistemas de representação oferecem suporte para a constituição tanto da subjetividade quanto da identidade e corroboram um debate sobre as diferenças. Nossa luta antirracista, ainda que exista entre os brancos aliados, precisa se fortalecer dentro de um sistema estético da pretitude: “É fundamental que enxerguemos a estética como um dos pilares do processo de empoderamento. Veja bem, um dos pilares [...]” (BERTH, 2020, p. 129).
Como pretos e pretas, representamos e constituímo-nos dentro de um sistema que forja nossas subjetividades pelos condicionantes do racismo estrutural. Por isso, neste texto, apresentamos a estética e a representatividade preta como estratégias para enfrentar o racismo estrutural e estruturante.
É necessário ampliar a quantidade de pretas e de pretos representadas/os nas linhas de frente, para que crianças e adolescentes possam construir suas representações tendo como referências sujeitos que retratam seus marcadores identitários. Assim, é necessária “[...] a asserção do negro não só perante a população branca, mas que se forneçam modelos positivos ao negro, para que este possa libertar-se da baixa autoestima que frequentemente o vitima, como resultado das opiniões dos brancos [...]” (SILVA, 2014, p. 58).
Nessa perspectiva, quando evocamos o racismo estrutural, referimo-nos ao racismo “raiz”, implantado nos mais diferentes mecanismos de Estado - o racismo refletido nas práticas que subjugam pretos e pretas. Tratamos do racismo enraizado, que encontra linhas de fuga e se reinventa, para manter um apartheid racial ideológico e político. Um racismo espiral que envolve mente, alma e corpo, não apenas um racismo no campo da narrativa, mas um racismo que vigia corpos negros com chicote em forma de foice, que ainda hoje açoita, trazendo à tona o racismo estrutural brasileiro como uma estratégia de combater a falácia do mito da democracia racial. “O mito da democracia racial”, tão corajosamente analisado e desmascarado por Florestan Fernandes, orgulha-se com a proclamação de que o “[...] Brasil tem atingido um alto grau de assimilação da população de cor dentro do padrão de uma sociedade próspera” (NASCIMENTO, 2016, p. 98).
Não é possível pulverizar a ideia de uma harmonia entre as identidades plurais quando a diferença e a raça, como atributos, são marcas assentadas para estruturar discursos discriminatórios e racistas. Sempre é bom lembrarmos: é sobre racismo que precisamos falar. É nesse contexto de negação oficial do racismo e de permanentes processos de marginalização da pretitude em suas diversas formas, inclusive estética, que nos constituímos pretos e pretas no Brasil.
Quando elucidamos as questões perversas do racismo estrutural, nossas produções acadêmicas precisam reverberar em ações cotidianas no espaço escolar. As denúncias precisam ser seguidas de anúncios para que cada vez mais seja possível disputar espaço com o enraizado racismo estrutural e estruturante. Assim, adotamos o tema da estética e da representatividade na educação para dialogar com a perspectiva esperançar difundida por Freire (1992), visando apresentar alternativas estéticas, políticas, culturais e artísticas para as novas gerações de pretos e de pretas.
Escrevivências que tratam de racismo, representatividade negra e Educação Infantil
Mesmo na mais tenra idade, crianças pequenas tendem a negar sua pretitude e valorizar os marcadores identitários da branquitude. Com um repertório não muito amplo de saberes nem de vocabulário, chama atenção o modo pelo qual os privilégios brancos estão amalgamados nas vivências das crianças pequenas na Educação Infantil. Como destaca Bento (2022), ainda que involuntariamente, o pacto da branquitude está posto e atuante, há um esforço do sujeito coletivo em perpetuar seus privilégios. Nesse sentido, concordamos com Caetano, Gomes e Castro (2022) quando eles destacam a importância do contato diário e não apenas esporádico, como nas datas comemorativas, com as histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras e com personalidades e/ou seres ficcionais negros, pois eles ajudam a ampliar os modelos de referências positivas e de identidades das crianças no conhecimento da diversidade étnico-cultural de nosso país.
O racismo nas relações infantis na escola é reproduzido nas mais diferentes formas de interações e reforçado pelo currículo e pelas práticas escolares, como denunciou Cavalleiro (1998). As escrevivências desta seção foram construídas pelo registro e pela observação de uma professora preta, com as crianças do Maternal II, na maioria com 4 anos de idade, em uma creche municipal da cidade do Rio de Janeiro.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (BRASIL, 2010), os eixos das práticas constituem-se pelas interações e pelas brincadeiras; por isso, parte da escrevivência apresentada é fruto do olhar atento e do registro das produções das crianças durante as brincadeiras e as conversas no cotidiano da Educação Infantil. As crianças, em suas brincadeiras, reproduzem cenas e discursos racistas, principalmente quando o assunto é o sobre cabelo e cor de pele. Vejamos a constatação de Gonçalves (2019):
Não muito diferentes dos apontamentos de Souza (2002), os diálogos e movimentos infantis na creche trouxeram à tona marcas de um branqueamento, inclusive em crianças que não possuíam marcadores identitários brancos, por serem negras. Em várias ocasiões de brincadeiras, as crianças revelaram tensões no que se refere à questão étnico-racial. Percebeu-se a dificuldade de algumas crianças compreenderem-se negras e negros, apesar de seus marcadores se aproximarem da identidade afro-brasileira, meninos e meninas negras e negros, na tenra idade de 2 anos, se autodeclaravam brancas e de cabelo liso. (GONÇALVES, 2019, p. 3).
Cavalleiro (1998) constatou que as práticas escolares favorecem o fortalecimento da branquitude e fragilizam a identidade e a subjetividade de criança negras. Embora os estudos de Cavalleiro datem do final da década de 1990, o racismo e suas estratégias de dominação continuam operando no contexto escolar, talvez encontrando maiores enfrentamentos e resistências, como a ação da professora preta que desenvolveu um currículo em prol de uma pedagogia enegrecida, construindo práticas pedagógicas em articulação com a Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2003), que versa sobre o ensino da história e cultural afro-brasileira e africana nos currículos escolares no Brasil.
Confrontar o racismo na primeira etapa da Educação Básica é cada vez mais urgente. Por isso, assumimos como tarefa cotidiana enveredar por uma pedagogia preta, na qual a escola não seja mais o espaço unívoco de experiências doloridas com o racismo, tampouco uma das instituições que reforçam o sistema de representação do pacto da branquitude. Assim, enfrentamos a discussão do racismo na primeira infância problematizando o racismo, que perpassa as relações pedagógicas, principalmente nas formas estéticas pelas quais negros e negras são representados/as, quando aparecem nas práticas escolares. Uma estratégia de enfrentamento adotado foi a representatividade. Segundo Berth (2020, p. 127): “Uma boa relação com a nossa autoimagem é uma ferramenta importante de reconhecimento de valores ancestrais ou de reafirmação de necessidade de aprofundamento na busca pelo autoconhecimento de nossa história e entendimento de nossa condição social de indivíduo negro”.
Nossa trama para confrontar o racismo na educação assenta-se tanto nos documentos legais e oficiais vigentes como na representatividade como tática de representação importante para o desenvolvimento de uma prática pedagógica, centrada na constituição do eu-outro preto/preta no cotidiano escolar, em busca de ações e de intervenções que valorizam a população afro-brasileira e africana. Contudo, cabe atentarmo-nos para o fato de que a identificação como negro deve ser feita pela própria criança, não pelos adultos que convivem com ela. O que estes podem fazer é oferecer constantemente referências valorativas, romper com qualquer tipo de construção pejorativa e sempre estar aberto ao diálogo (CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022).
O racismo estrutural e o pacto da branquitude estão postos nas relações escolares e não escolares, envolvendo a criança desde o útero, sendo urgente sua desconstrução e seu enfrentamento. Conforme já assinalamos, o Brasil perpetua o racismo estrutural, sendo a escola um lugar social importante para ações e intervenções em prol da educação étnico-racial. Como afirma Gomes (2003, p. 171-172), “[...] a escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra”.
O ano de 2019 foi o último ano de Maria Vitória na creche12. No último dia de aula do ano, ela chamou sua professora, abraçou-a e falou: “Tia, quando eu crescer quero ser assim, igual a você” (Maria Vitória, 4 anos - Maternal II, na creche Lobo13). O inusitado foi observar que a criança não proferiu essas palavras para a professora branca, apenas para a professora preta. Essa experiência impactou a escrevivência da professora e chamou atenção justamente pelo desejo de a criança ser igual à professora, que é preta.
Esse fortalecimento também será pautado pela representatividade, pois à medida que as pessoas negras se veem de maneira positiva nos espaços mais diversos, é que reconhecem e assimilam a possibilidade da própria imagem como positiva. Muitas são as formas de se trabalhar esses movimentos que são inerentes e se intercalam em intensidade, e a principal é a imagética [...]. (BERTH, 2020, p. 124).
Diante do posicionamento da criança, a professora reagiu com outra pergunta: “Por que ser como eu e não como as princesas?”. E a criança retrucou: “Princesas? Para mim você é muito mais que as princesas!”. As demais concordaram com Maria Vitória, dizendo: “Tia, eu também quero ser assim como você, você é linda e eu te amo” (Laura, 4 anos). “Tia, eu serei você até se for para ser uma bruxa” (Juliana, 4 anos).
Ao analisarmos o trecho anterior, que faz parte da escrevivência da professora, nossas reflexões articulam-se com as discussões sobre representatividade e subjetividade, considerando o que a professora preta e sua ação pedagógica representam para aquelas crianças. De alguma forma, a professora preta já estava na subjetivação daquelas crianças, concorrendo com a estética e os padrões de beleza hegemônicos. O rosto, a pele, o cabelo e a estética negra comumente não são apreciados na sociedade racista. “O rosto da mulher negra, que traz as informações reais das origens africanas, também é alvo constante de escárnio e depreciação. O nariz e a boca são campeões nisso” (BERTH, 2020, p. 117).
O recorte dessas falas permite compreendermos que há uma valorização/aceitação, talvez temporária, de marcadores identitários pretos como cor da pele, traços fenótipos e cabelo crespo. Nessa experiência, a estética e a representatividade preta para aquelas crianças ainda não ocuparam “definitivamente” o tribunal do racismo, mas já fazem parte da vida delas, talvez pelo assentimento de práticas pedagógicas inclusivas e comprometidas com a educação antirracista desenvolvidas na creche de modo institucional ou pela relação afetiva estabelecida com a professora. É importante destacarmos que, no ano de 2018, as crianças negras dessa turma não se identificavam como pretas; pelo contrário, crianças negras diante do espelho se autodeclaravam brancas, usando como referência crianças de pele branca.
Os espelhos foram grandes reveladores, pois, apesar de estarem diante de sua imagem repetida, cada criança começou a se enxergar-se à sua maneira. E, surpreendentemente, observou-se que, mesmo em tenra idade, a inculcação de um modelo normativo do branqueamento já estava arraigada. Os diálogos sobre si diante do espelho indicaram que as crianças carregavam os estenótipos de beleza, em função de pele branca e cabelo liso. Entretanto, não se verificou em nenhum momento a manifestação por parte das crianças de qualquer tipo de postura preconceituosa em relação aos colegas. (GONÇALVES, 2019, p. 3).
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) destaca que a imitação é a forma que a criança aprende a comunicar-se:
O resultado da capacidade de a criança observar e aprender com os outros e de seu desejo de se identificar com eles, ser aceita e de diferenciar-se. É entendida aqui como reconstrução interna e não meramente uma cópia ou repetição mecânica. As crianças tendem a observar, de início, as ações mais simples e mais próximas a sua compreensão, especialmente aquelas apresentadas por gestos ou cenas atrativas ou por pessoas de seu círculo afetivo. A observação é uma das capacidades humanas que auxiliam as crianças a construírem um processo de diferenciação dos outros e consequentemente sua identidade. (BRASIL, 1998, p. 21).
Considerando essa reflexão, quanto antes vivenciarem práticas de combate ao racismo estrutural, como ações voltadas à constituição e à valorização de sua identidade, maiores são as chances de, no futuro, estarem na luta contra o racismo.
Ao longo do processo de formação dessas crianças na creche, as histórias, a cultura, a religiosidade, a representatividade e a estética do povo preto estiveram presentes nas mais diferentes práticas pedagógicas multiculturais críticas, desenvolvidas como estratégias de enfrentamento às práticas sutis de racismo estrutural e estruturante que moldam currículos e práticas escolares.
Em busca da representatividade pelo Ensino Fundamental e Técnico
A escola e a educação podem contribuir tanto para a perpetuação do racismo, a inferiorização e a subordinação de corpos negros, quanto para o surgimento de agentes de transformação, reflexão e espaço propulsor de lutas antirracistas. Nesse espaço, Florenço e Volpato (2022) destacam as dificuldades enfrentadas pelo professor negro ou pela professora negra, pois há um sentimento de que a sua autoridade precisa estar em constante aprovação, em comparação aos professores brancos e às professoras brancas. Contudo, esse preconceito é muitas vezes velado e não revelado no ambiente escolar. Assim, continuamos a defender o argumento de que a escola deve ser um espaço de discussão capaz de promover a inteligibilidade do corpo negro, de apresentar modelos positivos de identificação e de representatividade e, principalmente, problematizar e desconstruir a forma como o negro foi construído ao longo dos tempos, como aquele que é inferior e passível de destruição. Conforme nos mostra Fanon (2008):
Na Europa, o Mal é representado pelo negro. É preciso avançar lentamente, nós o sabemos, mas é difícil. O carrasco é o homem negro, Satã é negro, fala-se de trevas, quando se é sujo, se é negro - tanto faz se isso se refira à sujeira física, à sujeira moral ou à sujeira moral-física. Ficaríamos surpresos se nos déssemos ao trabalho de reunir um grande número de expressões que fazem do negro o pecado. [...]. Uma magnífica criança loura quanta paz em sua expressão, quanta alegria e, principalmente, quanta esperança! Nada comparável com uma magnifica criança negra, algo absolutamente insólito. Não vou voltar às histórias dos anjos negros. Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo negro. (FANON, 2008, p. 160).
As palavras de Fanon (2008) expressam como o negro é representado na Europa, o que não é diferente do Brasil. Podemos comprovar essa afirmativa a partir dos discursos que circulam em nossa sociedade sobre os negros e seus corpos, a saber: “cabelo duro, cabelo bombril, fede como macaco, nego fedorento, nariz de batata, negro se não suja na entrada suja na saída, a coisa está preta, neguinha barraqueira, entre outros” - são discursos que inferiorizam os corpos negros. Assim, apesar de o negro ser maioria nas salas de aula (principalmente em escolas localizadas em regiões pobres e periféricas), os educandos e as educandas acabam por repetir os discursos dominantes e perpetuar esse processo de inferiorização do negro e da negra, de valorização da meritocracia e do ideal da branquitude.
É nessa perspectiva que defendemos a importância da representatividade e o papel do professor e da professora nesse processo. Silva Junior e Almeida (2020) relatam o caso de uma professora negra da periferia urbana de Duque de Caxias que se empenhou na luta antirracista assumindo seus cabelos naturais sem alisamentos, trazendo, para suas alunas de Geografia, as discussões sobre beleza negra e autoestima. A partir dessa proposta, as alunas passaram a se reconhecer na professora, a qual afirmou:
Me gratifica muito saber que meu posicionamento, que era pessoal, acabou influenciando muitas meninas... Verdade, em uma escola com a maioria negra, são poucas as que alisam cabelos. Veja principalmente no 8º e 9º anos, cada uma busca valorizar sua beleza... tem menina de trança, com flor, com fita... eu mesma trago muitos enfeites, arcos, laços e dou para elas... quero vê-las poderosas... com autoestima elevada... é interessante que os meninos aprenderam a respeitar e achar as meninas negras bonitas e atraentes [...]. (SILVA JUNIOR; ALMEIDA, 2020, p. 18).
De acordo com os autores, o trabalho realizado pela professora Juliana colocou em xeque, mesmo que brevemente, certas visões essencializadas e os congelamentos identitários, trazendo o/a diferente, o colonizado e a colonizada para a sala de aula, promovendo o diálogo entre as diferenças (SILVA JUNIOR; ALMEIDA, 2020). Certamente ela conseguiu mais, ela se tornou referência para as alunas e os alunos.
A busca pela representatividade é ampla e permeia os diversos níveis de escolaridade. Outro fato relevante aconteceu em uma escola técnica profissionalizante de dança. O depoimento de um bailarino que se formou naquela escola pode ilustrar a importância da representatividade:
Como nós estamos aqui hoje em um momento de agradecer e de falar um pouco dos grandes mestres que tivemos dentro desta instituição maravilhosa que eu tanto admiro, estou aqui para poder falar exatamente o que eu falei para ele quando o convidei para ser meu padrinho de formatura. A frase dele para mim foi: “Por que eu se nós nem somos tão próximos?”. Porque, hoje, como existe muito a palavra “representatividade”, lá atrás, para mim, ela já era muito importante. Então, quando eu o convidei, eu pensei: “Tem que ser alguém que faça a diferença naquele palco comigo e que me entregue o diploma”. Dois pretos no palco do Theatro Municipal, um entregando o diploma e o outro se formando, para mim, representava muito. Meu “dindo” Paulo Melgaço, obrigado pelo carinho e por tudo que você me ensinou. Você nem imagina o quanto eu levo tudo e tento representar exatamente o que você foi para mim, para meus alunos, para que eles entendam que, sim, a gente pode. Bastar estudar, sempre. - Grey Araújo, formando de 2006. (SILVA JUNIOR; ANDRADE, 2021, p. 40).
As discussões sobre a representatividade do corpo negro no ballet clássico estão tomando força em nosso país nos últimos anos. Aos poucos, biografias e histórias de vida de bailarinos negros e de bailarinas negras estão sendo resgatadas (SILVA JUNIOR, 2007; SILVA JUNIOR; MELGAÇO, 2019, entre outros) para que sirvam de referencial para as jovens gerações.
Considerações finais
A capacidade de adaptação e de transformação do negro e da negra visando a inclusão social denota claramente as nossas heranças escravistas. Qual negro ou negra que nunca ouviu a famosa sentença “O negro tem que se esforçar duas vezes mais para ser o melhor” ou “O aluno negro é mais fraco, pois veio de um nível socioeconômico mais baixo”? Essas frases só são compreendidas por quem é negro e vive em um mundo onde este raramente é protagonista, pois vive quase sempre à margem - tanto que exteriorizar a luta negra é expor a necessidade de resistir. Entretanto, ter de resistir sem existir é cruel demais.
Em uma sociedade com herança escravagista marcante, ser branco acarreta um conjunto de privilégios psicológicos, sociais, econômicos e culturais. Em outras palavras, o racismo sempre impõe uma relação dicotômica entre pretos e brancos. Para os primeiros, os espólios da senzala são muito fortes; enquanto, para os segundos, são as vantagens da casa grande. O protagonismo é e sempre foi dos brancos; por isso, a autopercepção da etnia branca praticamente é inexistente. E esse protagonismo é detectado desde a infância.
Quando nosso recorte é a Educação Infantil, considerando as interações e as brincadeiras das crianças, há uma discussão muito importante que abrange a representatividade. É importante pensarmos como as crianças acessam as culturas afro-brasileira e africana, diante da escassez de brinquedos. Apesar das conquistas em relação à educação étnico-racial, ainda temos uma carência com relação às bonecas e aos bonecos pretos, brinquedos, livros de literatura infantojuvenil e desenhos animados que representem a cultura negra.
Trazemos à tona o papel de destaque da escola, espaço heterogêneo, onde são compartilhados valores, crenças e hábitos e, também, preconceitos raciais, de gênero e de classe. Considerando que a Educação Infantil atende a crianças bem pequenas, as professoras e os professores têm oportunidade de promover, já na creche, interações e brincadeiras que se coadunam com a educação étnico-racial, promovendo para as crianças possibilidades positivas para sua construção identitária. As escolhas das/os docentes comprometidas/os com uma pedagogia preta e antirracista possibilitam fortalecer a autoestima e a representatividade negra na escola. Na Educação Infantil, as crianças constroem questionamentos, desenvolvem experiências culturais e discursivas, o que denota a urgência da visibilidade e da compreensão das demais culturas nos espaços de educação formais. Conforme reflete Gomes (2003),
[...] quando pensamos a escola como um espaço específico de formação, inserida num processo educativo bem mais amplo, encontramos mais do que currículos, disciplinas escolares, regimentos, normas, projetos, provas, testes e conteúdos, a escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra. (GOMES, 2003, p. 171-172).
Nesse cenário, compreendemos a educação como elemento propulsor para a mudança e a possibilidade de reeducar o olhar pedagógico sobre o negro e a negra. A representação do corpo negro no espaço escolar, assim como estratégias pedagógicas que promovam e contemplem as diversas raças e etnias, podem constituir uma educação efetivamente antirracista a favor de uma sociedade igualitária, capaz de construir representações positivas tanto para os negros e as negras quanto para os demais grupos étnico-raciais. Apostamos na educação comprometida com as relações étnico-raciais para que as escrevivências futuras, para além das dores, apresentem anúncios e relatem experiências antirracistas vividas e apreendidas na escola.
Como informou Evaristo (1995), as escrevivências como escrita de mulheres negras são escritas que sangram e explicitam dores. Parte dessas dores está associada ao racismo estrutural, que continua avassalador, atuando e estruturando práticas. Em contrapartida, as escrevivências que insurgem já trazem dados mais significativos de resistência e de lutas antirracistas, tal como a experiência da professora preta, que contou que algumas meninas “desejavam” ser como ela.
Este artigo traduziu, a partir da metodologia que comporta o termo “escrevivências”, iniciativas antirracistas na Educação Básica, por meio do que informou a professora preta e o professor preto. As escrevivências revelam os potenciais de currículos enegrecidos praticados, seja pela lógica da representatividade, materializada no empoderamento e no comprometimento ético e étnico-racial dos docentes, seja pelas referências que eles traduzem nas vivências com o cotidiano escolar.
As pedagogias empretecidas possibilitam para alunas e alunos acesso às contribuições afro-brasileira e africana, no que diz respeito à literatura, à brincadeira, às artes. Há muitos caminhos para escreviver uma educação antirracista; todavia, todos e todas precisam estar comprometidos/as com a urgência que negros e negras têm de existir e de resistir. Reconhecer, a partir de escrevivências, que a representatividade docente negra importa e faz a diferença na construção identitária positiva de alunos negros e de alunas negras é indício de mudanças importantes com relação à luta racial histórica do nosso país.