1. Introdução
Este estudo aborda a temática das políticas afirmativas no contexto da expansão do ensino superior, que se caracterizam em ações compensatórias e de mitigação dos efeitos históricos da discriminação étnico-racial e por algum tipo de deficiência. O lócus da pesquisa foi a Universidade Federal do Paraná (UFPR), tendo como sujeitos da investigação os/as egressos/as do Setor Litoral, campus da UFPR implantado no processo de interiorização do ensino superior.
Os dados que subsidiam a discussão foram obtidos pelo grupo de pesquisa Educação e Trabalho que, desde 2016, vem buscando construir um banco de dados com a caracterização destes sujeitos bem como informações referente aos processos de inserção, desenvolvimento profissional e prolongamento dos estudos dos/as egressos/as do Setor Litoral. Tal pesquisa tem subsidiado uma discussão interna na instituição, visando compreender os reflexos dos atuais desmontes e ataques que a Universidade pública vem sofrendo no atual cenário político, levando em conta também as novas configurações e complexidades do mundo do trabalho, que cada vez encontra-se mais precarizado e demandando novas exigências frente ao grande volume de pessoas que se mantém na informalidade ou fora do círculo produtivo.
A pesquisa nos permite perceber quem são os sujeitos que acessam a Universidade, quais são suas trajetórias no período que estão cursando a graduação e por fim sua situação atual.
O artigo apresenta inicialmente a UFPR, Universidade brasileira centenária, que apesar de marcada por uma constituição atrelada aos interesses do grande capital e de uma elite, foi a precursora na adoção de políticas inclusivas para a população historicamente alijada do acesso ao ensino superior. Na sequência, discorremos brevemente sobre a implantação do Setor Litoral, que ocorre em um contexto de ampliação e interiorização do ensino superior no país e foi organizado com a intencionalidade de atender as demandas da região litorânea do Paraná a partir de uma concepção emancipatória e inovadora. Após essa contextualização, passamos ao caminho metodológico adotado e aos resultados e discussões da pesquisa, evidenciando a premência das políticas afirmativas no interior da Universidade, bem como a constância de diferenciadas dificuldades de acesso, permanência e inserção profissional para os/as egressos/as com marcas identitárias de raça, etnia e classe social.
1.1 A Universidade Federal do Paraná em sua gênese e políticas sociais inclusivas.
A Universidade do Paraná foi fundada em 19 de dezembro de 1912. De caráter privativo, a instituição ficou conhecida inicialmente como “Universidade do mate”, visto que a economia dominante no estado na época derivava principalmente da extração da erva-mate e a origem da Universidade estava relacionada aos interesses dessa elite produtora, que precisava garantir a formação de seus descendentes.
Segundo Vanali (2019), o intuito da Universidade era atrair os filhos das famílias de elite, tanto da capital como de cidades mais afastadas. Tal espaço surgiu para homens ricos e brancos, filhos de famílias ricas, com o intuito de transformá-los em bacharéis ou homens da ciência.
O tempo passou, a Universidade que nasceu privada se tornou federal e pública, e continuou a ser um universo branco e rico, ao qual tinham acesso predominantemente estudantes oriundos de escolas privadas, de famílias com situação socioeconômica confortável e pais com elevado nível de escolaridade. Negros, indígenas e pessoas de baixa renda eram minoritários, estavam em cursos pouco valorizados e por isso eram conduzidos a espaços de pouco privilégio no mercado de trabalho, o que acentuava ainda mais a desigualdade histórica. (VANALI, 2019, p.30-31).
O marco da mudança dessa realidade foi em 2004, quando a Universidade Federal do Estado do Paraná (UFPR) deliberou o Plano de Metas de Inclusão Racial e Social, que previa a implementação de ações afirmativas. Assim, a Resolução 37/04 instituiu o programa de políticas de cotas na UFPR. Em 2005 ocorreu o primeiro vestibular indígena da UFPR, que passou a destinar vagas específicas para estudantes indígenas, em caráter suplementar as que são ofertadas regularmente.
Segundo Vanali e Silva (2019) foram os movimentos negros os protagonistas de tal conquista, estes ganharam grandes dimensões no debate público e demandaram do Estado ações voltadas para as políticas afirmativas, principalmente para o acesso da população negra nas instituições de ensino superior. As cotas de inclusão da UFPR foram mantidas até 2013. Neste mesmo período o vestibular contou com incorporação da Lei 12.711/12 e com as políticas afirmativas da própria Universidade.
Segundo Quadros (2019), a regulamentação das cotas busca estabelecer igualdade de oportunidades, diminuição das desigualdades e a inclusão de minorias historicamente excluídas.
A Lei de Cotas estabeleceu o mínimo de 50% das vagas de graduação disponíveis para estudantes que tenham cursado a totalidade do ensino médio em escolas públicas, seguindo a proporção de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da Unidade da Federação em questão. Complementarmente, 50% dessas vagas (25% do total de vagas) devem ser reservadas aos estudantes cujas famílias tenham renda igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos per capita. Com a Lei, tem-se a possibilidade de melhores condições de acesso à população pobre, aos estudantes oriundos de escola pública, aos negros e indígenas; alcançar um curso superior[...]. (QUADROS, 2019, p.22).
Segundo Silva (2019) diversos grupos sociais passaram a utilizar as políticas afirmativas para o acesso ao ensino superior, nestes grupos estão incluídos além de negros, indígenas, estudantes de escola pública e de baixa renda, pessoas portadoras de deficiência, quilombolas e moradores de determinadas regiões.
Dahmer (2019) ao fazer um resgate do processo de expansão do ensino superior brasileiro, reitera que o processo de democratização do ensino, a partir dos anos 2000, proporcionou uma maior diversificação socioeconômica do perfil discente das Instituições de Ensino Superior no Brasil, relacionada a adoção das políticas de permanência estudantil, a Lei de Cotas e aos Programas REUNI, PROUNI e FIES5, que caracterizaram-se em indutores dessa diversificação em cursos historicamente elitizados, bem como nos menos concorridos
Especificamente no caso da UFPR, além da implantação das cotas, o início dos anos 200 foi também marcado pelo processo de expansão e interiorização da Universidade. Foi nesse contexto que ocorreu a implantação do Setor Litoral no município de Matinhos.
1.2 O setor litoral
O Setor Litoral da UFPR foi implantado em 2005 na cidade de Matinhos a partir de um processo de interiorização das Universidades públicas e surge com a premissa de contribuir com o desenvolvimento da região do litoral do Paraná, que é marcada pela diversidade de sua riqueza ambiental possuindo a maior reserva de mata atlântica da região sul do país. A região litorânea do estado do Paraná, que compreende sete municípios, é considerada estratégica para os ambientalistas em função da urgência de ações de conservação dos ecossistemas únicos, que ali se encontram, e da importância de seus recursos hídricos. Essa região abrange os municípios que apresentam baixos indicadores de desenvolvimento no estado do Paraná - especial atenção aos baixos índices de desenvolvimento humano, alfabetização e saúde (HOROCHOVSKI et al., 2012). Sua população é compreendida por caiçaras, agricultores familiares, pescadores, quilombolas e indígenas atribuindo a tal local grande aparato cultural. A instalação da Universidade em uma região, por si só, já gera um impacto econômico sobre os fluxos de renda locais, ou seja, demandam trabalho e uma circulação de renda proveniente dos gastos com o pagamento dos professores e funcionários, aumento da arrecadação, maior demanda imobiliária, de infraestrutura e de serviços. Além dessas contribuições, pode-se afirmar ainda um aporte de capital cultural e simbólico gerado pela produção de conhecimento. A permanência dos jovens na região, a partir do acesso a Universidade, contempla também uma das estratégias do processo de interiorização e expansão do ensino superior, qual seja a possibilidade de um crescimento menos concentrado no território, menos metropolitano, mais interiorizado, criador de oportunidades para além das capitais estaduais e suas regiões metropolitanas que são, também, as áreas mais adensadas populacionalmente (IPEA, 2019).
Garcia e colaboradores (2019) reiteram essa análise ao afirmar que o efeito da chegada de uma Universidade
irá depender das características eco nômicas das regiões. Regiões mais pobres, com baixos níveis de investimento em P&D e com um conjunto de trabalhadores com baixa qualificação são as que mais se beneficiam da presença de uma nova universidade (GARCIA, et al. 2019, p. 193).
No momento, o acesso aos cursos do Setor Litoral ocorre através dos seguintes mecanismos: Processo Seletivo Vestibular (Vestibular), Processo Seletivo do Sistema de Seleção Unificada (SISU), Processo Seletivo Específico do Curso de Licenciatura em Educação do Campo (LECAMPO) e Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná (Vestibular Indígena).
O processo seletivo da LECAMPO é proveniente do edital nº 2 SESU/SETEC/SECADI/MEC, de 31 de agosto de 2012, que previu a submissão de Projetos Pedagógicos de cursos presenciais de Licenciatura em Educação do Campo do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo - PROCAMPO. O curso possui um vestibular específico destinado as populações do campo (os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural), em consonância com a legislação vigente. O curso organizado por meio da metodologia da alternância, busca assegurar a organização dos tempos e espaços formativos de acordo com a realidade do campo (PPC LECAMPO, 2012).
Referente às políticas afirmativas, o Setor Litoral, desde suas primeiras turmas, contou com a dinâmica das cotas no processo seletivo.
Dos 17.643 inscritos nos Vestibulares da UFPR Litoral, entre 2005 e 2018, 0,3% se declararam indígena, 2,4% amarela, 3,3% preta, 22,6% parda, e, a maioria, 71,3% branca. As aprovações-matrículas, com exceção preta e branca foram próximas as inscrições: 0,3% indígena; 2,3% amarela; 4,5% preta; 23,6% parda, 69,2% branca. (QUADROS, 2019, p.88).
2. Metodologia.
O estudo vem sendo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Educação e Trabalho, consolidado no Setor Litoral desde 2016. O referido grupo busca construir um banco de dados com informações a respeito da caracterização dos egressos do setor, sua trajetória profissional e prolongamento dos estudos. O universo da pesquisa compreendeu 1439 sujeitos dos 12 cursos ofertados no setor, formados/as entre os anos de 2009 e 2019, dos quais 382 responderam ao questionário. O instrumento de pesquisa foi desenvolvido usando o software livre Lime Survey e contou com 116 questões abertas, fechadas e de múltipla escolha. O contato com os/as egressos/as para o envio do questionário se deu através de ligações telefônicas, e-mail, Facebook e WhatsApp.
Após o recebimento das respostas, a equipe realizou a decupagem dos dados e iniciou o processo de análise, considerando os diferenciados indicadores e informações disponibilizados pelos participantes.
3. Resultados e discussões
Como dito anteriormente, a UFPR foi a precursora no que tange às políticas de acesso à Universidade, mas ainda é muito expressiva a diferença do público que a frequenta. Dos 382 respondentes, 261 (68,3/%) se auto declararam brancos frente a apenas 19 (5,0%) pretos, 88 (23,0%) pardos e oito (2,1%) amarelos. A amostra indígena é ainda menor com apenas seis (1,6%) respondentes. Essa diferenciação também está relacionada ao sexo. O quadro a seguir expressa a relação entre sexo e etnia dos/as respondentes, evidenciando a feminização do ensino superior e supremacia branca na ocupação das vagas.
Por haver uma prevalência de respondentes que se autodeclararam brancas e do sexo feminino, é natural que haja, em todos os indicadores, uma maior parte de respondentes nesses marcadores sociais. Compreendemos marcadores sociais como categorias classificatórias que evidenciam a diferença, produzidas a partir de construções sociais, territoriais, históricas e culturais que incidem na produção e reprodução das identidades coletivas (SCHWARCZ, 2019).
Pertença étnico racial | % | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | Amarela | Branca | Indígena | Parda | Preta | Total Resultado | |
Feminino | 5 | 183 | 0 | 52 | 15 | 255 | 66,8% |
Masculino | 3 | 78 | 6 | 36 | 4 | 127 | 33,2% |
Total Resultado | 8 | 261 | 6 | 88 | 19 | 382 | 100% |
Fonte: Dados compilados pelos autores, 2020.
Ao tratar da temática da feminização do ensino superior, Leone e Portilho (2018) ressaltam que as conquistas femininas têm sido notórias no que diz respeito a busca por um melhor nível educacional, principalmente no nível superior, onde a proporção de mulheres de cortes mais jovens pode chegar a duas vezes mais que dos homens.
Quando perguntados sobre a forma de ingresso, 122 dos respondentes, 32% da amostra total, afirmaram ter acessado a Universidade por meio de ações afirmativas. A divisão se dá da seguinte forma:
Modalidade | Frequência |
---|---|
Independentemente da renda: Pretos, Pardos e Indígenas. | 9 |
Independente da renda: outros. | 64 |
Renda familiar per capita menor ou igual a 1,5 salário mínimo: Pretos, Pardos e Indígenas. | 8 |
Renda familiar per capita menor ou igual a 1,5 salário mínimo: outros. | 41 |
TOTAL | 122 |
Ao considerarmos que 113 respondentes se autodeclaram pretos, pardos e indígenas, é possível perceber que apesar de se enquadrarem no quesito racial, somente 17 respondentes, ou seja 15% deste grupo de egressos/as, utilizaram deste critério para acessarem a Universidade. Este dado pode estar atrelado a maior burocracia existente para a comprovação do direito a vaga nesta categoria, bem como em virtudes das variadas experiências e práticas de produção e reprodução do preconceito em função das características fenotípicas (GADIOLI, 2017).
O quadro a seguir revela os dados referentes à escolaridade pregressa dos respondentes de acordo com sua pertença étnico-racial.
Como fez seus estudos do ensino fundamental e ensino médio? | Pertença étnico-racial | |||||
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Amarela | Branca | Indígena | Parda | Preta | Total | |
Integralmente em escola particular | 0 | 23 | 0 | 6 | 2 | 31 |
Integralmente em escola pública | 4 | 171 | 6 | 59 | 13 | 253 |
Maior parte em escola particular | 2 | 22 | 0 | 8 | 0 | 32 |
Maior parte em escola pública | 2 | 45 | 0 | 15 | 4 | 66 |
Total Resultado | 8 | 261 | 6 | 88 | 19 | 382 |
Fonte: Dados compilados pelos autores, 2020.
Nota-se que a maioria dos participantes da pesquisa são oriundos da rede pública de ensino e que entre aqueles que estudaram integralmente em escolas particulares, somente dois são pretos, frente a 23 brancos. Essas informações demonstram que o recorte de classe e raça já existe desde o ensino básico, sendo, portanto, uma questão estrutural que acompanha esses sujeitos ao longo da vida.
Silva & Bernardo (2019) ao analisarem as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-Contínua) 2018, afirmam que os dados
Revelam a persistência de desigualdades por cor/raça, gênero e região. Uma análise dos dados mostra que a frequência mínima de pessoas de 15 a 17 anos, no ensino médio, autodeclaradas brancas, foi 76,5%, enquanto para as pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, 64,9%. O percentual comparativo entre mulheres e homens, compreendidos por essa faixa etária que frequentavam e/ou concluintes desse nível de ensino, foi 74,4% e 64,5%, respectivamente (SILVA; BERNARDO, 2019, p.4).
O questionário abordou ainda a escolaridade pregressa dos pais, sendo que 11 não possuem escolaridade, 118 não concluíram o ensino fundamental e 91 possuem o ensino médio completo, referente às mães dos egressos 12 não possuem escolaridade, 107 possuem ensino fundamental incompleto e 101 possuem ensino médio completo, tais informações encontram-se sistematizadas no seguinte quadro de acordo com a pertença étnico racial de cada respondente.
MÃE | PAI | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pertença étnico racial | Pertença étnico racial | |||||||||||
AM | BR | IND | PAR | PRE | TOTAL | Nível de instrução | AM | BR | IND | PAR | PRE | TOTAL |
0 | 22 | 0 | 7 | 1 | 30 (7,8%) | Ensino fundamental completo | 1 | 27 | 0 | 10 | 2 | 40 (10,5%) |
2 | 73 | 3 | 24 | 5 | 107 (28%) | Ensino fundamental incompleto | 4 | 76 | 3 | 29 | 6 | 118 (31%) |
1 | 66 | 1 | 28 | 5 | 101 (26,5%) | Ensino Médio completo | 0 | 62 | 1 | 24 | 4 | 91 (23,8%) |
0 | 20 | 0 | 8 | 1 | 29 (7,6%) | Ensino Médio incompleto | 0 | 21 | 0 | 4 | 1 | 26 (6,8%) |
0 | 3 | 0 | 0 | 0 | 3 (0,7%) | Não sei informar | 0 | 17 | 0 | 6 | 3 | 26 (6,8%) |
1 | 19 | 0 | 7 | 2 | 29 (7,6%) | Pós-graduado | 0 | 11 | 0 | 2 | 0 | 13 (3,4%) |
1 | 8 | 0 | 2 | 1 | 12 (3,1%) | Sem escolaridade | 0 | 8 | 0 | 1 | 2 | 11 (3%) |
1 | 31 | 0 | 8 | 1 | 41 (10,7%) | Superior completo | 1 | 28 | 2 | 9 | 1 | 41 (10,7%) |
2 | 19 | 2 | 4 | 3 | 30 (8%) | Superior incompleto | 2 | 11 | 0 | 3 | 0 | 16 (4%) |
8 | 261 | 6 | 88 | 19 | 382 (100%) | Total | 8 | 261 | 6 | 88 | 19 | 382 (100%) |
Fonte: Dados compilados pelos autores, 2020.
Da amostra total de respondentes, 175 alegaram serem os primeiros da família a ingressarem no ensino superior, destes 113 (64,6%) são brancos, 45 (25,7%) pardos, nove (5%) pretos, cinco (3%) indígenas e três amarelos (1,7%). Os estudos de Ristoff evidenciam uma forte correlação entre os indicadores socioeconômicos, a escolaridade dos pais/mães e a pertença étnico-racial.
O campus brasileiro como um todo ainda está longe de refletir a nova re alidade populacional revelada pelo último Censo do IBGE, na qual, pela primeira vez, pretos e pardos formam o grupo majoritário da população brasileira, com 51%, contra 48% de brancos(...). Há uma forte correlação entre os indicadores socioeconômicos. Via de regra, o estudante que tem pai com escolaridade superior vem também de família das duas faixas de renda mais elevadas, frequenta cursos com os mais altos percentuais de brancos e se origina da escola do ensino médio privado. Já no outro extremo, estudantes que não têm pais com escolaridade superior ou com alto rendimento, estudam em cursos com percentuais de brancos muito próximos ao da população brasileira e têm a sua origem escolar no ensino médio público. A origem social e a situação econômica da família do estudante é, sem dúvida, um fator determinante na trajetória do jovem brasileiro pela educação superior e, por isso mesmo, deve estar na base das políticas públicas de inclusão dos grupos historicamente excluídos (RISTOFF, 2014, p.742-743)
Schwarcz (2019) afirma que entre os diferenciados fatores que incidem na desigualdade social, o acesso às políticas educacionais continua a funcionar como um importante gatilho de reprodução das desigualdades.
Desigualdade não é uma contingência ou um acidente qualquer. Tampouco é uma decorrência natural e imutável de um processo que não nos diz respeito. Ao contrário, ela é consequência de nossas escolhas - sociais, educacionais, políticas, culturais e institucionais -, que têm resultado numa clara e recorrente concentração dos benefícios públicos para uma camada diminuta da população (SCHWARCZ, 2019, p.150).
Nessa perspectiva, o ingresso na Universidade pode significar um rompimento de ciclo familiar sendo possível aos estudantes experimentarem oportunidades nunca antes acessadas pelos pais, possibilitando uma ascensão social através dos estudos, denominada por Mahlmeister e colaboradores (2019) de mobilidade intergeracional educacional ou mobilidade social ascendente, a partir da redução da desigualdade social baseada nos anos de escolaridade (JARDIM, 2017).
O gráfico a seguir elucida os locais de moradia dos respondentes antes de ingressarem na Universidade.
Nota-se que a maioria dos estudantes residiam em Matinhos e nas cidades da região litorânea do Paraná, mas também é significante o número de pessoas que vieram de outras cidades do país (19%), sendo relevante ressaltarmos aqui a importância de políticas de permanência para estes estudantes, que em sua maioria são oriundos de camadas mais pobres da população. Levando em conta que muitos destes alunos saem da casa de suas famílias para poderem estudar, surge como empecilho na vida desses sujeitos, os gastos com moradia, alimentação e permanência. Principalmente ao levarmos em consideração as dificuldades da região que, por ser litorânea, oferece postos de trabalho somente na temporada de verão, as dificuldades de sobrevivência e permanência na Universidade se intensificam. Segundo Pacheco & Ristoff (2004), os estudos do Observatório Universitário da Universidade Candido Mendes têm revelado que 25% (2,1 milhões) dos alunos universitários são tão carentes que não possuem condições de permanecer no ensino superior mesmo que seja gratuito. Esses estudantes, continua o autor, dependerão mais do que da gratuidade, de bolsas de estudo, bolsas de projetos, restaurantes universitários subsidiados, de moradia estudantil para tornar viável sua permanência no ensino superior.
Em nossa amostra, quando perguntados a respeito de bolsa permanência (PROBEM) 148 respondentes (38,7%) dos diplomados disseram ter sidos contemplados com a política de assistência. Nesse sentido cabe ressaltar ainda a importância de outras bolsas de estudos, vinculadas a projetos de pesquisa e extensão que, além de complementar a renda, possibilitam ao estudante maior integração à vida universitária. Oliveira (2015, p.95) aponta, em seus estudos, que para a questão profissional, a participação em tais atividades possibilita a aproximação com a sua área de formação, sendo um “diferencial na vida dos diplomados, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades comportamentais e instrumentais para o mundo do trabalho”.
O quadro 5 ilustra a relação dos diplomados que participaram de projetos durante a formação e, dentre estes, os que tiveram acesso as bolsas. Os respondentes podem ter participado em mais de um projeto durante sua formação, desta forma os dados se apresentam de forma cumulativa.
Participação | Bolsas | |||||||||||
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Pertença étnico racial | Pertença étnico racial | |||||||||||
AM | BR | IND | PAR | PRE | TOTAL | PROJETOS | AM | BR | IND | PAR | PRE | TOTAL |
5 | 128 | 3 | 42 | 6 | 184 | Extensão | 3 | 69 | 2 | 19 | 3 | 96 |
0 | 19 | 1 | 3 | 1 | 24 | Licenciar | 0 | 11 | 0 | 2 | 0 | 13 |
4 | 63 | 2 | 20 | 1 | 90 | Pesquisa | 2 | 34 | 1 | 9 | 0 | 46 |
1 | 34 | 4 | 12 | 3 | 54 | PET | 1 | 20 | 3 | 9 | 1 | 34 |
0 | 43 | 0 | 9 | 1 | 53 | PIBID | 0 | 28 | 0 | 5 | 1 | 34 |
3 | 29 | 0 | 11 | 2 | 45 | Monitoria | 2 | 20 | 0 | 5 | 0 | 27 |
1 | 18 | 0 | 8 | 2 | 29 | PVA | 0 | 1 | 0 | 2 | 0 | 3 |
FONTE: Dados compilados pelos autores, 2020.
*AM = Amarela; BR = Branca; IND=Indígena; PRE= Preta.
Nota-se que mais da metade dos respondentes que estiveram vinculados com os projetos ofertados, tiveram acesso a algum tipo de bolsa, sendo que a maioria teve participação nos programas de extensão e pesquisa. Analisando os dois projetos, de acordo com cada pertença étnico racial, observamos que 69 (53,9%) dos que se autodeclararam brancos tiveram acesso a bolsa nos projetos de extensão, dentre os pardos participantes de projetos de extensão foram 19 (45,2%) bolsistas e pretos três (50,0%). Quanto ao acesso de bolsas em pesquisa, tivemos percentuais semelhantes, porém neste somente um/a egresso/a que se autodeclarou preto/a participou de pesquisa e ainda assim não acessou bolsa. Diante dos dados apresentados anteriormente, cabe salientar a importância de programas como o PIBIS (Programa Institucional de Apoio à Inclusão Social, Pesquisa e Extensão Universitária, que teve seu primeiro edital em 2018, destinado ao apoio a estudantes que ingressaram na Universidade por políticas afirmativas, entre as quais cotas e vagas suplementares para indígenas e pessoas com deficiência, ou eram integrantes do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) ou do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo). Além disso, o programa apoia projetos de pesquisa e de extensão que tratem de temas ligados a minorias e inclusão social, tais como indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência ou com altas habilidades, surdez, gênero, orientação sexual e movimentos LGBTI, relações étnico-raciais, estudos africanos e afro-brasileiros, migrantes, refugiados e apátridas.
Podemos inferir que a UFPR tem buscado ampliar suas ações e políticas afirmativas, em um movimento constante de debate e contraposição ao racismo estrutural, ao acesso elitista e meritocrático no ensino superior.
O quadro 6 retrata a situação profissional dos/as diplomados/as no momento da pesquisa, onde 126 (32,9%) estão trabalhando em outra área diferente da formação, 59 (15,4%) estão desempregados e 166 (43,4%0 estão em atividade laboral nas suas respectivas áreas de formação.
Pertença étnico racial | ||||||
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E qual é a sua situação profissional no momento atual? | Amarela | Branca | Indígena | Parda | Preta | Total |
Estou desempregado | 2 | 42 | 0 | 12 | 3 | 59 |
Estou em outro trabalho na área, diferente do primeiro | 2 | 50 | 1 | 22 | 3 | 78 |
Estou me dedicando somente aos estudos | 1 | 25 | 0 | 5 | 0 | 31 |
Estou no primeiro trabalho na minha área de formação | 2 | 56 | 2 | 21 | 7 | 88 |
Estou trabalhando em outra área | 1 | 88 | 3 | 28 | 6 | 126 |
Total Resultado | 8 | 261 | 6 | 88 | 19 | 382 |
Fonte: dados compilados pelos autores, 2020.
Tais dados revelam que embora boa parte dos respondentes estejam atuando em sua área de formação, ainda é grande a parcela de egressos que se encontra em situação de desemprego ou trabalhando em uma área diferente da qual se qualificou, foi possível perceber ainda que não existe grande diferenciação étnica-racial no que tange ao acesso ao mercado de trabalho. O cenário reitera o processo de complexificação, flexibilização e precarização do mundo do trabalho, que tem afetado a todos/as indistintamente.
Ao mesmo tempo que se amplia o contingente global de trabalhadores e trabalhadoras em luta de empregos, há uma redução monumental dos empregos, sendo que os que se mantêm empregados presenciam a corrosão completa dos seus direitos sociais. E, quando encontram algum labor, o fazem nos trabalhos ocasionais, intermitentes (ANTUNES, 2020, p. 8).
Frente a esse cenário e às incertezas da inserção no mundo do trabalho, pós diplomação, muitos sujeitos adotam estratégias para tornarem seus currículos mais atrativos, colecionando experiências e outros diplomas, na perspectiva de ampliarem o espectro de formação compreendendo habilidades comportamentais, de gestão e tecnológicas. Outra estratégia identificada na pesquisa e reiterada nos estudos de Mattos (2011, 2015) é o prolongamento dos estudos. Em nossa pesquisa 152 (39,8%) dos/as inquiridos acessaram outra formação. Quando perguntado a respeito da motivação que os fizeram prosseguir com os estudos, 100 (65,8%) dos sujeitos apontaram ser pela necessidade de aprimoramento profissional, que pode estar relacionado com a competitividade do mercado de trabalho e 21 (14%) deram continuidade como alternativa ao desemprego. O próximo quadro (7) corresponde às 152 pessoas da amostra que disseram ter prolongado os estudos de acordo com sua pertença étnico racial.
Pertença étnico racial | ||||||
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Indique que formação frequentou/frequenta | Amarela | Branca | Indígena | Parda | Preta | Total |
Especialização | 1 | 71 | 3 | 25 | 3 | 103 |
Mestrado | 0 | 26 | 2 | 5 | 3 | 36 |
Doutorado | 0 | 7 | 2 | 3 | 0 | 12 |
Outra graduação | 0 | 23 | 0 | 7 | 1 | 31 |
Fonte: Dados compilados pelos autores, 2020.
Entre os dados, pode-se observar que a especialização foi onde os/as diplomados/as mais tiveram acesso, contabilizando 103 sujeitos, sendo que desses 71 (68,9%) se autodeclararam brancos, 25 (24,3%) correspondem a pardos, três (2,9%) à pretos, três (2,9%) indígenas e um (1,0%) amarelo. 12 sujeitos realizaram doutorado, sendo sete (58,3%) brancos, seguido por três (25%) pessoas que se autodeclaram pardos e dois (16,7%) indígenas. Ainda sobre o doutorado, este não teve inserção de egressos que se autodeclararam pretos, mostrando que conforme avança os níveis de pós-graduação reduz-se cada vez mais o acesso de pardos, pretos e indígenas. Enquanto que a pertença branca mostra-se hegemônica em todos os níveis de pós-graduação, evidenciando a alta desigualdade racial nesses espaços formativos.
A despeito daqueles que realizaram ou estão realizando cursos de mestrado e doutorado, equivalente a 48 respondentes, 22 (44,8%) informaram ter tido acesso a bolsa durante o curso, enquanto 19 (39,6%) respondentes afirmaram ter realizado atividade remunerada durante a formação. Tais dados vêm reforçar a importância de políticas afirmativas na pós-graduação, para o acesso desses grupos sociais historicamente excluídos.
No Setor Litoral, considerando a grande procura pelas políticas de permanência6, a questão financeira acaba sendo um limitante para àqueles que pretendem prosseguir com a vida acadêmica, já que nos programas de pós-graduação o acesso a bolsa se dá de forma meritocrática, sendo contemplados/as os/as primeiros/as colocados/as, desconsiderando a situação social e econômica do sujeito. Diante de todas as dificuldades encontradas pelo discente oriundo de classe trabalhadora dentro da instituição de ensino, Silva e Costa (2018, p.176) apontam que é missão urgente das instituições produzir políticas afirmativas e de assistência estudantil que promovam equidades, “criando condições internas de justiça e contribuindo para que o país também possa construir condições de existência mais democráticas”. Embora a autora se refira ao ensino de graduação, quando faz tal afirmação, é importante pensarmos que as referidas políticas poderiam ser aderidas também pelos programas de pós-graduação, possibilitando o acesso de mais estudantes.
Vanali e Silva (2019) em estudo realizado a respeito das ações afirmativas na pós-graduação, afirmam que a Universidade Federal do Paraná não possui uma resolução única e geral sobre a inserção de políticas afirmativas na pós-graduação, sendo cada programa autônomo para implantar tais medidas através de instruções normativas. Os autores destacam que
O primeiro programa de pós-graduação da UFPR a adotar reserva de vagas para a implantação de política afirmativa foi o Mestrado Acadêmico em Desenvolvimento Territorial Sustentável (campus Litoral). Implantado em 2013, desde o seu primeiro processo seletivo tem a reserva de vagas prioritárias para pretos ou pardos, indígenas, pessoas com deficiência, pessoas trans, professores da rede pública de educação e servidores da UFPR (p.100).
Sendo essa uma conquista muito importante para a região litorânea e para os/as egressos/as do setor, já que se trata de uma área economicamente fragilizada, onde, como dito anteriormente, a Universidade surge justamente para atender as demandas da população.
4. Conclusão.
Como ressaltado de início, o Setor Litoral da UFPR surge em um momento de expansão e interiorização das Universidades públicas, em um contexto de avanço do ensino superior no país. Embora esses avanços tenham sido extremamente significativos para a classe trabalhadora e tenha possibilitado que as mais baixas camadas da população tivessem acesso ao que antes era exclusivo da elite, é preciso apontar as peculiaridades e os pontos frágeis e contraditórios desses avanços.
Nesse sentido, destacamos o crescimento do ensino superior de caráter privado, assim como as ofertas de cursos EaD que, como aponta Dahmer (2019), estão mercantilizados, não oferecem a mesma qualidade que os cursos presenciais, principalmente na correlação ensino, pesquisa e extensão. Outro apontamento que trazemos é o fato dos cursos que são ofertados nas instituições interiorizadas, serem cursos caracterizados pelo baixo custo de investimento como é o caso das licenciaturas, que não demandam laboratórios de pesquisas ou equipamentos específicos. Como nos mostram os dados aqui utilizados, são esses os cursos que a população presente na região tem acessado, embora haja políticas públicas para o acesso e permanência nas Universidades públicas e programas de descontos e gratuidade nas instituições privadas, ainda é pequena a parcela da população pobre e negra que tem acessado o ensino superior, sendo ainda menor a parcela de indígenas e concomitante a isso, é ínfima a parcela desses sujeitos nos cursos de maior concorrência.
Diante dessas constatações, reiteramos a premência da defesa das políticas afirmativas no acesso e permanência no ensino superior e nos cursos de pós-graduação. A superação de processos reiterados de categorização, classificação, hierarquização e exclusão por critérios de raça, etnia e gênero ainda delineiam nossas relações, nossa sociabilidade e a ocupação de espaços de forma diferenciada.
Há que se construir e defender ações, dinâmicas e instituições públicas, laicas, autônomas e de qualidade passíveis de contrapor-se cotidianamente a essa histórica e persistente cultura e prática meritocrática, classista, elitista e branca. O Brasil, por si só, tem em sua história a participação, o sangue e suor dos negros, pardos, indígenas, mestiços, migrantes. A luta social, a consciência cidadã, o direito de ter direitos, a crítica e contraposição a diferenciadas formas de desigualdade e preconceito constituem as políticas afirmativas e o debate sobre o direito a Universidade Pública.