As crianças com deficiência intelectual (DI), por serem vulneráveis à exclusão social, enfrentam desafios singulares em seu processo de escolarização. Os riscos associados a essa exclusão incluem abandono escolar, desautorização de sua capacidade de aprendizagem, analfabetismo e escassez de interações sociais qualitativas.
Neste artigo, utilizamos o termo “deficiência intelectual” como sendo uma alteração que se manifesta no período do desenvolvimento humano, que ocasiona modificações no funcionamento cognitivo e no comportamento adaptativo, incluindo habilidades conceituais, sociais e da vida prática (American Association of Intellectual and Developmental Disabilities [AAIDD], 2010).
A definição de DI da AAIDD (2010) não limita as possibilidades de sua aprendizagem, não leva em consideração, de modo isolado, uma característica biológica específica, mas, sim, considera a presença de outros fatores como, as condições sociais limitantes e adversas, assim como a baixa expectativa de aprendizagem nutrida por alguns educadores.
As pesquisas de Inhelder (1963) e Paour (1988) sugerem que, do ponto de vista estrutural, o desenvolvimento cognitivo das crianças com DI parece obedecer às mesmas leis que observamos entre crianças sem esse tipo de deficiência. No entanto, as primeiras apresentam um ritmo mais lento em seu desenvolvimento e demonstram dificuldades de alcançarem, espontaneamente, o período operacional concreto, descrito por Piaget (que implica o uso de operações mentais “reversíveis” e, portanto, abstratas), assim como de mobilizar os conhecimentos prévios para solucionar problemas em outras situações, mesmo elas sendo de natureza semelhante. Além disso, pesquisas confirmaram diferenças entre os grupos de aprendizes com e sem DI, sobretudo quanto aos aspectos funcionais, afetando, especialmente, a capacidade de evocação e de representação das crianças com DI (Luria & Vinogradov, 1974).
Os resultados das investigações de Schipper e Vestena (2016) também identificaram especificidades no funcionamento intelectual dessas crianças, ao apontarem oscilações do raciocínio e uma falsa equilibração, de modo que essas características parecem comprometer as possibilidades de ascensão a um nível de estágio cognitivo mais avançado. Esses estudos não descartaram as possibilidades de essas crianças avançarem para níveis mais abstratos, desde que a mediação docente potencialize mecanismos de equilibração. Além disso, consideramos primordial investir na comunicação com essas crianças, visto que, comumente, elas demonstram dificuldades para compreender as solicitações do meio escolar.
As dificuldades na ascensão ao pensamento abstrato de crianças com DI também mereceram destaque nos estudos de Vygotsky (1997). Para o autor, o pensamento abstrato refere-se ao emprego do controle consciente do comportamento, da atenção voluntária, da memória, do raciocínio dedutivo e da capacidade de planejamento. Essas dimensões, tipicamente humanas, são descritas pelo autor como funções psicológicas superiores, sendo consideradas como frágeis nas pessoas com DI. De acordo com esse estudioso, o ensino centrado no concreto influencia a capacidade de essas crianças superarem suas dificuldades em mobilizar a memória e a abstração. Nessa direção, as crianças com DI demandam, de modo sistemático, atividades que as desafiem a resolver problemas para alcançarem as formas mais elaboradas do pensamento abstrato (Vygotsky, 1997). O alcance por essas crianças de um nível intelectual mais elaborado não se explica apenas por um esforço individual, mas também pela qualidade das interações vivenciadas em seu contexto e pela acessibilidade ao conhecimento, por meio da oferta de recursos complementares, quando necessário. As pesquisas mencionadas por Vygotsky (1997) ressaltam que há uma estreita interdependência entre as solicitações do meio social e o escolar para que o desenvolvimento cognitivo dessas crianças alcance as funções mentais superiores.
Neste texto, também nos apoiamos na teoria psicogenética da língua escrita, que a concebe como um sistema de representação, cuja utilização se dá nos mais variados ambientes sociais e não só na escola. Segundo Ferreiro e Teberosky (1979), a apropriação do sistema de escrita alfabética (doravante, SEA) é uma aprendizagem conceitual, que requer a reflexão sobre o que a língua escrita nota (ou registra) e como a escrita produz aquelas notações. Esse trabalho conceitual evidencia-se por meio de registros espontâneos das crianças, que assumem formas diversificadas, mas comuns, de acordo com as hipóteses peculiares de escrita que o aprendiz vai elaborando.
Compreendemos também a língua escrita com função social em uma perspectiva do letramento (Soares, 1998). Assim como essa autora, entendemos “letramento” como a apropriação de um conjunto de práticas e de saberes sociais que permite aos indivíduos lerem, compreenderem e produzirem os gêneros textuais escritos que circulam na sociedade. Para que os alunos avancem em seu letramento, cabe à escola e a outras agências educativas públicas oportunizar práticas de leitura e escrita significativas e contextualizadas.
No que diz respeito à apropriação do SEA por crianças com DI, a pesquisa realizada por Gomes (2001) indicou resultado semelhante aos apresentados por crianças sem esse tipo de deficiência. De acordo com esse estudo, as crianças com DI elaboram hipóteses para interpretar a língua escrita e percorrem os mesmos níveis conceituais (pré-silábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético) descritos por Ferreiro e Teberosky (1979). A pesquisa também destaca a importância das interações interpessoais qualitativas, as oportunidades de letramento, as estratégias de ensino com atenção às diferenças, a mediação qualitativa e intencional e a motivação.
Investigações nacionais (Gomes, 2018; Barros, 2017; Oliveira, 2017) reforçaram ainda que o acesso ao mundo letrado por crianças com DI pode ser potencializado por meio do uso de recursos tecnológicos e/ou outros, tais como jogos e atividades que promovem a consciência fonológica. Na mesma linha, outras investigações, tanto internacionais (Kagohara, 2011; Vives et al., 2017) como nacionais (Bez et al., 2013; Pedro & Chacon, 2013; Vieira et al., 2015), apontaram as contribuições do uso de recursos tecnológicos como softwares e aplicativos para a aprendizagem e a comunicação, tanto de crianças que apresentam DI como daquelas que apresentam transtorno do espectro autista (TEA).
Diante desse cenário promissor, torna-se imperioso garantirmos às crianças com DI oportunidades qualificadas para que elas possam elaborar hipóteses sobre a escrita e as formas de representá-la. Para isso, é imprescindível lhes oferecermos situações instigadoras, que lhes oportunizem desenvolver habilidades para o uso significativo da língua escrita.
Apesar dos resultados dessas investigações, no meio escolar, as atitudes de alguns educadores, em relação à alfabetização dessas crianças, ainda são carregadas de preconceitos e de estigmas ancorados na compreensão de uma falta de capacidade de aprendizagem, ocasionando baixa expectativa de êxito nesse processo (Alves et al., 2010; Rossato & Leonardo, 2011). Diante desse contexto, pesquisas empreendidas por Mesquita (2015) e Anache e Resende (2016), entre outras, denunciam que, nessas condições, o ensino se pauta por propostas que se caracterizam pela ausência de exigências cognitivas, interferindo no desenvolvimento do funcionamento intelectual dessas crianças e ocasionando, ainda, uma escolarização de curta duração.
Essas denúncias fortalecem-se, na medida em que a pesquisa de Pletsch (2009) já alertava para a compreensão equivocada da escolarização dessas crianças, em que elas tendiam a ser solicitadas a realizarem, ao longo de anos letivos, atividades de menor esforço cognitivo, tais como: recortar, pintar, cobrir, copiar e colar. Tal conduta influenciava na progressão de seu processo de alfabetização, visto que atividades motoras dessa natureza não guardam relação direta com a evolução conceitual necessária à apropriação da língua escrita.
Acreditamos que a produção científica da área ainda merece uma exploração mais aprofundada acerca das características da língua escrita de crianças com DI, na fase inicial da alfabetização, uma vez que as competências da leitura e da escrita até então se constituem um entrave importante no processo de escolarização dessa população. Essa temática configura o objetivo deste texto, que se propõe a analisar, a partir de escritas espontâneas com e sem figuras, a apropriação do SEA por crianças com DI na fase inicial da alfabetização.
A apropriação do sistema de escrita alfabética: mudanças em como passamos a explicar esse processo de aprendizagem
Até os anos de 1970, a aprendizagem da escrita alfabética era sempre concebida em uma perspectiva empirista-associacionista. Consequentemente, aspectos ligados à memória (visual e auditiva), à coordenação motora e à discriminação perceptiva eram tratados como pré-requisitos ou “habilidades psiconeurológicas” necessárias para um indivíduo alfabetizar-se (Poppovic, 1977). É preciso enfatizar que todos os métodos tradicionais de alfabetização, sintéticos, analíticos ou “ecléticos”, sempre aderiram à mesma crença empirista de que uma criança (ou adulto) se alfabetizaria recebendo do exterior transmissões de informações prontas sobre as relações entre segmentos orais e letras e repetindo-as à exaustão, para poder memorizá-las (Morais, 2012). Foi só no final da década de 1970 que esse cenário foi radicalmente questionado pelas autoras da teoria da Psicogênese da Escrita (Ferreiro & Teberosky, 1979).
Ao assumir uma orientação construtivista piagetiana, essa nova teoria demonstrou que tratar a notação alfabética como um mero “código” e tomar “codificar” e “decodificar” como sinônimos de “ler” e “escrever” eram não só concepções reducionistas, mas equivocadas. Diferentemente do que pensavam o senso comum, os psicólogos dedicados ao campo da alfabetização (Gibson & Levin, 1975) e os autores de métodos de alfabetização, Ferreiro e Teberosky (1979) demonstraram que, antes de compreender que as letras substituem os fonemas ou sons menores das palavras, as crianças vivenciam um percurso evolutivo (Ferreiro, 1985) no qual formulam hipóteses absolutamente originais para duas questões conceituais:
O que a escrita alfabética nota? (quais propriedades das palavras ela registra? os significados ou significantes orais das palavras?).
Como a notação alfabética registra ou produz essas notações? (colocando letras aleatoriamente, ou para cada segmento sonoro pronunciado? Nesse caso, para as sílabas ou para os fonemas que constituem as sílabas?).
As respostas a essas questões vão mudando, à medida que as crianças vão compreendendo o SEA. Superando a visão adultocêntrica própria dos antigos métodos de alfabetização, a Psicogênese da Escrita demonstrou que os erros que os aprendizes produzem, não só são naturais e inevitáveis, como têm um sentido construtivo, porque resultam dos conflitos cognitivos vivenciados pelos alunos e são, portanto, necessários para que avancem em suas hipóteses de escrita.
Ainda nos anos de 1980, em diferentes línguas que não o espanhol, o percurso que compreende as quatro etapas da Psicogênese da Escrita (pré-silábica, silábica, silábico-alfabética e alfabética) foi confirmado por variadas pesquisas (Alves-Martins & Mendes, 1987, para o português; Teberosky, 1987, para o catalão; Pontecorvo & Zucchermaglio, 1988, para o italiano; Jaffré & David, 1993, para o francês). Ao reconhecermos a enorme contribuição dessa teoria para a formulação de novas e mais adequadas explicações para o processo de apropriação do SEA, temos defendido a necessidade de fazer duas ponderações ou ajustes que não rompem, de modo algum, com o sentido construtivista da epistemologia por ela assumida e atestada, ao pesquisarem crianças em tantos países com línguas diferentes.
Em primeiro lugar, ressaltamos a necessidade de reconhecer que a consciência fonológica é uma condição necessária para que o aprendiz inicie o que Ferreiro (1990) e Ferreiro e Teberosky (1979) denominaram “fonetização da escrita”. Embora reconheçamos que a maioria dos estudiosos da consciência fonológica não assume uma perspectiva construtivista e termina valorizando apenas habilidades no nível fonêmico ou defendendo o ensino com métodos fônicos, não podemos ignorar que, para elaborar hipóteses silábicas, silábico-alfabéticas e alfabéticas de escrita, as crianças precisam, sim, refletir sobre os segmentos sonoros das palavras, fazendo-o, inicialmente, no nível da sílaba e, depois, identificando fonemas semelhantes, mesmo que não sejam capazes de pronunciá-los em voz alta (Aragão & Morais, 2020; Morais, 2019).
Em segundo lugar, acompanhando turmas de alfabetização desde a década de 1980, vimos a dificuldade apontada por muitas professoras, ao terem de definir em qual estágio (ou hipótese) de escrita seus alunos se encontravam, porque eles, muitas vezes, oscilavam, demonstrando não ter um modo “único” de compreender o SEA. Em estudos recentes, Gomes e Morais (2014) e Oliveira e Morais (2014) constataram que, sim, a maioria das crianças de final de educação infantil e 1º ano do ensino fundamental que testaram, ao serem submetidas a uma tarefa de ditado de oito palavras, não produziam notações típicas apenas de um estágio descrito por Ferreiro e Teberosky (1979). Esses estudos revelaram que cerca de 15% das notações produzidas pelos participantes (com idades em torno de cinco e seis anos) não se encaixavam em qualquer dos estágios e subestágios minuciosamente descritos por Ferreiro e Gómez Palacio (1982).
Constatou-se, ademais, que apenas 47% dos pré-escolares e 34% dos alunos de primeiro ano escreviam todas as oito palavras ditadas conforme uma única hipótese de escrita. Algumas crianças produziram, na mesma ocasião, escritas com características próprias de quatro estágios: alfabético, silábico-alfabético, silábico com valor sonoro convencional e pré-silábico com valor sonoro na letra inicial (considerando-se as categorias de Ferreiro & Gómez Palacio, 1982).
A experiência com crianças brasileiras que apresentam DI também revela oscilações entre esse grupo de alfabetizandos, razão pela qual estaremos atentos para esse aspecto, ao analisarmos os dados desta pesquisa. Nessa direção, recordemos, nosso foco é aprofundarmos a influência do funcionamento cognitivo de pessoas que apresentam DI sobre a apropriação do SEA.
Se considerarmos o uso de softwares educativos como um dos recursos auxiliares para a aprendizagem da leitura e da escrita de crianças que apresentam DI, verificamos sua potencialidade sobre a aprendizagem dessas crianças. Além disso, quando elas são mediadas pelo professor, de forma eficaz e produtiva, os softwares educativos podem favorecer a mobilização de seus conhecimentos, o que possibilita o contato com uma diversidade de informações da cultura digital. Todas essas possibilidades parecem favorecer a conquista da autonomia dessas crianças e o desenvolvimento de sua capacidade (Pedro & Chacon, 2013).
Além dos benefícios do software, temos aqueles próprios do uso do computador, como, por exemplo, a eliminação das dificuldades motoras, a mobilidade da escrita (mudar a posição das letras), a edição de texto e a variedade de representações gráficas no teclado da máquina (letras, números, sinais de pontuação etc.). Todas essas possibilidades permitem ao escritor iniciante desenvolver as noções de ordem, de sequência, de linearidade, diferenciar entre os diferentes sinais gráficos, e, sobretudo, a identificação e a associação de letras, já que as crianças não precisam fazer apelo ao recurso mnemônico de representação do signo escrito.
Apesar dos benefícios do uso de software na aprendizagem da língua escrita, verificamos que a escola, na maioria das vezes, ainda permanece no conservadorismo do ensino e parece desatenta às inovações tecnológicas (Ferreiro, 2013). Para essa pesquisadora, o computador é uma ferramenta inovadora que poderia ser utilizada em sala de aula, como um dos recursos para a aprendizagem da língua escrita. Ela justifica que a disposição das letras no teclado do computador pode facilitar a escrita de palavras pelas crianças, tendo em vista o acesso visual não só de um conjunto finito de letras, mas também de outros signos linguísticos. A pesquisadora defende o uso do computador para a aprendizagem da língua escrita e argumenta que não se trata de substituir os materiais didáticos de leitura e escrita, mas, sim, de incorporar outra ferramenta como recurso nessa aprendizagem.
Alguns estudos (Araújo 2009; Barros, 2017; Figueiredo, 2017) que se centram sobre o uso de softwares educativos por crianças com e sem DI em processo de alfabetização, destacam a atração, o fascínio e a atenção que elas manifestam pelo uso dos ambientes digitais, especialmente pelos ambientes lúdicos presentes nos softwares educativos. Todos esses aspectos motivam as crianças a enriquecerem sua produção escrita, já que elas podem alterar sua escrita sem ter de apagá-la totalmente, assim como alterar as partes e acrescentar informações sem ter de refazê-la.
Neste estudo, avaliamos que o software “Luz do Saber Infantil” apresentaria algumas características que podem responder às demandas de crianças com DI, dentre elas a possibilidade de elas lerem e escreverem com apoio de imagens e a disponibilidade do banco de dados oferecido pelo software, o que favorece a manifestação de estratégias utilizadas para esse fim.
Assim sendo, para analisarmos, a partir de escritas espontâneas com e sem figuras, a apropriação do SEA por crianças com DI na fase inicial da alfabetização, foram aqui privilegiados, para análise, os resultados da aplicação de um pré-teste e um pós-teste de escrita, o que permitiu avaliar as características da apropriação da notação alfabética das crianças participantes, antes e após o desenvolvimento das sessões de intervenção mediadas pelo software “Luz do Saber Infantil”. A avaliação após o desenvolvimento do estudo visava identificar possíveis alterações das características da escrita das crianças, após a realização de atividades pelas professoras do AEE, mediadas pelo software.
Metodologia
O estudo foi desenvolvido em quatro escolas distintas, todas elas pertencentes à rede municipal da cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil. Participaram da pesquisa oito crianças (A1 a A8). A maioria delas frequentava no contraturno o Atendimento Educacional Especializado (AEE) há um ano – apenas A4 era acompanhada há dois anos. O nível escolar predominante entre elas era o 3º ano do ensino fundamental (A2, A5, A8), seguido pelo 2º ano (A1, A7) e 4º ano (A3, A6), e o 5º ano (A4). Nenhum deles havia frequentado instituição especial e, apenas A5 possuía uma trajetória escolar de multirrepetência, tendo cursado três vezes o 3º ano do ensino fundamental. Além da escola e do AEE, apenas um deles (A3) era acompanhado por psicólogo e psiquiatra no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), e A6 tinha frequentado atendimentos clínicos até o ano de 2017.
Quanto aos aspectos comportamentais, a maioria demonstrava atitude de impulsividade nas situações de aprendizagem, que envolviam resolução de problemas, exceto A2 e A6, que eram mais calmos e persistentes na realização das atividades propostas.
O Quadro 1 representa, de modo sintético, os dados acerca das crianças: gênero, escolaridade, idade na época da aplicação do pré e pós-testes, assim como a escola e a professora.
Escola | Professora | Idade | Aluno | Gênero | Idade | Escolaridade | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Pré-teste | Pós-teste | ||||||
A | P1 | 40 | A3 | Masculino | 11 anos | 11 anos e 2 meses | 4º ano do ensino fundamental |
B | P2 | 45 | A4 | Masculino | 12 anos e 11 meses | 13 anos e 2 meses | 5º ano do ensino fundamental |
A6 | Masculino | 13 anos e 1 meses | 13 anos e 3 meses | 4º ano do ensino fundamental | |||
A8 | Masculino | 8 anos e 8 meses | 8 anos e 11 meses | 3ºano do ensino fundamental | |||
C | P3 | 61 | A1 | Feminino | 8 anos e 1 mês | 8 anos e 3 meses | 2º ano do ensino fundamental |
A5 | Masculino | 10 anos e 11 meses | 11 anos e 2 meses | 3º ano do ensino fundamental | |||
A7 | Masculino | 10 anos | 10 anos e 2 meses | 2º ano do ensino fundamental | |||
D | P4 | 49 | A2 | Feminino | 8 anos e 8 meses | 8 anos e 11 meses | 3º ano do ensino fundamental |
Para a aplicação dos testes de escrita (pré e pós-testes), utilizamos dois procedimentos principais: escritas espontâneas de palavras (com e sem figuras) referentes a dois grupos semânticos (“comidas”, “brinquedos e brincadeiras”). Antes da aplicação, consideramos a referência cultural regional para a confecção de 35 cartões com figuras, sendo 20 de comidas e 15 de brinquedos e brincadeiras. Selecionamos as comidas frango, chocolate, ovo, feijão, baião de dois, bolacha, pastel, salsicha, carne, pipoca, sorvete, peixe, bolo, pão, lasanha, linguiça, refrigerante, arroz, macarrão e suco. Quanto aos brinquedos e às brincadeiras, escolhemos: computador, pega-pega, boneca, bila, pipa, carrinho, pula-pula, bola, boneco, quebra-cabeça, pula corda, videogame, amarelinha, futebol e peteca. Esclarecemos que, apesar da seleção prévia de figuras, cada criança verbalizava, espontaneamente, as palavras pertencentes a um desses dois grupos semânticos. Assim, nem sempre as palavras coincidiam entre as crianças.
A coleta de dados perpassou pelos seguintes procedimentos, em ambos os testes, pré e pós:
Encontros individuais, com duração média de 40 minutos.
Conversa informal entre o examinador e cada criança sobre comidas/brincadeiras/brinquedos preferidos.
Seleção das palavras, de cada grupo semântico, a serem escritas, com base no banco de dados de figuras.
Escrita de palavras relativas às comidas/brincadeiras/aos brinquedos preferidos, com/sem apoio de figura do banco de dados.
Os pré-testes foram aplicados nas salas de AEE das escolas a fim de manter um ambiente familiar para os participantes. Os pós-testes foram aplicados entre dois e três meses após a avaliação inicial. Em cada ocasião, cada participante escreveu entre três e sete palavras.
Antes de iniciar a aplicação dos testes, o examinador dialogava com cada criança a respeito das palavras pertencentes aos grupos semânticos, indagando acerca de suas preferências. Tanto na situação com e sem o apoio de figuras, o examinador escolhia pelo menos cinco palavras ditas pelas crianças, com base nos seguintes critérios: palavras compostas por sílabas canônicas (constituídas por consoante e vogal) e não canônicas, que correspondessem ao banco de figuras
Para a escrita das palavras de cada grupo semântico sem o apoio da figura, o examinador ditava uma de cada vez entre aquelas mencionadas por cada criança e que constavam no banco de dados de figuras. Já para a escrita com o apoio da figura, o examinador, sem verbalizar, apresentava cada figura, por vez, e solicitava sua escrita. Nos dois momentos de aplicação, com e sem o apoio de figuras, após a escrita das palavras, as crianças liam cada escrita produzida, apontando com a ponta do lápis o que escreveram. Comumente elas segmentavam, de modo espontâneo, as sílabas que compunham as palavras. Todas as avaliações eram registradas em papel, sendo também filmadas.
Resultados e discussão
Nas duas testagens, as crianças escreveram 242 palavras. No pré-teste, 106 palavras, somando-se as notações com figuras (N=54) e sem figuras (N=52). No pós-teste, 136 palavras, somando-se as condições com figuras (N=67) e sem figuras (N=69).
Analisamos os resultados com base nas dez categorias descritas anteriormente de subníveis de notações das crianças e as reunimos nos quatro grandes níveis de hipótese, conforme a teoria da psicogênese (pré-silábicos, silábicos, silábico-alfabéticos, alfabéticos) ao lado da categoria “Outros”, introduzida em nosso processo de categorização e que não era considerada pela teoria da Psicogênese da Escrita.
Na análise de cada ocasião de coleta, buscamos responder às seguintes perguntas:
Que níveis e subníveis de escrita predominaram em cada ocasião?
A presença ou a ausência de figuras tendeu a influenciar nos desempenhos de escrita das crianças?
-
Houve variação nas hipóteses reveladas pelas crianças ao notar diferentes palavras?
Por ocasião da segunda e última coleta de dados, também buscamos responder à última pergunta:
Houve variação evidente nos desempenhos revelados pela amostra de crianças com DI entre o pré e o pós-teste?
A Tabela 1 ilustra os dados obtidos no pré-teste.
PRÉ-TESTE | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Modos de notação | PPR | PCV | PCS | SIN1 | SIN2 | SQT | SQL | SAL | ALF | OUT | |
1 | 2 | ||||||||||
SEM FIGURA | − | 5 | 3 | 8 | 8 | 6 | − | 1 | 11 | 4 | 8 |
Níveis | Pré-Silábico | Silábico | Silábico- alfabético | Alfabético | Outros | ||||||
Totais por níveis agrupados | 14,8% | 40,7% | 1,8% | 20,3% | 22,2% | ||||||
COM FIGURA | − | 8 | − | 3 | 9 | 8 | − | 2 | 7 | 3 | 12 |
Níveis | Pré-Silábico | Silábico | Silábico- alfabético | Alfabético | Outros | ||||||
Totais por níveis agrupados | 15,3% | 38,4% | 3,8% | 13,4% | 28,8% |
Nota. PPR= Pré-silábico primitivo; PCV= pré-silábico com variação; PCS= pré-silábico com som inicial convencional; SIN1= silábico inicial 1; SIN2= silábico inicial 2; SQT= silábico quantitativo estrito; SQL= silábico qualitativo estrito; SAL= silábico-alfabético; ALF= alfabético; OUT=outros.
Constatamos no pré-teste maior percentual de palavras do nível silábico, tanto na notação com figuras (38,4%) como sem o apoio de figuras (40,7%), seguida de notações classificadas como “Outros” (22,2% sem figura, e 28,8% com figura). Chamamos atenção para o fato de que essa última categoria teve um índice de ocorrência superior às notações de nível alfabético (20,3% sem figura, e 13,4% com figura) e que foram baixos os índices de notações pré-silábicas, não ocorrendo nenhuma no subnível “pré-silábico primitivo”.
Na condição sem figura, se somamos as escritas de subníveis silábico-inicial (SIN1 e SIN2) as de tipo “Outros” (OUT1 e OUT2), obtemos um percentual de 51,8%, superior ao percentual do somatório de escritas silábicas estritas, silábico-alfabéticas e alfabéticas (33,3%). O mesmo cálculo aplicado à condição “com figura” também revela uma frequência superior e semelhante da soma de notações SIN1, SIN2, OUT1 e OUT2 (51,9%) quando comparada à junção de escritas silábicas estritas, silábico-alfabéticas e alfabéticas (32,7%).
Não constatamos nenhum efeito positivo da condição “com figura” sobre a escrita dos alunos. No pré-teste, os resultados resumidos na Tabela 1 foram parecidos, exceto quanto ao fato de, na condição “com figura”, termos observado um decréscimo da percentagem de notações de nível alfabético, a que se fez acompanhar um pequeno aumento da frequência percentual de escritas “Outras”.
As crianças apresentaram uma frequência importante de variados subníveis, ao escrever no pré-teste, tanto na condição com figura como na sem figura. Essas variações são ilustradas no Quadro 2, em que cada palavra escrita por cada criança é codificada na categoria de subnível de escrita equivalente.
ALUNO | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A1 | OUT2 | OUT2 | SIN1 | OUT2 | SIN2 | ALF | − | − | − | − | − |
A2 | SIN2 | ALF | ALF | ALF | ALF | OUT1 | − | − | − | − | − |
A3 | ALF | SIN2 | SIN2 | OUT2 | OUT1 | ALF | SAL | ALF | − | − | − |
A4 | SIN1 | OUT1 | SQT | SQT | SQT | SQT | − | − | − | − | − |
A5 | SIN2 | OUT2 | SQT | SIN1 | SIN2 | SIN1 | SIN2 | OUT2 | − | − | − |
A6 | ALF | OUT2 | SIN2 | SQT | OUT2 | SIN1 | − | − | − | − | − |
A7 | PCV | PCV | PCV | − | − | − | − | − | − | − | − |
A8 | PCV | PCV | PCS | SIN1 | PCS | ALF | ALF | PCS | OUT1 | SIN1 | SIN1 |
Nota. PPR= Pré-silábico primitivo; PCV= pré-silábico com variação; PCS= pré-silábico com som inicial convencional; SIN1= silábico inicial 1; SIN2= silábico inicial 2; SQT= silábico quantitativo estrito; SQL= silábico qualitativo estrito; SAL= silábico-alfabético; ALF= alfabético; OUT=outros.
Os resultados do Quadro 2 atestam as variações que englobam diversos subníveis: ora as crianças escreviam no subnível pré-silábico, silábico, ora no alfabético, ora na categoria “Outros”. Dentre as oito crianças, apenas A7 não apresentou variedade dos subníveis de escrita. Já as demais participantes oscilaram de subníveis; e três delas (A3, A6, A8) apresentaram maior variação de subníveis (5).
Se considerarmos a maior variedade de subníveis, destacamos A8, que oscilou entre os subníveis pré-silábico, silábico, alfabético e “Outros”. Ao passo que, para a menor variação, selecionamos as notações de A7, que manteve o subnível PCV na escrita de todas as palavras. A seguir (Figura 1), apresentamos exemplos de escritas dessas duas crianças (A8, A7).
As notações de A8 e A7 representam situações diferentes do ponto de vista do nível psicogenético da escrita. Nas notações de A8, ocorreram características de distintos subníveis. Na palavra BOLO, apesar da ausência de um planejamento prévio, A8 em sua leitura ajustou a relação termo a termo entre os grafemas e os fonemas, desprezando as letras excedentes. Ao escrever a sílaba inicial [BO], notou a vogal O, estabelecendo correspondência sonora inicial. Na sequência escreveu (eLa), e, ao apontar esses segmentos escritos, interpretou silabicamente a vogal E como sendo a sílaba final LO, sem atribuir importância às letras finais L e A. Ao examinarmos as palavras PÃO e PEGA-PEGA, observamos, que, na escrita de PÃO, A8 usou uma variedade de grafemas, sem qualquer correspondência sonora. Já em PEGA-PEGA, ela grafou a letra inicial P, o que sugere uma busca de correspondência convencional entre o fonema e o grafema. Em ambas as palavras, não garantimos que ocorreu um planejamento prévio das letras a serem utilizadas em sua escrita. Em relação à palavra BOLA, no subnível ALF, sugere-se a memorização de uma palavra comum e, provavelmente, muito treinada na escola. A estabilidade de uma palavra pode advir de uma exposição frequente e repetida em sala de aula. Entretanto, é importante darmos atenção especial a essas palavras estabilizadas, porque elas podem ajudar as crianças a compreenderem o sistema de escrita alfabética (Morais, 2012).
Nas três notações de A7, a criança registrou variadas letras do alfabeto, aparentemente aleatórias, ao escrever diferentes palavras, e manteve o subnível PCV. Seus registros caracterizam a apropriação de um repertório diversificado de letras sem correlação sonora em suas representações na escrita de palavras, além da provável ausência de indícios de qualquer planejamento prévio, ou tentativa posterior de ajustes de sua leitura à pauta escrita.
Concluímos que, na situação de pré-teste na condição com e sem figuras, ocorreu diversificação de subníveis de escrita, além de não termos identificado qualquer efeito do uso de figuras sobre a escrita das crianças. Vimos também que nem sempre a diversificação dos subníveis revelou uma evolução conceitual da escrita.
Na Tabela 2, resumimos os dados obtidos por ocasião do pós-teste.
PÓS-TESTE | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Modos de notação | PPR | PCV | PCS | SIN1 | SIN2 | SQT | SQL | SAL | ALF | OUT | |
1 | 2 | ||||||||||
SEM FIGURA | − | 7 | 2 | 5 | 11 | − | 2 | 3 | 17 | 6 | 16 |
Níveis | Pré-Silábico | Silábico | Silábico- alfabético | Alfabético | Outros | ||||||
Totais por níveis agrupados | 13,0% | 26,08% | 4,3% | 24,6% | 31,8% | ||||||
COM FIGURA | − | 12 | 2 | 6 | 8 | − | − | 1 | 16 | 5 | 17 |
Níveis | Pré-Silábico | Silábico | Silábico- alfabético | Alfabético | Outros | ||||||
Totais por níveis agrupados | 20,8% | 20,8% | 1,4% | 23.8% | 32.8% |
PPR= Pré-silábico primitivo; PCV= pré-silábico com variação; PCS= pré-silábico com som inicial convencional; SIN1= silábico inicial 1; SIN2= silábico inicial 2; SQT= silábico quantitativo estrito; SQL= silábico qualitativo estrito; SAL= silábico-alfabético; ALF= alfabético; OUT=outros.
Verificamos, no pós-teste (Tabela 2), uma maior frequência de notações classificadas como “Outras”, em ambas as condições, sem figura (31,8%) e com figura (32,8%), seguidas das notações silábicas na condição sem figura (26,08%) e das notações alfabéticas na condição com figura (23,8%). Novamente, não encontramos escritas pré-silábicas primitivas.
Ressaltamos que os índices de notações “Outras”, por ocasião do pós-teste, foram mais altos que no pré-teste, tanto na condição sem figura (31,8% no pós-teste e 22,2% no pré-teste) como na condição com figura (32,8% no pós-teste e 28,8% no pré-teste). Se somarmos as notações de tipo silábico estrito (qualitativo ou quantitativo), silábico-alfabético e alfabético (SQT/SQL, SAL e ALF), constatamos que, ao final da pesquisa, na condição sem figura houve um pequeno decréscimo em relação ao pré-teste (31,9% em lugar dos 33,3% iniciais) e um maior decréscimo na condição com figura (25,4% em lugar dos 32,7% iniciais).
Concluímos que também no pós-teste a presença de figuras não produziu efeitos explicitamente positivos sobre o nível de escrita das crianças e que o tempo transcorrido, vivendo a estimulação promovida pelas tarefas com o software “Luz do Saber Infantil”, no período observado, não assegurou um avanço expressivo na evolução das concepções dos sujeitos sobre como a escrita alfabética funciona, de modo a levá-los exclusivamente a produzir escritas alfabéticas ou silábico-alfabéticas. Tampouco assegurou, de forma evidente, um maior domínio das convenções entre fonemas e grafemas. Por ocasião do pós-teste, também encontramos uma grande variação de níveis e subníveis na escrita de algumas crianças. Os resultados que obtivemos no pós-teste sugerem também uma ampliação de notações denominadas como “Outras”, quando comparamos com o pré-teste, marcadamente representado por escritas silábicas. Para ilustrarmos, destacamos, na Figura 2, as notações de duas crianças, A5 e A6, que escreveram uma maior quantidade de palavras no subnível “Outros”.
Após os registros, as duas crianças, apesar de não terem planejado antecipadamente a quantidade de letras a serem escritas, leram com ajustes termo a termo entre as sílabas registradas e a pronúncia oral de cada uma delas, apontando para cada grupo de letras uma sílaba da palavra. Na primeira palavra (CARRINHO/MOIESS), A5 usou pares de letras, representando sílabas. Entretanto, na sua maioria, não havia correspondência sonora para compor as sílabas das palavras, com exceção da sequência IE, lida pela criança como [Ri], sugerindo uma possível correspondência vocálica. Já na segunda palavra (MACARRONADA/EARATOFQAB), A6 notou uma sequência de pares de letras (EA/MA, RA/CAR, TO/RO, FQ/NA, AB/DA), classificadas como OUT2, em que ocorreu correspondência sonora convencional vocálica em algumas sílabas: EA/MA, RA/CA. Houve também indícios de uma estruturação silábica, na qual cada sílaba era marcada por espaços entre elas. Esses aspectos incidiram sobre sua leitura marcadamente silábica, em uma clara tentativa de buscar o ajuste de cada par de letras a uma sílaba oral pronunciada.
No conjunto dos dados entre o PRÉ e o PÓS-SEMFIG, encontramos também alguns resultados sugestivos de ampliação e de oscilação da variedade dos subníveis de escrita, especialmente nas notações de A4 e A7. A4 ampliou a variedade de três para seis subníveis, enquanto A7 aumentou de um para cinco. As ampliações dos subníveis de escrita por essas crianças indicam oscilações importantes, porque elas ainda registram palavras de um subnível elementar como PCV, assim como de outros subníveis posteriores como, por exemplo, SQT, SIN2, SAL. A título de exemplo, destacamos, na Figura 3, algumas notações de A4 e A7 durante o PÓS-SEMFIG.
Nesses exemplos verificamos uma diversidade de subníveis, que implicaram conhecimentos conceituais diferentes sobre a notação escrita. A4, na palavra PEIXE, escreveu a letra correspondente na sílaba inicial “P” e acrescentou letras aparentemente aleatórias nos demais segmentos, formando “PIASU”, e, após, realizou uma leitura global. Já na escrita de PASTEL, ocorreu o registro das duas sílabas correspondentes que compõem a palavra (PA/IET), mesmo considerando a inversão das letras da sílaba final “IET”. Na leitura dessa palavra, A4 buscou a relação termo a termo, ajustando a sua pronúncia oral: PAS/PA, IET/TEL.
As características da escrita de A4 e A7 demonstraram a heterogeneidade psicogenética em uma mesma situação de testagem, sugerindo que, dependendo da dificuldade da escrita de uma palavra, os aprendizes com DI se deparavam com conflitos, que resultaram em uma notação às vezes mais e outras vezes menos evoluída. É importante ressaltarmos, mais uma vez, que o uso da figura não foi um fator determinante para a evolução conceitual da escrita, e que as crianças diversificavam os subníveis independentemente da presença de imagens.
Considerações finais
Neste texto, analisamos os resultados obtidos por oito crianças com DI durante a aplicação de pré e pós-testes de escrita com e sem o apoio de figuras, durante um período de cerca de três meses. Essas crianças receberam um ensino suplementar com o software “Luz do Saber” que, em princípio, poderia auxiliá-las em sua apropriação do SEA.
Identificamos diversos subníveis de escrita nas notações de todas as crianças nas diferentes testagens, nos dois momentos do estudo, os quais nem sempre sugeriam evolução conceitual da escrita. Observamos, também, uma incidência importante de um conjunto de características não contempladas na teoria da psicogênese da língua escrita, tal como descrita por Ferreiro e Teberosky (1979), que intitulamos como “Outros”. Nessa nova classificação, as crianças, muitas vezes, notavam “pares de letras” (na sua maioria CV, isto é, consoante + vogal), embora com rara ou pouca correspondência sonora convencional em toda a extensão das palavras. Ocorreu, também, a notação de palavras em que as crianças escreviam a sílaba inicial completa no nível alfabético, seguida de letras aparentemente aleatórias.
No conjunto dos dados, a diversidade de subníveis de escrita sugeriu uma heterogeneidade dos conhecimentos das crianças sobre a língua escrita, em diferentes palavras e até em palavras semelhantes, em um mesmo momento de testagem. Comumente, as crianças, embora sem um planejamento prévio para a escrita de uma palavra, realizavam algum ajuste em sua leitura e buscavam a relação entre os segmentos escritos e a pronúncia de cada sílaba oral. Nas escritas de tipo “Outros” ou “silábicas iniciais”, encontramos indicações de uma identificação de sons das palavras a serem escritas e da busca de letras que, convencionalmente, notassem aqueles sons, mesmo que isso só se aplicasse a algumas partes das palavras em foco.
Pareceu haver uma relação entre o grau de dificuldade de escrita e o resultado desse registro, na medida em que os sons vocálicos eram notados de forma mais frequente, especialmente nas sílabas iniciais. Verificamos que as palavras contendo sílabas não canônicas (isto é, formadas por consoante e vogal – CV) eram classificadas, em sua maioria, nos subníveis mais iniciais (pré-silábico) ou intermediários (silábico) da evolução escrita, assim como no subnível nominado “Outros”.
Sem desconsiderarmos as especificidades de funcionamento cognitivo das crianças com DI, ressaltamos que estudos feitos com adultos e jovens alunos da EJA (Azevedo, 2012) ou com crianças sem deficiência que estavam concluindo a educação infantil (Gomes & Morais, 2014; Oliveira & Morais, 2014) também já atestaram uma grande variação nas hipóteses que um mesmo aprendiz revela, ao notar palavras ditadas, com ou sem o apoio de figuras, em uma mesma ocasião.
Se a grande maioria dos aprendizes com DI aqui examinados demonstrou que, mesmo depois de alguns anos de escolarização formal, ainda não tinha alcançado uma compreensão do SEA minimamente estável, que lhes permitisse notar palavras sempre seguindo uma hipótese mais avançada de compreensão do SEA (silábica estrita, silábico-alfabética ou alfabética), parece-nos obrigatório, em pesquisas futuras, acompanhar estudantes com DI, desde uma fase inicial do processo de alfabetização formal, a fim de entender o quanto certas tendências (como a predominância de produzir notações classificadas como “Outros”) são consequência (ou não) de um ensino que parece não conseguir ajustar-se às necessidades desse grupo de aprendizes.
Os dados por nós obtidos não identificaram um efeito da presença ou não de imagens sobre a qualidade das notações produzidas pelas crianças com DI, no que concerne ao domínio do SEA. Assim, julgamos adequado que pesquisas futuras examinem o impacto que tais recursos, materializados ou não por meio de softwares, podem ter sobre a alfabetização de crianças com DI que começam a usá-los desde o início de sua escolarização no ensino fundamental. Nesse contexto, pesquisas que examinem, em profundidade, as mediações praticadas pelos docentes que utilizam softwares ou recursos semelhantes, facilitadores de uma comunicação assistiva, poderão ajudar-nos a elucidar os efeitos das tecnologias digitais em si e aqueles que dependem da qualidade das mediações efetuadas pelos educadores que usam aquelas ferramentas.