SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3Enseñanza de Literatura: una propuesta histórico-cultural de resignificación de las prácticas docentesLa construcción de indicadores de calidad social en la educación superior: el caso de los Institutos Federales de Educación, Ciencia y Tecnología índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação

versión impresa ISSN 0101-465Xversión On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.3 Porto Alegre set./dic 2021  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.3.33992 

Outros Temas

Educar pela sombra: contemporâneo e educação a partir de uma pintura de Jan Lievens1

Educate by the shadow: contemporary and education from a Jan Lievens’ painting

Educar por la sombra: contemporáneo y educación a partir de una pintura de Jan Lievens

Luiz Guilherme Augsburger2 

Mestre e doutorando em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em Florianópolis, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-3136-9890

Tiago Ribeiro Santos3 

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-0941-167X

2Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, SC, Brasil.

3Université Catholique de l’Ouest (UCO), Angers, França.


Resumo:

Este ensaio analisa uma pintura de Jans Lievens (1607-1674), que retrata um menino em um ateliê, com o objetivo de discutir a "contemporaneidade" – desde a perspectiva de Giorgio Agamben – de uma educação a partir do uso da "sombra" como potência educativa. O ateliê é entendido aqui como um espaço dinâmico e formador marcado por (a) um "uso das coisas", opondo-se ao consumo das coisas e (b) por uma margem de "sombra" capaz de tencionar a luz como seu contrário. A pintura, concentrando estas características distintivas que são postas em relevo pelos autores, permite conceber um jogo em que "sombra" e "luz" compõem uma relação cooperativa e que, em termos educacionais, conduz à positivação da "marginalidade" – de forma não estigmatizante –, o inacabado e a abertura – à criação – como componentes da formação humana.

Palavras-chave: contemporaneidade; filosofia da educação; Jan Lievens; tecnologia educacional

Abstract:

This essay analyzes a Jan Lievens’ (1607-1674) painting, which portrays a boy in an atelier, with the purpose of discussing the "contemporaneity" – in the perspective of Giorgio Agamben – of an education that makes use of the "shadow" as an educational power. The atelier is understood here as a dynamic and formative space marked by (a) the "use of things", opposing the "consumption of things" and (b) by a margin of "shadow" capable of make tension to light as its opposite. The painting, concentrating these distinctive features, allows us to conceive a game in which "shadow" and "light" make up a cooperative relationship that in educational terms leads to the positivation of a (non-stigmatizing) "marginality", "unfinished" and the "opening" – to creation – as components of human formation.

Keywords: contemporaneity; philosophy of education; Jan Lievens; educational technology

Resumen:

Este ensayo analiza una pintura de Jans Lievens (1607-1674), que retrata a un niño en un taller, con el objetivo de discutir la "contemporaneidad" – desde la perspectiva de Giorgio Agamben – de una educación a partir del uso de la "sombra" como potencia educativa. El taller se entiende aquí como un espacio dinámico y formador marcado por (a) un "uso de las cosas", oponiéndose al consumo de las cosas y (b) por un margen de "sombra" capaz de producir tensión a la luz como su contrario. La pintura, concentrando estas características distintivas que son puestas en relieve por los autores, permite concebir un juego en el que "sombra" y "luz" componen una relación cooperativa y que, en términos educativos, conduce a la positivación de la "marginalidad" – de manera no estigmatizante –, el "inacabado" y la "apertura" – a la creación – como componentes de la formación humana.

Palabras clave: contemporaneidad; filosofía de la educación; Jan Lieves; tecnología educacional

Da contemporaneidade de uma obra

"[…] olhar, ou seja, esquecer os nomes das coisas que se vê".

(Valéry, 2012, p. 161)

As ciências humanas contam com diferentes autores que se serviram de obras de arte como objetos de análise. Walter Benjamin, Michel Foucault e Norbert Elias foram apenas alguns, entre outros, que a certa altura deram visibilidade à pintura como um veículo de seus próprios pensamentos. Elias (2005), por exemplo, usou uma tela de Antoine Watteau4 para ilustrar tanto os sonhos de uma aristocracia, partindo em viagem à ilha de Citera – a tentadora ilha do amor –, quanto os códigos de civilidade que comporiam os modos de viver sobre essa terra imaginada. O sociólogo alemão, ainda, insistiu sobre os usos históricos dessa própria tela que, se em um contexto aristocrático representaria uma espécie de paraíso, no contexto da revolução francesa, por sua vez, indicaria a imagem de uma luz nascente anunciando novos tempos.

A análise de uma pintura, embora possibilite-nos identificar seus aspectos comuns a um tempo – sua temporaneidade –, propomo-la, neste ensaio, como estratégia de fazer irromper a "contemporaneidade". O que, num primeiro momento, poderia ser tomado como sinonímia é, aqui, seu avesso. Seria o caso, pois, de olharmos para uma pintura como objeto de ruptura com um dado tempo, contando com o fato de que, no mesmo movimento, ela permitiria articular outro tempo que não propriamente aquele seu histórico ou cronológico. O que intentamos é uma relação com a pintura em cuja força resida a capacidade de fazer pensar de outro modo – pensar nosso contemporâneo.

O significado da palavra "contemporâneo", destarte, é preciso colocá-lo em questão. Agamben (2009), citando o Nietzsche de Barthes5, escreve que "o contemporâneo é o intempestivo"; aquilo que traz em si mesmo certa inadequação a sua própria época6. O intempestivo, cuja tempestade serve como imagem poética, então, trata-se menos de uma insurreição ou contradição do que de um acontecimento marcado por sua própria obscuridade, pelo "ainda-sem-palavra", como o sol nascente de Watteau, exprimindo-se como contemporaneidade de um século, o vir-a-ser de uma classe. O contemporâneo, ainda para Agamben (2009, p. 62), também "é aquele que [se] mantém fixo no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro". Ora, estas marcas, em termos metodológicos, estariam elas sujeitas a uma sondagem em busca do que aparece e se vela, fazendo da sombra, não uma oposição, mas, uma exigência da luz e vice-versa.

Aqui, então, não tratamos de fazer uma análise historiográfica da pintura ou da relação dela com sua temporaneidade, muito menos uma análise semiótica ou hermenêutica da obra. O que buscamos neste texto é usar uma pintura de Lievens como estratégia para dar materialidade a uma reflexão sobre a educação atual e sua contemporaneidade em um sentido agambeniano. Assim, sendo o contemporâneo não a "luz", mas a "sombra" de um tempo, o quadro de Lievens, eis nossa aposta, expõe a redundância em que a atualidade da educação se insere: a "sombra" de um regime de luz panoptical (i.e., aquele em que se busca eliminar as zonas de sombra) (Foucault, 2011) é – perdoe-nos a redundância – a própria sombra. Nosso uso da obra não busca, então, metaforizar algo que se queira dizer, mas dar visibilidade a um uso da sombra como estratégia educacional: educar pela sombra – experiência e uso das coisas como contemporaneidade de nossa educação.

Há quem tentaria desvalidar o exercício do pensamento que aqui propomos, acusando um anacronismo, haja vista que a obra do pintor holandês pertence a uma temporalidade outra que aquela da educação que o texto busca pôr em questão. Ora, está justamente nessa extemporaneidade de Lievens sua potência. Ao se olhar obras "menos anacrônica" (e.g., as salas de aula de Albert Anker, pintor do limiar entre séculos XIX e XX), supomos que justamente a excessiva temporaneidade destas, em relação à educação atual, tornaria menos sensível nossa contemporaneidade. Está na extemporaneidade do artista neerlandês sua potência de expor o contemporâneo da educação atual, eis nossa aposta metodológica.

Em sua relação com o que queda à sombra, as teorias modernas da educação, lidando com diferentes formas de "marginalidade" (a ignorância individual, a exclusão social e a incompetência técnica), não raro, fizeram dessa marginalidade algo a ser combatido, como lê-se em D. Saviani (1999), um expoente em tal combate. Neste texto, buscamos certo deslocamento na questão da marginalidade, enquanto sinônimo de problema a ser resolvido. Evitamos sua estigmatização a partir de um pensamento educacional que positive a sombra, tencionando a luz.

Este pensamento intempestivo, ora, não poderia esquecer de que o combate à marginalidade obedece também ao princípio democrático do acesso indiscriminado ao saber representado pela instituição escolar. O ateliê – evocado mais adiante –, na forma de uma instituição à sombra da escola moderna, talvez apenas tenha seu lugar assegurado à medida que reabilita um jogo de forças entre uma e outra instituição, fazendo da marginalidade não um problema, mas, através da potencialização da sombra, um componente (ativo/positivo) da relação educacional. Essa reabilitação, logo, supondo que as relações educacionais contenham um núcleo agonístico, preserva uma luta cujo caráter inacabado não permite deduzir nem vencedores nem perdedores em definitivo.

O quadro de Jan Lievens abaixo, eis um material empírico que, como arte plástica, traz justamente isso que não está pronto; que em matéria de performance está mais próximo do inacabado, como o próprio ambiente do ateliê é testemunha. A sua tela, aliás, tem título indefinido, não obstante sua nomeação francesa, "Le jeune dessinateur", ou inglesa, "Boy in a workshop", permanecendo sem decisão no original em neerlandês. Lievens talvez reforce, ainda mais, certo gosto pelo inacabado (ao contrário de seus curadores estrangeiros em busca de um título para sua pintura) ao conferir à própria sombra um lugar significativo em sua obra. No quadro, a sombra percorre uma secção diagonal quase perfeita, escalonada segundo o relevo dos objetos pintado, partindo do canto superior esquerdo ao inferior direito, criando uma zona de sombra (acima) e de luz (abaixo) de onde surge um menino – conforme. Figura 1.

Fonte: Lievens, Jan (1644).

Figura 1 Jeune garçon à l'atelier. 

Lievens parece produzir aí interseções entre o claro e o escuro também mediadas pelos próprios objetos distribuídos no quadro. A luz e a sombra, o visível e o (quase) invisível, permanecem em uma relação mais de cooperação (ou simbiose) que de oposição (ou parasitagem) graças a sua organização interna, em um registro muito mais de positividade (positum) e de produção do que de negação e/ou de anulação. Ora, ante uma sociedade como a nossa, que tanto privilegia a luz e a visibilidade, o quadro vai propondo, através desse jogo (de visível e não visível), elementos para que possamos "dar ouvidos […] àquela sombra" (Agamben, 2009, p. 73) em sua contemporaneidade. Com isso, não queremos dizer que haveria neste quadro qualquer coisa intrínseca a dizer sobre nosso tempo. Antes, seria aquilo que, diante dele, em uma relação de estranhamento e admiração, ele nos provoca pensar sobre nosso tempo, sobre nossa contemporaneidade.

Esta contemporaneidade, logo, não a expomos aqui para ser explicada como fosse tratada sob o holofote da verdade, mas para ser pensada como uma palavra esburaca, feito um queijo gruyère, em que os ocos e as sombras são-lhe imprescindíveis à experiência (do saber e do sabor). Desse modo, concebemos sua própria presença como um (paradoxal) vazio, cujo efeito é impedir o esvaziamento da experiência da e pela obra.

A este desafio metodológico somamos a tentativa de percorrer a pintura de Lievens como quem vaga por ruínas a recolher palavras que falem para nós e que ocupem "o lugar de nossa inquietude, o vazio essencial e trêmulo em que se abriga nossa falta de destino" (Larrosa, 2017, p. 30). A contemporaneidade de Lievens talvez ajude, aqui, a contar quem somos quando, paradoxalmente, tudo já parece dito e escrito. Quiçá ela nos auxilie também a pensar como ser contemporâneos a isso que somos, ainda que, ao fim, apenas tenhamos balbuciado qualquer coisa que se poderia chamar de resposta, imagem ou narrativa de si mesmo. A contemporaneidade d’O jovem desenhista talvez nos assista em nosso fado humano demasiado humano:

Talvez nós, homens, não sejamos outra coisa que um modo particular de contarmos o que somos. E, para isso, para contarmos o que somos, talvez não tenhamos outra possibilidade senão percorrermos de novo as ruínas de nossa biblioteca, para tentar aí recolher as palavras que falem para nós". (Larrosa, 2017, p. 30)

Estes intentos é que condicionam o fato de darmos, aqui, ouvidos à sombra de Lievens, permitindo um encontro entre os tempos e as gerações através de posições, gestos, arranjos materiais etc. os quais podem ser organizados em nome de uma experiência educacional. O jovem desenhista parece justamente abrir-nos espaço para essa experiência, uma vez que os elementos distribuídos sobre a tela dão suporte à reflexões sobre um pensamento educacional que contemple, ao mesmo tempo, sombra e luz, sem privilegiar a razão ao sentido (ou à sensação), a ciência (ou a técnica) à experiência… e a pintura à escultura (ou ao desenho). Essa experiência educacional, na qual o jogo entre claro e escuro são cooperativos, em uma relação agonística e não opositiva (ou simétrica), ganha corpo a partir de certo olhar sobre contemporaneidade que emerge de sua tela.

Da temporaneidade e contemporaneidade da obra de Lievens

A hipótese de que o quadro de Lievens seja objeto de uma contemporaneidade não impede, todavia, de destacar que, em certos aspectos, sua obra apresenta também o que havia de comum entre outras pinturas holandesas do século XVII. Lievens, nesse sentido, porta também uma temporaneidade, de modo que, semelhante a Rembrandt (1606-1669), tirava seus ganhos majoritariamente da produção de retratos de figuras da elite burguesa e mercantil neerlandesa e inglesa. Em vista de atender sua clientela, era comum que os quadros dos pintores da época retratassem cenas bíblicas – talvez o único motivo equiparado quantitativamente aos retratos na obra de J. Lievens. A esses temas pictóricos de sua obra somam-se ainda paisagens pitorescas, como as que se encontra em outros pintores holandeses temporâneos, e umas poucas cenas do cotidiano e naturezas-mortas (still life). E ainda encontramos nessa natureza-morta um lugar para exploração do arranjo de objetos e da disposição das sombras e dispersão das luzes (Gomrbrich, 2013).

O lugar da pintura originalmente sem título escolhida para a reflexão deste texto, logo, continua indefinido, pois, embora em O jovem desenhista esteja representada uma figura humana (um rapagote), o quadro parece-nos não se adequar ao que poderíamos chamar stricto sensu de "retrato". A disposição oblíqua da face do jovem e o uso de sombras desfaz quase totalmente a visibilidade das particularidades de seu rosto, decompondo, assim, sua identidade e individualidade em um ‘sujeito qualquer’. O quadro, destarte, parece reter algo do trivial ao estilo de Vermeer (1632-1675), conhecido por ter produzido poucos quadros com cenas "de alguma relevância tais como personagens simples em um aposento de uma típica residência holandesa. Alguns não mostram nada além de uma pessoa envolvida em alguma tarefa simples, como uma mulher vertendo leite" (Gombrich, 2013, p. 329).

Lievens, de forma similar, parece ter composto uma "natureza-morta com seres humanos". Por um lado, temos um momento banal, cujo prosaísmo parece "capturado" por uma objetiva mecânica em sua espontaneidade. Por outro, o pintor parece jogar com os objetos da pintura (o jovem, os materiais de desenho, a escultura) e com os elementos da pintura (luz, sombra, traçado, cor) de modo a, artificialmente, compor uma cena em que a vida parece submetida à imobilidade (stillness), ou ainda, à lentidão e à suspensão (do tempo, da velocidade, da própria vida – uma ‘natureza morta’). Essa dupla articulação dá ao quadro uma materialidade singular através de um misto de prosaico e pitoresco. O banal, o espontâneo e, ao mesmo tempo, o artificial e o imóvel no quadro de Lievens parecem provocadores a quem nele se puder deter e demorar algo mais que o fugaz tempo do arrastar de tela de um Smartphone em uma rede social on-line tão efêmera quanto imagética.

Neste cenário da arte seiscentista dos Países Baixos, no qual esse pintor estava temática e estilisticamente bem ambientado, observa-se, por meio da tela de O jovem desenhista, uma ruptura extemporânea. E ainda que se possa enquadrar Lievens em uma categorização estilística da história da arte, profanar tal didática, retirando-o desse lugar temporâneo, parece-nos profícuo à reflexão da contemporaneidade de uma relação educacional.7 Isto posto, parece haver na própria marginalidade do autor um indício dessa potência extemporânea, i.e., uma potência instalada e que instala outra lógica de tempo que aquela expressa em sua pintura:8 "Contemporâneo é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história"(Agamben, 2009, p. 72). Nessa duplicidade (entre temporaneidade e contemporaneidade, artificialidade e espontaneidade, somados às tensões entre luz e sombra, obra acabada e o inacabado do ateliê) distende-se um território favorável ao nomadismo de um pensamento que experimenta, em busca de seu contemporâneo, uma educação pela sombra.

Do uso das coisas

Os ateliês, de modo geral, são lugares ambíguos: supõem tanto um vai-e-vem (de pessoas que se ocupam com diferentes afazeres, de ferramentas, de materiais e de mobiliários deslocados por exigências momentâneas), quanto um gosto particular pela demora e pelo acabado. Essa ambiguidade é que talvez faça dos ateliês lugares um tanto excêntricos, ou seja, fora de um centro ordenador à medida em que seus frequentadores se encontram em diferentes intensidades de envolvimento e velocidades de movimento. Intensidades e velocidades que contrastam: seja no cinzel do mestre incansável e firme ao lado do lápis lento e titubeante do jovem aprendiz, seja nos precisos movimentos para a produção de uma obra-prima frente à repetição educativa daquele a quem o fim é o próprio exercício.

O repertório material de um ateliê é algo variado, conta com desenhos, esculturas, pinturas na forma de modelos, estudos e ensaios que, por sua vez, exprimem erros e acertos de exercícios e experiências. Essas materialidades têm a vantagem de nunca parecerem fora de seu lugar ou julgadas imperfeitas e inacabadas de modo que poderiam depor contra a função do ateliê. Esse espaço, ensaístico por princípio, simplesmente é isso que ele mesmo quer ser: um lugar onde tudo gravita em torno da exigência de que se faça uso das coisas.

Esta condição do ateliê, onde quase tudo se está por fazer ou para ser usado, como fosse um "rancho" que guarda apetrechos domésticos, prevê a presença de coisas dispostas a serem retiradas de seu lugar: uma desordem bem delimitada pelo espaço do aprendiz. No quadro de Lievens, vê-se moldes de gesso, tais como um pé e duas ou até três cabeças, que, retirados de seus corpos e suspensos nas paredes ou apoiados sobre a mesa, representam modelos sobre os quais aprendiz se aplica e se aproxima. A paisagem em torno do "jovem desenhista" compõe-se assim desses elementos que formam o ateliê. Os papéis estão enrolados na estante, não como coisas para serem exibidas ao público, mas para serem olhadas pelo aprendiz quando preciso, assim como o tecido pendurado e amontoado sobre si mesmo. Ora, tudo parece, então, um pouco esquecido, não visto ou posto à parte. A vida no e do ateliê, por isso, valoriza eticamente aquilo que pode ser deixado de lado, que se mostra também dispensável ao bom desenrolar das atividades ali desenvolvidas.

O espaço do ateliê, desta maneira, tem um caráter atípico dilatado, porque ambíguo entre fluxos e demoras, entre prescindível e imprescindível e porque um lugar do produtivo e do improdutivo. O labor artístico, à margem de uma sociedade em cuja atividade produtiva privilegiada é o trabalho, é um dos poucos – senão o único – em que a "obra" é possível (Arendt, 2017). O trabalhador, sujeito às demandas sociais imediatas, reproduz com o mundo uma relação na qual a finalidade não só é urgente, mas conducente. Logo, o fazer do trabalhador não coincide com o do artista ou artesão. Este goza de uma liberdade tanto de uso das matérias e dos utensílios, quanto da suspensão ou prescindência das coisas, de modo que este joga com a possibilidade de abrir essa relação com o mundo à criação. Assim, o artista ou artesão, no gesto de elaborar a obra, pode criar uma relação com o mundo mais do que apenas reproduzir uma relação já dada ou conduzir-se por uma necessidade (material imediata).9 Ora, o território fundamental dessa personagem e de seu gesto de criação não é senão – o ateliê.

O ateliê, entretanto, não acolhe apenas o artista (ou artesão): nele também habita o aprendiz (de tal ofício), que na pintura de Lievens decididamente toma o lugar de destaque. O aprendiz tem seus próprios ritmos e, para tanto, bastaria observarmos o uso que ele faz de seu assento de proporções inusitadas. O uso dessa cadeira apenas poderia ser parcimonioso e temporário, posto que sua ergonomia se despoja do conforto em troca de um fim mais preciso, possivelmente mais educativo, ao colocar o aprendiz à meia-altura entre o desenho e a escultura. Ele encontra-se, aí, menos em uma posição definida – alta ou baixa – e mais no limiar entre seus desígnios: sem ter concluído algo, porém ao mesmo tempo, sem jamais ter deixado de começá-lo. O aprendiz habita o ateliê, como denota a pintura de Lievens, por meio de um estar aí "entre" as coisas.10

Este parece, pois, o tempo e espaço do estudo, o lugar da "madrugada do estudante". Como diz Larrosa (2017, p. 252): "O estudo recua para antes da primeira luz e ali, na noite que finda, em meio às sombras, no negro que já está se tornando cinza, o estudante mantém acesa uma lâmpada, mantém desperta a tensão da vigília". Eis um tempo-espaço de separações, de suspensão (temporária) das coisas de sua realidade habitual e funcional, mas, no mesmo golpe, tempo-espaço graça ao qual a coisas podem ser trazidas e deslocadas para perto da experiência (Masschelein & Simons, 2015). No ateliê de Lievens, as cabeças de gesso estão à altura e ao alcance do aprendiz, uma vez que despojadas de um corpo. As cabeças descem, assim como o pé se ergue em um mesmo movimento, criando artificialmente um cenário que favorece a aproximação, em relações hápticas e ópticas. A suspensão dos objetos no ateliê é, pois, inerente ao fato de que eles foram retirados de seu ‘lugar familiar’, promovendo novas experiências ao aprendiz.

A tela de Lievens, o ateliê, a oficina, enfim, são esses espaços em que a prática com os materiais os faz passíveis de composições tão artificiais quanto educativas (ao jovem desenhista). Através do estudo, ele experimenta o mundo menos à vista de uma produtividade, de uma utilidade, de uma funcionalidade ou finalidade e mais em torno de um tempo da experiência e da inoperância, de um espaço do erro e da repetição, de um tempo-espaço dado ao que acontece antes de algo ser concluído e depois de ser iniciado.

O ateliê como espaço em que algo acontece para além do negócio seria, pois, um espaço de ócio. "Negócio", do latim negotium, era a ocupação, o trabalho, a negação do ócio (lazer, repouso; uma espécie de estado de suspensão das demandas do necessário). A isto os gregos chamavam de "skholé", sobre o que alerta Arendt (2017, p.101): "O leitor moderno em geral tem de estar ciente de que aergia [preguiça] e skholé não são a mesma coisa. A preguiça tinha as mesmas conotações que tem para nós, e uma vida de skholé não era considerado indolente". A skholé é "abstenção de certas atividades". Ora, não é exatamente desta abstenção (suspensão) do trabalho de que se trata o ateliê como se o desenhou até aqui?

Seguindo a reflexão de Masschelein e Simon (2015), a derivação do vocábulo "skholé" em "escola", como espaço de suspensão, parece assaz pertinente, posto que não se trata da escola/skholé como um lugar/momento improdutivo, mas, por um lado, de um espaço-tempo inútil, excêntrico aos grandes centros econômicos e demandas do mercado empresarial. Por outro lado, às demandas familiares/econômicas e suas relações temporâneas e imediatas com o mundo, a escola (masscheleiniana) contrapõe um espaço-tempo de estudo – suspensão, profanação, atenção, pausa, criação etc. (Masschelein & Simon, 2015).

Não seria esse o lugar que o jovem aprendiz do ateliê ocupa? Não seria essa skholé – de ateliê e de escola – que destaca o jovem aprendiz desse lugar do trabalho e o dispõe à "obra" em um sentido arendtiano (Arendt, 2017), ao uso? Ora, essas qualidades, inerentes a um uso particular das coisas, por sua vez, alheias à produtividade, não por acaso devem ter seu lugar protegido pela sombra. Essa sombra na pintura de Lievens é que nos convém, a partir de agora, explorar.

À sombra do ateliê

A vida em um ateliê, seguindo as linhas acima, não está a serviço de interesses privados e, tampouco, públicos, mas coletivos, porque induz à coleção de uma riqueza própria àqueles que compõem seu espaço na forma de uma soma de erros e acertos. O sentido de uma experiência educativa, logo, está no fato de que sua existência hesita entre um lado e outro, permanecendo periférica tanto ao interesse privado quanto ao interesse geral, ao mundo tanto da vida prática, real e urgente (útil/funcional), quanto desinteressada e diletante (inútil/poético). Este meio-termo, portanto, entre algo público e privado, onde a experiência enfim acontece, é que faz da composição entre sombra e luz um jogo de potência: um momento de arranjos coletivos à margem das negociações e comércios da vida comum.

A tela de Lievens, nesse sentido, está repleta de objetos de estudo e que, particularmente, não se encontram plenamente expostos à luz.11 Esses objetos, em grande parte, permanecem sob uma penumbra habilmente projetada pelo pintor que, por sua vez, parece dissimular esses objetos como se não fossem dignos do olhar, ou de um olhar que não detido, lento e atento. A penumbra compõe com as coisas que toca feito estivessem ali para serem apreciados, mas não de forma explícita, assim como aquilo que está posto à luz. Nesse arranjo, um jogo insinua-se ao atrair um olhar disposto também a esquecer do objeto recém-olhado. Esse jogo de sombra e de luz é que pode, logo, desconcertar um educador que, estranhando este ateliê, poderia procurar angustiadamente uma resposta à pergunta: o que se pode aprender em um espaço tão pouco iluminado?"12

A essa angústia não se pode negligenciar o efeito de uma educação que, a partir da ideia de aprendizagem, centraliza-se nas "necessidades do aprendente" e no "value for money" da educação: "O principal problema com a nova linguagem da aprendizagem é que tem facilitado uma nova descrição do processo da educação em termos de uma transação econômica" (Biesta, 2017, p. 37). Uma "transação" em que o aprendente é legível enquanto consumidor cujas necessidades hão de ser atendidas pelo professor e pela instituição educacional. Em tal processo a educação é tomada fundamentalmente como mercadoria.

A questão às voltas da educação no ateliê, em outro sentido, talvez não seja capaz de responder o que se "aprende", mas antes o que se "apreende": a constituir uma seleta coleção de usos. Seria então o caso de fazer uso da sombra. Pôr em jogo a sombra que encobre parte do rosto do menino Jesus em gesso, contendo seus próprios dégradés e que, de grau em grau, é experimentado pelo aprendiz na passagem de um estado a outro (de iluminação). A despeito das intencionalidades do autor, o escuro que repousa sobre o caderno em suas mãos parece não dizer assim da opacidade de um principiante, mas da indefinição própria de todos os graus a que ele pode (não) atingir. A essa indefinição soma-se o fato de que o único caderno aberto e iluminado, embora apresentando um desenho que não se sabe acabado ou inacabado, repousa, de modo um tanto quanto desajeitado, no chão, sem permitir ao espectador saber se o aprendiz dedica sua atenção a ele ou não. O aprendiz, afinal, mantém-se inclinado sobre um caderno escuro: a sombra aí não poderia ser pensada também como uma forma de abertura e de estudo?

A ideia de uma educação pautada no esclarecimento (aufklärung), pressupondo dar ou levar à luz, implica um quase sem fim de associações morais. As metáforas entre educação e iluminação são vastas, variando das mais claras, tais como o "professor-sol" (Comênio, 1997) às mais obscuras, tais como o "a-lumno" enquanto o "sem luz" (Luckesi, 2005), expressando uma semântica educacional possível e seus nítidos efeitos pedagógicos.13 Essas metáforas também esclarecem qual seria o projeto educacional – a formação (bildung) – de um sujeito e de uma sociedade. O efeito colateral desse preconceito moral é de que a sombra, destarte, encarna o negativo da luz: sendo ela sua ausência e por extensão a ignorância, a desrazão e o mal. A pergunta sobre "o que se pode aprender em um espaço tão pouco iluminado?" logo retorna ao uso dessa reflexão sobre educação, sobretudo, quando permanece faltante não apenas uma luz iluminando realmente as coisas, mas um preceptor que seja capaz de ensinar algo ao aprendiz.

Lievens, mais uma vez, parece jogar com seus observadores – ou ao menos aqueles do século XXI –, escondendo alguém que, supostamente, daria alguma segurança de que algum aprendizado realmente acontece ao garoto no ateliê. A sombra, na tela, projeta-se para fora do quadro – parte em busca de sua natural periferia –, fazendo o preceptor não estar na pintura senão de maneira virtual, à sombra daquilo que está gravado no óleo sobre tela. O preceptor não aparece e talvez não esteja ali, talvez somente se o pressuponha presente e, nesse desejo, ele seja encarnado pelo observador, assumindo uma função de vigilantes do aprendizado do jovem desenhista. De tal modo, a ausência do mestre não se justificaria a tal espectador apenas por um autogoverno já introjetado no aprendiz?

A contemporaneidade do astuto pintor neerlandês, a fazer desaparecer o mestre, permite pôr à prova outro aspecto da educação moderna: um regime de luz coordenado pela lógica panoptical. O panóptico, projetado por J. Bentham (1748-1832), aquilo que faz tudo (pan) visível (opticon), é uma estrutura arquitetônica, originalmente prisional, com o fino propósito de fazer com que todos encarcerados, circularmente dispostos, estivessem virtualmente sob o olhar de um vigilante colocado numa torre ao centro da construção. Notável, como fazem ver Foucault (2011) e Schérer (2006), é a dimensão mais que arquitetônica e prisional em que o panóptico é adotado em sua (e atual) temporaneidade: "O panóptico não é uma curiosidade da pequena história, ele é a máquina despótica absoluta da sociedade liberal" (Schérer, 2006, p. 39).14 Lievens, por sua vez, através do uso das sombras, não dá tudo ao olhar, bem como não dá o próprio sujeito educador. A sombra, em relação à lógica pedagógica moderna, parece atuar contra seu regime de luz e vigilância; a sombra emperra o preceptor rousseauniano, pervertendo Emílio e seu professor-panoptical.

A isso não se pode negligenciar a observação do fato de que os rostos em gessos, na pintura, jamais são dados a ver completamente, assim como o rosto do jovem desenhista. Em um espaço onde as coisas se deslocam, a sombra igualmente acompanha este movimento. No ateliê a sombra não é mero acaso ou um subproduto do ateliê, de modo que ela devém uma ferramenta do artista que se serve dela ativamente para produzir efeitos educacionais e estéticos. A possibilidade que o artista tem de não apenas fazer ver e explicitar as coisas, mas antes a potência de fazer não ver, de esconder e, subsequentemente, de provocar a imaginar as coisas, abre margens à experiência (de outra coisa). Esse regime de sombra à moda de Lievens, então, está diretamente conexo ao que chama atenção Agamben (2009, p. 20):

O homem é senhor da privação porque mais que qualquer outro ser vivo ele está, no seu ser, destinado à potência. Mas isso significa que ele está, também, destinado e abandonado a ela, no sentido de que todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder de não-agir e todo o seu conhecer; um poder de não-conhecer.

A sombra, normalmente vista como o negativo ou a ausência de luz (uma não potência), pode ser assim pensada positivamente, como uma potência de não. Através da potência de não-agir proposta por Agamben, a sombra devém o avesso da luz. Frente à potência de ver – que no extremo não dá à experiência senão o "já-dito" e ao pensamento o "já-dado" –, a sombra é uma espécie de cinzel da potência de não-ver – que no extremo dá à experiência o "ainda-sem-palavra" e ao pensamento, o que imaginar, o ainda-sem-imagem. A sombra dá certo espaço de criação. O que está em jogo é uma espécie de silêncio aos olhos, de vacúolos em que haja outra vez a possibilidade para que algo aconteça, para que não se dê apenas o trabalho e a reprodução do mundo, e sim para que a obra e a invenção sejam possíveis.

Considerações crepusculares

A sombra pôde ser considerada até aqui uma tecnologia fundamental no ateliê: condicionando uma relação profana com as coisas, possibilitou usos tanto dispensáveis, através de materiais esquecidos na estante, quanto potentes, a ponto de criarem um esboço de um rosto indefinido. As coisas foram aí deslocadas da zona do sagrado, da utilidade pré-estabelecida e inclusive do tempo mercadológico do capital. O ateliê, como um espaço que acolhe coisas deixadas à margem, acabou autorizando práticas não-convencionais que tendem a desobedecer a formas comuns de compreensão do mundo. Esta desobediência, possibilitada pela projeção da sombra, não convém lamentar, ainda que a Educação – definida como um fato moral à luz de Émile Durkheim – dificilmente deixe de se apoiar em valores que definem o acerto e o erro, o permitido e o interdito, as sentenças esclarecedoras e as sombrias.

O ato pedagógico, entrementes, apenas parece algo possível à medida que, radicalmente, se aceita a condição moldável em que se encontram os próprios seres humanos, dispostos então a redefinir continuamente seus horizontes e sua substância. A análise de uma pintura em que se pode ler uma relação educativa em toda a dimensão plástica que ela oferece (de silêncios, gestos, contorções paralisadas no tempo e de objetos potencialmente móveis e moventes), talvez calhe para uma reflexão pedagógica que assuma a indefinição dos porvires em seus próprios objetivos, abrindo margem a uma redefinição dos esquemas morais que orientam as condutas educativas.15

A sombra, assim, talvez seja uma tecnologia adequada à privação, por exemplo, da verborragia de um professor superilustrado e que, dizendo tudo, nada mais poderia dizer. A sombra como possibilidade do ócio (skholé), da suspensão temporária de um mundo em nome de outro,16 por que não teria ela a escola como seu principal terreno de projeção à medida em que nada parece mais comum que um aluno perguntando: para que serve isso, professor?

A possível resposta acerca da "serventia" educacional da sombra, logo, não seria outra senão seu compromisso com uma formação humana que privilegie a experiência do ainda-sem-nome/imagem. A criação, como prática característica do ateliê, ora, seria da ordem do ainda-sem-nome/imagem ao mesmo tempo que estivesse compromissada mais com gestos e menos com resultados, justificando sua forma inacabada. A "utilidade" da sombra, então, seria, ironicamente, sua potência de inutilidade, de exercício sem finalidade ou funcionalidade. A sombra como gesto de abertura, eis sua "serventia"! O ato de pôr algo à sombra comporia as táticas no embate contra um corpo educacional que superaquece à medida que está sendo consumido, posto que teve capturada suas capacidades de fazer usos das coisas. A hiperpotencialização da luz, como no efeito de olhar diretamente para o sol (ou para um professor), causando cegueira, não poderia ser evitada (ou balanceada, ou contraposta) por meio da subexposição à luz cujo ateliê seria marca de proteção?

O jovem desenhista, na tela de Lievens, foi privado de uma exposição prolongada da luz e por isso sua tez clara não traz as marcas de um aprendizado superexposto às orientações de seu mestre (ou o superaquecimento pelos saberes do professor). Esta subexposição é que permite dizer que não se trata aqui de profetizar uma educação sombria, mas, de potencializar suas forças inúteis e obscuras que também movem a educação. Eis um mise en jeu a fim de potencializar uso e sombra em nome de uma educação menos refém de demandas (externas). À penumbra, o ateliê é como espaço de uma educação crepuscular onde tanto um iluminismo quanto um obscurantismo teriam lugar mais certo nos livros quase esquecidos na estante; onde o estudante, debruçado sobre seus estudos e outros materiais, viveria a madrugada "em meio às sombras, no negro que já está se tornando cinza" (Larrosa, 2017, p. 252), ainda que ao raiar do dia tivesse de abdicar do labor criativo à sombra, para trabalhar debaixo de sol. A sala de aula, aos modos do ateliê, como espaço de penumbra permitiria então, ainda que por um curto intervalo de tempo-espaço, suspender esse regime de luz.

A esse estado de movimento em que não há estagnação ou em que ela é muito frágil (seja aqui na luz ou na sombra, seja no calor ou no frio, seja no interior, no limiar ou no exterior) Gilbert Simondon (2005) dá o nome de "metaestabilidade": uma saúde do corpo que se faz por meio de uma estabilidade móvel (devir do real) e não um estado estático e cristalizado (ser do real). Trata-se de uma metaestabilidade para que o corpo não morra nem de queimaduras e/ou superaquecimento, nem de putrefação e/ou hipotermia. O desafio educacional contemporâneo, i.e., aquele que explora o limiar, a sombra de seu tempo, exige uma experiência crepuscular, que leve em conta o caráter metaestável da/na educação. Essa metaestabilidade educacional, todavia, não precisaria ser tomada, como em Simondon (2005), de modo dialético, posto que poderia implicar uma multiplicidade de sentidos – onde a visão concorre não com um contrário, mas com sombras capazes de recolocar em jogo os outros quatro sentidos humanos, fazendo face à superpotencialização da luz. Uma metaestabilidade mais próxima à dinâmica não sintética do pensamento e da criação em Deleuze (2011). O ateliê e sua educação crepuscular, assim, abririam espaço ao gesto de dar ouvidos às coisas, saboreá-las, cheirá-las e sobretudo tocá-las, respeitando-se sua adequada temperatura, sem buscar um plano de concordância, de superação ou adaptação, mas lançar mão da excentricidade que lhe é própria para uma experiência múltipla em si. À sombra do ateliê, a experiência se desembaraça das Luzes e devem crepuscular; profana o (pan)óptico e reencontra um háptico em que se reaproxima das coisas e de seus usos. A suspensão temporária do trabalho e do sagrado condiciona um jogo com o ainda-não-vivido da obra e do profano. A sombra põe em jogo, assim, o não como uma experiência positiva.

Post-scriptum: a sombra do texto

Os retratos dos dias de hoje, sem esforço, trazem habitantes de uma sociedade em que o regime panoptical aspira à onipresença e à onipotência. O "tudo é visível" pode equivaler ao "nada é visível", parafraseando Peter Pál Pelbart (2016, p. 49). Educar pela sombra se apresenta, destarte, como uma aposta política e ética: paisagem de cujo pintor neerlandês parece retratista, disparando a contemporaneidade, a intempestividade como força que demove o pensamento do bom senso (epistêmico) atual e rearticula as coisas em um jogo de usos e profanações, de inutilidade e criação. Eis uma aposta em uma experiência em educação sensível ao esquecimento e ao "poder-não". Aposta educacional em que o "Nada é visível" possibilita outra visibilidade do mundo: "…olhar, ou seja, esquecer os nomes das coisas que se vê" (Valéry, 2012, p. 161).

1Os autores agradecem à amiga Helena Almeida e Silva Sampaio por proporcionar o encontro com O jovem desenhista de Jan Lievens, oferecendo uma bela materialidade às discussões do presente artigo.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

5Segundo Giorgio Agamben (2009, p. 58): "Numa anotação dos seus cursos no Collège de France, Roland Barthes resume-a deste modo: ‘O contemporâneo é o intempestivo’."

6A noção de intempestividade em Nietzsche é marcada pela palavra alemã "Unzeitgemäß". O vocábulo é composto por "un-zeit", que implicaria a ideia de "fora do tempo", "intempestividade"; "gemäß", que implicaria a ideia de "conforme" ou "de acordo com"; "zeit-gemaß", por sua vez, seria o "atual", "oportuno" e, em sentido estrito, o "contemporâneo". "Unzeitgemäß", então, aparece nas traduções da obra de Nietzsche para o português ora como "intempestivo" ora como "extemporâneo". Aqui fazemos uso das duas expressões, variando entre elas mais por uma questão estética e poética (potência de sentido) do que por uma proposta filológica ou linguística (precisão de significado).

7A partir de Agamben (2007, p. 58): "profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens. Mas o uso aqui não aparece como algo natural; aliás, só se tem acesso ao mesmo através de uma profanação. Entre ‘usar’ e ‘profanar’ parece haver uma relação especial, que é importante esclarecer."

8Segundo Agamben (2009, p. 72), "Contemporâneo é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder."

9Essa diferenciação entre "obra" e "trabalho", entre "artista" e "trabalhador" é fortemente inspirada nos conceitos desenvolvidos por Hanna. Arendt (2017).

10Entre leigo e artista, entre o que ainda nada sabe e o que já tem a maestria, entre a matéria bruta e a obra-prima, a pintura e a escultura, a mirada plongée e a contre-plongée, a criança e o adulto, e poder-se-ia prolongar ainda essa lista com uma série de outros exemplos.

11Possivelmente as estátuas seriam moldes em gesso do menino Jesus d’A Madonna de Michelangelo e a cabeça de Aulus Vitellius Germanicus, imperador romano.

12Nota sobre a preocupação arquitetônica da pedagogia moderna em produzir uma sala de aula bem iluminada (Dussel & Caruso, 2003).

13Sobre a análise do papel da metáfora no pensamento e da imagem comeniana do "professor-sol" cf. Dussel e Caruso, 2003. Ainda que seja um equívoco etimológico associar "aluno" à ausência de luz, tal associação não parece totalmente um equívoco político, moral ou mesmo semântico, uma vez que pode ser veridizível enquanto metáfora das práticas educacionais modernas. Sobre essa discussão etimológica metafórica da palavra "aluno", Luckesi (2005).

14No original: "Le panoptique, ce n'est pas une curiosité de la petite histoire, c'est la machine despotique absolue de la société libérale". O panóptico, pois, tornou-se uma lógica que atravessa a atualidade das instituições às subjetividades, dos espaços privados aos espaços públicos – com câmeras de segurança para o bem de cada indivíduo e da população –, das zonas industriais às áreas pedagógicas, como bem o diz Schérer (2006, p. 38): "Tudo é pedagógico no projeto de Bentham".

15Destaca-se que não se trata de inventar, apenas, uma sombra onde não há; mas de, amiúde, dar força às sombras que já habitam o território escolar. Justamente nessa medida aproxima-se aqui ateliê e escola: espaços que em seus elementos mais cotidianos apresentam a sombra como uma potência.

16Neste sentido, a função do educador aqui aproxima-se à reflexão arendtiana: "A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo" (Arendt, 2016, p. 238). A educação, por sua vez "é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável, não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e não abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-a em vez disto com antecedência para renovar o mundo comum" (Arendt, 2016, p. 257).

Referências

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos. [ Links ]

Agamben, G. (2007). Profanações. Boitempo. [ Links ]

Arendt, H. (2016). Entre o passado e o futuro. Perspectiva. [ Links ]

Arendt, H. (2017). A condição humana. Forense Universitária. [ Links ]

Biesta, G. (2017). Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Autêntica. [ Links ]

Comênio, J. A. (1997). Didática magna. Martins Fontes. [ Links ]

Deleuze, G. (2011). Différence et répéticion. PUF. [ Links ]

Dussel, I. & Caruso, M. (2003). A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. Moderna. [ Links ]

Elias, N. (2005). A peregrinação de Watteau à ilha do amor: seguido de seleção de textos de Watteau. Zahar. [ Links ]

Foucault, M. (2011). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Vozes. [ Links ]

Gombrich, E. H. (2013). A história da arte. LTC. [ Links ]

Larrosa, J. (2017). Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Autêntica. [ Links ]

Lievens, Jan (1644). Jeune garçon à l'atelier [Pintura]. Louvre, Paris, França. http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=13825Links ]

Luckesi, C. C. (2005). Avaliação da aprendizagem: visão geral. http://www.luckesi.com.br/artigosavaliação.htmLinks ]

Masschelein, J. & Simon, M. (2015). Em defesa da escola: uma questão pública. Autêntica. [ Links ]

Pelbart, P. P. (2016). O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. N-1 edições. [ Links ]

Saviani, D. (1999). Escola e democracia. Autores Associados. [ Links ]

Schérer, R. (2006). Émile perverti ou Des rapports entre l’éducation et la sexualité. Réédition Désordres-Laurence Viallet. [ Links ]

Simondon, G. (2005). L'individuation à la lumière des notions de forme et d'information. Éditions Jérôme Millon. [ Links ]

Valéry, P. (2012). Degas. Dança Desenho. Cosac & Naify. [ Links ]

Recebido: 24 de Abril de 2019; Aceito: 10 de Novembro de 2021; Publicado: 21 de Janeiro de 2022

Endereço para correspondência Luiz Guilherme Augsburger Universidade do Estado de Santa Catarina FAED – Centro de Ciências Humanas e da Educação Núcleo de Estudos Ambientais Altas – Grupo de Pesquisa Geografias, Imagens e Educação Av. Madre Benvenuta, 2007, FAED, sala 312 Itacorubi, 88035-901 Florianópolis, SC, Brasil luizg.augs@gmail.com

ribeiro@uco.fr

Creative Commons License This is an article published in open access under a Creative Commons license