Introdução
A história da docência e os processos de formação de professores podem ser revisitados pelo trabalho da memória.
A partir desta afirmação que se apresenta o presente artigo, que tem por objetivo destacar alguns pontos de intersecção entre o papel da memória e da história (social e de vida) perante a formação do docente.
Para tal, o texto a seguir está em forma de homenagem para uma das principais pesquisadoras e docentes desta linha no cenário educacional brasileiro: Denice Barbara Catani.
Refletir sobre seus estudos e práticas, em uma linha do tempo acerca das suas publicações, é pensar sobre como a formação se torna uma parte da narrativa mais ampla da profissionalidade, fator este defendido pela autora. Afinal, à medida que a educação se expressa a partir de um contínuo, a memória e a história da docência desempenham um papel fundamental na promoção da reflexão crítica sobre práticas educacionais e em como a formação enfrenta os desafios atuais (Catani, 2022; 2021). E, ao olhar para trás, pode-se avaliar o caminho percorrido e as conquistas e direitos conquistados (e os perdidos) e reconhecer desafios persistentes e identificar caminhos para o enfrentamento no campo formativo (Catani, 2005).
Vamos a isto. Denice Barbara Catani é uma pesquisadora de destaque na área da educação no Brasil. Sua carreira acadêmica e suas contribuições à educação brasileira são amplamente reconhecidas. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Titular na mesma instituição, sua formação acadêmica é marcada por uma dedicação ao estudo, à pesquisa e à prática docente, o que a tornou uma das autoridades da área da Educação. Além de sua atuação na USP, também contribuiu para a formação de diversas (os) pesquisadoras (es) e educadoras (es) ao longo de sua carreira.
Nesta apresentação cabe lembrar que a destacada professora foi integrante fundadora do grupo GEDOMGE (Grupo de estudos docência, memória e gênero) - USP - que organizou eventos no país e mobilizou colegas brasileiras (os) e de outros países a pensar a memória também com a inscrição de gênero por meio da questão explicitada: “existe especificidade na memória feminina”?
Dentro desta esfera, lembra-se que uma memória que não se constrói de forma linear, mas a partir da ressignificação do momento presente. Como disse Le Goff (2013, p. 435): “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”, e essa conexão entre memória e história desempenha um papel importante para a educação, a pedagogia e a formação, pois a memória coletiva se constrói no cruzamento entre temas comuns, e “onde se dão os pontos de afinidades temáticas, estabelecem-se as memórias coletivas” (MEIHY, 2005, p. 64), as quais se entrelaçam e incidem nas identidades individuais e coletivas. A memória individual da docência se entrelaça à experiência pessoal de cada professora (or) e a sua trajetória profissional, a qual é marcada pelos desafios enfrentados, momentos de sucesso e de aprendizagens, como pelos desafios que ao longo da carreira incidem na constituição da identidade profissional.
Essas memórias não só ajudam a projetar a identidade de uma (um) professora (or), como influenciam seu estilo de ensino e abordagem pedagógica. Logo, essa dimensão pessoal da memória da docência é valiosa, pois permite às (aos) professoras (es) aprenderem com suas experiências e a olharem suas práticas num trabalho de construção e reconstrução, possibilitando o que Josso (2020) chamou de experiência formadora.
Sob esta perspectiva formativa das experiências, a história da docência e da formação se estende além do indivíduo (Wunsch, Alves, 2020), abrangendo o desenvolvimento da educação ao longo do tempo e em diferentes contextos sociais e culturais. Para contribuir, desta forma, para que o passado não seja totalmente esquecido, afinal a memória nos acena para conquistas importantes já alcançadas, permite lembrar que tais conquistas são frutos de embates travados no cenário educacional por professoras (es) que não mediram esforços na reivindicação de direitos para o coletivo docente.
Assim, perante ao longo do trabalho de Catani, acredita-se que o artigo pode oferecer elementos que influenciam e ajudam a compreender os caminhos trilhados pelas (os) professoras (es) em busca da constituição identitária, pois essa consciência histórica também ajuda a preservar memórias educacionais valiosas, de modo a compreender e a enfrentar as demandas contemporâneas, fazendo um exercício analítico sobre a formação de professoras (es).
Desta feita, examina-se sua contribuição, bem como os desafios e as conquistas deste campo por meio de uma análise bibliográfica, em uma abordagem interdisciplinar de articulação teoria e prática, sendo o texto organizado em duas partes. Inicialmente, discorre-se sobre o percurso metodológico percorrido. Na sequência, discute-se as categorias de análise “Docente e Memórias”.
Metodologia
Para estruturar uma linha do tempo sobre a contribuição bibliográfica de Catani para a educação brasileira, opta-se por uma coleta de dados por meio da revisão sistemática de literatura, definida como exploração e síntese de evidências, a fim de extrair significados, padrões e insights (Webster; Watson, 2002). E, nesse processo, a amplitude das informações sobre Catani é acolhida e analisada, permitindo a identificação de padrões, expressões e termos que a autora utiliza, de modo a construir uma ponte entre o passado e o presente, de direcionar o olhar tanto para as suas bases vanguardistas com seu pensamento atual. Logo, é possível fazer uma conexão com as especificidades e necessidades pedagógicas e sociais demarcadas historicamente.
Neste processo de revisão, não ocorre apenas uma exploração do que já foi feito, mas é uma maneira de estender essa exploração ao que pode ser feito na área da formação docente a partir de sólidas evidências, afinal o "valor da revisão sistemática de literatura não está apenas no que revela, mas nas brechas que aponta, nas perguntas que suscita" (Kuhn, 1962).
Sob esta perspectiva, este tipo de investigação pode ser tido como vasculhar um vasto depósito de informações, o qual permite construir um próprio edifício de conhecimento sobre alicerces sólidos (Wunsch; Leite; Bottentuit Junior, 2023). Isso lembra que o conhecimento é um processo contínuo e inacabado. Aqui, portanto, as experiências, a memória, as ideias e as palavras de Catani se tornam a matéria-prima da pesquisa.
Quando se empreende nesta esfera, está, de fato, sendo em última instância, um esforço colaborativo, de uma coisa certa: a qualidade da fonte, pois para Prezenszky e Mello (2019) é preciso nunca subestimar o valor de fontes confiáveis, da credibilidade das fontes selecionadas, organizando-as e não as tratando apenas como informações, mas fontes armazenadas de forma acessível e gerenciável. Assim, o que aqui apresenta-se é um sistema de organização enquanto espinha dorsal sobre a produção da pesquisadora brasileira Bárbara Denice Catani.
Sob este cenário, a pesquisa de revisão foi realizada no segundo semestre de 2023, e percorreu a trilha metodológica a saber: Para a plataforma de busca utilizou-se o Scholar Gooogle, e o string “Denice Bárbara Catani”, a partir do qual obtêm-se 2610 resultados geral.
Pela intensa quantidade de publicações, optou-se por estabelecer critérios de inclusão na realização da pesquisa, sendo os seguintes: (a) temporal - “a qualquer momento” para, assim, entender as perspectivas de Catani desde o início da sua carreira até atualidade; (b) relevância acadêmica - ou seja, a escolha dos textos mais citados; (c) idioma - apenas textos em português; (d) autoria - apenas artigos que têm Catani enquanto única autora; (e) tipologia - apenas artigos e resenhas publicados em periódicos.
A partir destes recortes e critérios obteve-se a quantificação de 24 produções, sendo composto por 07 resenhas e 17 artigos conforme segue no quadro 1:
Título | Ano | Periódico |
---|---|---|
Resenha: Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais | 1979 | Rev. Administração de Empresas |
Resenha: Introdução à história da educação brasileira | 1979 | Rev. Administração de Empresas |
Resenha: COSTA, A escola na República Velha | 1984 | Rev. Administração de Empresas |
Resenha: Giannotti, J.A. A universidade em ritmo de barbárie | 1986 | Rev. Administração de Empresas |
Resenha: Lyotard, Jean-Françoís. O pós-moderno | 1987 | Rev. Administração de Empresas |
Resenha: Universidade, escola e formação de professores | 1987 | Em aberto |
Resenha: Os movimentos libertários em questão - A política e a cultura nas memórias de Fernando Gabeira | 1989 | Rev. Administração de Empresas |
Pedagogia e Museificação | 1990 | Revista USP |
A participação das mulheres no mov.dos profes. e a imprensa periódica educacional (1902-1919) | 1994 | Projeto História 11 |
Lutas Pela Profissionalização do Magistério No Brasil: A Participação das Mulheres (1900-1920) | 1994 | C. I. D. M. |
O Movimento das (os) professoras (es) e A Organização do Campo Educacional Em São Paulo | 1995 | Revista ANDE |
Informação, Disciplina e Celebração: Os Anuários do Ensino do Estado de São Paulo | 1995 | Rev. Educação USP |
Perspectivas de Investigação e Fontes Para A História da Educação Brasileira: A Imprensa Periódica Educacional. | 1995 | INEP |
A Imprensa Periódica Educacional e O Estudo do Campo Educacional | 1996 | Educação e Filosofia |
A memória como questão no campo da produção educacional: uma reflexão | 1998 | Revista História da Educação |
Notas de leitura: Dicionário de Educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais | 2003 | Rev. Bras. Educ. |
As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação | 2005 | Rev. FAEEBA |
As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação | 2007 | TREA |
A educação por Bourdieu - excertos bourdieusianos | 2007 | Rev. Educação |
A educação como ela é | 2007 | Rev. Educação |
O lugar dos clássicos na escrita da educação: a metáfora das raízes | 2008 | Rev. Revista USP |
Por uma pedagogia da pesquisa educacional e da formação de professores na universidade | 2010 | Rev. Educar em Revista |
Ler no quarto, ler na sala, ler no ônibus, ler nas bibliotecas públicas e pessoais: refazer efeitos? | 2021 | Rev. Bras. De Pesquisa (auto)biográfica |
Compreender e compreender-se: o campo educacional brasileiro num itinerário de leituras de Pierre Bourdieu | 2022 | Rev. Educação e Pesquisa |
Fonte: As autoras (2023).
O quadro 1 demostra a interdisciplinaridade dos textos da autora, demonstrando que a docência percorre não apenas estruturas conteudistas, mas fortes alicerces políticos e de fontes pedagógicas com foco de aplicabilidade social.
A análise dos dados foi realizada por meio da ferramenta de análises qualitativas Voyant, a qual é uma plataforma online de código aberto para análise de textos gravados digitalmente, “usando algoritmos computacionais, a plataforma extrai informações linguísticas e estatísticas de textos de diferentes tamanhos. O processo permite transformar metadados complexos em visuais facilmente interpretáveis” (Alhudithi, 2021, p. 44). Foi estruturado o seguinte corpus de pesquisa:
Para os artigos que têm mais de 5 páginas, considerou-se os títulos, palavras-chave e o resumo. Para resenhas, análises, apresentações e prefácios, o texto foi incluído completo.
Assim o corpus está constituindo por um documento; 8,151 formas únicas de palavras com densidade vocabular: 0.267; readability index: 14.719; média de palavras por frase: 30.1; a mais frequentes foram: docente (85); memórias (69), as quais se constituem categorias de análise.
Catani: educação, docência e memórias
O analisar das publicações selecionadas permite identificar alguns pontos de intersecção entre o papel da memória e da história (social e de vida) perante a formação do docente, sob a perspectiva de Catani.
O primeiro ponto que chama atenção é a preocupação que a pesquisadora teve (tem) em explorar diversas temáticas que influenciam ou impactam a produção educacional no Brasil. Entre essas questões, uma que permeia seus estudos é a memória. Para ela, esta desempenha um papel crucial na construção do conhecimento, na identidade profissional das (os) professoras (es) e na compreensão das práticas educacionais ao longo do tempo. Nesta análise vê-se a complexidade e a importância da memória e seu impacto e relevância em diferentes áreas de pesquisa e práticas pedagógicas. E, sendo esta uma referência da linha da história da educação, percebe-se que o ato de recuperar e registrar eventos passados, por meio de documentos, relatos e testemunhos, é fundamental para pensar o futuro educacional.
No entanto, em suas escritas, Catani descreve que a memória não é um registro imparcial e estático, mas sim um campo fértil de análise e interpretação. À medida que exploramos as memórias registradas, somos confrontados com a subjetividade dos relatos e as lacunas na documentação. Isso leva a questionar como as memórias são construídas, selecionadas e interpretadas, e como elas apoiam nossa compreensão da história da educação.
Catani também destaca que a memória é alicerce das perspectivas e crenças docente, as
[...] quais permanecem intocadas: de um lado a pressuposição quanto à eficiência de um “saber” pedagógico a ser simplesmente incorporado à formação teórica dos professores, e de outro a crença na figura de um “bom professor” como ideal de excelência, para o qual a posse de certos atributos (em termos de informação e regras de conduta) deve ser garantia de êxito na atuação, ideia esta que direciona também a própria produção de pesquisas sobre o Ensino (Catani, 2010, p. 80).
À medida que as (os) professoras (es) refletem sobre suas próprias experiências educacionais e práticas pedagógicas, fortalecem suas narrativas profissionais. As memórias dos docentes influenciam suas crenças, valores e abordagens de ensino. Além disso, a memória coletiva da profissão docente gera a cultura escolar e a identidade.
A figura 1 demonstra a relevância de se pensar em memórias docentes para Catani. Quando se vê o link das duas categorias mais frequentes “docente” e “memórias” é percebido dois conectores “promoção” e “qualidade”.
Ora, a formação docente é um tema crucial, e o processo de ensino está intrinsecamente ligada à profissionalidade docente. Para tanto, os textos de Catani exploram aspectos relacionados destacando a importância de estratégias e abordagens pedagógicas que perpassam a prática docente. Logo, os textos indicam que além dos aspectos específicos da profissão, a incorporação do entendimento completo de suas histórias de vida, suas necessidades pessoais, seus interesses profissionais e suas responsabilidades sociais. Trata-se de uma abordagem que considera não apenas os aspectos teóricos, mas também as vivências decorrentes da prática docente.
A valorização da pesquisa na formação docente é outro componente essencial em âmbito qualitativo. Ofertar oportunidades dos professores para conduzir pesquisas também foi citado, não apenas para o avanço da educação, mas para a formação contínua e momentos de reflexão das práticas pedagógicas. Ao priorizar a o professor na sua integralidade, é possível construir uma base sólida para o desenvolvimento profissional.
Ainda ao verificar a figura 1, percebe-se a intensa conexão entre “docente” e “memórias”, pois a docência é fortalecida pela memória, que por sua vez contribui para que o docente compreenda a sua prática pedagógica. Afinal, professoras (es) trazem consigo suas próprias memórias de aprendizado e experiências escolares, que influenciam, ou são base de resiliência das suas escolhas. Além disso, a memória coletiva da comunidade escolar, incluindo tradições, rituais e eventos significativos, contribui para a construção de um ambiente de aprendizado enriquecedor, segundo Catani.
Baseada em fontes documentais para investigar questões educacionais, é possível verificar um elo entre “docência” e “memórias” para a autora: a pesquisa. Sob esta perspectiva destacam-se duas fontes utilizadas: os documentos escolares, representados pelos anuários, e a imprensa educacional, tais como jornais, revistas, resenhas.
É fundamental para entender este processo conectivo que a autora as representa como mina de informação, como parte de seu trabalho de pesquisa em educação, reconhecendo a riqueza que eles contêm nos seguintes aspectos:
- Informação: funcionam como registros históricos abrangentes, com detalhes sobre escolas, currículos, estatísticas, desempenho dos estudantes e políticas. Esses dados fornecem uma visão abrangente ao longo do tempo, permitindo a análise de tendências, desafios e conquistas, reconhecendo que servem como uma fonte para pesquisadoras (es), historiadoras (es) e formuladoras (es) de políticas, contribuindo para uma compreensão mais profunda do sistema nas diferentes modalidades de ensino;
- Padrões: estabelecem critérios para a coleta e apresentação de dados, o que ajuda a garantir a consistência e a confiabilidade das informações. Ao fornecer uma estrutura organizada para a apresentação de dados, tais documentos promovem a transparência e a prestação de contas no campo. A professora enfatiza como é essencial para o funcionamento do sistema e para a tomada de decisões;
- Celebração: estruturam possíveis realizações, reconhecendo (boas) práticas, histórias de trajetórias docente, descobertas no campo da educação (e fora dele), incentivando o reconhecimento das conquistas e a busca contínua por melhorias na busca contínua por outros movimentos que avançam no que já conhecemos em outros períodos históricos.
À luz da análise sobre Catani, no que diz respeito à imprensa periódica, é suporte de uma pesquisa que evidencia compreensão mais profunda da história e da dinâmica do planejamento, da prática e da avalição perante a ação docente, podendo promover a transparência e a responsabilidade. Por fim, as fontes para a história da educação têm sido um campo de interesse nas perspectivas para além da história da educação. Oferece uma janela para entender as tendências teóricas, práticas e políticas ao longo do tempo. Os artigos, ensaios e editoriais publicados nesses periódicos refletem as preocupações e os debates de diferentes épocas.
Para Catani, a imprensa periódica é um repositório de ideias que expressam pensamento e a prática pedagógica no Brasil. Investigar essas fontes permite uma análise mais profunda das influências e da recepção de correntes pedagógicas estrangeiras, muitas vezes reflete as reformas de seu tempo, fornecendo insights sobre as decisões governamentais e as iniciativas de reforma que afetaram a educação no Brasil.
Sobre esta base de pesquisa, Catani também destaca sua relevância em evidenciar a participação das mulheres nas lutas e conquistas da profissionalização do magistério no Brasil, sendo ela uma das pesquisadoras que propôs, junto com o GEDOMGE, grupo que realizou na USP eventos relacionando as narrativas de formação de professoras (es) com as questões de gênero.
As pesquisas de Catani mostram que o século XX foi um período de agitação e transformação social em todo o mundo e uma das áreas onde essas mudanças foram mais evidentes foi na educação, e a participação das mulheres desempenhou um papel fundamental nesse processo. Além disso, a imprensa periódica desempenhou um papel crucial ao fornecer um meio de comunicação e expressão para essas mulheres educadoras.
Ponto este que deve ser enaltecido no papel da pesquisadora enquanto referência na área. Afinal, o movimento das (os) professoras (es), nesse período, estava intimamente envolvido em questões relacionadas a melhores condições de trabalho, salários dignos e a promoção da educação pública. As mulheres que atuavam como professoras enfrentavam desafios específicos, incluindo a discriminação de gênero, salários mais baixos e falta de reconhecimento profissional.
Os estudos sobre estes fatos servem como fonte para entendermos o papel da mulher na docência nesta terceira década do século XXI, que continuam como o desafio da promoção da educação pública e a melhoria das condições de trabalho.
Um ponto que chama atenção nesta análise é quando se aprofunda a análise da subcategoria “história”, que sempre está conectada às categorias “memórias” e “docente”, dois termos sobressaem enquanto elo: a organização e o tempo, sendo este com conexão bastante intensa entre “memórias” e “docente”, como se observa na figura 2:
Sobre o tempo, conceito multifacetado e profundamente enraizado na experiência humana, com implicações que transcendem fronteiras disciplinares. Ao longo da história, ao longo da história Bergson (1889) argumentou que o tempo é um fluxo contínuo, é uma duração vivida, uma realidade que destaca a complexidade do tempo como algo que vai além de uma simples sucessão de momentos cronológicos.
Por outro lado, Husserl (2006) sugeriu que o tempo é correlato à consciência humana, está sempre enraizada no passado, operando em um fluxo temporal que é retido e projetado à medida que avança. Já no contexto atual, teorias da psicologia da percepção temporal, como a da Percepção Ativa (Eagleman, 2008), exploram como o cérebro humano constrói representações temporais. Essa abordagem sugere que a percepção do tempo é influenciada por vários fatores, incluindo a experiência sensorial.
Assim, ao relacionar a história e as memórias, pode-se verificar que a docência se faz pela complexidade do tempo como uma experiência humana. Essas visões complementares demonstram a riqueza das discussões sobre o tempo e a importância de uma abordagem interdisciplinar para compreender a vida e o papel do docente em uma sociedade.
Já sobre a organização, crê-se que Catani descreve-a como política e sua estrutura, da governança e até as interações de grupos, instituições e atores que influenciam o sistema educacional de um país ou região. Essa organização desempenha um papel fundamental na formulação de políticas educacionais, na implementação de programas, na definição de metas e na promoção de valores e objetivos no campo da educação.
Os documentos analisados e escritos por Catani trazem temas como a autonomia, democratização, ensino público e a questão da cultura, como simbologias do alcance da ação da (o) professora (or) hoje, fornecendo simultaneamente dados sobre a vida e argumentos para que se pense na transformação de si e da sociedade, como se fosse escrever um clássico, pois
É impossível negar que esse trabalho sobre si, de criação e seleção e de configuração mesmo de um modo de estar na realidade, é […] aquele trabalho de “fazer algo com o que fizeram de nós”. Nenhuma inocência aqui. Não se quer levar a pensar que se afirma a independência dessa ação individual sobre si como se sobrepondo à ação da sociedade (Catani, 2008, p. 153).
No entanto, a organização do tempo docente enfrenta desafios significativos. Um deles é a crescente carga de trabalho administrativo, que muitas vezes consome um tempo valioso que poderia ser dedicado ao ensino e ao planejamento de aulas. Outro desafio é o equilíbrio entre o tempo dedicado ao ensino e à formação profissional. Professoras (es) precisam de oportunidades formativas, de condições para o desenvolvimento profissional.
A organização do tempo docente tem implicações diretas para o sistema educacional como um todo. Quando os professores são sobrecarregados, isto afeta a qualidade e a adaptação (a novos e já costumeiros) métodos e abordagens pedagógicas. Afeta ainda, a saúde física e mental das (os) professoras (es) que têm manifestado, cotidianamente, situações de desistência e de adoecimento.
Considerações finais
As contribuições de Catani ao longo dos últimos 45 anos à educação brasileira são inegáveis. É uma voz respeitada no campo educacional e suas análises críticas têm sido fundamentais para o avanço do debate sobre a educação no Brasil. Seu legado perdura (rá) como um farol de referência para futuras gerações de pesquisadoras (es) e educadoras (es) interessada (os) em compreender e aprimorar o sistema educacional brasileiro.
Denice Catani é uma acadêmica cujo compromisso com a educação e suas contribuições valiosas influenciam o cenário educacional no Brasil. Seu trabalho é um testemunho do poder da pesquisa e da dedicação à educação.
A memória é uma questão central no campo da produção educacional para Catani, permeando a pesquisa, a prática pedagógica e a identidade profissional. Ela desempenha um papel dinâmico na construção da história da educação, na formação da identidade e na influência das práticas pedagógicas. Buscou junto com um coletivo de mulheres pensar no que chamaram na época, “Estudos Alternativos sobre a Formação de Professores” a partir do trabalho com as histórias de vida e o trabalho da memória, pensando também na contra-memória de gênero.
No entanto, a memória não é estática; ela é construída, interpretada e reconstruída ao longo do tempo. Como é fundamental reconhecer a importância da memória e abraçar a complexidade e a subjetividade que ela envolve. A memória é uma lente poderosa que nos permite entender o passado e prospectar o presente tendo o futuro como desafio. A memória auxilia nos processos de avaliação do que já se vive e não gostaríamos de ver novamente retomado como projeto de sociedade e de educação. Possibilita, ainda, trazer à tona narrativas inviabilizadas historicamente que hoje temos a oportunidade de incluir nos nossos repertórios pessoais e coletivos como sociedade.
As perspectivas de investigação nessa área têm permitido a construção de uma narrativa mais abrangente sobre a história da educação e suas complexas relações com a sociedade e as políticas públicas.
A autora diz que é importante reconhecer que as memórias podem ser seletivas e subjetivas, por isto, enquanto pesquisadoras (es) da temática, se devem ser sensíveis às complexidades da memória e aos desafios de trabalhar com fontes de memória na produção de conhecimento educacional.
E para tais afirmativas, Catani, ao longo dos seus estudos, olha para própria jornada na área de formação de professoras (es). Sua formação começou em um contexto desafiador. Essas memórias iniciais ainda ecoam em suas escritas e práticas atuais, lembrando da importância de criar espaços seguros e encorajadores para o desenvolvimento profissional.
Portanto, as memórias não são apenas relíquias do passado; elas são guias para o presente. Lembram da responsabilidade que temos não apenas de transmitir conhecimento, mas de criar um ambiente educacional que nutre memórias necessárias de serem reconstruídas para todos os envolvidos.
À medida que sua carreira avançou, buscou por significância que se estenderam para além da sala de aula, destacando também a questão da memória coletiva da/na/para formação de professoras (es) como um arquivo vivo de experiências compartilhadas, um repositório de histórias que contam como a educação é transmitida de geração em geração. Ao abraçar essas memórias coletivas, reconhecemos que somos herdeiros de uma tradição que carrega os conquistas e desafios de todos os que nos precederam com Catani.