Introdução
Com o advento da Nova Gestão Pública (NGP), a partir do movimento de reformas dos Estados nacionais das décadas de 1980 e 1990, princípios gerenciais passaram a orientar a formulação das políticas públicas no Brasil. No que se refere à formulação de políticas educacionais, tem sido uma tendência a adoção da accountability em Educação, cujos pilares são a avaliação do desempenho, a prestação de contas e a responsabilização (AFONSO, 2009). Conforme Bonamino e Sousa (2012), a responsabilização educacional pode ser classificada como branda, cujas consequências são simbólicas, ou forte – material ou financeira –, como é o caso dos incentivos financeiros atrelados ao desempenho dos estudantes nas avaliações externas de larga escala. A cultura de pagamento de incentivos financeiros de acordo com os resultados das avaliações tem implicado mudanças nas dinâmicas da escola pública e, por conseguinte, a reestruturação do trabalho docente da Educação Básica (EB) pública brasileira em suas múltiplas dimensões – formação, carreira, práticas pedagógicas em sala de aula etc. –, além de contribuir para o aumento da cobrança por produtividade na medida em que metas de desempenho cada vez mais altas são estabelecidas.
Soma-se a esse contexto de profundas mudanças na Educação e no trabalho docente da EB pública brasileira, a crise causada pela pandemia de Covid-19, que impôs inúmeros desafios às escolas, aos gestores, aos docentes e aos estudantes em escala global. Uma das medidas adotadas por muitos países para conter a propagação do vírus SARS-CoV-2 e garantir a continuidade das atividades educativas durante o isolamento social foi a adoção do Ensino Remoto Emergencial (ERE). Contudo, sem formação adequada para os profissionais da Educação e para os estudantes quanto ao manejo das novas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs), além da grande desigualdade no que se refere ao acesso à internet de banda larga, o período de ensino remoto revelou inúmeros problemas sociais, como desigualdades, a exclusão digital e social, a precariedade das condições de trabalho docente nas redes públicas, entre outros.
No caso do Ceará, que apresenta um forte índice de desigualdade socioeconômica, o ERE impôs muitos desafios às instituições educativas, especialmente em contextos de alta vulnerabilidade social. Diante desse cenário, questiona-se: “De que forma o ERE afetou o trabalho docente da EB pública cearense durante a pandemia de Covid-19?”. Para responder a esse questionamento, definiu-se como objetivo geral analisar os efeitos do ERE no trabalho docente da EB pública cearense. Para tanto, definiu-se os seguintes objetivos específicos: 1) contextualizar o trabalho docente da EB pública cearense no contexto da NGP; 2) investigar os desafios impostos pelo ERE ao processo de trabalho docente da EB pública cearense durante a pandemia de Covid-19; 3) discutir os efeitos do ERE nas professoras e nos professores da EB pública cearense.
Este texto está estruturado em três seções, além desta introdução, da metodologia e das considerações finais. A primeira seção relaciona a NGP à reestruturação do trabalho docente na EB pública cearense. A segunda apresenta os desafios impostos pelo ERE ao processo de trabalho docente da EB pública cearense no cerne da pandemia de Covid-19, bem como os efeitos nas professoras e nos professores das escolas públicas cearenses. A terceira discute os desafios impostos pelo período pandêmico ao processo de trabalho docente e as implicações desse contexto no corpo docente da EB pública cearense. Por fim, nas considerações finais, são apresentados desafios e possibilidades de enfrentamento no contexto pós-pandêmico.
Metodologia
De abordagem qualitativa, esta pesquisa está ancorada no Materialismo Histórico-Dialético e se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica e documental. O objetivo geral foi analisar os efeitos do ERE no trabalho docente da EB pública cearense. Para tanto, procedeu-se a um levantamento de dados a partir das seguintes palavras-chave e/ou descritores: trabalho docente; educação básica; políticas educacionais; Nova Gestão Pública; educação básica cearense; pandemia; e ensino remoto emergencial. Entre os diversos artigos e relatórios técnicos selecionados nas bases de dados, dois estudos se destacaram pela relevância: a pesquisa Trabalho Docente em Tempos de Pandemia (GESTRADO, 2020), realizada pelo Grupo de Estudos Sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); e um artigo oriundo de pesquisa realizada por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021).
A pesquisa do Gestrado (GESTRADO, 2020) buscou conhecer os efeitos das medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia da Covid-19 sobre o trabalho docente da EB das redes públicas estaduais, municipais e federal de todos os estados brasileiros. Essa pesquisa, realizada por meio de questionário on-line disponibilizado no período de 8 a 30 de junho de 2020, contou com a participação de 15.654 professores das redes públicas da Educação Básica. Do total de respondentes, 2.235 são cearenses, a maior amostra entre todos os estados.
Já a pesquisa realizada pelos pesquisadores da UFC (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021) contou com a participação de 323 (trezentos e vinte e três) docentes e gestores de escolas públicas, localizadas em Fortaleza e na região metropolitana, em cidades do Cariri cearense, do Litoral Leste, de municípios do Vale do Jaguaribe e do Sertão dos Inhamuns. A grande maioria dos participantes é regente de turma, o que corresponde a 303 (ou 94,0%) do total da amostra; os demais são diretores ou fazem parte da coordenação pedagógica, representando algo em torno de 20 (ou 6,0%) do total da amostra. A pesquisa foi realizada por meio de questionário on-line, composto por perguntas de múltipla escolha e questões abertas, disponibilizado para participação a partir de agosto de 2020.
As categorias analíticas foram definidas a partir de dois eixos: 1. as condições objetivas e subjetivas de trabalho docente da EB pública cearense na pandemia da Covid-19; e 2. os efeitos do ERE no trabalho docente da EB pública cearense. A partir de pesquisa bibliográfica e documental, foram definidas as seguintes subcategorias: Eixo 1 – suporte e formação para a utilização das tecnologias digitais no ERE; jornada de trabalho docente durante a pandemia, novas exigências e aumento da pressão sobre os sujeitos docentes. Eixo 2 – Intensificação do trabalho docente, impactos na subjetividade e adoecimento docente durante a pandemia da Covid-19; trabalho docente, ERE e relações de gênero.
Nova Gestão Pública e o Processo de Reestruturação do Trabalho Docente na EB Pública Cearense
As reformas educacionais realizadas no Brasil, em geral, e no Ceará, em particular, a partir dos anos de 1990, sob orientação dos princípios da NGP, fazem parte de um conjunto de estratégias que visam à consolidação de um projeto de sociabilidade neoliberal. A NGP “pode ser definida como um programa de reforma do setor público com base em instrumentos da gestão empresarial que visa melhorar a eficiência e eficácia dos serviços públicos nas burocracias modernas” (MARQUES, 2020, p. 2). Com o advento da NGP no país, princípios gerenciais passaram a orientar a formulação das políticas públicas da Educação. Nesse contexto, tendências como a accountability ganham centralidade no campo educacional brasileiro, notadamente a partir da criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no contexto de implantação do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) no ano de 2007.
O Ceará tem sido um dos precursores no que se refere à adoção da accountability em Educação que, em sua face mais perversa, vincula a transferência de recursos financeiros aos indicadores de desempenho em aprendizagem discente. Na experiência cearense, a accountability está articulada à Gestão por Resultados (GpR), modelo de gestão implantado em 2007 (CEARÁ, 2007). Alinhado aos pressupostos da NGP, o modelo de GpR é inspirado nos princípios da Teoria da Qualidade total, cujos pilares são o controle dos processos, tendo como foco os resultados, e a responsabilização. Nesse cenário, os resultados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece) passaram a ser utilizados como referência para fins de premiação ou de bonificação de escolas e de seus profissionais, além de servir como parâmetro para a redistribuição dos recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Por meio da Lei nº 14.023/2007 (CEARÁ, 2007), estabeleceu-se que 18% da parcela dos recursos do ICMS destinada aos municípios cearenses deveriam ser distribuídos de acordo com o Índice Municipal de Qualidade Educacional (IQE), indicador semelhante ao Ideb, cuja finalidade é determinar o volume de recursos que cada município receberá conforme seu desempenho na Educação. Essa medida é parte das estratégias adotadas pelo governo do Ceará com o intuito de incentivar os municípios a elevarem seus indicadores educacionais.
Além dessa iniciativa de accountability, o governo do Ceará criou outras medidas com o propósito de melhorar os resultados de aprendizagem dos estudantes nas avaliações externas, a saber: o Programa de Alfabetização na Idade Certa(Paic) (CEARÁ, 2007), política pública educacional estruturante instituída com o objetivo de apoiar os municípios, em regime de colaboração, na alfabetização e na aprendizagem dos alunos na idade certa; o Prêmio Escola Nota Dez (CEARÁ, 2015), iniciativa vinculada ao Paic com a finalidade de premiar as escolas municipais com os melhores resultados de aprendizagem no segundo, no quinto e no nono anos do ensino fundamental; e o Prêmio Aprender pra Valer, criado em 2009, e substituído pelo Prêmio Foco na aprendizagem, instituído pela Lei nº 16.448/2017 (CEARÁ, 2017) com o propósito de premiar os profissionais das escolas da rede estadual que atingissem as metas estabelecidas.
Tais iniciativas caracterizam-se como estratégias de indução ou mecanismos de regulação, uma vez que buscam orientar, coordenar e controlar a dinâmica dos sujeitos e das instituições no interior dos sistemas educativos (MAROY, 2011). Segundo Araújo (2016), as políticas de accountability repercutem nas dinâmicas pedagógicas e implicam uma reestruturação do trabalho docente das redes públicas de ensino em suas múltiplas dimensões (ARAÚJO, 2016), além de contribuírem para a precarização e para a intensificação do trabalho docente (OLIVEIRA, 2006). Como consequências dessas políticas, observa-se o aumento da pressão por produtividade, a reorientação das práticas pedagógicas em sala de aula, a perda relativa da autonomia dos professores e das professoras e a intensificação do trabalho docente devido ao estabelecimento de metas cada vez mais altas em um contexto de grande precariedade.
Soma-se a esse contexto de profundas mudanças da EB pública cearense a crise pandêmica que provocou impactos no trabalho docente, aprofundando os processos de precarização e de intensificação em curso em virtude das reformas neoliberais implementadas nas últimas décadas no contexto da NGP.
Desafios Impostos pelo Ensino Remoto Emergencial ao Processo de Trabalho
Docente da Educação Básica Pública Cearense e os Efeitos nos Sujeitos Docentes
Suporte e formação para utilização das tecnologias digitais no ensino remoto
De acordo com os dados da pesquisa do Gestrado (GESTRADO, 2020), disponíveis no site do G1CE, 91,0% dos docentes da EB do Ceará nunca haviam ministrado aulas remotas antes do período da pandemia. A seguir, os dados mostram que não houve qualificação adequada para utilização das tecnologias digitais no ensino remoto, tampouco suporte por parte do governo. Seguem os dados referentes ao suporte e à formação para o uso das TIDICs:
Para 61,9% dos cearenses, o processo de dar aulas online é tocado por conta própria. Outros 16,4% dizem ter acesso a tutoriais online sobre como utilizar as ferramentas virtuais; 9, 5 % têm formação oferecida pela Secretaria da Educação; 7,2% são assistidos por outra instituição; e 4,9%, pela própria escola (G1CE, 2020)
Conforme os dados acima, a maioria dos docentes cearenses afirmou não ter recebido formação adequada para dar aulas remotas, totalizando 61,9 % do total de participantes da pesquisa realizada pelo Gestrado. Os demais (38,1%) afirmaram ter tido algum tipo de formação, seja oferecida pela Secretaria da Educação, seja oferecida por outra instituição ou pela própria escola, ou por meio de tutoriais disponibilizados na internet. Segundo os pesquisadores da UFC (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021), a maior parte dos(as) participantes da pesquisa, representada por aproximadamente (67,0%) dos(as) professores(as), afirmou não ter recebido treinamento para realização das aulas remotas. De acordo com os autores, mais da metade dos(as) respondentes afirmou não ter tido apoio técnico-pedagógico da instituição em que trabalham, conforme os dados explicitados a seguir:
(52%) dos(as) respondentes afirmaram que não receberam nenhum tipo de apoio, tampouco orientação pedagógica; foram meramente informados dos horários das aulas virtuais. Os demais (47%), fizeram menção aos rápidos treinamentos para facilitar o uso de plataformas online em função da necessidade de inserção de registros gerais, especialmente: conteúdos, material de apoio didático, frequência, resultados de avaliações; utilização de tecnologias e de planilhas online de checagem das atividades feitas pelos estudantes; uso do Zoom, Google Meet e Google Classroom e cursos de utilização de ferramentas digitais (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021, p. 1021-1022).
Assim, diante dos inúmeros desafios impostos pelo contexto pandêmico, para mais da metade dos(as) participantes da pesquisa, não houve apoio institucional adequado no que se refere à realização das aulas na modalidade remota.
Jornada de trabalho durante a pandemia da Covid-19, novas exigências e aumento da pressão sobre trabalhadores e trabalhadoras docentes
De acordo com os dados da pesquisa da UFC, quando indagados(as) se houve mudança na rotina de trabalho, 99,0% dos(as) participantes responderam que houve mudança sobretudo na carga horária diária. Seguem os dados:
Foi identificado que, para (17%) dos(as) docentes o trabalho aumentou, porém, o aumento foi inferior a três horas; já uma quantidade de (24%) dos participantes passou a trabalhar três horas a mais, dia após dia; enquanto (23%) afirmaram que trabalham cinco horas a mais do que trabalhavam na forma presencial; e, finalmente (36%) dos(as) trabalhadores(as) informaram que trabalham mais de horas por dia, além do que já trabalhavam, perfazendo 6 ou 7 horas da jornada normal de trabalho (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021, p. 1019).
Desse modo, conforme os dados acima, além da falta de suporte e de formação adequada para o manejo das tecnologias digitais, os(as) professores(as) cearenses sentiram uma intensificação na jornada de trabalho em relação ao ensino presencial.
No que se refere ao aumento das exigências durante a pandemia, houve uma intensificação das cobranças por parte da direção da escola, conforme citação a seguir:
Muita cobrança em relação a documentar todo o processo de aulas remotas, planejamentos e relatórios, seguindo formatações rigorosas, tendo que ter habilidades tecnológicas de uma hora para outra, sem oferecer nenhum suporte e acolhimento, é assim, se vira, se não ficará sem pagamento (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021, p. 1020).
Conforme a citação acima, percebe-se que houve um aumento das exigências no sentido de registrar todo o processo de planejamento e as aulas remotas ministradas durante a pandemia.
Intensificação do trabalho docente, impactos na subjetividade e adoecimento docente
De acordo com os dados da pesquisa do Gestrado, houve uma intensificação do trabalho na percepção de 82,4% dos respondentes, os quais afirmaram ter havido um aumento das horas de dedicação para preparar as atividades pedagógicas à distância em comparação ao trabalho presencial (OLIVEIRA; PEREIRA JR., 2020). No caso dos(as) professores(as) cearenses, quando indagados(as) sobre as mudanças ocorridas na rotina de trabalho diante do ERE, destacaram-se algumas respostas:
Maior tempo para dar explicações, preciso estar disponível 24h [...). Tem a necessidade de se reinventar todo o tempo e de tornar as aulas dinâmicas e interessantes [...). Tudo mudou: planos de aula, metodologias, formato das aulas. Aumentou a cobrança do registro de atividades na plataforma da escola [...). É pressão toda hora para dar assistência aos alunos em horários extra (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021, p. 1020).
Com base nas respostas, percebe-se que houve intensificação da carga de trabalho e aumento das horas trabalhadas durante a pandemia pela necessidade de atender às novas exigências do período pandêmico.
Em relação aos impactos no trabalho docente, os dados mostram que o ERE levou os profissionais a situações de extremo estresse, de esgotamento físico e falta de motivação, afetando a subjetividade e até mesmo a saúde dos professores e das professoras cearenses. Quanto aos impactos na saúde, ao serem inquiridos se sofrem com algum problema de saúde, foram obtidas as seguintes respostas: “(57%) sofrem de ansiedade; (4%) têm depressão; (39%) têm insónia frequentemente” (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021, p. 1029).
Trabalho Docente, Ensino Remoto Emergencial e Relações de Gênero
Ao discutir questões relacionadas ao trabalho docente é imprescindível levar em consideração a categoria de gênero, uma vez que a profissão docente é constituída majoritariamente por mulheres. Segundo o Inep, de um total de 2.226.423 de professores(as) que atuavam na EB no Brasil em 2020, 1.780.000 são mulheres (INEP, 2021). De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD Contínua) (IBGE, 2019), que abrangeu o período de 2012 a 2018, do contingente de profissionais ocupando a função docente na EB, a participação das mulheres era acentuada entre os(as) professores(as) do Ensino Fundamental (EF), representando um percentual de 84,0% desse contingente. Tendo em vista a predominância feminina na categoria docente, sobretudo nos anos iniciais do EF, é relevante apresentar os dados desagregados de acordo com o gênero.
Conforme os dados do Censo Escolar da EB cearense de 2020 (INEP, 2021), foram registrados 97.383 docentes que atuavam nesse nível. Desse contingente, 26.598 professores(as) atuavam na Educação Infantil (EI), 56.869 no EF, sendo que 31.538 atuavam nos anos iniciais e 30.790 nos anos finais do EF. No Ensino Médio (EM), foram registrados 18.864 docentes atuando nessa etapa. Ao desagregar os dados segundo o sexo e a faixa etária, é possível observar que a maior parte do corpo docente que atuava na EB do Ceará no início da pandemia era do sexo feminino e tinha entre 30 e 49 anos de idade. Vejamos o Gráfico 1 a seguir:
De acordo com o Gráfico 1, é possível observar a discrepância de gênero na Educação Infantil, o que demonstra que as mulheres representam quase a totalidade dos docentes atuantes nesse nível de ensino. Observa-se que nas duas faixas etárias que comportam o maior número de docentes – 30 a 39 e 40 a 49 anos de idade – o sexo masculino representa em torno de apenas 2,0% do total de professores. O próximo gráfico apresenta situação semelhante.
Assim como a presença feminina é quase absoluta na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental observa-se situação semelhante, ainda que o número de docentes do sexo masculino seja mais significativo que na Educação Infantil, isso porque nas duas faixas etárias mais numerosas – 30 a 39 e 40 a 49 anos de idade – esses profissionais representam os percentuais de 14,6% e 10,9%, respectivamente.
No Gráfico 3, a seguir, é possível observar que a discrepância de gênero diminui, mas a presença feminina continua predominante.
O Gráfico 3 apresenta uma elevação percentual do número de professores do sexo masculino nos anos finais do Ensino Fundamental nas faixas etárias mais representativas – 30 a 39 e 40 a 49 anos –, quando o segmento masculino representa 39,0% e 34,5%, respectivamente. Esse último gráfico nos auxilia a perceber que a presença masculina vai aumentando à medida que o nível de ensino se eleva. Esse fenômeno, denominado pela literatura de feminização do trabalho docente, é percebido não só quando se analisa a constituição da profissão docente, mas também está presente em outras atividades profissionais consideradas femininas, visto que frequentemente são relacionadas às funções de cuidados atribuídas às mulheres, como é o caso da docência desempenhada nos primeiros anos de escolarização.
É interessante observar que no EM a situação varia no que diz respeito à presença majoritária feminina, ainda que ocorra um certo equilíbrio percentual. Enquanto na EI e no EF a presença feminina é mais forte, no EM ocorre o inverso. Vejamos o Gráfico 4 a seguir:
No EM, a presença masculina é superior à feminina em todas as faixas etárias, sobretudo nas que concentram um quantitativo maior de profissionais, que correspondem aos professores e às professoras com idade entre 30/39 e 40/49 anos, nas quais o sexo masculino representa 50,3% e 52,4%, respectivamente. Diferentemente das demais etapas, a quantidade de docentes do sexo masculino é superior no EM, mesmo que a conformação percentual denote um certo equilíbrio entre os sexos nesse estágio. Nessa última etapa, o sexo masculino tem uma superioridade pequena, ainda assim, o número de docentes do sexo feminino na EB do Ceará continua superior ao quantitativo de professores do sexo masculino.
A apresentação dos dados referentes ao sexo justifica-se pela importância de analisar a docência como uma categoria profissional constituída majoritariamente por mulheres, o que não pode ser desconsiderado sob o risco de ocultar um aspecto relevante da condição docente na realidade brasileira. Nesse sentido, para analisar os efeitos do ERE no trabalho docente da EB pública cearense, é imprescindível levar em conta, entre outros aspectos, as relações de gênero. Isso porque a pandemia provocou um impacto maior no trabalho e na vida das professoras cearenses, uma vez que, durante o período de isolamento social, houve uma intensificação do trabalho desempenhado pelas mulheres tanto no que concerne às atividades laborais remuneradas quanto às atividades domésticas, historicamente atribuídas às mulheres.
Uma pesquisa realizada pelo Gestrado (GESTRADO/UFMG) em parceria com a Rede Latinoamericana de Estudios sobre Trabajo Docente (Red Estrado) e com a Internacional de la Educación para América Latina (IEAL), que abrangeu 12 países da América Latina, incluindo o Brasil, confirma a presença predominante de mulheres nessa categoria profissional (OLIVEIRA; PEREIRA JR.; CLEMENTINO, 2021). Segundo a pesquisa, em todos os países investigados, há uma “predominancia de docentes del sexo femenino en las escuelas públicas, la menor participación de mujeres fue registrada en Colombia (62%) y, la mayor, en México (82%)” (OLIVEIRA; PEREIRA JR.; CLEMENTINO, 2021, p. 39). Assim, desconsiderar a especificidade de gênero ao analisar o trabalho docente é negar a materialidade da constituição da profissão docente.
Araujo e Yannoulas (2020), com base na pesquisa do Gestrado/CNTE (GESTRADO, 2020), sistematizaram e analisaram os dados tendo em vista as relações de gênero. Na pesquisa do Gestrado (GESTRADO, 2020), as mulheres representaram 78,0% de um total de 15.654 respondentes. Esse percentual representa a realidade da função docente no Brasil, que é amplamente desempenhada por mulheres. A seguir, seguem os dados desagregados por gênero pelas autoras: ao serem questionadas se já tinham alguma experiência anterior ministrando aulas remotas, a maioria das professoras respondeu que não possuía experiência prévia com aulas não presenciais, o que corresponde a 90,1% dos participantes da pesquisa; quando questionadas sobre a familiaridade com o uso de tecnologias, entre os respondentes que afirmaram ter dificuldade ou muita dificuldade, as mulheres demonstraram ter mais dificuldade do que os homens quanto ao manejo das tecnologias digitais, sendo que 85,0% das professoras consideraram difícil e 85,6% consideraram muito difícil a utilização das TIDICs;
Outro fator relevante explicitado ao desagregar os dados por gênero diz respeito ao compartilhamento de dispositivos eletrônicos com outras pessoas da família no período de isolamento social. Enquanto 52,6% das professoras tinham que compartilhar os aparelhos com outros membros da família, tendo um tempo mais limitado para realizar as atividades laborais no âmbito doméstico, 45,0% dos professores do sexo masculino precisavam compartilhar os recursos tecnológicos disponíveis com alguém da família (ARAUJO; YANNOULAS, 2020). Essa realidade não é específica do Brasil pois, segundo os dados da pesquisa do Gestrado (OLIVEIRA; PEREIRA JR.; CLEMENTINO, 2021) realizada nos 12 países da América Latina, a situação foi mais desfavorável para as professoras, uma vez que 55% delas necessitavam compartilhar os dispositivos contra 51% em relação aos professores do sexo masculino; Em relação à percepção quanto ao aumento das horas trabalhadas, embora a maioria tenha afirmado que houve aumento na quantidade de horas de trabalho, as mulheres (83,3%), mais do que os homens (79,6%), apresentaram tal percepção.
Em relação à realização das tarefas domésticas no período de ensino remoto, do total de respondentes dos 12 países pesquisados, “enquanto 64% dos professores dividem essa tarefa com outras pessoas da casa, somente 39% das professoras têm ajuda de outros. Ou seja, 61% das docentes mulheres são as únicas responsáveis pelas tarefas do lar” (OLIVEIRA; PEREIRA JR.; CLEMENTINO, 2021, p. 21). Conforme os dados apresentados, é possível afirmar que as professoras foram as mais afetadas pela pandemia em comparação aos professores do sexo masculino.
Os Efeitos do Ensino Remoto Emergencial no Trabalho Docente da Educação Básica Pública Cearense
Em relação aos desafios impostos pela pandemia ao processo de trabalho docente da EB pública cearense, os dados mostram que houve uma intensificação dos processos de precarização e de intensificação do trabalho docente, tendo em vista o aumento da jornada de trabalho durante o período de realização de atividades remotas, a ausência de suporte para a utilização das novas TIDICs, as novas exigências e o aumento da pressão sobre os docentes após a instauração da pandemia da Covid-19. Os resultados apresentados na seção anterior permitem afirmar que as professoras cearenses, sobretudo as professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, foram as mais afetadas pelos desafios impostos ao trabalho docente no período de ensino remoto. Tal conclusão foi possível porque aspectos particulares da realidade concreta do trabalho docente da EB pública cearense foram considerados na análise como, por exemplo, a caracterização do corpo docente que atuou no ensino público do Ceará no período da pandemia, tendo em vista as variáveis de sexo e faixa etária.
Conforme Araújo e Yannoulas (2020), é possível perceber fatores complicadores para a realização das atividades docentes remotas pelas mulheres, tais como: a necessidade de compartilhar os aparelhos eletrônicos, uma vez que muitas professoras também são mães e precisaram dividir os dispositivos com os filhos; menos tempo disponível para aprender como manejar as novas TIDICs; a ausência de ajuda para realização das tarefas domésticas, entre outros fatores. Essas especificidades referentes ao trabalho docente desempenhado pelas mulheres no período analisado devem ser explicitadas a fim de que a situação específica vivenciada pelas professoras não seja apagada ou naturalizada.
Em relação aos impactos do ERE nos professores e nas professoras cearenses, os resultados apresentados revelaram o aprofundamento da intensificação do trabalho docente durante a pandemia da Covid-19 e, por conseguinte, um forte impacto na subjetividade e na saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras dessa categoria profissional (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021). As precárias condições objetivas e subjetivas de trabalho docente desenvolvido em um contexto socioeconómico adverso representam um fator de impacto relevante na subjetividade e na saúde desse segmento da categoria docente. Tais aspectos da realidade particular investigada, somados aos desafios impostos pela pandemia da Covid-19 ao processo de trabalho docente em escala global, incidiram sobre o trabalho docente da EB pública cearense em suas múltiplas dimensões.
É relevante destacar, ainda, que os professores e as professoras cearenses tiveram que arcar com os custos para o desenvolvimento da atividade profissional na modalidade remota sem qualquer auxílio financeiro por parte do poder público, além de serem demandados e demandadas a assumirem responsabilidades para além de suas funções e a trabalharem além das horas de trabalho remuneradas, uma vez que o contexto pandêmico impós a necessidade de adequação das atividades docentes para o formato remoto, o que necessitou de mais tempo para a preparação das aulas e para o aprendizado das novas ferramentas de trabalho. Em consonância com os dados apresentados, embora tenha havido um aumento real nas horas necessárias à realização da atividade docente na modalidade remota, não houve o reconhecimento formal do aumento da jornada de trabalho, o que pode ser configurado como uma forma de exploração da força de trabalho docente da EB pública cearense, haja vista o excedente de trabalho não remunerado pelo governo estadual.
Considerações Finais
Para responder à questão De que forma o ERE afetou o trabalho docente na Educação Básica pública cearense no contexto da pandemia de Covid-19?, foram definidos três objetivos específicos que viabilizariam analisar os efeitos do ERE no trabalho docente da EB pública cearense durante o período pandémico. A partir dos resultados apresentados, é possível afirmar que a pandemia de Covid-19 contribuiu para a precarização das condições de trabalho docente e para o aprofundamento do processo de intensificação do trabalho docente da Educação Básica pública cearense em curso nos últimos anos.
Diante de um contexto de precarização do trabalho docente da EB pública cearense como resultado das reformas neoliberais, bem como dos inúmeros desafios enfrentados pelos professores e pelas professoras cearenses durante a pandemia de Covid-19, observou-se a inação do governo do Ceará e da Secretaria da Educação no sentido de minimizar os impactos da pandemia no trabalho e na vida do quadro docente das redes estadual e municipais, transferindo aos próprios profissionais a responsabilidade pela garantia do direito à educação das crianças e dos jovens cearenses. Conforme os dados da pesquisa do grupo da UFC, mais da metade dos(as) respondentes afirmou não ter tido apoio técnico-pedagógico (ZIENTARSKI; SOUSA; MARTINS, 2021).
Contudo, essa realidade exposta no período da pandemia não é uma novidade. De acordo com Oliveira (2018), há uma tendência de transferir a responsabilidade pela própria profissionalização aos docentes, materializando-se nos discursos e nas políticas de Desenvolvimento Profissional Docente (DPD). Conforme essa autora, os “discursos dominantes no campo da educação, em especial aqueles difundidos por organismos internacionais como Unesco, Banco Mundial e OCDE, apresentam o profissionalismo docente como um fator necessário à melhoria da qualidade da educação” (OLIVEIRA, 2018, p. 53). Assim, tendem a transferir a responsabilidade aos docentes pelo sucesso ou pelo fracasso dos estudantes nas avaliações externas, independentemente das condições oferecidas. De acordo com essa perspectiva, “os bons professores e o ensino eficaz se apresentam como estratégias que permitem que os alunos socialmente desfavorecidos possam acompanhar os alunos melhor favorecidos e, desta forma, promover um efeito de maior equalização.” (OLIVEIRA, 2018, p. 51).
Mesmo diante dos desafios cotidianos enfrentados pelos professores e pelas professoras que atuam na EB pública cearense evidenciados na pandemia, intensifica-se a cobrança por resultados em testes padronizados sem que haja, em paralelo, investimento suficiente em condições objetivas de trabalho e em valorização dos profissionais do magistério. Cabe destacar, ainda, que a valorização dos profissionais do magistério não se confunde com o que vem sendo praticado em muitos estados, como é o caso do Ceará, ao associar a transferência de recursos financeiros aos indicadores de desempenho em aprendizagem discente sem levar em consideração os inúmeros fatores que podem contribuir para o sucesso ou para o fracasso do processo educativo. Assim, é premente discutir os impactos da pandemia e do ERE no trabalho docente da EB pública brasileira, de modo geral, e cearense, de modo particular, haja vista o aprofundamento de processos históricos que têm contribuído para a crescente desvalorização dessa categoria profissional.
Tendo em vista o avanço sem precedentes de projetos do capital para a EB pública durante o período pandêmico, torna-se central o papel da academia na produção contínua de conhecimento que se contraponha à lógica capitalista neoliberal vigente. Para tanto, é necessário produzir e divulgar pesquisas envolvidas num movimento político-ideológico que busque conscientizar a sociedade com vistas a superar a lógica gerencial e meritocrática subjacente às políticas educacionais implementadas no âmbito da NGP, pois são ações nessa direção que fornecem subsídios para a proposição de políticas públicas visando à melhoria da formação, da carreira e das condições de trabalho e de vida da categoria docente. Desse modo, é imprescindível não perder de vista a tarefa histórica que se impõe, isto é, a necessidade imperiosa de contribuir ativamente para a mudança de uma realidade econômico-social desigual e excludente, e, por conseguinte, combater a exploração predatória a que a classe que sobrevive da venda da sua força de trabalho vem sendo submetida no modo de produção capitalista.