Introdução
A cidade é currículo, território semeado por velhos e novos alfabetismos/letramentos. O sujeito habita a cidade e é habitado por ela. O currículo habita o sujeito e é habitado por ele. (BONAFÉ, 2010)
Faz algum sentido dizer que o campo interdisciplinar dos estudos curriculares vem sendo historicamente ocupado com pesquisas em progressiva ampliação na variedade de recortes e enfoques, associados, obviamente, às respectivas abordagens teóricas e metodológicas que marcam sua produção científica. Nas últimas décadas, notadamente, um número maior de investigações tem sido dedicado à análise de temas que envolvem espaços não escolares, a exemplo do que tem sido produzido sobre a relação currículo-território e currículo-cidade, recortes estes que são objetos de discussão no presente texto.
O trabalho que culmina neste artigo forma parte das atividades de pesquisa e debate que temos realizado junto à Rede Brasileira por Instituições Educativas Socialmente Justas, Aldeias, Campos e Cidades que Educam - REDHUMANI e aos grupos de pesquisa que lideramos nas respectivas universidades onde atuamos1. A REDHUMANI2 foi criada em março de 2021 por iniciativa de um coletivo de pesquisadoras/es e docentes de universidades, escolas e organizações não governamentais com o interesse especial de mobilizar um conjunto de ações acadêmicas e sociais em torno de dois eixos estruturantes: interlocução com territórios que educam e promoção e valorização de instituições educativas socialmente justas. Nesse âmbito, a Rede pretende estimular projetos e ações que envolvam temas de importância fundamental para o país, tais como: formação humana integral, territórios educativos, currículos em rede, justiça curricular na educação básica e no ensino superior, educação inclusiva, formação para a vida democrática e cidadã, gestão intersetorial, além de outros (REDHUMANI, 2022).
Nesse âmbito, a proposição que assumimos no artigo é destacar a contribuição dos estudos curriculares no debate da relação entre currículo escolar e cidade, tomando-se como pressupostos que territórios da cidade educam; que seus espaços constituem currículos abertos a experiências, aprendizagens e desenvolvimento humano; e que a formação pode se tornar mais ampla e significativa quando a escola passa a conceber a cidade como constituinte de seu currículo, como destaca Bonafé na epígrafe que abre o texto.
Para fins deste estudo, entendemos que a relação currículo-cidade não deve ser pensada sem que consideremos sua inextricável vinculação com outros elementos que também compõem a dinâmica educativa nos processos da formação humana. Nesse sentido, avaliamos ser necessário levar-se em conta tanto a indissociabilidade dos conceitos: educação, escola e currículo, quanto os de cidade e território, razão pela qual, sempre que oportuno, adotamos no texto a composição educação/escola/currículo e cidade/território para significar contextualmente a relação currículo-cidade.
Para cumprir o objetivo, organizamos o texto em três sessões, buscando preservar a articulação que o tema requer. Na primeira, apresentamos um estado do conhecimento3, visando revelar o que já existe de produção científica no Brasil tratando da relação educação/escola/currículo com cidade/território. Na segunda, caracterizamos brevemente nossa compreensão teórica sobre essa relação, e na última, com base nos indicativos das duas primeiras, apontamos possíveis lacunas e possibilidades de pesquisa como desafios para o campo dos estudos curriculares.
Estado do conhecimento sobre a relação: educação/escola/currículo com cidade/território
Nossa participação como pesquisadores na REDHUMANI e nos grupos de pesquisa que lideramos tem sido marcada, entre outras frentes de trabalho, pela necessidade de situarmos a produção do campo curricular na discussão que envolve o tema da relação currículo-cidade e, nesse âmbito, como já fizemos referência, os demais elementos que a compõem. Assim, como primeira tarefa de investigação, nos propusemos a mapear o que existe de produção científica envolvendo essa relação. A busca e a identificação dos textos que, no seu conjunto, revelam o estado do conhecimento foram realizadas em bases de dados que disponibilizam produções científicas na área da educação. Para este trabalho, utilizamos a SciELO, a plataforma de Periódicos da CAPES e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Nessa fase da pesquisa, não houve busca de textos publicados na forma de livros e capítulos de livros, e como recorte temporal levou-se em conta apenas o limite final 2021.
Tendo em vista o escopo da investigação, definimos como descritores (ou palavras-chave) para a busca os seguintes termos presentes nos títulos dos trabalhos: i) educação and cidade; ii) escola and cidade; iii) currículo and cidade; iv) escola and território; v) currículo and território; vi) currículo and território educativo; vii) escola and território educativo.
Entendemos que este conjunto de descritores aplicados na busca de textos às bases de dados é capaz de abarcar parcela significativa da produção científica brasileira que envolve o tema da relação do currículo escolar com a cidade, foco deste estudo. Como já frisamos, a opção por incluir descritores como: escola, educação, território e território educativo4, além das expressões currículo e cidade, deu-se por entendermos que são termos indissociáveis nessa relação. O trabalho de levantamento de textos nas bases de dados foi realizado entre 25 de outubro e 18 de dezembro de 2021, razão pela qual não estão incluídas pesquisas publicadas em 2022.
A primeira constatação importante no alcance do mapeamento é seu ineditismo, dado que não foi encontrada nenhuma produção brasileira dedicada a levantar o estado do conhecimento ou da arte tratando especificamente da relação currículo e cidade. O trabalho que consideramos estar mais próximo do tema é o artigo intitulado Cidades Educadoras: um estado da arte entre 1990 e 2020 e a relação com a educação formal, de Maria Silvia Bacila, publicado pela Revista Intersaberes em 2021.
Outro aspecto que chama a atenção é a progressiva ampliação do volume de produção relacionado ao tema em pauta ao longo dos últimos 20 anos, que, pelo mapeamento, já alcança um total de 257 trabalhos. No gráfico a seguir, mostraremos um panorama geral da produção com destaque para sua série histórica. Note-se que a partir de 2016 ocorre um aumento ainda mais significativo no número de textos, acréscimo este cujas razões não foram identificadas nesta fase do trabalho, mas que podem ser exploradas em outro momento.
Tomando-se em conta o conjunto dos descritores de busca antes listados e que, de alguma forma, se associam ao tema deste mapeamento, verificamos que os trabalhos acolhem distintos focos de análise sem perder de vista a relação da educação, da escola e do currículo com dinâmica e com a vida nos territórios urbanos. Assim, mostraremos na tabela a seguir como estão distribuídos os textos por descritor que orientou a busca.
Descritor utilizado na busca | Quantidades por tipo de produção | |||
---|---|---|---|---|
Artigo | Dissertação | Tese | Outro | |
Educação-cidade | 123 | 08 | 03 | |
Escola-cidade | 34 | 09 | 02 | - |
Currículo-cidade | 06 | 02 | 03 | - |
Escola-território | 20 | 5 | 1 | - |
Currículo-território | 08 | - | 1 | - |
Território educativo | 16 | 12 | 04 | - |
Subtotais por tipo | 207 | 36 | 14 | - |
Total da produção | 257 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Interessante observar nos dados da tabela 1 que trabalhos dedicados especificamente à relação currículo e cidade são apenas onze, ou seja, 4,2% do total. Parece não restar dúvidas que existe uma lacuna importante a ser preenchida no campo da pesquisa focando essa importante relação, dado que os estudos curriculares vêm mostrando que nos processos da formação humana os conteúdos do currículo não se limitam ao proposto no ambiente escolar e que se faz necessário romper com a clivagem escola/currículo-território/cidade. Nesse âmbito, estudos de Bonafé (2010, 2022), Thiesen (2021), Nogueira (2017), Souza e Bicalho (2015), além de outros, têm destacado que a cidade, em particular, e os territórios, em geral, onde vivem as pessoas, são currículos abertos, ou seja, são espaços de existência e de experiências nos quais e pelos quais a formação humana se produz. Portanto, o currículo escolar é parte desse processo integral da vida que se constitui na relação com os lugares, sejam eles escolares ou não.
Outro ponto que destacamos no mapeamento foi a participação das distintas áreas de conhecimento nesse debate. Vê-se claramente que os estudos que analisam a relação da educação com a dinâmica e a vida nas cidades e demais territórios, interessam também a outras ciências e disciplinas, incluindo as sociais, a saúde, as ambientais, a arquitetura, a educação física etc. No gráfico a seguir, apresentamos a distribuição dos textos por área científica ou de conhecimento. A identificação da área foi feita tomando-se os programas de pós-graduação e as áreas de conhecimento das revistas nas quais os textos foram publicados, além de marcações do próprio título do trabalho.
Aspecto que também consideramos interessante trazer como resultado do mapeamento é a identificação dos enfoques e recortes assumidos pelos/as pesquisadores/as em seus trabalhos quando estes analisam a relação entre educação/escola/currículo e cidades/territórios. Vê-se que o tema, além de ser tratado em distintas áreas de conhecimento, é abordado em pontos bastante diversificados, como mostramos no quadro a seguir.
Enfoques/recortes identificados nos trabalhos | |
---|---|
A cidade e as narrativas juvenis | Educação integral e cidades educadoras |
A criança e a cidade | Educação integral e território educativo |
Alfabetização territorial | Educação patrimonial e cidade |
Aprendizagens na cidade | Educação permanente |
Arquitetura escolar e cidade | Educação popular e cidade |
Brincar na cidade | Educação, cidade e memórias |
Cidade como espaço cognitivo | Educação, cidade e tecnologia |
Cidade como espaço da infância | Educação-arte-cidade |
Cidade como espaço de pesquisa-aprendizagem | Educação-cidade-sustentabilidade |
Cidade contra a escola | Escola e paisagem urbana |
Cidade e educação das sensibilidades | Escola, cidade que educa |
Cidade e educação não formal | Esporte-educação na cidade |
Cidade e formação de professores | Ética e vida na cidade |
Cidade e inclusão social | Gênero e cidade |
Cidade e práticas educativas integradoras | Indígenas na cidade |
Cidade e subjetividades | Infância e cidade |
Cidade educadora | (in)visibilidade das crianças na cidade |
Cidade território educativo | Jogos infantis na cidade |
Cidade, currículo e cultural digital | Juventude e vida na cidade |
Cidade, educação e ciência | O sujeito na cidade |
Cidade, escola e diversidade | Papel da escola no direito à cidade |
Cidades e narrativas das crianças | Paulo Freire e a educação na cidade |
Cidades educadoras e emancipação | Pedagogia da cidade |
Cidades saudáveis | Pobreza, territórios e educação |
Corpo e território | Políticas educativas e vida nas cidades |
Cultura educação-cidade | Relação escola-cidade |
Curricularizando a cidade | Relações inter-éticas e cidade |
Currículo da cidade | Representações de cidade pelas crianças |
Currículo e saberes dos territórios | Tempos da cidade - tempos da escola |
Democratização dos espaços urbanos | Território, trabalho e circulação de saberes |
Desigualdades campo-cidade | Territórios e conhecimento |
Desigualdades educacionais em contextos urbanos | Territórios e currículos |
Direito à cidadania | Territórios e educação ambiental |
Educação como expressão do urbano | Territórios educativos e resistências |
Educação de Jovens e Adultos e cidade | Territórios, escola e relações de poder |
Educação e cidades digitais | Universidade, cidade e liberdade |
Educação e periferias | Violência urbana e clima escolar |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Note-se que nessa ampla lista de enfoques e recortes há pouca presença do debate envolvendo especificamente o currículo e sua relação com a vida e dinâmicas da cidade, o que reforça a hipótese de haver uma lacuna na análise dessa relação. A educação como campo mais genérico ganha maior destaque, assim como trabalhos que envolvem a relação da cidade com escolas.
Enfim, entendemos que a realização do mapeamento se mostra importante na medida em que revela pontos nos quais a pesquisa e a discussão se encontram mais adensadas; aqueles que recebem menor atenção dos pesquisadores e inclusive as lacunas que podem ser exploradas pelos investigadores do campo do currículo, como é, por exemplo, o debate sobre cidade como espaço curricular, conforme apontado por Bonafé (2010; 2022), quando sugere que exploremos a ideia da cidade fazendo-se currículo. Segundo ele, há milhares de situações construindo constantemente significados. A cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e devem ser estudados como tal.
Breves notas de nossa compreensão teórica sobre a relação currículo-cidade
Na produção científica das diferentes áreas que elencamos no gráfico 2, há um consenso claramente manifestado de que a rua, o bairro, a cidade, as comunidades, a aldeia, o campo, enfim, os ambientes em geral educam5. No conjunto desses territórios, a cidade ganha destaque pela óbvia razão de o mundo, nas suas fases moderna e contemporânea, mover-se fundamentalmente pela racionalidade da vida urbana (SIMMEL, 1973; WIRTH, 1973). A cidade, para além de representar o lugar da vida e da produção coletiva, passou a configurar modos de existir, aquilo que por meio dela nos convertemos, um curriculum aberto, ou mesmo uma maquinaria produtora de subjetivação, ou de fabricação de identidades.
A ideia de cidade como currículo trazida por Bonafé (2010; 2022), torna-se importante para nossa discussão, especialmente por sua potência simbólica, epistêmica e política. Entendemos que considerar os movimentos que dinamizam a vida material e cultural da cidade como conteúdo essencial da formação escolar, implica, em certo sentido, superar a histórica segmentação6 que marca a relação dos currículos escolares com os movimentos vividos nos territórios. Bonafé (2010) ilustra essa histórica clivagem e esquadrinhamento dos tempos/espaços com a seguinte metáfora: a escola sai ao seu entorno com o tradicional currículo escolar na mochila e regressa com ela sobre as costas com a mesma estrutura curricular.
Trabalhos identificados neste estado do conhecimento (BONAFÉ, 2010; ZORDAN, SILVA, 2018; SILVA, 2021; GADOTTI, 2006; TONUCCI, 2020) apontam que a relação currículo-cidade é mais profunda do que a corriqueira inclusão de aspectos da vida urbana nos conteúdos curriculares das disciplinas escolares. Eles mostram que há um conjunto que elementos materiais e simbólicos integradores da formação que indissociam a dinâmica curricular da vida na cidade. Nosso entendimento vai nessa mesma direção, cujos pontos centrais sintetizamos nas notas que seguem.
Currículo e cidade são territórios de luta por cidadania, direito esse que somente pode ser alcançado por meio da participação democrática dos sujeitos, seja na esfera civil, jurídica ou política (GADOTTI, 2006; ARROYO, 2015). Nesse sentido, o direito à participação na vida da cidade corresponde, por exemplo, no âmbito da formação escolar, ao direito dos estudantes à participação na escolha do que conta ou deve contar como currículo. Não se trata, portanto, de processos independentes na formação, dado que escola e cidade se fundem pelas entranhas de um mesmo território material e simbólico7. O direito à cidade corresponde, como coconstituição, ao direito à educação.
Espaços individuais e lugares sociais na cidade, na escola ou em qualquer outro lugar são disputados em meio a correlações de força que envolvem a vida coletiva. Nessa arena movida por relações de poder (conceito caro aos estudos de currículo), o acesso a direitos como conhecimento, cultura, condições materiais e tantos outros se efetiva por lutas, na maioria delas, históricas, assim como são travadas disputas de grupos e pessoas por espaços no currículo escolar. Sobre este último aspecto, Bonafé assume posição clara: “decir que la ciudad es curriculum, es señalar una práctica de significación que selecciona y ordena formas de conocer cruzadas por relaciones de poder” (2010, p. 6).
Currículo é máquina de subjetivação e de produção discursiva, assim como são as cidades. Seguindo a lógica de Silva (2010), Bonafé (2022) e Lefebvre (2013), poderíamos dizer que cidades e currículos são discursos. Silva (2010) entende que um discurso sobre currículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo, tal como ele realmente é, o que efetivamente faz é produzir uma noção particular de currículo. Bonafé, por sua vez, assevera que a cidade, como atividade discursiva, manifesta todo um programa ideológico de reprodução das relações de poder e de domínios, seja do tipo econômico, cultural, político e social. Lefebvre (2013) entende que existe uma linguagem própria do ambiente urbano traduzida em discursos de poder. Assim, currículos e cidades constituem, por suas distintas linguagens, espaços produtores de ideias, modos de significação, sentidos e valores; alguns deles hegemonizados e socialmente traduzidos por grupos dominantes como expressões ou conteúdos de verdade8, muitos dos quais são transpostos didaticamente para servir como conhecimento curricular pelos formuladores de materiais pedagógicos.
Cidades e currículos constituem redes de relação humana que tecem afetos, trocas culturais, desejos, utopias9 e um número sem fim de outros vínculos, em geral mediados por valores, saberes, atitudes e conhecimentos, todos indistintamente apropriados via processos formais, informais ou não formais de aprendizagem. Se assumimos a ideia de cidade como lugar de referência da experiência humana cotidiana, necessariamente o currículo escolar deve ser entendido como parte indissociável dessa mesma experiência10, portanto coconstitutivo dela; não obstante o currículo se coloca socialmente como um território qualificado de promoção da formação.
Currículos e cidades são territórios materiais e simbólicos nos quais ocorrem a produção da vida cultural, econômica e social e onde se (re)criam os projetos humanos. São esses espaços os laboratórios mais originais para investigação e experiências de aprendizagem e desenvolvimento. Assim como viver a intensidade da cidade com tudo o que ela representa, produz e transmite, integrar-se a um processo curricular na formação escolar significa, de algum modo, assumir expectativas, projetar futuros, enfrentar obstáculos, vencer etapas, empreender batalhas e abrir-se ao novo. De algum modo, tanto cidades quanto currículos, por seus discursos essencialistas (SUCHODOLSKI, 1977), projetam nas pessoas um conjunto de ideários e promessas de vida. Na expressão de Lefebvre (2013), cidades são incubadoras de ideias, ideais, utopias e movimentos revolucionários11.
A questão do tipo de cidade que queremos não pode ser separada da questão do tipo de pessoas que queremos ser, que tipos de relações sociais buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem mais, que estilos de vida desejamos levar, quais os nossos valores estéticos. O direito à cidade é, portanto, muito mais do que o direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com os nossos mais profundos desejos. (HARVEY, 2014, p. 28)
Cidades e currículos são, em significativa medida, dispositivos culturais de produção e reprodução de disciplinamentos, controle, regulação, vigilância, produção de conflitos e contradições. Figuras importantes como Harvey (2014), Lefebvre (2008; 2013), Lipman (2013), Foucault (1987), Hardt e Negri (2001) e tantos outros nos ajudam a compreender a complexa constituição histórica do urbano no mundo capitalista e, em particular, das cidades, territórios nos quais são produzidos todos os tipos de experiência, comportamentos, conceitos de consumo, espetáculos da mercadoria, enfim, incontáveis modos de significação social e cultural. Cidades são espaços tumultuados de concentração especulativa do capital, da marginalização, da intolerância, do conflito social, da miséria, da violência, mas também do encontro e do reconhecimento do outro, como bem nos lembra Arendt (1993). Cidades-currículo, cujos discursos e racionalidades impregnam modos de ser, agir e pensar, são (re)produzidas ou (re)construídas também pelas e nas instituições que as compõem, inclusive a escola. Sacristan (2013) ressalta que a escola sem conteúdos culturais e sem imersão na prática social é uma ficção, uma proposta vazia, irreal e irresponsável. O conteúdo cultural é a condição lógica do ensino, e o currículo é a estrutura dessa cultura.
Cidades são territórios nos quais transitam imagens, sons e narrativas do espetáculo da vida urbana (SILVA, 2021), uma gramática própria, mas com mundos nela invisibilizados. A cidade que se mostra é apenas parte dela, em geral, a idealizada. Há sempre outra(s) cidade(s) na cidade, que pouco aparece(m) porque move(m)-se no plano do real profundo, quase sempre por lutas cotidianamente intensas de quem as habita. Também na formação escolar, como bem nos alertaram Pierre Bourdieu, Michael Apple, Philip Jackson e vários outros, há sempre um oculto, um submerso no currículo, que muito produz (especialmente no âmbito da subjetivação) sem quase nada formalmente dizer. Não esqueçamos que assim como as cidades, os currículos são dispositivos de produção e reprodução de ideologias.
Currículos, assim como movimentos sociais urbanos, têm potência para resistir aos modelos hegemônicos, para transformar sentidos de mundo, para construir novas possibilidades no plano do existencial, para construir novas experiências educativas e sociais. Um currículo como artefato político, é aquele que, por seu conteúdo, sentido e forma, integra-se a resistências nas lutas pelos direitos à cidadania, à participação democrática, à cultura, ao conhecimento, e tantos outros. Miguel Arroyo (2015) insiste na ideia que o currículo precisa responder aos interesses sociais dos estudantes, dos professores e especialmente dos grupos humanos historicamente invisibilizados e/ou excluídos. O currículo deve ser instrumento de luta, assim como são os movimentos sociais que habitam a cidade.
Nas cidades e pelos currículos, sujeitos criam e recriam seus cotidianos. A vida humana, como acontecimento (DELEUZE, 1974) espaço-temporal, é produzida e significada na inserção social e pelas relações interpessoais. Certeau (1996), um dos mais reconhecidos especialistas em estudos do cotidiano, define esse conceito como sendo aquilo que nos é dado cada dia, ou que nos cabe em partilha, que nos pressiona a cada dia, que nos oprime, pois existe uma opressão no presente. Para ele, o cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Entendemos que a cidade, como território dos cotidianos vividos e relacionais nos quais redes de intermináveis interconexões são tecidas, representa, de certa forma, o que há de mais profundo nessa concepção de Certeu.
No Brasil, estudos sobre currículos como recriação dos cotidianos (ALVES, 2003; FERRAÇO, 2007) vêm acentuado a necessidade de se ampliar a relação da formação escolar com as chamadas artes de fazer dos sujeitos praticantes/pensantes, extrapolando-se os territórios de escola para redes outras, especialmente para histórias de vida nos lugares e entre-lugares de onde, de fato, nunca saímos. Nesse sentido, à ideia de cotidiano como espaço-arte de recriação talvez se possa incluir a noção de um currículo - flaneur12 apontado por Bonafé (2022), supondo-se que no vaguear livre, solto e desinteressado pelas ruas da cidade os sujeitos possam reconstruir suas experiências produzindo sentidos outros, inclusive para os repertórios de conhecimento prescritos na escolarização.
Seguindo essa mesma lógica da indissociabilidade na relação currículo-cidade, poderíamos, não fosse os limites do texto, apontar vários outros aspectos que sinalizam haver um amplo campo de possibilidades de abertura da escola para um mundo que se mostra cada dia mais dinâmico, complexo e plural e para o qual a tradição de um currículo livresco, seletivo e com tantas vaidades acadêmicas parece não dar conta. Potência de estruturas jurídico-políticas nos controles oficiais do Estado, aplicação interessada/seletiva de ferramentas tecnológicas; indução a conceitos liberais de inovação e modernização; estímulo à racionalidade competitiva e meritocrática, adoção de políticas verticais e prescritivas são alguns outros exemplos de similaridades nas racionalidades que ainda governam currículos e cidades e que talvez mereceriam ser detalhados no artigo.
Apontando lacunas e possibilidades de pesquisa para concluir
Não obstante o importante trabalho que pesquisadores do campo do currículo e de outras áreas têm feito para superar a histórica segmentação entre o que tradicionalmente constitui o currículo escolar e a dinâmica dos territórios (inclusive das cidades) observa-se haver ainda grandes desafios. Entendemos que as lacunas que mantêm essas dimensões da formação humana relativamente desintegradas derivam de uma enorme variedade de fatores, muitos dos quais a literatura educacional e ciências afins têm destacado na história recente.
Importa aqui, a título de fechamento do trabalho, tão somente marcar algumas dessas lacunas especialmente aquelas que se apresentam vinculadas mais diretamente ao debate da relação currículo-cidade. Uma delas mostrou-se evidente no estado do conhecimento apresentado na primeira seção do texto, mapeamento esse que revelou a baixa produção do campo do currículo envolvendo a problemática. Dados da tabela 1 apontaram que apenas 4,2% dos trabalhos que discutem o tema da relação educação-cidade são produzidos por pesquisadores do próprio campo do currículo. Este dado sugere pelo menos duas hipóteses que podem ser exploradas em trabalhos futuros: i) o campo dos estudos curriculares, no Brasil, vêm se ocupando predominantemente com discussões relacionadas com suas próprias abordagens teóricas e com políticas de currículo, secundarizando problemáticas importantes como a que tratamos no presente texto; ii) áreas pedagógicas outras e afins à educação estão mais atentas aos problemas da vida real das pessoas e de sua relação com a formação que o campo dos estudos curriculares.
Essa lacuna está também caracterizada pela visível diferença entre o ritmo da produção relacionada ao tema considerando-se todas as áreas de conhecimento listadas no Gráfico 1, (número este que se ampliou significativamente a partir de 2016) e o ritmo desta mesma ampliação tomando-se apenas os trabalhos produzidos por pesquisadores no campo do currículo. Na busca dos textos, utilizando-se conjuntamente os descritores currículo-cidade, dos onze trabalhos identificados, somente seis foram publicados a partir de 2016. Este dado, associado a outros pontos do trabalho de levantamento da produção, reforça ainda mais a hipótese que outras áreas de conhecimento mostram-se mais interessadas no debate do tema da relação educação/escola/currículo com cidade/território, que o próprio campo dos estudos curriculares.
Outro gap que se mostra evidente neste estudo é a baixíssima atenção atribuída pelo campo dos estudos curriculares a questões relacionadas com currículo e território educativo (Moll, 2012; 2015). O estado do conhecimento indicou que os trabalhos dedicados a este recorte mais específico são produzidos fundamentalmente por pesquisadores interessados no tema da educação integral, especialmente por professores/investigadores que atuaram/atuam ou fizeram/fazem gestão no âmbito dessa experiência educativa. O estudo nos leva a supor que tanto o tema da educação integral quanto o recorte territórios educativos passam relativamente ao largo do debate curricular mais geral que no Brasil segue sendo protagonizado por pesquisadores e pesquisadoras desse campo.
Aspecto que também chama a atenção no estudo refere-se ao protagonismo que vem sendo assumido por pesquisadores de áreas específicas de conhecimento tais como: geografia, educação ambiental, história da educação, educação infantil, ciências da natureza, educação física, no debate do tema. Em geral, são trabalhos que, acolhendo a concepção de integração da escola com seus territórios, destacam a importância do aprofundamento dessa relação e buscam, nos conceitos de currículo, ancoragem teórica para vários de seus argumentos. Nesse aspecto, novamente parece ficar caracterizado certa lacuna, especialmente se considerarmos que o debate dessa relação, que envolve questões de fundo curricular, poderia ser protagonizado pelo próprio campo.
Enfim, supomos que a contribuição mais significativa desse trabalho talvez seja a de chamar a atenção para importância do debate que, mesmo sendo pauta conhecida da educação, segue sendo atual, dado que se move pela intermitente agregação de elementos novos, assim como são sempre de algum modo novos todos os demais temas que interessam à sociedade e a vida contemporânea.
Não obstante o importante trabalho que pesquisadores do campo do currículo e de outras áreas têm feito para superar a histórica segmentação entre o que tradicionalmente constitui o currículo escolar e a dinâmica dos territórios, (inclusive das cidades), observa-se haver, ainda, grandes desafios. Entendemos que as lacunas que mantém essas dimensões da formação humana relativamente desintegradas derivam de uma enorme variedade de fatores, muito dos quais a literatura educacional e ciências afins têm destacado na história recente.
Importa aqui, a título de fechamento do trabalho, tão somente marcar algumas dessas lacunas especialmente aquelas que se apresentam vinculadas mais diretamente ao debate da relação currículo-cidade. Uma delas mostrou-se evidente no estado do conhecimento apresentado na primeira seção do texto, mapeamento esse que revelou a baixa produção do campo do currículo envolvendo a problemática. Dados da tabela 1 apontaram que apenas 4,2% dos trabalhos que discutem o tema da relação educação-cidade são produzidos por pesquisadores do próprio campo do currículo. Este dado sugere pelo menos duas hipóteses que podem ser exploradas em trabalhos futuros: i) o campo dos estudos curriculares, no Brasil, vêm se ocupando predominantemente com discussões relacionadas com suas próprias abordagens teóricas e com políticas de currículo, secundarizando problemáticas importantes como a que tratamos no presente texto; ii) áreas pedagógicas outras e afins à educação estão mais atentas aos problemas da vida real das pessoas e de sua relação com a formação que o campo dos estudos curriculares.
Essa lacuna está também caracterizada pela visível diferença entre o ritmo da produção relacionada ao tema considerando-se todas as áreas de conhecimento listadas no Gráfico 1, (número este que se ampliou significativamente a partir de 2016) e o ritmo desta mesma ampliação tomando-se apenas os trabalhos produzidos por pesquisadores no campo do currículo. Na busca dos textos, utilizando-se conjuntamente os descritores currículo-cidade, dos onze trabalhos identificados, somente seis foram publicados a partir de 2016. Este dado, associado a outros pontos do trabalho de levantamento da produção, reforça ainda mais a hipótese que outras áreas de conhecimento mostram-se mais interessadas no debate do tema da relação educação/escola/currículo com cidade/território, que o próprio campo dos estudos curriculares.
Outro gap que se mostra evidente neste estudo é a baixíssima atenção atribuída pelo campo dos estudos curriculares a questões relacionadas com currículo e território educativo (Moll, 2012; 2015). O estado do conhecimento indicou que os trabalhos dedicados a este recorte mais específico são produzidos fundamentalmente por pesquisadores interessados no tema da educação integral, especialmente por professores/investigadores que atuaram/atuam ou fizeram/fazem gestão no âmbito dessa experiência educativa. O estudo nos leva a supor que tanto o tema da educação integral quanto o recorte territórios educativos passam relativamente ao largo do debate curricular mais geral que no Brasil segue sendo protagonizado por pesquisadores e pesquisadoras desse campo.
Aspecto que também chama a atenção no estudo refere-se ao protagonismo que vem sendo assumido por pesquisadores de áreas específicas de conhecimento tais como: geografia, educação ambiental, história da educação, educação infantil, ciências da natureza, educação física, no debate do tema. Em geral, são trabalhos que, acolhendo a concepção de integração da escola com seus territórios, destacam a importância do aprofundamento dessa relação e buscam, nos conceitos de currículo, ancoragem teórica para vários de seus argumentos. Nesse aspecto, novamente parece ficar caracterizado certa lacuna, especialmente se considerarmos que o debate dessa relação, que envolve questões de fundo curricular, poderia ser protagonizado pelo próprio campo.
Enfim, supomos que a contribuição mais significativa desse trabalho talvez seja a de chamar a atenção para importância do debate que, mesmo sendo pauta conhecida da educação, segue sendo atual, dado que se move pela intermitente agregação de elementos novos, assim como são sempre de algum modo novos todos os demais temas que interessam à sociedade e a vida contemporânea.