Palavras iniciais
A avaliação em larga escala surgiu na década de 1980 sob iniciativa do Ministério da Educação e Cultura (MEC), tem como objetivo avaliar e monitorar a qualidade da educação brasileira. Nesse período o Brasil vivenciava a alta inflação e a estagnação econômica e a educação sofria com o baixo rendimento do sistema educativo, reduzido índice de atendimento à população em idade escolar e altos índices de evasão e repetência. (WERLE, 2011).
Para dar conta destas demandas, o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, assinou um acordo com os organismos multilaterais sob a proposta de ascensão da qualidade educacional. Os Estados-nação, ao assinarem o acordo, aceitaram adotar o modelo econômico neoliberal e passaram a ser pressionados para recuperar a economia. A educação não se absteve de tais pressões e se tornou uma das instituições indispensáveis na formação de indivíduos para o mercado de trabalho, por meio da educação tecnicista. (SAVIANI, 2019; WERLE, 2011).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 são os primeiros marcos legais que garantem uma educação de qualidade para todos os estudantes. Foi atribuída à União a incumbência de realizar avaliações para aferir e monitorar a qualidade da educação. (WERLE, 2011).
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) é uma das diversas avaliações que o Brasil se utiliza para aferir a qualidade da educação. Avalia o desempenho dos estudantes que estão no 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio nas disciplinas de língua portuguesa e matemática. As avaliações são aplicadas bianualmente sob a perspectiva de uma análise temporal. Os testes são padronizados e avaliam todos os estudantes sob uma mesma ótica. (DURLI, SCHNEIDER, 2011; WERLE, 2011).
As notas obtidas pelo SAEB somadas as taxas de aprovação, reprovação e abandono escolar, obtidas pelo Censo Escolar, dão origem ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). O IDEB foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira (INEP) e é, em tese, um índice que pressupõem a qualidade do ensino. (SCNHEIDER, SARTOREL, 2016).
Os objetivos deste trabalho foram: discorrer sobre as influências dos organismos multilaterais e suas interferências no IDEB; analisar o IDEB e suas interferências e investigar a autonomia docente, a fim de identificar seus potenciais e fragilidades. Foi realizada uma pesquisa com docentes de um município localizado no Norte do Rio Grande do Sul (RS). Os participantes lecionam nas disciplinas de português e matemática no 5º e 9º ano do Ensino Fundamental, sendo este o critério de inclusão. Já o critério de exclusão foi não ter experiência com a avaliação do SAEB e não lecionar nas respectivas disciplinas e anos de ensino. No tocante as escolas, não foram inseridas na pesquisa instituições que, por insuficiência de estudantes, não participam da avaliação.
A pesquisa foi autorizada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura do município e pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob CAEE n. 52139721.7.0000.5352. Os dados foram coletados por meio do grupo focal, no qual disparadores foram utilizados para suscitar as discussões em torno da temática. Os dados foram analisados tendo como base a Análise Textual Discursiva.
A pesquisa foi de natureza básica, a abordagem qualitativa e sua finalidade foi exploratória. A abordagem filosófica escolhida como opção metodológica é a sociocrítica. Esta abordagem compreende que o conhecimento científico tem uma temporalidade histórica que é construída a partir das relações sociais concretas. (GATTI, 2002).
As próximas seções desse artigo apresentam as concepções teóricas sobre os organismos multilaterais, sobre a avaliação em larga escala e o IDEB, discorre-se também, sobre as concepções de autonomia, fazendo interlocuções com as representações docentes.
Influências dos organismos multilaterais e interferências no IDEB
Os organismos multilaterais, também chamados de agências financiadoras, são instituições que fornecem empréstimos aos países, em troca, fazem exigências aos Estados-nação. Se caracterizam por ter novas formas de governação supranacional, por meio das organizações internacionais não governamentais, dentre elas se destacam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e o Banco Mundial (BM). (DALE, 2004).
As agências estabelecem orientações direcionadas à educação para todos os países do continente e uma delas é a criação da avaliação de desempenho que tem como objetivo o alcance da eficiência e eficácia dos sistemas de ensino. A avaliação em larga escala é uma das formas utilizadas para avaliar a eficiência e eficácia dos sistemas, que são pressionados a apresentar bons resultados nos testes. (FONSECA, COSTA, 2018).
A avaliação é regida pela mensuração sistemática que fornece informações estatísticas, que na concepção dos organismos, apresentam mais confiabilidade para aferir a qualidade da educação. (ENS, 2013; MARTINS, 2001). Outras consequências das interferências dos organismos sobre a educação são as políticas neoliberais com princípios de descentralização, do reforço da autonomia da escola e das novas técnicas de gestão. Na perspectiva das políticas neoliberais, a escola deveria ser desvinculada do Estado e ser regida como uma empresa que atrai clientelas. (BARROSO, VISEU, 2006).
Em perspectiva semelhante, para Young (2007) a educação, por estar voltada aos interesses do capital, torna-se ela própria um mercado em que as escolas “[...] são obrigadas a competir por alunos e fundos” (YOUNG, 2007, p. 1291). As escolas são, portanto, tratadas como agências de entrega, em que a preocupação está nos resultados e não no processo e no conteúdo do que é entregue.
A educação básica é para os organismos multilaterais uma ferramenta indispensável para o êxito econômico global, em especial quando é destinada aos setores sociais marginalizados. Isso se deve ao fato de que assegura o potencial produtivo de todos os indivíduos, o que propicia que os mais pobres ingressem no mercado de trabalho. O alcance das necessidades básicas de aprendizagem, tem como objetivo criar insumos necessários para que o sujeito alcance a aprendizagem como produto. Em outras palavras, o objetivo é que o estudante adquira conhecimento e habilidade suficiente para o mercado de trabalho e para contribuir com a economia. (LIBÂNEO, 2016).
O papel da escola não é o de ensinar conhecimentos significativos, contribuir para a promoção e ampliação dos processos psíquicos superiores, ajudar a compreender a realidade, desenvolver potencialidades e pensamentos. Mas, o de oferecer conhecimentos práticos, habilidades e o saber-fazer que conduz os estudantes exclusivamente para o mercado de trabalho, que apresenta, em muitos casos, condições precárias. (LIBÂNEO, 2016).
Levando em conta as premissas supracitadas, a respeito dos organismos multilaterais e de suas interferências, apresentamos as compreensões dos participantes a respeito das interferências que percebem. Um dos participantes, aponta:
Eu vejo que acontece nas escolas, reformas que são impostas na verdade, vamos pegar a inclusão, porém nem os professores, nem as escolas estão preparadas para receber esses alunos. Claro, foi colocado assim e nós não tivemos nem como dar opinião, tivemos que aceitar. Mas não é só da inclusão, em todo contexto global tem várias reformas que acontecem e que o Brasil em si não está preparado na área da educação, porque ela sempre foi deixada em segundo plano, em terceiro, quarto.
Este participante entende que as políticas públicas são impostas e além de mencionar a política de avaliação cita como exemplo a política de inclusão. Em sua perspectiva, o Brasil, por si só, não dispõe de condições para responder as determinações globais, pois no entendimento do participante, a educação não é prioridade para o país.
A respeito da imposição das políticas públicas, outro participante alude que: “Infelizmente quem faz as leis, faz de cima para baixo, porque não é a realidade de quem tá em sala de aula, no papel é lindo e maravilhoso, mas na prática não é, tem alunos do 5º ano que não sabem ler. E aí, vai ensinar o que?” Outro participante complementa: “E daí, como nós, aqui do Brasil, temos que seguir a globalização? [...] É bem diferente, não podemos se (sic) comparar com os países mais desenvolvidos”.
Os discursos citados evidenciam que as políticas públicas não são condizentes com as necessidades de cada estudante e que o Brasil não pode se comparar com os países desenvolvidos. Canan (2016) alerta para o fato de que os organismos privilegiam determinados grupos em detrimento de outros, enquanto grupos ou áreas são favorecidos, outros são excluídos, o que contribui para a concentração de riqueza em termos nacionais e sociais.
Cury (2017) menciona que os organismos apresentam orientações e diretrizes que os países que aceitam empréstimos do BM ou as orientações da OCDE precisam acatar. Trata-se de um conjunto de medidas que nem sempre visam atender as necessidades da educação, mas, em grande parte, as do mercado de trabalho.
Os participantes da pesquisa discorrem que além de compreenderem as políticas educacionais como imposições, compreendem que elas são desconexas da realidade escolar e acabam por contribuir com as diferentes desigualdades que os estudantes já são expostos fora do ambiente escolar. Mencionam
Outra coisa, a realidade nossa é bem diferente, eles precisam trabalhar também, então muitos dão prioridade para o trabalho, porque eles tem que levar o dinheiro para casa. Então o estudo não é em segundo plano, é lá no quinto, eles não tem vontade de estudar, a família não incentiva, porque eles precisam trabalhar, trazer o sustento para dentro de casa. E não interessa se é 500,00 se é 100,00, o importante é trazer alguma coisa, para ajudar no sustento, né.
O discurso acima citado faz alusão às desigualdades socioeconômicas. Evidencia que alguns estudantes não se dedicam exclusivamente aos estudos, pois auxiliam na renda financeira da família, a fim de garantir o seu sustento. Outro/a participante complementa que há aqueles estudantes que chegam na escola sem ao menos fazer uma refeição básica e que isso implica na aprendizagem.
De acordo com Mello e Moll (2020) a desigualdade social no Brasil não é um fenômeno recente e sim histórico, marcado pela exclusão dos direitos sociais e pela manutenção de condições de vida precárias e subalternas, perpassada pela miséria e pela pobreza. Neste sentido, a desigualdade envolve questões estruturais, econômicas e sociais, como a fome, o desemprego, a violência, além de trazer todos os tipos de privações na vida dos estudantes e de suas famílias, que atrapalham e inviabilizam o processo de escolarização, como é o caso dos estudantes citados pelos participantes da pesquisa.
Para Freitas (2004), as ações desenvolvidas na escola, sob influências das transformações sociais e econômicas criam novas formas de exclusão. Neste caso, não basta oferecer apenas acesso e permanência, é preciso ofertar uma ação eficaz, no tempo que o estudante passa na escola. Para o autor (2004) é ainda, necessário pensar sobre quais são as finalidades da educação, dos objetivos pelos quais se mantêm as crianças na escola.
Os participantes entendem que os estudantes frequentam a escola porque, além de ser um direito é uma obrigação, não apenas do Estado, mas inclusive dos pais. A exclusão passa então a ser internalizada. De acordo com Freitas (2004) a exclusão internalizada é aquela em que o estudante permanece no sistema escolar mesmo que sua aprendizagem não seja significativa, ou em outras palavras, mesmo que o indivíduo não esteja aprendendo.
Em suma, além de os sujeitos da pesquisa compreenderem que as políticas educacionais são imposições dos organismos multilaterais, entendem que tais imposições, muitas vezes desconexas da realidade, acabam por favorecer as desigualdades educacionais. Balizam ainda que, em função da padronização da avaliação, o IDEB, índice que em tese indica a qualidade da educação, favorece os diferentes tipos de exclusões.
Na próxima seção apresentamos compreensões a respeito da avaliação em larga escala e do IDEB, bem como as suas interferências apontadas pelos participantes da pesquisa.
Interferências do IDEB: o que dizem os docentes?
A avaliação, em suas diferentes modalidades, baseia-se em planos de longo prazo sob a perspectiva de uma análise temporal da qualidade da educação. O SAEB é uma das avaliações em larga escala que permite ao INEP realizar um diagnóstico acerca da qualidade da educação básica e dos fatores que podem interferir no desempenho dos estudantes, que respondem questões de língua portuguesa e matemática. Os docentes, secretários da educação e gestores também participam da avaliação e respondem um questionário socioeconômico. Em suma, o SAEB também oferece subsídios para a elaboração, monitoramento e aprimoramento das políticas educacionais. (SCNHEIDER, SARTOREL, 2016).
A avaliação, além de ter objetivos explícitos, tem também objetivos implícitos, que podem se manifestar de maneira mais sútil. Desta forma, de acordo com Afonso (2000) é importante verificar quais são os interesses da avaliação, pois isso significa aceitar e compreender que a avaliação é, sobretudo, uma atividade política.
Entender a avaliação como atividade política, implica entender que além de avaliar a qualidade da educação ela atua como mecanismo de prestação de contas à sociedade, de regulação e controle sob o trabalho docente. A avaliação também é uma atividade política na medida em que introduz alguns fatores de mercado no sistema educativo. Afonso (2000) leciona que os preceitos de mercado geram efeitos perversos na educação, pois colaboram com a exclusão dos estudantes, em especial aqueles que possuem alguma defasagem.
Nas referências bibliográficas utilizadas ficou evidente que a avaliação do SAEB e o IDEB geram interferências para os docentes e estudantes. Contudo, é necessário dar voz aos docentes para que eles discorram sobre suas concepções do IDEB e das suas influências em suas práticas. Um dos participantes do estudo, menciona que o SAEB atua como mecanismo de cobrança, afiança que
[...] a cobrança de ter que passar as crianças e aumentar o IDEB. Mas elas não sabem nada. [...] Porque nesses últimos dois anos todo mundo está sendo aprovado e eles sabiam que não precisavam fazer nada, porque seriam aprovados. Só que eu não passei. Isso é injusto com quem se dedica, é um desrespeito com quem vai para a escola e ao menos tenta fazer as coisas certas.
Outro participante verbaliza que “Esse SAEB só vem cobrar da gente [...] não vejo outro tipo de participação deles não”. Os discursos citados evidenciam que os docentes compreendem que a avaliação do SAEB atua como instrumento de cobrança e de pressão sob o trabalho docente.
A nova conjuntura da educação responde aos mecanismos de quase-mercado. Em consonância com este entendimento, um participante assinala que: “[...] Enquanto tratarem a educação como uma empresa nós vamos ter que dar retorno”. Mesmo que a educação seja um dever do Estado e dos pais, recaí sobre as escolas a responsabilidade pelos resultados que produzem. Como resultado, a gestão dos sistemas de ensino é pautada por processos práticos e racionais que avaliam o desempenho de docentes e estudantes. (SOUZA, 2007).
Para Oliveira e Araújo (2005) o Estado, ao responsabilizar os docentes, age de forma dissimulada, pois desconsidera os problemas estruturais da educação no país. É indispensável que a avaliação do SAEB e que o IDEB levem em conta as dimensões que dão origem aos seus resultados. Enquanto as dimensões e os contextos dos diversos sujeitos que são avaliados não forem considerados, os sistemas de ensino seguirão sendo responsabilizados, os docentes culpabilizados e os estudantes vistos como fracassados. Será que não é este o objetivo do neoliberalismo?
Outra questão apresentada pelos participantes é a da padronização da avaliação. Um participante pontua que:
A prova é feita para todos os casos né. E aí não se compara os alunos de Porto Alegre, que tem um contexto totalmente diferente do nosso. Aí não dá para entender. Às vezes, dizem que a gente tem que ver a realidade do aluno, mas se eles mesmos não compreendem a realidade de cada um. Eles têm que mandar provas diferenciadas também.
A avaliação, por ser padronizada, compara estudantes que em muitos casos vivenciam realidades incomparáveis. Os sujeitos do estudo, compreendem que a avaliação não respeita as diferentes singularidades que estão envoltas do processo.
Os fatores externos precisam ser levados em conta, haja vista suas influências nos resultados dos testes. Ainda no tocante ao contexto econômico dos estudantes, um participante menciona:
A realidade da nossa escola é totalmente diferente de qualquer outra do município, os nossos alunos são vulneráveis a tudo e a qualquer coisa que se possa imaginar, eles não têm suporte em casa, eles não estudam, eles vem para a escola sem material, ou melhor, na escola eles ganham tudo, eles ganham lápis, ganham borracha, ganham apontador. Inclusive o uniforme, todo o uniforme, camiseta, jaquetas, calças, shorts, tênis. Então assim, não se compara com alunos que vão em outras escolas.
A citação acima, faz menção a vulnerabilidade e a falta de condições básicas dos estudantes para frequentar a escola. São esses mesmos estudantes que são comparados aos de classe alta e com condições favoráveis para o seu pleno desenvolvimento.
Ademais, outra narrativa presente no discurso dos participantes está relacionada ao estreitamento curricular, em função de que a avaliação se restringe as disciplinas de português e matemática. Um participante alude:
Na verdade, não sei nem o porquê que avaliam só português e matemática. Se também trabalhamos história, geografia, ciências. Nessas disciplinas também interpretamos os textos. Então é meio confuso isso daí. A matemática sim, porque a matemática é exata e pronto, é ela por si só [...].
O SAEB tem a concepção de conhecimento como produto abstrato, descontextualizado e sem experiências. Para Arroyo (2007), o mercado é pouco exigente em relação aos conhecimentos dos seus trabalhadores. Sendo assim, o que se valoriza não é o pensar, mas o fazer eficiente e lucrativo para o mercado. Nesta esteira, os currículos têm se preocupado mais com “[...] o preparar para [...] do que o saber sobre” (ARROYO, 2007, p. 110).
O estreitamento curricular, está relacionado à noção do conhecimento ideal, que é aquele voltado ao conhecimento instrumental. Os docentes são incitados a seguir um currículo desenhado a partir das matrizes de referência e reduzem a sua ação pedagógica à produção de resultados educacionais pelos quais são responsabilizados. São, portanto, cada vez mais alienados e sua profissionalidade é reduzida à execução de tarefas técnicas. (SCHNEIDER, 2013).
O tecnicismo em que os docentes estão inseridos acomete as subjetividades dos trabalhadores. Criam um novo imaginário, no qual passam a internalizar a lógica de mercado, da gestão e da performatividade. Conforme alude Ball (2005, p. 548), “A reforma não muda apenas o que fazemos. Ela também procura mudar aquilo que somos”. Daí é que decorre o entendimento de que os preceitos neoliberais e de mercado contribuem para a construção e/ou reconstrução da subjetividade docente.
Por fim, as interferências do IDEB, apontadas pelos participantes, referem-se ao estreitamento curricular. Os docentes não mencionam interferências diretas em suas práticas pedagógicas e sim as implícitas, que se manifestam por meio dos mecanismos de controle e regulação do trabalho docente.
Levando em conta as premissas acima apresentadas, que abordam sobre as interferências do IDEB, buscamos também compreender as possibilidades de autonomia docente diante da avaliação do SAEB. Neste sentido, a seção a seguir apresenta concepções de autonomia e os limites e possibilidades de autonomia identificados pelos docentes.
Limites e possibilidades de autonomia docente face ao IDEB
A autonomia é um termo introduzido por Kant e se refere a independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a capacidade do sujeito em se determinar conforme sua lei própria, que é a lei regida pela razão. Portanto, o significado de autonomia é o poder de dar a si a própria lei. (LALANDE, 1999; ABBAGNANO, 2007; KANT, 1974).
A autonomia não está relacionada a um poder absoluto, assim como não indica a autossuficiência. Se relaciona a uma esfera particular da vida do sujeito, que é regida dentro de certos limites individuais e coletivos. Portanto, apesar de estar vinculada ao individual, não está desarticulada das leis de ordem coletiva. (LALANDE, 1999).
Levando em conta que os participantes desta pesquisa são docentes da rede pública de ensino e precisam atuar de acordo com regras e normas pré-estabelecidas, fazemos menção ao conceito de autonomia outorgada, que está relacionada aos sistemas de ensino. Souza (2003) compreende que as políticas de descentralização, como é o caso da avaliação em larga escala, tem como característica em comum a transferência de responsabilidades e competências às escolas, o que pode indicar, em tese, o seu poder de decisão.
Para Amaro (1996) as políticas de descentralização criam relações de dependência, em um quadro de hierarquização, sem que exista de fato, a participação relevante de cada indivíduo na tomada de decisões. Os sistemas, usufruem de autonomia para executar predeterminações e não para atuar nas tomadas de decisões. Nesta mesma linha de pensamento, Barroso (1996) discorre que a autonomia é decretada às escolas, na medida em que ela é imposta aos docentes e não é derivada de um processo de construção e diálogos.
A autonomia outorgada é, para Rosenfield (2002), uma ferramenta de coordenação das relações de trabalho, que visa alcançar um objetivo econômico de gestão empresarial. Com efeito, tal autonomia corrobora com o acirramento da competição entre trabalhadores e entre empresas. O trabalhador, consequentemente, vivencia uma pseudoliberdade e é submetido a condição de objeto.
Sobre as possibilidades de autonomia identificadas pelos participantes da pesquisa, um deles menciona: “Nossa autonomia é zero. Eu acho que eles não nos consultam, a gente não participa da elaboração. A gente não é procurado para saber a respeito do que é feito em sala de aula, o que pode ser feito”. Outro docente compreende que: “Eu não vejo nenhuma possibilidade de autonomia [...] porque ela vem pronta e a gente tem que simplesmente engolir essa prova”.
Os docentes entendem que não possuem autonomia no processo de construção das políticas públicas, como é o caso do SAEB. Desta forma, as políticas são impostas e os docentes precisam dar conta de colocá-las em prática. Vale (2013) e Contreras (2002) destacam que os documentos, legislações e programas são reflexos de uma política burocrática e autoritária, que eximem os docentes das decisões relacionadas as demandas de ensino.
Contreras (2002) discorre que esta organização do trabalho docente se configura como uma degradação do trabalho, tendo em vista que os docentes ficam privados de suas capacidades intelectuais e da possibilidade de tomar decisões que são pensadas e discutidas coletivamente. Mendonça (2014) reflete que a falta de autonomia docente também indica uma precarização do trabalho do professor no sistema capitalista e entende que a expansão do capitalismo atinge a sociedade por meio da exploração do trabalho, em que os significados e valores das relações humanas ficam reduzidas aos aspectos monetários de lucratividade.
O capitalismo se apropria do trabalho docente e, consequentemente, o trabalhador perde sua autonomia e só tem valor no quanto consegue produzir. Os docentes nas avaliações do SAEB precisam mostrar evidências por meio dos índices de que estão ofertando um ensino de qualidade para os estudantes. Se a qualidade não for aferida, os profissionais são culpabilizados e responsabilizados pelos resultados indesejáveis. (MENDONÇA, 2014).
Os docentes têm, em teoria, uma suposta autonomia para melhorar a qualidade do ensino e para construir estratégias que sanem as defasagens apontadas. Entretanto, precisam seguir diretrizes e orientações que são impostas, mas, ao mesmo tempo, não participam das reflexões sobre o que se entende por qualidade da educação e não são convidados a opinar sobre as suas experiências com a avaliação. Um participante aponta que: “De forma geral, não somos ouvidas, as provas vem prontas”.
Os participantes destacam que a padronização das provas não é condizente com as inúmeras realidades encontradas em sala de aula. Fazem menção a Base Nacional Comum Curricular tendo em vista que a matriz curricular da Base é cobrada na avaliação. Discorrem que
Também temos a BNCC né, provavelmente vai ser cobrado no SAEB também, mas não tem como trabalhar o conteúdo que está lá na base se eles não sabem o anterior. E aí? [...], mas tem que ter, tem que constar o que está na matriz. [...] o papel pode até aceitar tudo, mas o meu aluno não.
Os docentes demonstram preocupação com o fato de o SAEB levar em conta a matriz da BNCC, pois na perspectiva deles, os estudantes não conseguem seguir o que é indicado pela Base. Os testes do SAEB e a própria BNCC desrespeitam as singularidades dos estudantes, pois os uniformizam, como se todos aprendessem da mesma forma e tivessem os mesmos processos de aprendizagem.
Nota-se também, que a falta de autonomia docente e o modelo de produção capitalista ao qual se inserem, colocam os docentes sob situações desgastantes. Martins (2001) aponta que o docente tem vivenciado sentimentos de desilusão e desencantamento com a sua profissão e que isso pode ser em função de tentar, incansavelmente, responder as expectativas impostas pela sociedade, governo, família e da própria gestão escolar. Como resultado, não é de se surpreender que os docentes estejam cada vez mais cansados, esgotados e adoecidos mentalmente.
Já, no que se refere as possibilidades de autonomia docente, os participantes pontuam que:
Autonomia em sala de aula eu tenho, eu não vou pegar um texto complicadíssimo. Vou adaptar à realidade dos meus alunos. Essa autonomia eu tenho. Na elaboração do SAEB eu não sou ouvida. Não é levado em conta o que eu acho importante.
Eu tenho autonomia dentro da minha sala, porque eu conheço os meus alunos e eu sei o que eles precisam saber. Então mesmo que você me diga o que eu preciso fazer, eu não vou, eu vou fazer aquilo que é melhor para o meu aluno.
Os docentes verbalizam que adaptam suas práticas em sala de aula às necessidades dos estudantes. O conteúdo exigido pela matriz curricular e pelo SAEB são manejados de acordo com a realidade dos discentes. Outro aspecto pertinente mencionado pelos participantes é que eles não treinam os estudantes para as provas, diferentemente do que foi encontrado em outros estudos lidos na realização da pesquisa.
Outro participante pontua que: “As provas não tornam as pessoas mais autônomas, ou com mais liberdade e dignidade”. Há o entendimento de que a avaliação do SAEB não contribui para a autonomia, liberdade e dignidade do estudante, por este motivo, os docentes buscam estratégias de avaliação que sejam mais condizentes com a realidade dos seus estudantes.
Os docentes relatam ter autonomia em sala de aula, ao fazerem as adaptações supramencionadas. Tal autonomia ocorre em nível microssocial e compreendemos que as estratégias adotadas pelos participantes auxiliam os estudantes, principalmente aqueles que possuem especificidades e singularidades. Contudo, não compreendemos que essa suposta autonomia dos sujeitos impacte em suas práticas enquanto docentes, pois as estratégias utilizadas apenas em sala de aula podem não promover mudanças nas estruturas que lhes impõem certas normas de trabalho. Cabe aludir a Freire (1996, p. 60) que baliza que:
O importante, por isso mesmo, é que a luta dos oprimidos – se faça para superar a contradição em que se acham. Que esta superação seja o surgimento do homem novo – não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Isso posto, para que exista a possibilidade de libertação é necessário que os docentes, por meio de suas lutas, superem as contradições em que se encontram. Já na perspectiva de Kant (1974), é necessário que os sujeitos tenham uma postura crítica frente à realidade que estão expostos e isso demanda que o sujeito seja detentor do próprio conhecimento e não um ser passivo que recebe informações e as manipula de forma fragmentada e pejorativa.
Ademais, o indivíduo autônomo é aquele que detém da habilidade de fazer uso do entendimento e das suas concepções mais extremas, sem a influência do outro, ou das estruturas externas, como é o caso do governo, sociedade, igreja e etc. (KANT, 1974; BOMBADA, 2018).
Sob outra perspectiva, se levarmos em conta a concepção de autonomia outorgada, compreendemos que os sistemas de ensino experenciam uma autonomia que é prescrita e imposta. A autonomia, neste sentido, é um processo prescrito e não construído. Conforme nos lembra Barroso (1996), não há como sistemas de ensino serem autônomos se os indivíduos não são. A autonomia é um processo de construção.
Para finalizar esta seção, retomamos que os participantes entendem que não possuem autonomia no processo de construção das políticas e citam como exemplo, além da política de avaliação em larga escala, a política de inclusão. Compreendem que não são convidados a fazer parte das discussões sobre a avaliação e também não têm espaço para falar sobre suas experiências com os testes. Desse modo, é nessa esfera que reside a limitação da autonomia dos participantes.
Por sua vez, as possibilidades de autonomia identificadas pelos participantes se dão em sala de aula, nas práticas pedagógicas desenvolvidas, em que adaptam as aulas, os conteúdos e as avaliações de acordo com as necessidades dos estudantes. Embora tenhamos considerado de suma importância essa visão dos docentes sobre a avaliação e sobre a BNCC, de que ela padroniza e uniformiza os estudantes, já que avalia todos sob uma mesma ótica, compreendemos também que apenas a adaptação das predeterminações não são suficientes para mudar o contexto em que estão inseridos.
Mesmo que os participantes compreendam que possuem certo nível de autonomia, questionamos se de fato essa autonomia existe, já que recebem materiais didáticos e precisam seguir as matrizes da BNCC. Portanto, identificamos que há um conformismo diante das imposições.
Proposições finais
A avaliação em larga escala foi instituída no Brasil na década de 1980 pelo MEC, tem como objetivo avaliar e monitorar a qualidade da educação brasileira. Nesse período, o Brasil sofria com a alta inflação e com a estagnação econômica e a educação era marcada pelo baixo índice de atendimento à população em idade escolar e altos índices de evasão e repetência. Para sair dessa crise o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, assinou um acordo com os organismos multilaterais, em busca da ascensão econômica. Como consequência da obtenção do empréstimo, os países aceitaram adotar o modelo econômico neoliberal. (WERLE, 2011).
Por trás do discurso de cooperação propagado pelos organismos há a pressão direcionada aos países para alavancar a economia. Desse modo, as agências internacionais encontraram terreno fértil na fragilidade dos Estados-nação, o que propiciou a disseminação de práticas e ferramentas de dominação, controle e regulação na medida em que induzem diretrizes aos países, como é o caso da avaliação em larga escala.
O SAEB é uma das avaliações em larga escala que o Brasil se utiliza para avaliar a qualidade da educação. É direcionado aos estudantes do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio. Os estudantes respondem questões de língua portuguesa e matemática e os diretores, secretários e gestores respondem a um questionário socioeconômico. As notas obtidas pelo SAEB, juntamente com as taxas de aprovação, reprovação e abandono escolar obtidas no Censo Escolar dão origem ao IDEB. (SCHNEIDER, SARTOREL, 2016).
Neste trabalho objetivamos: discorrer sobre as influências dos organismos multilaterais e suas interferências no IDEB; analisar o IDEB e suas interferências e; investigar a autonomia docente, a fim de identificar seus potenciais e fragilidades.
No tocante ao objetivo “discorrer sobre as influências dos organismos multilaterais e suas interferências no IDEB”, os participantes mencionam que as políticas públicas são impostas às escolas e aos docentes. Além da avaliação em larga escala, citam como exemplo a política de inclusão. Os docentes entendem que as diretrizes que são pré-estabelecidas nem sempre são condizentes com as necessidades de cada escola e, consequentemente, podem contribuir para as desigualdades educacionais.
No que concerne ao objetivo “analisar o IDEB e suas interferências”, os participantes relatam que o IDEB atua como um mecanismo de regulação e controle sob a prática docente, além de os pressionar para melhorar o desempenho dos estudantes e aumentar o índice. Em relação as interferências direcionadas aos estudantes, os docentes pontuam que o IDEB interfere na elaboração do currículo, o que gera o estreitamento curricular, pois o foco acaba sendo as disciplinas de língua portuguesa e matemática.
Quanto ao último objetivo, “investigar a autonomia docente, a fim de identificar seus potenciais e fragilidades”, os participantes compreendem que não possuem nenhuma possibilidade de autonomia na construção das políticas públicas, haja vista sua imposição. Ficam com a incumbência de colocar em prática tais imposições. É nesta esteira que reside a limitação da autonomia docente. Já em relação as possibilidades de autonomia, os docentes postulam que a possibilidade está nas práticas em sala de aula, para as quais adaptam os conteúdos da BNCC às necessidades dos estudantes e levam em conta outras formas de avaliar os estudantes, não só por meio das notas quantificáveis.
Embora tenhamos considerado pertinente essas estratégias utilizadas pelos participantes, compreendemos que apenas estas práticas podem não ser suficientes para mudar as estruturas vigentes que influenciam na autonomia docente. Tal feito, demonstra certo conformismo dos docentes frente as predeterminações.