Considerações introdutórias
Já disse uma vez e vale a pena repetir:
ninguém chega lá, partindo de lá, mas daqui. Paulo Freire 3
A publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) reavivou, na década de 1990, as discussões em torno da construção dos Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) das escolas, apontando ser essa uma incumbência dos estabelecimentos de ensino, com a participação dos(as) membros(as) da comunidade escolar. Na referida Lei, não consta a denominação “Projeto Político-Pedagógico”. Ora adota o termo “Proposta Pedagógica” (Art. 12 e 13), ora “Projeto Pedagógico” (Art. 14). Posteriormente, a alusão à terminologia PPP passou a constar em diferentes normativas de âmbito nacional e local.
A expressão PPP se articula à perspectiva epistemológica freiriana que concebe a educação como ato político (FREIRE, 2001). No Brasil, foi consubstanciada na literatura especializada da área, a partir das pesquisas de diferentes autores. Estabelecemos, neste estudo, o diálogo com as produções de Veiga (2003; 2013), para as quais o PPP aborda as dimensões política e pedagógica de forma indissociável. Logo,
[...] se deve considerar o projeto político-pedagógico como um processo permanente de reflexão e discussão dos problemas da escola, na busca de alternativas viáveis à efetivação de sua intencionalidade [...]. (VEIGA, 2013, p. 13).
Considerando o eixo “político” na formulação desse documento, a partir do enfoque de Veiga (2013, p. 13), o mesmo deve expressar “compromisso com a formação do cidadão para um tipo de sociedade”. Consequentemente, é importante que conste em seus princípios, objetivos e estratégias, questões específicas sobre a diversidade social e cultural, de modo mais específico sobre a ERER. Isso se torna primordial como ponto de partida para a promoção de uma educação antirracista, visando a construção de projetos societários verdadeiramente comprometidos com a justiça social e a igualdade étnico-racial. Por conseguinte, as propostas desse documento devem partir das realidades e necessidades de sujeitos concretos, que possuem singularidades e vivem em uma mesma sociedade. Portanto, é central dar visibilidade aos marcadores sociais e culturais que os identificam (classe, gênero, cor/raça, etnia), para tangenciar os currículos e as práticas pedagógicas contextualizando as problemáticas sociais que estruturam padrões hegemônicos que produzem desigualdades socioeconômicas, raciais e educacionais.
Ainda segundo Veiga (2013), por ser um projeto 4, o PPP impele ao planejamento antecipado de suas ações, o que contribui para evitar o improviso pedagógico. Isso implica no estabelecimento de processos contínuos de reflexão coletiva, para subsidiar as equipes escolares nas tomadas de decisões, deixando claro quais objetivos pretendem alcançar e quais estratégias serão postas em prática para atingir os fins desejados. Entendido dessa maneira, o PPP assume dimensão processual, coletiva e teórico-prática, não devendo a sua elaboração ser somente tarefa das equipes gestoras ou, no limite, da coordenação pedagógica.
Nos estudos que versam sobre a implementação das Leis nº 10.639/03, nº 11.645/08 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicoraciais (DCNERER), os apontamentos que destacam o PPP como documento que contribui para que se institucionalizem essas discussões nas escolas ganharam centralidade, com destaque para as pesquisas de Coelho et al. (2022) e Coelho, Regis e Silva (2021). Além do seu caráter pedagógico e político, por ser um documento que define intenções e proposituras, representa uma estratégia para promover a institucionalização da ERER nos contextos escolares. Portanto, tão importante quanto a regulamentação dos marcos normativos em nível de sistemas de ensino é a sua ressonância nas escolas, para que ganhem materialidade em seus PPPs e nas práticas pedagógicas (COELHO et al., 2022). Sobre isso, o Plano Nacional de implementação das DCNERER pontuou, ao estabelecer como atribuição das instituições de ensino, que elas deveriam “[...] realizar revisão curricular para a implantação da temática, quer na gestão dos projetos político-pedagógicos, quer nas coordenações pedagógicas e colegiados [...]” (BRASIL, 2009, p. 38).
Em consonância com esse entendimento, Coelho, Regis e Silva (2021) também destacaram que, para que a ERER se efetive de forma consubstanciada, deve-se defender o aprofundamento teórico e o domínio da legislação antirracista pelas(os) agentes escolares. Logo, a perspectiva das autoras e do autor sugere que não basta uma inclusão apenas no plano prescritivo dessas normativas no PPP. São necessários processos formativos em paralelo, visando a apropriação de seus princípios e sua inclusão qualificada nos currículos escolares e nas práticas pedagógicas. Esse cenário coloca em perspectiva os eixos “formação continuada” e “construção coletiva do PPP”, que não devem ser concebidos de forma desarticulada na dinâmica do trabalho escolar, mas como parte de um mesmo processo. Nesse sentido, é importante destacar o papel central das coordenações pedagógicas, em parceria com docentes e demais participantes da comunidade escolar.
Ao constatar que o que foi dito corrobora com o entendimento de Freire (2014), citado na epígrafe desta introdução, a implementação de políticas públicas no âmbito escolar tem uma dimensão processual. Para se atingir os fins esperados, são requeridos planejamento antecipado, acompanhamento e avaliação das ações propostas, a partir da realidade local e das necessidades e características das(os) estudantes. Concordamos com os argumentos anteriormente apresentados de que a institucionalização das políticas públicas da ERER nos PPPs representa uma estratégia importante para se obterem os avanços práticos nesta área. Portanto, apresentamos parte de um estudo 5 que abordou a perspectiva das coordenações pedagógicas 6 de escolas públicas de Ensino Fundamental (Anos Finais) em Manaus, sobre a formação continuada de docentes na área da ERER. Como recorte para os propósitos deste texto, ocupamo-nos do eixo relacionado ao PPP das escolas das(os) participantes, com o objetivo de conhecer como a ERER se configura nesses documentos e se são parâmetros para as práticas pedagógicas no trato de questões que envolvem o racismo, o preconceito e a discriminação.
Na primeira etapa do estudo, foram coletadas informações preliminares com 10 pedagogas(os) 7 por meio de entrevistas semiestruturadas. Na segunda etapa, procedemos à análise documental de 08 PPPs, e, em ambas as fases, o tratamento analítico foi orientado pela análise de conteúdo (BARDIN, 2016), com fundamento nos estudos de Veiga (2003; 2013), Coelho et al. (2022) e Coelho, Regis e Silva (2021), conforme passaremos a discorrer.
A temática da ERER nos PPPs: prescrições e proposições em pauta
Vale contextualizar que o perfil das(os) participantes do estudo é majoritariamente feminino (70%), constituído por pessoas autodeclaradas pardas (80%), negras (10%) e brancas (10%), em diferentes faixas geracionais, situadas entre: 28 e 40 anos (60%), de 41 a 60 anos (30%) e 01 (uma) participante acima de 60 anos (10%). Com graduação em Licenciatura em Pedagogia, o grupo é heterogêneo em relação ao tempo de experiência na função de pedagoga(o) na escola de atuação, variando entre 12 anos (10%), de 01 a 03 anos (20%), e de 04 a 06 anos (70%). A dimensão temporal confere ao grupo um perfil diverso, representado, por um lado, por pessoas com trajetórias e experiências mais consolidadas e, por outro, com menos tempo de atuação profissional na mesma escola.
Esse último aspecto impacta nos processos de elaboração e articulação do PPP na dinâmica escolar, que requer tempo para que as metas e objetivos sejam alcançados. Nessa direção, Veiga (2013, p. 30) indica ser necessário tempo “[...] para acompanhar e avaliar o projeto político-pedagógico em ação.” Por sua vez, a categoria “tempo” também se torna indispensável para possibilitar que as coordenações pedagógicas conheçam a realidade social e cultural da comunidade escolar onde atuam, para firmar parcerias e construir sua identidade profissional, a fim de coordenar a organização do trabalho pedagógico de modo colaborativo. A rotatividade dessas(es) profissionais, quando ocorre, assim como de diretoras(es) e docentes, é um fator que compromete a continuidade das ações. Isso visto que a permanência dessas(es) agentes por um tempo maior nas instituições, apesar de não não ser um fator exclusivo, representa um indicador favorável para a implementação das políticas em âmbito local e para o planejamento, execução e avaliação dos PPPs.
Nas duas redes públicas de ensino em Manaus (estadual e municipal), o provimento do cargo para pedagoga(o) ocorre por concurso público de carreira, o que garante maior estabilidade para essas(es) profissionais em uma mesma escola. Contudo, tal sistema não ocorre para a função de direção, cuja escolha se dá mediante indicação política da gestão pública do momento. Assim, é comum ocorrer maior rotatividade desses profissionais, não havendo garantia de sua permanência em uma escola, especialmente quando há mudança de gestão na administração pública. Essa configuração da função de diretor(a) foi fonte de reflexão de uma das pedagogas entrevistadas, que considerou isso um desafio para o trabalho coletivo na escola, uma vez que o estabelecimento de parcerias e a própria elaboração e acompanhamento do PPP requerem tempo para se consolidarem (VEIGA, 2013).
Os dados sobre a inclusão da ERER nos PPPs, observados a partir das entrevistas com as(os) pedagogas(os), revelaram os seguintes resultados: a) 20% informaram que constam no PPP de suas escolas questões sobre diversidade e ERER, mas não detalharam como esses conteúdos são abordados; b) 20% indicaram que consta uma abordagem generalista sobre diversidade; c) 10% citou que não consta; d) 30% que não lembravam se constava ou não; e) 20% disseram que não tinham essa informação por não terem participado da construção dos PPPs, elaborados antes de assumirem seus cargos nas escolas.
Esses dados indicam haver realidades diferenciadas em relação à inclusão da ERER nos PPPs das escolas, mas também em relação ao nível de conhecimento desse documento pelas(os) pedagogas(os). De forma direta, somente 10% afirmou que o PPP não contempla a ERER. Contudo, embora não havendo diretamente uma negação, em 50% 8 evidenciou-se haver desconhecimento sobre o PPP das escolas no que se refere ao assunto abordado. Esse aspecto destoa das perspectivas que compreendem essa(e) profissional como articulador do PPP e da relação desse documento com os processos formativos centrados na escola (LIBÂNEO, 2013; PLACCO; ALMEIDA; SOUZA, 2011). Infere-se, pelo nível de desconhecimento, que para esses 50% o PPP não é referência para sua prática profissional no que se refere a ERER.
Vale frisar, conforme apregoa Veiga (2013), que esse projeto não deve ser concebido como um documento burocrático, que, depois de ser elaborado, é arquivado (e esquecido). Para a autora, pela sua importância e caráter flexível, o PPP deve estar em constante atualização. Veiga também destaca três momentos específicos e articulados na formulação do PPP: sua concepção, realização e avaliação. Ainda, a autora concebe a escola como espaço privilegiado para implementar essas ações, em função da necessidade de “[...] organizar seu trabalho pedagógico com base em seus alunos” (VEIGA, 2013, p. 11). Nesse sentido, o PPP não se limita à etapa de sua elaboração, mas deve ser vivenciado, para colocar em prática o que está definido em seus objetivos, diretrizes e metas. Sem isso, irá somente figurar como um documento que expressa intencionalidades, e é esvaziado em seu sentido prático quando não indica os meios, os processos e as(os) agentes envolvidos para dar materialidade às intenções registradas. Assim, o fato das(os) pedagogas(os) não terem participado da elaboração inicial do PPP não as(os) desobriga de conhecê-lo, haja vista que ele deve ser parâmetro para as ações na escola que coordenam.
Além disso, 20% das(os) profissionais comentaram que nos PPPs há uma abordagem generalista sobre a diversidade. Essa concepção se alinha à perspectiva universalista, que reforça a construção do imaginário de um sujeito genérico e abstrato, invisibilizando suas singularidades. É importante pontuar que se trata de uma compreensão limitadora na abordagem da diversidade, que atrapalha a visão do sujeito real (MACEDO, 2015). Esse aspecto também emergiu como resultado da análise documental dos PPPs, a ser posteriormente pontuado. Outros 20% informaram que constam nos PPPs questões sobre diversidade e ERER, contudo, não informaram como são abordadas. Consequentemente, não foi possível, pelo conteúdo das entrevistas, tecermos maiores considerações sobre esse aspecto, visto que figurou apenas no plano da afirmação, sem desdobramentos que suscitassem maiores análises. Assim, a segunda fase deste estudo consistiu em aprofundar esses aspectos por meio da pesquisa documental dos PPPs das escolas.
Tivemos acesso a 08 PPPs, visto que duas pedagogas não os encaminharam dentro do tempo de realização da pesquisa. Dito isso, segue a apresentação dos resultados da pesquisa documental com a amostra de 08 PPPs, sendo 05 da rede estadual e 03 da rede municipal. Dessa análise, observou-se referência textual às seguintes temáticas: diversidade e diferença; racismo, preconceito e discriminação; e sobre as Leis nº 10.639/2003, nº 11.645/08 e DCNERER. Essas categorias foram percebidas em diferentes itens constitutivos desses documentos, com maior ou menor frequência, conforme exposto nos Quadros 1, 2 e 3.
Itens constitutivos | Conteúdos Observados |
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Apresentação | - Diversidade como princípio. |
Localidade | - Respeito à diversidade sociocultural. |
Princípios norteadores | - Respeito pela diversidade cultural, o respeito às diferenças, a diversidade étnico-racial, de gênero, religiosa e a inclusão; Escola que esteja atenta à diversidade de todos os membros da comunidade escolar. |
Fundamentos ético -pedagógicos e didáticos |
- Desse jeito, poderemos garantir a qualidade no processo ensino aprendizagem, respeitando e acolhendo as diversidades étnicas, culturais, religiosas, ideológicas e de gênero, de modo a construir a cultura da solidariedade. |
Marco filosófico | - Respeito aos diferentes valores culturais e costumes dos vários grupos e etnias; Respeito à diversidade. |
Plano de ação | - Implantar o projeto: "Na diferença somos iguais, e nos respeitamos”; - Promover palestras e programas de promoção a questões raciais, de gênero, LGBTQ+ e demais movimentos que contemplem a diversidade social. |
Anexos/Projetos | - Reconhecer a tradição cultural, a memória e a identidade da Cultura Africana, através do Projeto: Contos Africanos. |
Pontos fracos da escola apontados do PPP | - Aceitação das diferenças. Ministrar palestras que sensibilizam acerca da gravidez precoce, aceitação das diferenças e violência. |
Diagnóstico | - As bandeiras de luta: questões raciais, de gênero, LGBTQI+ e demais identidades, reconhecimento da diversidade cultural e linguística, interculturalidade na proposta curricular da instituição. |
Visão de futuro | - Respeito à diferença (em dois PPPs). |
Objetivos específicos | - Palestras sobre diversidade; Respeitar, conviver e aprender com as diferenças; Promover a inclusão respeitando as diferenças individuais e a pluralidade cultural e racial dos alunos. |
Fundamentação legal e base teórica | - Promover a compreensão quanto à pluralidade cultural, à ética, à diversidade; Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, suas identidades, suas culturas e suas potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza (em dois PPPs); - Ressignificar o papel da escola, em função da diversidade características do alunado da escola. |
Fonte: Transcrito dos PPPs analisados.
Itens constitutivos | Conteúdos Observados |
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Calendário comemorativo | - Serão adotadas as datas comemorativas e eventos alusivos: Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial; Dia Nacional de Combate ao Bullying; Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo; Dia Internacional das Populações Indígenas; Dia Nacional da Consciência Negra. |
Fundamentos epistemológicos | - A educação como mediadora para análise reflexiva das temáticas sociais como: as ideologias que afirmam os interesses de classe, racismo, as várias matrizes do preconceito, a corrupção, baixa autoestima, entre outros. |
Visão de futuro | - Proporcionar o bom atendimento a todos, sem preconceitos. |
Objetivos específicos | - Repúdio a toda forma de violência na relação com o outro, valorizando o respeito e eliminando o preconceito a todo o ser humano, independente de sua origem social, etnia, religião, sexo e manifestações culturais. |
Marco Operativo | - [...] combate a todas as formas de preconceito e discriminação por motivo de raça, sexo, religião, cultura, condição econômica, aparência ou condição física. |
Fundamentos éticopedagógicos e didáticos | - Fundamentos éticos e políticos, a promoção dos direitos humanos livres de preconceitos, participação da vida em sociedade, com ações que levem à compreensão dos valores essenciais da ética, excelência, parceria, inovação e solidariedade. |
Fundamentação legal e base teórica | - Respeito aos direitos humanos e exclusão de qualquer tipo de discriminação, nas relações socioafetivas e interpessoais; igualdade de direitos, de forma a garantir a equidade em todos os níveis. |
Fonte: Transcrito dos PPPs analisados.
Itens constitutivos | Conteúdos Observados |
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Fundamentos ético-pedagógicos e didáticos |
- Lei 11.645/2008 que trata da obrigatoriedade da temática “História e cultura Afro-Brasileira e indígena”, abordando os temas relacionados à formação do povo brasileiro, à luta dos negros e dos povos indígenas, à cultura e às contribuições sociais, históricas, culturais destes povos. |
Marco operativo | - Valorização da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, em atendimento às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. |
Calendário comemorativo | - Datas comemorativas: Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial; Dia Nacional de Combate ao Bullying; Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo; Dia Internacional das Populações Indígenas; Dia Nacional da Consciência Negra (Lei 10.639/03; Parecer n° 003/04; Resolução n° 01/04) |
Fundamentação legal e base teórica | - Cumprimento da Lei nº 11.645/2008. |
Visão de futuro | - A escola desenvolve projeto com essa temática, levando os educandos a refletirem acerca da importante contribuição na formação brasileira desses povos. Tem como base as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o ensino da História e cultura africana e afro-brasileira no currículo das escolas, dando ênfase nas disciplinas de História, Arte e Literatura. |
Fonte: Transcrito dos PPPs analisados.
Os resultados indicam que nos 08 PPPs é omitida a caracterização do perfil das(os) estudantes pelos marcadores de cor/raça, etnia, gênero etc. Essa ausência de registro colabora para invisibilizar as diferentes identidades presentes em seus espaços (COELHO; REGIS; SILVA, 2021). Foi frequentemente observada a inserção de dados sobre o desempenho das escolas nas avaliações externas e o estabelecimento de metas para melhorias dos seus resultados, mas não foi dada a mesma atenção à configuração étnico-racial. É oportuno citar que 81,9% das(os) discentes dos Anos Finais do Ensino Fundamental no Amazonas se autodeclararam pretas(os) e pardas(os) no Censo Escolar da Educação Básica/2021, majoritariamente de escolas públicas (BRASIL, 2022).
Os dados sobre a ausência de representação de perfis étnico-raciais nos PPPs encontram similaridade com os resultados de outros estudos, como os de Coelho, Regis e Silva (2021), em pesquisa sobre o lugar da ERER nos PPPs de duas escolas paraenses. Para as autoras e o autor, trata-se de uma dimensão a ser considerada interseccional nas análises sobre as taxas de rendimento escolar e evasão, notadamente em função das desigualdades educacionais entre a população negra e branca. De modo análogo, Coelho et al. (2022, p. 139-140), em pesquisa com amostras de seis escolas localizadas em Belém/PA, analisaram seus PPPs e concluíram que “nenhuma das escolas menciona o perfil étnico-racial dos seus e suas docentes, discentes e técnicos-administrativos”. Nesse estudo, pontuaram ainda que a dimensão étnico-racial é considerada um indicador importante “para observar como as instituições lidam com a ERER”. Considera-se, pois, que um projeto que esteja conceitualmente comprometido com a inclusão dessa pauta não deve se omitir em dar visibilidade ao quantitativo de sujeitos que compõem os segmentos étnico-raciais, para os quais o PPP se destina enquanto projeto de formação humana.
Ao abordar o binômio BNCC e direito de aprendizagem, Macedo (2015) pontuou a questão do universalismo como produtor de exclusões, pela indiferença no trato das particularidades, que, segundo a autora, é uma ameaça à hegemonia da abstração presente nesse conceito.
O triunfo do indivíduo universal como representação de todos é produzido pelo esquecimento do sujeito concreto que ameaça a pureza da representação - negros, mulheres, pobres, homossexuais, judeus, nordestinos, a depender do momento histórico. (MACEDO, 2015, p. 897).
Concordamos com Macedo (2015) que a abordagem genérica da diversidade é excludente e serve aos propósitos ideológicos de uma pseudoinclusão. Tal abordagem não rompe com as estruturas que contribuem para a manutenção da invisibilidade dos sujeitos desconsiderados na sua heterogeneidade. Inferimos que a concepção sobre diversidade que consta nos PPPs se alinha à perspectiva universalista, de representação de um sujeito abstrato, concorrendo para que não sejam visibilizadas as identidades que compõem a tessitura social.
De modo recorrente, a abordagem dessas questões, independente do item em que foram inseridas nos PPPs analisados, ficou no plano de seu reconhecimento formal e na ênfase aos aspectos prescritivos. Também se enquadra majoritariamente no campo das narrativas que adotam como correlatos os termos "diversidade" e "diferença", pelo viés do conceito de tolerância, também acompanhados de expressões como “valorização” e “respeito”. Para Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011), o tratamento indiferenciado entre os conceitos de “diversidade” e “diferença” também contribui para a manutenção das desigualdades. Em outras palavras:
Sob o manto da diversidade o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas, vem sob a égide da tolerância, tão em voga, pois pedir tolerância ainda significa manter intactas as hierarquias do que é considerado hegemônico [...] (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011, p. 91).
Esses aspectos foram observados, em grande parte, ao mencionarem as categorias "diversidade" e "diferença", sendo em poucos documentos evidenciadas estratégias para a sua concretização, o que corrobora nossa inferência de uma inclusão meramente prescritiva. Observamos que, em 04 PPPs, foi descrita a propositura para a abordagem dessas duas categorias, sendo que em 02 foram indicadas abordagens por meio de projetos temáticos; e em 02 na perspectiva de realização de palestras para estudantes. Embora sejam propostas ainda pouco articuladas ao contexto mais amplo da escola e da sala de aula, não deixam de sinalizar a atenção dada pelas equipes escolares para esses aspectos. Por outro lado, apesar das intenções positivas dessas iniciativas, é importante dizer que, após 20 anos da publicação da Lei nº 10.639/2003, 19 anos após a publicação das DCNERER e após a farta produção de materiais pedagógicos e de pesquisas produzidas nesse período, urge a necessidade de avançar na proposição de práticas que problematizem as desigualdades raciais presentes em nossa sociedade, por meio de ações mais sistematizadas e mediadas por processos de formação continuada na escola.
Rocha (2009) pontuou quatro fases em relação à inclusão das discussões raciais nas escolas: fase da invisibilidade, negação, reconhecimento e avanço. A autora considerou que houve mudanças na fase da invisibilidade, especialmente nas mídias, nas pesquisas e rodas de conversa, aspecto que muito se observa atualmente com o crescimento de produções científicas na área, com a sua tematização em fóruns, seminários (presencial ou online), dentre outras iniciativas. Contudo, ela também considerou que o assunto estava silenciado em muitas escolas em 2009, e o “silêncio sobre o tema é ainda a estratégia escolhida por algumas instituições educacionais e seus professores” (ROCHA, 2009, p. 11). Do mesmo modo, Coelho et al. (2022, p. 157) apontam que ainda há muito desconhecimento em relação à obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena e das DCNERER por parte de agentes escolares, e acrescentam, por sua vez, que a existência de seu conhecimento também não garante que se efetive nas práticas pedagógicas.
Em relação à fase da negação, Rocha (2009) destacou que a mesma ocorre quando a escola pensa na temática étnico-racial a partir da ideologia da democracia racial, que nega a existência do racismo no Brasil. Por isso, os “professores têm dificuldade em reconhecer, tanto na sociedade quanto no próprio ambiente escolar, as várias manifestações de preconceito, discriminação e racismo”. Consequentemente, os mesmos avaliam não haver necessidade de “tratar pedagogicamente a questão, pois ela ‘não existe’” (ROCHA, 2009, p. 12). Essa constatação fora teorizada por Abdias do Nascimento (2016), na obra "O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado", ao abordar a ideologia do mito da democracia racial, que apregoa a convivência “harmoniosa” da população brasileira para mascarar o racismo.
Atualmente, pode-se inferir que as escolas públicas de Ensino Fundamental de Manaus se encontram em estágios diferenciados na implementação das diretrizes da ERER. Ainda, sua inclusão nos PPPs, de um modo geral, ocorre nos limites da reprodução dos textos normativos publicados, sem explicitação de estratégias viabilizadoras. Arriscamos dizer que tal perspectiva se articula mais aos processos da celebração da diversidade no contexto escolar, por vezes manifestada pela realização de festividades em datas comemorativas - por meio da realização de projetos isolados ou palestras ocasionais - do que efetivamente à subversão do racismo de forma estrutural no que concerne aos processos formativos na escola.
Essa forma de enfrentar o racismo, sem alterá-lo estruturalmente tem sido refletida por Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011), como uma concepção que se articula com o que McLaren (2000) denominou multiculturalismo liberal, em que há o reconhecimento no campo formal dos discursos oficiais da valorização da diversidade, mas não se alteram as relações de poder produtoras das desigualdades. Nesse sentido, o texto de apresentação do Plano de Implementação das DCNERER pontua a compreensão que alicerça seus princípios, ao chamar a atenção para que “o elogio à diversidade seja mais do que um discurso sobre a variedade do gênero humano” (BRASIL, 2009, p. 8). Tal afirmação implica não apenas em reproduzir nos PPPs os textos das normativas, mas pressupõe apontar as estratégias para materialização dos princípios da educação antirracista, mediada por processos formativos a partir da ERER.
As categorias racismo, preconceito ou discriminação figuraram nos textos dos PPPs de forma diversificada, de um modo geral manifestando perspectivas de combater esses problemas na escola. Por sua vez, o resultado da empiria, com base nos dados oriundos das entrevistas, demonstrou que 80% das(os) pedagogas(os) informaram ter existido casos envolvendo racismo, discriminação ou preconceito em suas escolas. Algumas situações narradas revelam o quanto é urgente a tarefa de promover a educação para as relações étnico-raciais como estratégia para combater o racismo e toda forma de preconceito, discriminação, xenofobia, homofobia e processos correlatos de opressão no contexto escolar. Tal panorama reitera-se em uma formação que oblitera essas discussões no âmbito do PPP a qual “privilegia um conhecimento em detrimento de outro” (SILVA, 2021). Essas práticas, já sublinhadas por Cavalleiro (2012), deixam marcas na constituição identitária de crianças e adolescentes, concorrendo para processos de baixa autoestima, podendo afetar seus desempenhos pedagógicos ou mesmo provocar evasão escolar.
Apesar da constatação dessas ocorrências nas escolas, observou-se ausência de propostas de ação nos PPPs para o seu enfrentamento. O termo "racismo" foi citado em apenas 02 PPPs. Em um por meio da referência registrada à data comemorativa de 13 de maio - Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo -, indicado no item Calendário Comemorativo. No outro, para destacar a visão sobre o papel da educação na promoção de reflexão das questões sociais, dentre elas o racismo, descrita em seus fundamentos epistemológicos. O termo "discriminação" foi citado em 03 PPPs, também no campo da sua “eliminação”, do “combate” e da “exclusão”. De forma similar ao racismo, esse termo foi mencionado para indicar uma data comemorativa - Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Nas outras duas passagens, figurou no campo das políticas dos direitos humanos. O termo citado com maior frequência foi "preconceito", presente em 06 PPPs, e também na perspectiva discursiva de sua “eliminação”, sem desdobramentos para práticas pedagógicas.
Reconhecemos que a inclusão desses itens nos PPPs configura um passo importante, podendo ser articulado à fase do seu reconhecimento (ROCHA, 2009), mas, para avançar, é fundamental que não apareçam apenas no plano prescritivo e abstrato. É necessário que sejam apontadas as estratégias pedagógicas para materializar o que expressam com “valorização” e “respeito” à diversidade e com “combater” o racismo, a discriminação e o preconceito nas escolas, sem as quais não passará de um plano de boas intenções prescritas, mas sem proposituras práticas.
As Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 foram citadas em contextos diferenciados em 05 PPPs, seguindo a mesma tendência de não explicitar estratégias para sua implementação. As DCNERER foram mencionadas em apenas 01 PPP, no plano do fundamento normativo de datas citadas no calendário comemorativo. Essas normativas também não foram indicadas nas "Referências" de nenhum PPP. Inferimos, portanto, que as mesmas não balizaram a feitura desses documentos de modo orgânico, figurando no plano da reprodução de aspectos aludidos como normas, em orientações emanadas para sua elaboração.
Veiga (2003, p. 270) destaca duas perspectivas para compreender o PPP a partir das inovações a serem nele introduzidas. Primeiramente, pontua a ótica da inovação regulatória ou técnica, instituída para evidenciar mudanças. Contudo, a mesma “[...] não produz um projeto pedagógico novo, produz o mesmo sistema, modificado”, que em outras palavras muda a aparência, mas não promove mudanças estruturais no próprio sistema. Por outro lado, a autora destaca a perspectiva emancipatória ou edificante do PPP, quando a introdução das inovações produz mudanças de ordem estrutural e promove a reorganização da escola a partir do novo sistema.
Em resumo, a inovação emancipatória ou edificante pressupõe uma ruptura que, acima de tudo, predisponha as pessoas e as instituições para a indagação e para a emancipação. Consequentemente, a inovação não vai ser um mero enunciado de princípios ou de boas intenções... [...] Este ponto é de vital importância para se avançar na construção de um projeto político-pedagógico que supere a reprodução acrítica, a rotina, a racionalidade técnica, que considera a prática um campo de aplicação empirista, centrada nos meios. (VEIGA, 2003, p. 275).
Nessa mesma direção, Gomes (2012, p. 24) lembra que as normativas antirracistas combatem o racismo estruturalmente presente nas escolas “[...] e com o mito da democracia racial extremamente arraigados no bojo do processo de escolarização e no imaginário de profissionais da educação em todos os níveis da educação brasileira”. Logo, ao pautar a temática da ERER nos PPPs apenas fazendo constar as normativas, por certo que ocorrem atualizações formais nesses documentos, mas nos limites prescritivos de uma inovação regulatória ou técnica (VEIGA, 2003).
Considerar a concepção emancipatória ou edificante como perspectiva de inclusão dessas pautas no PPP implica que as intervenções empreendidas para lidar com as situações cotidianas, envolvendo práticas racistas ou de preconceito e discriminação, se deem alicerçadas aos princípios da educação antirracista. Nesse contexto, ao analisar alguns relatos das entrevistas relacionados às situações de ocorrências dessa natureza, constatou-se que, em alguns discursos, essas práticas foram associadas à “brincadeira”. Isso se deve, provavelmente, por ser mais “aceitável” entender certos comportamentos de crianças e adolescentes no contexto do Ensino Fundamental pelo ângulo do “lúdico”. Esse aspecto está na mesma dimensão da negação dos problemas e contradiz os discursos assumidos do ponto de vista formal nos textos dos PPPs, traduzidos em termos como “combate”, “eliminação” ou “exclusão” dessas manifestações na escola.
Vale lembrar que, historicamente, convive-se com tentativas de negação da existência do racismo no Brasil, e o silenciamento tem sido uma estratégia para negá-lo. Nesse processo, também temos observado uma tendência em usar termos atenuantes para essas ocorrências na escola e considerá-las dentro do rótulo da “brincadeira”. Tal incidente torna-se um campo que legitima a perpetuação de tais ações quando não são abordadas pedagogicamente de forma pontual e qualificada (COELHO; SILVA, 2017). Uma pedagoga assim comentou: “[...] eu tive uma situação com aluno, essa questão de brincadeira. Como eu falei para eles: ‘não importa que seja só uma brincadeira, mas ofende” (Entrevista 01/pedagoga). Tal aspecto foi abordado por Fonseca (2014) como uma característica do que chamou de “racismo à brasileira”; por Moreira (2020), como “racismo recreativo”; e por Nascimento (2016), como “racismo mascarado”. Nessa linha, as piadas racistas são naturalizadas e reforçam os mecanismos que reproduzem a negação do racismo.
Outra forma é tratar os casos de racismo como bullying, também observado em alguns relatos, o que continua sendo um processo de negação, que tende a ser tratado indistintamente no contexto escolar. Dias, Rodrigues e Magedanz (2022, p. 24) fazem uma diferenciação entre essas manifestações, que, embora ambas tenham violência, física ou simbólica, como base, e certamente precisam ser igualmente combatidas, são processos socialmente forjados de modo distinto, visto que “[...] o racismo possui ainda um caráter simbólico e estrutural. Historicamente, o racismo está cristalizado no imaginário social e, durante muitos anos, foi culturalmente aceito [...].” Logo, o seu reconhecimento é o primeiro passo, e trata-se de um começo importante, sem o qual todo o resto se limita às efemérides nas escolas e à celebração da diversidade, conforme já referido. Porém, é preciso avançar a partir do seu reconhecimento para promover a sua superação. Portanto, estratégias para combater o racismo devem ser planejadas e inseridas nos planos de ação dos PPPs, no sentido de promover uma educação que seja antirracista. A formação continuada das equipes escolares é uma estratégia central para impulsionar práticas pedagógicas comprometidas com seus princípios, com fundamento na legislação e na literatura especializada (COELHO; SILVA, 2017).
Embora não tenham sido observadas estratégias pedagógicas sistematizadas nos PPPs para combater o racismo, o preconceito e a discriminação, as(os) pedagogas(os) informaram nas entrevistas como são abordados os casos que chegam ao seu conhecimento. Em geral, as intervenções são realizadas à medida que surge uma demanda para ser resolvida, conforme citou uma pedagoga: “[...] quando a gente tem alguma situação, a gente discute, a gente vê qual o melhor meio de resolver o conflito naquele momento” (entrevista 04/pedagoga). Portanto, não são ações planejadas, sistematizadas ou previstas nos PPPs. Embora possuam valor pedagógico de intervenção por não deixar passar os casos sem encaminhamentos, tendem a resolvê-los apenas momentaneamente, não da forma que leve a processos contínuos mais amplos de reflexão dessas questões e envolvam outros atores escolares.
A abordagem pedagógica majoritária ocorre por meio de conversas com as(os) discentes envolvidas(os) nessas situações, e em alguns casos também de forma coletiva com a sua turma ou responsáveis. Em menor proporção, foram citadas outras formas de encaminhamentos, como a realização de atividades pelos alunos, do tipo: pesquisas temáticas, apresentação de trabalhos de pesquisas, redação, leitura de textos ou circunstancialmente por meio de rodas de conversa.
A conversa com as partes envolvidas mostrou-se a abordagem principal, especialmente em função do aspecto relacional que implica o ato dialógico. Um pedagogo comentou esse aspecto da seguinte forma: “Então, eu proponho envolver todo mundo para que isso seja resolvido ali. Então geralmente não se repete, mas acontece com outros alunos [...].” (Entrevista 02/pedagogo). Assim, mesmo que esse tipo de intervenção resolva uma situação pontual e momentânea, o ciclo tende a se repetir com outros envolvidos. Isso nos remete ao pensamento de Almeida (2022, p. 34), que aborda três concepções de racismo 9, o qual, em sua perspectiva individualista, se limita em focalizar as ações de indivíduos (ou grupos), em uma análise mais patológica (ou de anormalidade) e menos política, concorrendo para invisibilizar a existência de instituições e sociedades estruturalmente racistas. Assim, focaliza o sintoma, mas não se reflete sobre sua causa.
Para o enfrentamento do racismo estrutural, da discriminação e do preconceito, além do necessário diálogo como ponto de partida nas abordagens pedagógicas em situações emergentes, são necessárias ações planejadas, sistematizadas e institucionalizadas no PPP, a fim de orientar ações mais amplas e coletivas na escola, para promover avanços nessa área. Quando o PPP for elaborado coletivamente, a partir das necessidades e características das diversidades presentes na escola, irá superar configurações meramente prescritivas, passando a se constituir em forma e conteúdo para os empreendimentos formativos na escola, e como referência para as práticas pedagógicas antirracistas.
Considerações finais
A publicação das Leis nº 10.639/03, nº 11.645/08 e das DCNERER, fomentaram processos reflexivos para promover a implementação dessas normativas de forma qualificada nas escolas. Pesquisas como as de Coelho et al. (2022) e Coelho, Regis e Silva (2021) têm destacado que a inclusão da ERER nos PPPs constitui uma estratégia importante para sua institucionalização e para os avanços na área, mediada por processos formativos dos agentes escolares, com apoio na literatura especializada e na legislação vigente.
Concebido como norteador das práticas pedagógicas, o PPP representa um documento central para subsidiar as equipes gestoras na organização do trabalho escolar e servir de referência para as ações docentes. Pensado dessa maneira, tal como aludido na literatura especializada (VEIGA, 2003; 2013), esse documento deve expressar a intencionalidade das(os) agentes escolares em relação aos fins desejados. Dito isso, destaca-se que as coordenações pedagógicas exercem papel formador e articulador na construção dos PPPs, visto ser uma tarefa coletiva. Isso implica mediar os processos na etapa de planejamento, acompanhar a sua execução no cotidiano escolar e promover processos de avaliação frequentes. Nesse sentido, é primordial que a(o) pedagoga(o) esteja em constante articulação com sua equipe e que o trabalho colaborativo se constitua uma meta, embora nem sempre seja fácil de ser alcançada nem esteja livre de tensionamentos, pois implica romper a cultura da fragmentação do trabalho escolar e organizá-lo em bases mais coletivas (VEIGA, 2013).
De modo geral, evidenciou-se que há referência às questões sobre a ERER e diversidade nos PPPs analisados, com ocorrência diferenciada em cada documento, mas somente em 01 PPP foram mencionadas as DCNERER, ainda assim, figurando no plano de fundamento normativo para a indicação de datas comemorativas. Em 05 PPPs se observou referência às Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, mas no plano do seu reconhecimento formal. Em alguns casos, foram observados desdobramentos práticos a partir da temática da diversidade, como a realização de projetos pontuais ou palestras para estudantes.
Categorias como diversidade, diferença, racismo, preconceito e discriminação foram observadas em alguns PPPs, mas circunscritas aos aspectos abstratos no campo da reprodução de discursos de “valorização” e de “respeito” às diversidades ou na perspectiva de “combater” ou “eliminar” o racismo, o preconceito e a discriminação. Todavia, de modo majoritário, não foram evidenciadas estratégias estruturantes para sua materialização nas práticas pedagógicas.
Os dados indicam, ainda, que há omissão nos PPPs da caracterização do perfil étnico-racial das(os) estudantes, o que invisibiliza nesses documentos as identidades presentes nos espaços escolares, indo de encontro às formulações sobre valorização e respeito às diversidades, preconizadas nos PPPs analisados. De modo análogo, também não foram indicadas nas Referências dos PPPs analisados as normativas na área da ERER, o que nos leva a inferir que a legislação antirracista não balizou a elaboração desses documentos de modo orgânico, apesar de haver o registro às Leis nº 10.639/03, nº 11.645/08 e às DCNERER no corpo de alguns PPPs.
Concluímos ser necessário avançar em práticas pedagógicas para implementar as DCNERER. Para tal, não se pode alegar ausência de materiais ou de estudos, visto que no decurso desses 20 anos, desde a publicação da Lei nº 10.639/2003, observamos o crescimento de produções científicas nesse campo, as quais impulsionaram os avanços teóricos, publicações de materiais pedagógicos para subsidiar ações nas escolas, dentre outras iniciativas subsidiárias. Além disso, evidenciaram-se normativas no campo das políticas públicas em consonância com os princípios da educação antirracista. Por outro lado, pesquisas indicam que ainda há desconhecimento das legislações pelos/as agentes escolares (COELHO et al., 2022), o que concorre para o necessário investimento em processos formativos para promover os avanços esperados.
Por fim, evocando o pensamento de Nelson Mandela, extraído de seu livro autobiográfico El largo camino hacia la libertad, destacamos que a educação, em especial a educação formal realizada nas escolas, é ação que se quer coletiva e planejada. Visando o desenvolvimento de PPPs, pontua-se que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, sua origem ou por sua religião. O ódio se aprende, e se é possível aprender a odiar, também é possível aprender a amar.” (MANDELA, 2012, p. 7-8, tradução nossa).
A citação de Mandela nos leva a refletir e a crer que uma educação antirracista é possível, pois a escola é uma instituição formadora de gerações e lugar de aprendizagem de conhecimentos, saberes, valores, crenças e de perspectivas de mundo. Essa concepção ultrapassa os limites da racionalidade técnica e promove a reflexão radical dessas questões na escola, a partir de suas problemáticas. Portanto, para se promover avanços na implementação das DCNERER, as inovações a serem introduzidas no PPP devem superar a dimensão regulatória ou técnica e se darem em perspectiva emancipatória (VEIGA, 2003), objetivada com estratégias para dar concretude aos princípios e diretrizes da ERER. Para tal, é basilar investimentos em formação continuada para as coordenações pedagógicas na área da ERER, como estratégia para fomentar a construção de PPPs que expressem princípios e direcionamentos práticos articulados às diretrizes da educação antirracista.