Introdução
A partir de 2003 o discurso governamental situou a inclusão digital nos direitos do exercício da cidadania e do desenvolvimento social, ressaltando o caráter possivelmente transformador das novas tecnologias. Nesta perspectiva, o projeto One Laptop for Child (OLPC)[3] foi apresentado ao governo brasileiro em janeiro de 2005, no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). O projeto OLPC se expandiu em poucos anos, abrangendo diversos países, especialmente da América Latina, África e Ásia, dentre eles o Brasil. A principal justificativa do Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) era a inclusão social via inclusão digital das populações excluídas do acesso ao laptop no ambiente escolar.
Estudos sobre este Programa em escolas públicas do Brasil (Echalar, 2015) e de outros países do mundo (Piovani & Pires, 2013; Melo et al., 2017; Cóndor et al., 2019; Rivoir, 2020) asseveram que a inserção de laptops não implica diretamente em melhores resultados na aprendizagem dos estudantes. Isto porque a formulação de políticas públicas de inserção de tecnologia na educação pode até se colocar no sentido de amenizar as contradições da nossa sociedade, mas não as supera, visto que são pautadas por uma lógica neoliberal (Echalar, 2015; Echalar & Peixoto, 2017; Peixoto & Echalar, 2017).
Os excluídos são extremamente importantes para a manutenção do capitalismo, porque mantê-los à margem da sociedade garante um exército de reserva de trabalhadores que se submete a competir entre si e a aceitar, cada vez mais, condições precárias de trabalho. Assim, a incorporação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na sociedade deve estar sempre à margem do avanço tecnológico, se limitando ao mínimo necessário para a própria manutenção do sistema capitalista, que é essencialmente desigual (Marx, 2017).
No intuito de compreender os aspectos pedagógicos de tal política pública de inserção de tecnologia na Educação Básica, nos colocamos a problematizar as produções acadêmicas sobre o PROUCA, a partir da seguinte indagação: quais são as perspectivas teóricas que fundamentam as produções acadêmicas relacionadas ao uso do laptop do PROUCA em sala de aula?
Assim, com fundamento na pesquisa dialética, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, do tipo estado do conhecimento, que buscou a compreensão mais ampla do fenômeno apresentado. Neste sentido, foi realizada uma busca, de caráter inventariante e descritivo, da produção acadêmica brasileira – teses e dissertações (T&D) – no período de 2005 — ano em que o projeto OLPC foi apresentado ao governo brasileiro — a 2019, ano do término desta pesquisa.
A busca destas produções foi realizada no Banco de Teses da Capes e da Biblioteca Brasileira Digital de Teses e Dissertações (BDTD), sem restrição de tempo ou área de conhecimento. Foram utilizados os seguintes descritores: PROUCA/Um computador por Aluno (UCA); inclusão/exclusão digital; laptop.notebook/computador portátil e modalidade 1:1. Estes descritores foram empregados separadamente, podendo estar presentes no título, resumo ou palavras-chave. Após a seleção das produções, foi realizada a leitura dos resumos para o refinamento da busca, tendo em vista que as produções deveriam ter como temática central o uso do laptop do PROUCA.
Para sistematizar estas produções e o processo de recolhimento das informações, foi construída uma matriz de coleta de dados contendo os seguintes itens: ano; palavra-chave; orientador(a); Instituição de Ensino Superior (IES); Programas de Pós-Graduação (PPG); problema de pesquisa; objetivos; bases epistemológicas que orientam a produção sobre a relação entre educação e tecnologia e as finalidades de uso do laptop do PROUCA. O processo de análise dos dados foi realizado por meio da leitura, na íntegra, destas produções, a fim de compreender o fenômeno em suas múltiplas determinações.
Pelo menos dois estudos das produções acadêmicas sobre o PROUCA já foram publicados: Andriola e Gomes (2017) que fizeram uma análise bibliométrica das dissertações e teses produzidas de 2008 até 2014, e Habowski et al. (2019) que realizaram uma análise hermenêutica em teses publicadas nas universidades públicas de 2012 a 2016 sobre os impactos da consolidação do PROUCA para a inclusão digital. A pesquisa em tela se diferencia das pesquisas anteriores, uma vez que especifica seu objeto de estudo nas produções que discutem diretamente as finalidades dos usos dos laptops do PROUCA em sala de aula, justificando assim sua originalidade e a não inserção de algumas teses e dissertações, quando comparado aos trabalhos citados.
O uso de laptops no ambiente escolar: entre os dados empíricos e as perspectivas teóricas
A partir do uso dos descritores destacados, no período de 2008 a 2019, foram encontradas 34 dissertações e 12 teses que discutem diretamente o uso do laptop do PROUCA no ambiente escolar (Quadro 1).
A maior parte destas produções foram realizadas em PPG da região Sudeste, totalizando 19 produções, sendo sete pesquisas oriundas de PPG da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na região Sul foram encontradas 13 produções acadêmicas, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) possui o maior número de trabalhos, cinco no total. Na região Nordeste foram encontrados nove trabalhos, dos quais cinco estão vinculados à Universidade Federal do Ceará (UFC). Na região Centro-Oeste foram produzidos quatro trabalhos, três pela Universidade de Brasília (UnB) e uma pela Universidade Federal de Goiás. A região Norte produziu somente um trabalho, na Universidade Federal de Tocantins.
É importante destacar também que do total de pesquisas analisadas, 31 delas estão vinculadas a pesquisadores do Grupo de Trabalho do PROUCA (GTUCA) das IES globais (UFC, Universidade Federal de Pernambuco, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC-SP, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e UFGRS) e IES locais (Universidade Federal da Bahia, UnB, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná). Isto pode nos revelar que há convergência entre quem pensou a política, quem a implementou e, em grande medida, quem a analisou.
No que se refere ao processo de ensino e aprendizagem com o laptop do PROUCA nos trabalhos analisados, foi possível identificar que 80,43%[4] declararam uma perspectiva teórico-pedagógica para fundamentar o uso dos laptops em sala de aula; 2,17% não declararam tal fundamentação; e 17,40% se pautaram em perspectivas teóricas de outras áreas do conhecimento. Para compreender as perspectivas teóricas que fundamentam estas produções, sintetizamos as obras mais citadas (Tabela1).
Obras mais citadas1 | Recorrências |
---|---|
Freire (2013a) | 18 |
Castells (2006) | 18 |
Lévy (1993) | 18 |
Papert (2008) | 17 |
Lévy (1999) | 16 |
Valente (1999) | 12 |
Freire (2013b) | 11 |
Almeida e Valente (2007) | 10 |
Kenski (2007) | 10 |
[5]Será referenciada a edição mais recente citada em português.
Fonte: os autores.
José Armando Valente, Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida e Seymour Papert possuem vários trabalhos publicados na perspectiva construcionista, sendo o último o principal desenvolvedor desta teoria pedagógica.
Destacamos que Valente[6] foi orientado pelo professor Seymour Papert durante seu mestrado e doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). A professora Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida[7] foi orientada por Valente no seu mestrado e doutorado e possui vários trabalhos publicados com ele. Ambos são integrantes das IES Globais do PROUCA (Unicamp e PUC-SP, respectivamente).
Podemos compreender, então, que a perspectiva teórica que fundamenta a maior parte das pesquisas tem fundamento construcionista.
O construcionismo é construído sobre a suposição de que as crianças farão melhor descobrindo (“pescando”) por si mesmas o conhecimento específico de que precisam […] Evidentemente, além de conhecimento sobre pescar, é também fundamental possuir bons instrumentos de pesca — por isso precisamos de computadores — e saber onde existem águas férteis, motivo pelo qual precisamos desenvolver uma ampla gama de atividades mateticamente ricas, ou “micromundos". (Papert, 2008, pp. 134-135)
O “Guia de orientação didática” do PROUCA possui alicerces construtivistas, logo “o sujeito ativo aprende a partir de suas ações sobre os objetos e constrói suas próprias categorias de pensamento, ao mesmo tempo que organiza seu mundo” (Programa Um Computador por Aluno [PROUCA], 2012, p. 13).
A perspectiva construcionista e a construtivista possuem como base teórica os fundamentos desenvolvidos por Jean Piaget (1896-1980). Entretanto, diferem no foco de sua análise, ou seja, a primeira foca na aprendizagem individual da criança e a segunda foca no desenvolvimento cognitivo da criança.
Os fundamentos teóricos do PROUCA vão ao encontro do construcionismo, à medida que colocam na tecnologia a possibilidade de solução dos problemas educacionais e sociais que vivenciamos. Todavia, declaram que um dos principais fundamentos pedagógicos do PROUCA é preparar “o indivíduo para o mundo produtivo reclamado pelo sistema econômico […]” (PROUCA, 2012, p. 13).
Paulo Freire ganha importância como elemento de crítica à educação tradicional. As construções teóricas, observadas nas produções, são complementadas pelas discussões de Lévy e Castells acerca do surgimento de uma “nova sociedade” que, cada vez mais, se complexificaria com as rápidas mudanças sociais advindas da inserção das TIC na sociedade, e que, consequentemente, essas mudanças sociais tem repercutido também no âmbito educacional, de modo a adequar-se, progressivamente, à lógica da cultura digital[8].
Estamos em um momento histórico da Educação, no qual o giz vai perdendo espaço para as TD, e o mundo passa a estar, cada vez mais, conectado às inovações tecnológicas. Nesse contexto, a escola e a Educação estão sendo repensadas com a inserção das TD, apontando a necessidade de desenvolver uma postura pedagógica adequada às transformações da cultura digital. Nesse âmbito, o professor precisa buscar construir e reconstruir o processo de ensino-aprendizagem. (Andrade, 2013, p. 26)
Pierre Lévy, ao discutir sobre a internet, a caracteriza como um ambiente democrático que concretiza uma vontade coletiva. O autor destaca as possibilidades de uso que as novas tecnologias trazem para a sociedade, visto que a tecnologia é produzida pelos homens, logo, não haveria nenhuma diferença de natureza. Entretanto,
Afirmar que entre homens e máquinas não existe diferença de natureza é um equívoco; ainda que consideremos que as máquinas são feitas pelos homens, este fato não os equipara como sistemas de mesma natureza. Não se trata de ocultar as diferenças entre os sistemas comparados, mas de reconhecer que todos os objetos e fenômenos da natureza encerram contradições internas. (Malaquias, 2018, p. 49)
Uma análise que busca compreender as relações sociais e os seus produtos, sem direcionar para as forças produtivas, desconsidera a própria base fundamental que alicerça a constituição destas relações, consequentemente, reduz ainda mais a compreensão humana sobre a sua própria história (Vázquez, 2011).
Sob uma ótica similar à de Lévy, a obra mais citada da professora Vani Moreira Kenski[9] destaca que:
Podemos também ver a relação entre educação e tecnologias de um outro ângulo, o da socialização da inovação. Para ser assumida e utilizada pelas demais pessoas, além do seu criador, a nova descoberta precisa ser ensinada. A forma de utilização de alguma inovação, seja ela um tipo novo de processo, produto, serviço ou comportamento, precisa ser informada e aprendida. (Kenski, 2007, p. 47)
A autora enfatiza uma relação direta entre tecnologia e inovação. Esta forma de exposição vai ao encontro da perspectiva teórica adotada na maioria das pesquisas, que enxerga nos aparatos tecnológicos, principalmente as TIC, formas “inovadoras” de ensino. Esta forma de pensamento pode reforçar a lógica de que o desenvolvimento tecnológico é algo natural e inevitável, o que fundamenta uma perspectiva determinística sobre o uso de tecnologias (Peixoto, 2016).
Dicotomias e unidades: ensino-aprendizagem e sujeito-objeto técnico
Ao levantarmos os problemas de pesquisa e objetivos, identificamos que as produções analisadas versam sobre três finalidades educativas no que se refere ao uso de laptops no ambiente escolar, a saber: para o ensino, para a aprendizagem e para a relação ensino e aprendizagem. Tais categorias estão vinculadas ao “uso em si” do aparato digital ou consideram o laptop do PROUCA “como possibilidade pedagógica” (Quadro 2).
Podemos perceber que a maioria das produções acadêmicas discutem a relação entre ensino e aprendizagem – tanto “como possibilidade pedagógica” quanto como “uso em si” – de forma dicotômica, isolando o ensino da aprendizagem e vice-versa.
Entretanto, se considerarmos que a base predominante destas produções é construcionista e que, por mais que o ensino seja minimizado por esta lógica, ela não permite a ocorrência de uma dicotomia entre ensino e aprendizagem (Valente, 1999), concluiremos que tal separação é fator de distanciamento entre estas pesquisas e o referencial teórico por elas adotado. O ensino, neste âmbito, é caracterizado como uma “abordagem integradora de conteúdo e voltada para a resolução de problemas específicos do interesse de cada aluno” (Valente, 1999, p. 2).
A relação entre ensino e aprendizagem construída por este referencial pedagógico gera um produto para o estudante ou, mais especificamente, a solução de um problema. Neste caso, o processo de ensino se dilui nas necessidades do estudante, consequentemente, ensino e aprendizagem são igualados entre si. Esta homogeneização reduz o processo de ensino e aprendizagem a uma mera soma de termos (Almeida & Grubisich, 2011). O fenômeno educativo, então, é restringido a uma ação pragmática na qual a aprendizagem é transformada em solução de conflito; como consequência, as tecnologias são discutidas a partir das “vantagens e desvantagens como máquina de ensino” (Valente, 1999, p. 1).
O lugar da tecnologia nos processos de ensino, aprendizagem e ensino-aprendizagem
As 16 pesquisas que abordam as tecnologias no “uso em si” do ensino as destacam, no processo educativo, como um ato inovador que pode gerar aceitação e/ou rejeição por parte dos envolvidos. Afirmam ainda que, no desenvolver destas relações, os professores compreendem melhor seus usos e ressignificam suas práticas, como destacado abaixo:
A inserção da inovação gera duas reações distintas: a aceitação (que tende a ser explícita, já que o programa foi imposto) e rejeição (que tende a ser velada, para não gerar retaliações à docente). Cada reação acaba por promover mudanças na interação do docente com a ferramenta e, por consequência, na sua forma de planejar as aulas em que irá usá-la. (Teixeira, 2012, pp. 125-126)
Neste contexto, a ferramenta ganha centralidade no processo pedagógico, colocando o professor e as relações pedagógico-didáticas à margem do processo de ensino e aprendizagem. Há uma transmutação do ensino em ferramenta. Isto acontece porque as pesquisas colocam em segundo plano as intencionalidades que envolvem a atividade docente. Assim, estas produções que versam sobre o ensino se entusiasmam com as tecnologias e com as diversas formas de uso que estas ferramentas possibilitam e por isto não percebem que o novo pode ser utilizado para repetir o velho.
No que se refere às nossas análises, identificamos oito produções (Saldanha, 2009; Pontes, 2011; Eivazian, 2012; Piovani, 2012; Gomes, 2013; Rosa, 2013; Silva, 2014a; Ricarte, 2015) que tratam a tecnologia como uma possibilidade pedagógica, centralizando, assim, suas discussões nas formas de uso, tal como pode ser evidenciado no trecho a seguir: “[…] o fundamental para a inclusão digital não é o laptop em si, nem a possibilidade de acesso à rede, mas o uso que se fará desse acesso, o papel que alunos e professores assumirão frente a este recurso” (Rosa, 2013, p. 26).
Ao partirem dos pressupostos de que os usos das TIC são moldáveis pelos sujeitos – aspecto coerente ao construcionismo – e de que “é preciso compreender que as tecnologias digitais ampliam a cognição humana na medida em que superam a simples representação do real e se fundem a novas formas de atuação sobre este real” (Rosa, 2013, p. 48), estas pesquisas acabam por homogeneizar, na perspectiva dos sujeitos, as questões técnicas do aparato e seu próprio processo de produção. Logo, a discussão sobre o ensino paira sobre as formas de uso, materializadas na atividade de ensino. Mas, ao mesmo tempo, estas formas são descaracterizadas do contexto social como se o processo de ensino fosse uma ação de inspiração individual, desconexo dos contextos sociais.
Percebe-se, pois, que as pesquisas que discutem a aprendizagem nesta perspectiva centram a discussão no fazer do estudante e, de certa forma, colocam como espontânea a capacidade do estudante de desenvolver uma aprendizagem eficaz e dinâmica. Tal constatação pode ser ratificada pelo trecho abaixo:
O jovem de hoje espera da escola o mesmo que ele espera de sua relação com a tecnologia: respostas eficazes, imediatas, dinamismo e movimento. Se, por acaso, a abordagem em sala de aula não contempla um desses aspectos, a tendência é que o aluno faça com seu professor o mesmo que costuma fazer com sites da Web que considera “parados”: mudar de página na internet, buscar em outro local, acessar outras possibilidades. (Valle, 2011, p. 44)
Nesta lógica, é vinculada ao laptop a ideia de que ele torna possível, ao estudante, moldar sua própria aprendizagem, isto é, aprender aquilo que lhe interessa, visto que "cada indivíduo tem, em suas mãos, uma ligação com o mundo exterior à sala de aula, um equipamento que permite que os próprios alunos busquem aprender o que lhes interesse, chame a atenção, proporcione satisfação e prazer” (Hoffmann, 2011, p. 32).
Diante disto, a atividade docente estaria à mercê das questões individuais do estudante. Entretanto, cabe destacar que o trabalho docente, por mais que compreenda o “estar atento” à perspectiva discente, não se restringe a isto (Almeida & Grubisich, 2011). Caberia ainda problematizar a própria atividade do estudante, porque mesmo no âmbito individual a atividade humana é social (Vázquez, 2011).
Ainda no que diz respeito a nossa análise, dez das pesquisas que discutem a questão do ensino e aprendizagem (Falcão, 2012; Martins, 2012; Andrade, 2013; Nassri, 2013; Santos, 2013; Schonz, 2013; Sette, 2013; Souza, 2013; Rosa, 2014; Santos, 2014) enfatizam a inevitabilidade do processo de inserção das TIC no ambiente escolar e sua capacidade de transformar as relações escolares.
As respostas resgatadas mostram que os professores permaneceram alienados tecnologicamente, sem consciência do significado da tecnologia que estava sendo colocada em suas mãos, ainda que tenha existido uma capacitação específica para compreensão do PROUCA e habilitação para o uso prático do laptop na sala de aula. No entanto, não apenas as respostas em análise levam a essa conclusão, mas, também o fato de que mais da metade dos entrevistados nunca ouviu falar sobre o assunto, enquanto o restante tinha uma vaga ideia do que se tratava. (Andrade, 2013, p. 109)
Todavia, o avanço tecnológico e sua disseminação na sociedade não é um fato inevitável e não está ao alcance de todos. As constantes mudanças tecnológicas em nosso modelo produtivo estão mais vinculadas ao aumento de produção em seus aspectos quantitativos do que, necessariamente, a uma mudança qualitativa da vida da população (Marx, 2017). Além disto, nosso país, de um modo geral, estabelece uma relação de consumidor de tecnologias e não de produtor. Neste sentido, cabe destacar que ao colocar a tecnologia como produtora ou indutora da realidade, coisificamos uma característica essencialmente humana, nossa própria história.
Uso em si das tecnologias: entre facilitação e inovação
As produções do item “uso em si” dão à tecnologia o papel de facilitadora do trabalho docente. Estas pesquisas se distanciam do seu referencial teórico, pois, não colocam no estudante a centralidade da ação, além de evidenciarem elementos de uma lógica tecnocêntrica na própria perspectiva construcionista.
Quando uma pesquisa afirma que “[…] ainda há professores que apresentam dificuldades em lidar com toda essa tecnologia inovadora em sala de aula” (Silva, 2017, p. 29), percebemos que as maneiras inovadoras que as tecnologias apresentam se tornam impositivas à atividade docente, na medida em que é enfatizado que os processos de ensino e aprendizagem precisam se adequar a uma nova realidade proporcionada pelas TIC.
Portanto, as novas tecnologias com suas ferramentas têm requerido novas práticas e formas de expressão de sentidos dos nossos alunos e a escola pode abarcar tanto a forma tradicional, já conhecida e implementada nesse ambiente, quanto essa nova maneira de produzir textos (Ricarte, 2015, p. 130).
Acrescenta-se que para algumas pesquisas “já nos sentimos desafiados pela reflexão de uma práxis tecnológica que se refletisse no uso da tecnologia como ferramenta de inclusão sociodigital e, consequentemente, como instrumento de mediação pedagógica” (Andrade, 2013, p. 11).
As pesquisas que ao se depararem com o artefato tecnológico supõem que este realiza a práxis, efetivam a tecnologia de forma naturalizada e não socializada. A práxis é atividade humana transformadora (Vázquez, 2011), já o objeto técnico, por mais que seja um produto e processo histórico e cultural, não é produtor da história.
Para o construcionismo, o “aprender-em-uso libera os alunos para aprender de uma forma pessoal e isto, por sua vez, libera os professores para oferecer aos seus estudantes algo mais pessoal e mais gratificante para ambos os lados” (Papert, 2008, p. 71). De tal modo, a tecnologia não seria inovadora em si. Este caráter inovador, ao contrário, vai depender dos usos que os estudantes fazem dela. O foco é uma aprendizagem personalizada, a partir de um uso individual de determinado aparato. Logo, centrar na tecnologia, tal como já destacado, é uma contradição eminente que estas pesquisas apresentam em relação ao seu próprio referencial teórico.
Ao atribuírem à tecnologia a capacidade de inovação pedagógica, concedem-na o direito de tomar espaço em relação à ação do sujeito. Sendo assim, a intencionalidade do sujeito acaba sendo transferida para o objeto técnico. Estas afirmações possibilitam evidenciar uma fetichização da tecnologia nestas pesquisas. Para Marx (2017), o fetiche da mercadoria consiste na sua própria forma, onde a mercadoria está expressa como valor de uso, mas este valor de uso é apresentado à margem das relações de produções e dos produtores que a constituíram. Em suma, a função social da mercadoria é convertida em sua função natural.
Entretanto, mesmo que estas pesquisas se distanciem de suas perspectivas teóricas, por centralizarem a discussão na tecnologia, elas possibilitam compreender a contradição dentro do próprio construcionismo. O contradictio in subjecto para o construcionismo na relação de aprendizagem está no fato de ele ser centrado no estudante (característica de uma abordagem antropocêntrica), não há como afirmar que a tecnologia em si facilita a aprendizagem sem considerar a subjetividade de cada estudante. Se a tecnologia, sozinha, facilitasse a aprendizagem, as soluções técnicas seriam suficientes para melhorar os processos educativos, o que contradiz diretamente o construcionismo.
Algumas pesquisas afirmam que a “utilização do laptop pode favorecer uma abordagem questionadora, pela diversidade de informações e possibilidade de autocorreção, correção coletiva e feedback” (Almeida, 2014, p. 148). Assim, elas atribuem ao laptop do PROUCA a realização do trabalho humano.
Sob nossa ótica, a tecnologia não medeia estas relações, mas é um dos elementos mediadores no fazer educativo. As mediações não são um caminho ou o meio, mas processos. Em outras palavras, a mediação é a relação dos sujeitos entre si e com os instrumentos, signos e significados construídos em um determinado contexto histórico (Almeida & Grubisich, 2011; Peixoto, 2016; Araújo et al., 2018).
O ensino e a aprendizagem com uso de tecnologias: possibilidade pedagógica
Cinco pesquisas discutem a relação de ensino e aprendizagem, considerando a tecnologia como possibilidade pedagógica. Elas enfatizam que:
[…] é oportuno lembrar que a tecnologia não garante colaboração e aprendizagem, mas oferece possibilidades e suporte para que elas aconteçam. Todavia, para que professores e alunos utilizem a tecnologia em prol da aprendizagem, utilizando os princípios da prática colaborativa, é necessário ter a compreensão do que é a colaboração e de como aprender com o suporte tecnológico, buscando novas práticas de ensino e aprendizagem. (Silva, 2014b, p. 41)
As discussões realizadas nestas pesquisas apresentam um olhar sociotécnico, diferente do olhar desenvolvido nas demais pesquisas que compõem o corpus deste trabalho, tendo em vista que trazem para o debate as finalidades do trabalho pedagógico. Isto acontece, por exemplo, quando enfatizam que “o uso de recursos digitais deve ser adotado na disciplina com objetivos pedagógicos bem definidos” (Carvalho, 2013, p. 81).
As pesquisas do corpus deste trabalho que buscam discutir o uso de tecnologias sem cair numa lógica dualista, ou na naturalização dos artefatos tecnológicos, possibilitam uma análise mais crítica dos processos educativos, pois, não transformam os meios da atividade docente em suas finalidades. Cabe salientar que compreender o processo de ensino e aprendizagem com o uso de tecnologia, numa perspectiva crítica, é, antes de tudo, compreender as bases concretas e históricas que compõem esta relação.
Considerações finais
Os dados apresentados neste trabalho demonstram que as produções acadêmicas sobre o uso do laptop do PROUCA no ambiente escolar, em sua maioria (31 T&D) e em grande medida, dicotomizam o processo de ensino e aprendizagem, centralizando suas discussões no aparato tecnológico (26 T&D).
A centralização do fazer pedagógico na tecnologia nos possibilita compreender que as produções acadêmicas a fetichizam, atribuindo a ela aspectos do trabalho humano, o que oculta seu processo de produção. Estes discursos reificam os processos de ensino e aprendizagem, pois, este fenômeno não é uma relação de coisas, mas uma relação com as coisas.
Os problemas na educação apresentados nas pesquisas estudadas – como o ensino tradicional e linear – não serão resolvidos pela mudança das tecnologias utilizadas pelos professores. Devemos, antes de tudo, voltar nossos olhares para as relações que estão sendo estabelecidas na escola e, principalmente, para as estruturas sociais que fundamentam nossa sociedade. Logo, é necessário que a escola seja o lócus dos mecanismos de apropriação dos saberes científicos e da humanização.
Entretanto, cabe destacar que a análise realizada por esta pesquisa é limitada pela própria especificidade do seu objeto de estudo. Assim, suas contribuições se ampliam com os demais estudos bibliográficos efetivados, de modo que podemos estabelecer as relações entre as partes (o processo de implementação do PROUCA, a formação de professores no programa, a análise desta política pública educacional, dentre outros temas) e o todo do fenômeno educativo.