Introdução: um início de debate
O presente artigo pretende analisar e refletir sobre a terceirização para um ator não-estatal da cooperação bilateral de Portugal na Guiné-Bissau no período de 2012 a 2019, enquanto um caso elucidativo da problemática da atuação de atores não-estatais no setor da educação nos países do Sul Global. Este trabalho tem por base uma tese de doutorado em andamento e parte de dados preliminares de um corpus documental e de entrevistas semiestruturadas2. Esta pesquisa integra o projeto “Análise do mapeamento das estratégias de privatização da educação básica no Brasil: atores, programas e consequências para a educação pública”, coordenada pela professora doutora Theresa Maria de Freitas Adrião e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Processo nº 19/12230-7, com apoio da Fundação Friedrich Ebert (FES).
Nosso pressuposto para esta análise é que cabe ao Estado assumir as obrigações junto a sua população para garantia de direitos humanos, como a educação, (TOMASEVSKI, 2001) e que os países localizados na periferia do sistema mundial, como, por exemplo a Guiné-Bissau, sofrem uma grande intensidade de influências de organizações internacionais, bem como de atores privados transnacionais, organizações de investigação e empreendedores, que promovem políticas educacionais com as quais se identificam (BALL, 2012; VERGER, 2019; VERGER; NOVELLI; ALTINYELKEN, 2018).
Com estes pressupostos em mente analisamos o caso da organização não-governamental Fundação Fé e Cooperação (FEC), tendo em consideração que desde 2012, devido aos conflitos e à instabilidade política no país, esta organização deu continuidade ao programa bilateral de Portugal no setor da educação (SANTOS; SILVA, 2017).
Como se trata de um artigo com informações preliminares coletadas para a pesquisa de doutorado serão utilizadas 4 entrevistas de pessoas ligadas ou prestadoras de serviços à FEC ou ao governo da Guiné-Bissau. Eles não serão identificados por nome próprio apenas por siglas.
Para as entrevistas, os critérios utilizados para localização dos atores referem-se à posição dos mesmos dentro do organograma, experiência e afiliação ao trabalho realizado pela FEC em Guiné-Bissau. Localizou-se gestores e professores responsáveis pela implementação no local de projetos da FEC. Para identificar e selecionar esses nomes, contou-se com a leitura dos relatórios de avaliação da FEC, que contêm a lista dos coordenadores responsáveis pela implementação e execução dos projetos em Guiné-Bissau. A tarefa era identificar os atores relevantes diante do trabalho executado, geralmente ocupantes de cargos de coordenação ou até mesmo os professores formadores em Guiné-Bissau. Para isso, utilizou-se a estratégia da bola de neve, geralmente empregada em ciências sociais e humanas. A partir da primeira entrevista solicita-se outros nomes aos entrevistados, até que estes se repitam ou obtenha-se uma amostra relevante para os objetivos da pesquisa (TANSEY, 2007).
bola de neve ou referência em cadeia é um método de amostragem que envolve a identificação de um conjunto de respondentes relevantes e, em seguida, solicitando que sugiram outros possíveis assuntos que compartilham características semelhantes ou que tem relevância de alguma forma para o objeto de estudo. (TANSEY, 2007, p. 12, tradução nossa)
As entrevistas, devido à pandemia de COVID19, foram realizadas em meio eletrônico pela plataforma Zoom e gravadas.
O presente artigo encontra-se organizado em três partes. Na primeira, tecemos algumas considerações sobre a Guiné-Bissau, a cooperação portuguesa e a FEC. Na segunda apresentamos e discutimos os dados. Por fim, na terceira parte, intitulada “Considerações Finais”, identificamos as principais conclusões ainda que preliminarmente sobre os dados apresentados.
Guiné-Bissau, Cooperação Portuguesa e Fundação Fé e Cooperação
Guiné-Bissau é um país que está localizado na periferia do sistema capitalista mundial, que sofre forte intervenção de organizações internacionais devido a sua condição pós-colonial e por ser classificado como um Estado frágil, de crises cíclicas, segundo organizações como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (GUINÉ-BISSAU, 2009; SILVA; SANTOS; PACHECO, 2015).
Os golpes de Estado em Guiné-Bissau ocorrem desde 1980, sempre com a articulação e ação da elite de militares. Desse modo, é possível afirmar que “na Guiné-Bissau quem pratica o golpe de Estado são os generais” (DJAU, 2016, p. 48).
O país é um dos primeiros no continente africano a tornar-se independente de Portugal, em 1973, após anos de luta pela libertação. Contudo, ainda hoje, segue fortemente vinculado à ex-metrópole em vários setores, inclusive na esfera educacional. A debilidade nessa área se expressa em problemas como salários baixos e atrasados, prédios sem estrutura, corrupção, greves (SILVA; SANTOS; PACHECO, 2016). Mas os dados são escassos, pois o país é sub-representado nas publicações internacionais por ser pouco pesquisado (SILVA; OLIVEIRA, 2017). As parcerias multinacionais e bilaterais em Guiné-Bissau são importantes para prover a economia do país. Dada a fragilidade do Estado, o recebimento de recursos advindos de cooperação bilateral elevou o impacto tanto na organização educacional, quanto na capacidade de prover educação no país, de modo que sem as parcerias pouco pode ser feito em termos de autonomia para oferecer serviços educacionais no país.
A ajuda internacional ao Estado guineense3 é ofertada para setores como saúde, agricultura, mas, principalmente, educação, de modo que desde os anos 80 a área da educação recebeu os mais vultosos recursos. (MORGADO; SANTOS; SILVA, 2016)
Segundo o Banco Mundial (BM), os principais parceiros do país são a União Europeia (EU), a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a União Econômica e Monetária da África Ocidental (UEMOA), o Banco de Desenvolvimento da África Ocidental (BDAO), o Banco Africano de Desenvolvimento (BAFD), agências das Nações Unidas, o próprio BM e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Os doadores emergentes ocasionais são Angola, China e Irã (GUINÉ-BISSAU, 2018).
Vincular o acesso à educação ao combate à pobreza tem sido a estratégia das agências internacionais que escolhem atuar com esse foco (SILVA; SANTOS, 2016). Em Guiné-Bissau, parcerias multinacionais e bilaterais são importantes para a economia do país. Dada a fragilidade do Estado, o recebimento de recursos advindos de cooperação bilateral elevou o impacto tanto na organização educacional, quanto na capacidade de prover educação no país.
A cooperação para o desenvolvimento pode ser entendida como “um investimento e não uma despesa, como desenvolvimento e não ajuda”. Para executar os planos e estratégias de Portugal foi criado em 2011, o Camões Instituto da Cooperação e da Língua I.P.4 (Camões I. P.) o responsável pela direção, coordenação e supervisão da cooperação portuguesa.
Desde os anos 1970, Portugal atua através do Programa de Ajuda Oficial Portuguesa apoiando os países de língua oficial portuguesa recentemente independentes (SILVA, 2016). No período entre 1999 a 2019 houve produção significativa de documentos sobre a Cooperação Portuguesa e trouxe a cooperação para o desenvolvimento atrelada à promoção da língua portuguesa. (MARTINS; SILVA; COELHO, 2020).
Ao estabelecer a relação entre a cooperação portuguesa para o desenvolvimento e o Camões Instituto cabe destaque ao fato de se tratar de modelo de atuação mediante o exercício do poder de forma sutil e impregnada de sentidos por meio da Língua Portuguesa. Assim, a cooperação portuguesa está oficialmente ligada a promoção da língua portuguesa, trata-se de fato inédito entre os países europeus que atuam para o desenvolvimento de países pouco desenvolvidos. (MARTINS; SILVA; COELHO, 2020, p. 22; ROPIO, 2017).
Como nos descreve um dos entrevistados sobre a atuação do Instituto Camões no ensino e promoção da língua portuguesa e cooperação para o desenvolvimento:
A promoção da língua portuguesa como disse: no exterior como são em todo o mundo e trabalhamos diretamente em oitenta e tal países do mundo, ou seja, há leitores, seja professores de língua portuguesa a trabalharem em várias universidades em todo o mundo às vezes em departamentos de estudos portugueses, estudos de luso-brasileiros, às vezes, juntamente com professores brasileiros que também ensinam a língua portuguesa e no caso possível língua portuguesa mas promovem a cultura do Brasil e a literatura do brasileiro e, portanto, depois isto é na componente de promoção da língua. […] Portugal também tem vários centros culturais em vários sítios do mundo em todos os países de língua portuguesa, às vezes, mais que um centro cultural e depois alguns países europeus e os Estados Unidos e em mais alguns países. Esta terceira componente de apoio ao desenvolvimento […] esta componente, este mandato corresponde a agência ABC do Brasil, a Agência Brasileira de Cooperação. (AT)
Dentre os países que recebem ajuda pública ao desenvolvimento (APD) vinda de Portugal os principais destinatários da ajuda bilateral são Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Entre os anos de 2011-2016 Portugal foi maior doador na Guiné-Bissau, de acordo com os valores da Tabela 1.
2011 | 2012 a) | 2013 a) | 2014 | 2015 | 2016 |
---|---|---|---|---|---|
9.829.376€ | 7.400.231€ | 6.054.326€ | 8.410.138€ | 12.324.146€ | 11.730.271€ |
Nos anos de 2012 e 2013 houve diminuição da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) de Portugal para a Guiné-Bissau devido ao golpe de estado. Ainda no que diz respeito à Guiné-Bissau há o estabelecimento de acordos bilaterais o último é o Programa Estratégico de Cooperação Portugal – Guiné-Bissau 2021-2025 foi assinado em Lisboa aos 13 de janeiro de 2021 pelos ministros de Portugal e Guiné-Bissau. Este programa representa um orçamento de 60 (sessenta) milhões de euros para os cinco anos de duração.
A execução da cooperação entre Portugal e Guiné-Bissau se organiza a partir de protocolos plurianuais, nos quais se constroem planos setoriais onde constam os programas, projetos e ações a serem executados, os custos e as fontes de financiamento. Com intervenções a partir de uma “lógica participada, inclusiva e consistente” (PORTUGAL, 2021, p. 5). Este Programa Estratégico de Cooperação Portugal Guiné-Bissau prevê apoio a diversos programas, projetos e ações na área da Educação e Cultura, nomeadamente nos ensinos básico, técnico e superior, com a previsão de bolsas de estudos, incentivos a bibliotecas e aquisição de materiais para elas. (PORTUGAL, 2021)
Não obstante, após o golpe de estado em 2012 e o consequente corte de relações bilaterais entre o Estado Português e o da Guiné-Bissau, as atividades da Cooperação Portuguesa foram passadas para a organização não-governamental Fundação Fé e Cooperação (FEC). Na voz dos nossos entrevistados:
O governo português não tinha acordos políticos com o governo da Guiné. Então criou-se a situação para resolver […] e foi contratada a FEC, que é um organismo... é uma ONG Católica. (A B)
Depois aconteceram problemas políticos e os cooperantes tiveram que regressar a Portugal, e como não havia acordos de cooperação com o Estado guineense então o nosso Instituto da cooperação estabeleceu relações com ONG que trabalhava na Guiné-Bissau e passou para essa ONG e o trabalho no âmbito da cooperação na área da educação. (A O B)
A participação de atores não-estatais no âmbito da cooperação para o desenvolvimento não é recente. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em documento intitulado “Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio” (ODM), de 2000, também acenou para a inclusão de parcerias com o setor privado como forma de promover o atendimento educacional. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável reafirma a ideia de parceria com instituições filantrópicas para atingir as metas das propostas. Assim como a garantia de
uma mobilização significativa de recursos a partir de uma variedade de fontes, inclusive por meio do reforço da cooperação para o desenvolvimento, de forma a proporcionar meios adequados e previsíveis para que os países em desenvolvimento, em particular os países de menor desenvolvimento relativo, implementem programas e políticas para acabar com a pobreza em todas as suas dimensões. (ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015, p. 20) […]
Reconhecemos o papel do setor privado diverso, desde as microempresas e cooperativas até as multinacionais, bem como o papel das organizações da sociedade civil e as organizações filantrópicas na implementação da nova Agenda. (ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015, p. 13-14)
A FEC, organização que continuou a realizar o apoio bilateral do Estado Português ao setor da educação na Guiné-Bissau, foi fundada em 1990 com o título Fundação Evangelização e Culturas para as celebrações dos “500 anos da Evangelização das Igrejas Lusófonas e do movimento de reencontro desses povos” (ANIMAG). Findas as comemorações tornou-se permanente para “dar continuidade ao espírito de cooperação missionária, intercâmbio e ligação entre Igrejas de língua oficial portuguesa.” (ANIMAG).
Trata-se de uma instituição canônico-civil de direito privado, sem fins-lucrativos de Portugal que atua com o objetivo de “promover o desenvolvimento humano integral através da cooperação e solidariedade entre pessoas, comunidades, organizações e Igrejas, inspirados pelo Evangelho e pela Doutrina Social da Igreja Católica” (FUNDAÇÃO FÉ E COOPERAÇÃO, 2017).
Em seu Plano Estratégico - 2017 a 2021 - estabeleceu os eixos estratégicos: Educação, Conhecimento e Competências; Boa Governação e Advocacia; Cidadania Global e Advocacia. Neste Plano, define que a sua missão é “promover o Desenvolvimento Humano Integral, com a visão de construirmos uma sociedade onde cada pessoa possa viver com dignidade e justiça”.
Desde a sua criação a FEC tem uma relação intrínseca entre as suas atividades e o “estreito diálogo e colaboração com as Igrejas” nesse caso as igrejas de países falantes de português (FUNDAÇÃO FÉ E COOPERAÇÃO, 2017, p. 13).
Como relatam os nossos entrevistados, a FEC atua na Guiné-Bissau essencialmente na formação de professores, sendo esta a caraterística principal que levou à sua escolha para continuar as atividades da Cooperação Portuguesa após o golpe de estado de 2012 em Guiné-Bissau. Nas palavras de um dos entrevistados:
nossa obrigação [Cooperação Portuguesa] […] é ajudar o sistema a levar a cabo a tarefa que está na constituição, sobretudo o aspecto mais importante é a formação de professores. Não é enviar os professores para ensinar os meninos. Mas a formação de professores, seja a formação inicial, formação contínua ou em serviço […] o projeto com a FEC tem tido esta abordagem, formação de pessoas é o aspecto chave. (A T)
Posto isto, nossa análise centra-se intersecção entre a Guiné-Bissau a Cooperação Portuguesa e a ONG Fundação Fé e Cooperação. Nota-se que, em nosso entender, a relação entre a Igreja Católica através da FEC, de certa forma retoma-se a relação colonial, na qual o poder exercido por Portugal, na condição de metrópole atuava na manutenção das relações de dependência do país colonizado. O exercício desse poder através das relações com a língua portuguesa e a religião católica são familiares aos guineenses.
Esta conjugação de fatores leva à nossa problematização de como um agente não estatal5 atua na cooperação para o desenvolvimento e quais as implicações desse trabalho.
A ajuda pública para o desenvolvimento tem sido responsável pela existência e manutenção de serviços educacionais no país, no entanto a questão que está posta é qual a relevância dessa instituição não estatal com fins explicitamente religiosos, com poder de influenciar as decisões sobre políticas educacionais e com recursos financeiros, atuando em países de Língua Oficial Portuguesa. Através da mudança na relação entre os Estados português e o guineense, a qual passou a ser mediada por uma instituição não governamental privada e religiosa.
Eis a questão que o artigo, mesmo que preliminarmente, visto se tratar de reflexões com base em dados parciais da pesquisa de doutoramento em andamento tenta responder.
A atuação da Fundação Fé e Cooperação (FEC) na política educacional em Guiné-Bissau após o golpe de estado de 2012
Como vimos anteriormente, após a transferência do apoio bilateral de Portugal ao Estado da Guiné-Bissau para a FEC devido ao golpe de estado de 2012, esta organização não-governamental passou a assumir um papel de estrema relevância no setor da educação na Guiné-Bissau.
A nossa análise preliminar indica que esta organização não-governamental, em conjunto com outras organizações como o Banco Mundial, por exemplo, parece ter uma enorme capacidade de influência dentro de um Estado politicamente independente, porém não livre, uma vez que está dependente da ajuda externa para proporcionar serviços básico à sua população. Na voz de um dos entrevistados:
é uma relação da submissão por parte das entidades públicas da Guiné-Bissau. Os parceiros internacionais impõem as suas agendas para as autoridades nacionais. Nessa situação de fragilidade política e da ausência de uma coordenação do sistema educativo no país. […] é preciso dizer que a política educativa sempre foi e ainda está a ser definida pelas organizações internacionais e nacionais muitas vezes existe uma sobreposição da intervenção. (N M)
Os projetos são discutidos a priori quando são alocados os financiamentos, existem longas temporadas de discussão entre os ministérios e os responsáveis internacionais pela Guiné-Bissau por ex. O Banco Mundial, tem gestão específica do Banco Mundial, que ciclicamente para se deslocar a Guiné-Bissau e definir linhas, por exemplo o Banco Mundial define grandes linhas estratégicas e grandes áreas de intervenção, depois financia essas grandes áreas de intervenção. (A B)
Ademais como refere um dos entrevistados, o papel das organizações não-governamentais é mais localizado, sendo que o principal financiamento vem do Banco Mundial, via Parceria Global pela Educação, e da UNICEF.
As organizações internacionais, comparando com o peso do Banco Mundial…seja, por exemplo no atual contexto é o dinheiro do Banco Mundial que suporta o Ministério da Educação, não é o dinheiro que vem via FEC, via FEC são para 300 a 4 milhões. […] Em termos dos grandes organismos internacionais […] o Unicef e o Banco Mundial são eles que suportam toda a máquina, não é? Deixam ao país pouca marcha de manobra […] pronto mas depois o peso das ONGs faz sentir na Guiné-Bissau cada uma em sua área e muitas vezes as ONGs fazem disputa por território. (A B)
Da nossa análise documental e das entrevistas, verificamos que a FEC presta assistência técnica ao Ministério da Educação em várias áreas, mas essencialmente na formação de professores, com foco no ensino de língua portuguesa por se tratar de língua oficial em Guiné-Bissau. Como nos descreve um dos entrevistados,
Eles [FEC] não concebem programas, projetos sozinhos, trabalham com os técnicos do ministério da educação. E também na hora, no momento da avaliação. Os técnicos da educação participam da avaliação. São eles que implementam […]. Por exemplo, quando estava na direção geral, do ensino básico eu tinha […] Eu via que a FEC também prestava serviço assistência técnica dentro do Ministério da Educação na área da pequena infância, e dá também muito apoio no ensino da língua portuguesa, principalmente ao ensino da língua portuguesa. Eles atuam na formação dos professores. (A O)
Considerações Finais
As entrevistas com as pessoas que se encontram diretamente envolvidas com o trabalho em educação na Guiné-Bissau são taxativas ao afirmar o importante grau de dependência do país e em particular, da educação, da ajuda portuguesa, por outro lado, apresentam pouca percepção crítica sobre a atuação da instituição, como se naturalizassem o apoio. Quanto ao fato de ser uma instituição com base religiosa a atuar no país, é perceptível a preocupação, por parte dos sujeitos entrevistados, em justificar o poder dessa instituição em razão do dinheiro dispendido para o Ministério da Educação.
A concepção de privatização na perspectiva do currículo caracteriza-se, neste estudo sobre a atuação da ONG Fundação Fé e Cooperação, a partir da adoção pelo poder público guineense de concepções curriculares advindas da FEC “envolvendo as relações entre professor/a, estudante e conhecimento” (ADRIÃO, 2018, p. 11). Dessa constatação, identificada nos depoimentos e nos documentos, advém as consequentes problemáticas dessa relação entre uma ONG católica e um estado independente, com destaque para o valor da Ajuda Pública ao Desenvolvimento de Portugal para Guiné-Bissau, cerca de 11 milhões de euros em 2016, valores nominais, recurso relevante para o setor educacional da Guiné-Bissau e destinado, segundo Silva (2019, p. 105), prioritariamente para ações relacionadas à “[...] lecionação de aulas, formação em língua portuguesa, desenvolvimento profissional de professores, apoio às direções de escola e criação de Oficinas em Língua Portuguesa (OfLP)”
Sobre a intersecção entre a Guiné-Bissau, a Cooperação Portuguesa e a ONG Fundação Fé e Cooperação observa-se três pontos que requerem aprofundamentos em estudos futuros: a) a relação entre a Igreja Católica através da FEC, remonta ao período colonial, com forte dominação por Portugal, sobre o estado guineense; b) exercício desse poder através das relações com a língua portuguesa e a religião católica são familiares aos guineenses e c) a atuação no currículo local da perspectiva do governo português, sempre através da língua, assim como por meio da formulação de propostas curriculares por meio das assessorias a projetos ao ministério da Educação.
Estas são algumas implicações da ação de um agente não estatal a atuar na cooperação para o desenvolvimento em Guiné-Bissau.