INTRODUÇÃO
Os avanços sobre a ciência da aprendizagem definiram princípios importantes para estruturar experiências pedagógicas, permitindo aquisição e aplicação do conhecimento1. Os princípios pedagógicos2, conjunto de fatores que contribuem para uma aprendizagem mais profunda e significativa, são:
Os novos conhecimentos são elaborados a partir de conhecimentos prévios.
Relações substanciais e não arbitrárias entre a estrutura do conhecimento anterior e o novo aprendizado são necessárias.
O aprendiz deve ter um nível de desenvolvimento cognitivo adequado.
É necessária uma distância ideal entre o que se sabe e o que se deseja aprender.
A disposição para a aprendizagem e a capacidade de torná-la significativa são influenciadas por fatores de equilíbrio pessoal, de relação interpessoal e de inserção social.
Os conteúdos devem ter relevância e funcionalidade, com aplicabilidade.
O aluno deve ter uma postura ativa, o que significa reelaborar seus esquemas de conhecimento, questionar e contrastar a estrutura anterior com a nova (conflito cognitivo), e integrar o novo conhecimento.
É necessário que haja uma atitude favorável em relação ao objeto de aprendizagem e interesse no novo conhecimento e em melhorar habilidades existentes.
A autoestima e o autoconceito influenciam na forma de se relacionar e nas capacidades individuais.
A reflexão sobre a própria aprendizagem é fundamental.
Por apresentar uma maior preocupação com o processo de aprendizagem, o modelo pautado em competências é uma alternativa atual ao modelo tradicional biomédico3. No contexto médico, competência profissional significa o uso habitual e sensato de conhecimentos, habilidades técnicas, comunicação, raciocínio clínico, emoções, valores e reflexões sobre a prática diária para o benefício do indivíduo e da comunidade que está sendo assistida; e, para tal, é necessário o desenvolvimento de diversas dimensões4:
Cognitiva: aquisição dos conhecimentos tácito e científico, além da capacidade de interpretar, analisar, questionar e utilizar esses conhecimentos.
Técnica: o aprendizado de procedimentos médicos e habilidades de exame físico e técnicas cirúrgicas.
Relacional: capacidade de se relacionar bem com pacientes, equipe multidisciplinar, familiares, entre outros, associado ao desenvolvimento de habilidades de comunicação e de resolução de conflitos.
Afetiva: postura médica íntegra, humana, com valores morais e éticos.
Integrativa: estratégias de raciocínio clínico e habilidades, como a tomada de decisões e o julgamento clínico; integração do conhecimento e processo diagnóstico.
Contextual: integração do profissional à realidade de sua prática local, com suas limitações econômicas e estruturais, e com os potenciais benefícios e as facilidades circunstanciais.
Hábitos da mente: capacidade de se autoconhecer, se autoavaliar, refletir sobre sua prática e buscar melhorar.
Para que a formação integral aconteça, é necessário criar estratégias pedagógicas facilitadoras e ambientes apropriados. Nesse contexto, as metodologias ativas ganham um papel de destaque na graduação, orientando a grade curricular de universidades em todo o país5)-(8 e utilizando a problematização e o Arco de Maguerez9),(10 como estratégias de ensino-aprendizagem, de modo a motivar o aluno que, ao interagir com o problema, reflete, absorve e ressignifica seu aprendizado8.
O Registro Médico Orientado por Problemas (RMOP), idealizado por Lawrence Weed11),(12, aproxima-se da metodologia da problematização. O método de Weed, idealizado para melhorar a documentação e o registro dos casos clínicos em prontuário, foi o primeiro a registrar informações em torno de problemas médicos, permitindo a síntese dos dados em problemas distintos13. O RMOP consiste na elaboração da “lista de problemas” do paciente, que deve ser colocada na frente do prontuário como um índice, contendo diagnósticos bem estabelecidos, anormalidades no exame físico ou sintomas. Esse processo é dinâmico: quando um sintoma é desvendado, ele pode ser substituído na lista pelo diagnóstico final. Os problemas são enumerados e, a partir da lista, podem-se estabelecer planejamentos, evoluções e condutas, registrados com o mesmo número e título do problema11.
Alguns trabalhos14)-(17 comentam com entusiasmo o papel do RMOP na organização do registro médico e na melhor condução dos casos clínicos, e relatam sobre sua implantação em serviços de referência. Os autores também anteciparam algumas críticas e obstáculos ao trabalho de Weed, como resistência a mudanças, desacordo com o formato e pouca colaboração dos profissionais com o processo educacional subjacente ao método.
No contexto do ensino, Hurst15, antes mesmo das publicações sobre metodologia da problematização na educação, já havia afirmado que o sistema RMOP de Weed ajudaria no processo educacional, estimulando o pensamento lógico sobre o caso clínico. Entretanto, apenas dois trabalhos18),(19 foram publicados com foco no ensino. Ainda não existem estudos para avaliar a relação da metodologia de Weed com a aquisição da aprendizagem na residência médica.
Na tentativa de aumentar a reflexão dos residentes sobre seus casos clínicos, foi idealizado um instrumento denominado Registro Clínico Baseado em Problemas (RBP) e implementado em uma enfermaria de clínica médica. O RBP foi elaborado a partir das ideias de Lawrence Weed11 do RMOP, porém com uma “lista de problemas” mais adaptada aos avanços tecnológicos atuais, com fácil atualização, proporcionando um espaço onde o residente possa pensar o caso clínico de maneira integral e possivelmente auxiliando a aquisição de competências necessárias à formação médica.
Nossa pesquisa objetivou investigar a percepção dos médicos residentes e preceptores sobre a utilização do RBP no processo ensino-aprendizagem, no programa de Residência de Clínica Médica.
MÉTODOS
O presente estudo teve delineamento qualitativo e transversal. A pesquisa foi realizada no Hospital Geral de Fortaleza-Ceará (HGF), um hospital público, terciário, vinculado ao Programa de Residência Médica Nacional do Ministério de Educação (MEC). A coleta dos dados foi realizada entre outubro de 2016 a abril de 2017.
O RBP foi estruturado em fevereiro de 2016. Os residentes elaboravam o RBP semanalmente, utilizando uma ferramenta de apresentação de slides on-line, nomeado “Apresentações”, disponível gratuitamente na plataforma Google Docs. O arquivo RBP era composto de slides padronizados com informações sobre os 30 pacientes internados na enfermaria da clínica médica. Cada slide continha a informação de apenas um paciente, porém, se a lista de problemas deste fosse extensa, mais slides sobre o caso poderiam ser inseridos como continuação. A estruturação do slide apresentava-se da seguinte maneira: no cabeçalho estavam o número do leito, o nome do paciente, a data de internação, a data atual do RBP, o nome do médico residente, o nome do médico preceptor e o nome do interno do leito. O corpo do slide era composto por uma tabela em que os problemas eram enumerados em linhas, por ordem de prioridade. Nas colunas, registravam-se a ordem do problema, a data do início do problema, o problema, a investigação que o problema gerou, a intervenção realizada para solucionar a situação, além da data do fim do problema, se este já estivesse resolvido. (Figura 1).
Após a finalização do arquivo pelos médicos residentes, era gerado um arquivo em formato PDF que era compartilhado por e-mail com todos os preceptores e residentes. O RBP permanecia disponível on-line na forma de apresentação de slides. Na semana seguinte, o arquivo era novamente editado com atualizações dos problemas e dos pacientes. Com a progressão da investigação do quadro, os problemas poderiam ser aglutinados ou renomeados, de modo que ficasse mais didático e objetivo. Se o problema fosse resolvido, ele não seria apagado, e registrava-se a data da resolução na coluna final. Ao longo da semana, o caso clínico do paciente era discutido diversas vezes entre o residente e o preceptor responsáveis pelo leito, além da participação dos demais preceptores que analisam os casos ao longo das visitas clínicas. Para confeccionar o RBP, o residente precisava ter conhecimento das informações sobre o caso clínico (banco de dados) e decidir a “lista de problemas” do paciente. A partir disso, avaliava qual seria a investigação necessária e que condutas deveriam ser adotadas acerca de cada problema, gerando um processo reflexivo. Os preceptores, ao receberem o arquivo RPB em PDF, tinham acesso a esse processo reflexivo do residente e deveriam fazer correções, preenchendo as lacunas observadas.
Para estudar a participação do RBP no processo ensino-aprendizagem e no desenvolvimento de competências no programa de Residência de Clínica Médica do HGF, foi realizada uma pesquisa qualitativa com os residentes e os preceptores do serviço. Organizaram-se três grupos focais distintos. O grupo 1 (G1) foi constituído com 11 médicos residentes do primeiro ano, o grupo 2 (G2) com dez residentes do segundo ano e o grupo 3 (G3) com oito preceptores do serviço. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas do hospital - Parecer nº 1.726.242 -, e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O tempo de cada grupo focal variou de 70 a 90 minutos, e todo o processo foi registrado por gravadores de áudio. A identidade dos participantes foi ocultada, e cada um recebeu um número para identificação. Os grupos foram conduzidos por um moderador e transcritos por um colaborador que não faziam parte do serviço de clínica médica e que não eram diretamente ligados à pesquisa. A avaliação das entrevistas foi feita por meio da análise de conteúdo de Bardin20, seguindo as etapas de pré-análise, exploração do material, tratamento e interpretação dos dados. Fizeram-se diversas leituras, compondo a leitura flutuante, e identificaram-se e definiram-se, a partir do texto, os indicadores, compostos pelos aspectos mais relevantes encontrados, relacionados à hipótese e aos objetivos da pesquisa. Os indicadores foram agrupados em planilhas no programa Microsoft Excel, codificados em categorias e subcategorias, e organizados por temas. Após, fez-se uma correlação com a literatura.
RESULTADOS
As informações dos participantes da pesquisa foram agrupadas na Tabela 1.
Variável | G1 | G2 | G3 | |
---|---|---|---|---|
N = 11 | N = 10 | N = 8 | ||
Sexo | Masculino | 6 | 4 | 5 |
Feminino | 5 | 6 | 3 | |
Idade | < 25 anos | 1 | ||
25-29 anos | 10 | 10 | ||
30-39 | 5 | |||
40-49 | 1 | |||
50-59 | 2 | |||
Naturalidade | Ceará - Fortaleza | 10 | 6 | 7 |
Ceará - interior | 4 | 1 | ||
Outro estado | 1 | |||
Estado civil | Solteiro | 7 | 9 | |
Casado | 4 | 1 | 7 | |
Divorciado | 1 | |||
Faculdade | Pública | 7 | 10 | 8 |
Privada | 4 | |||
Ano de graduação | Antes de 2000 | 2 | ||
2000-2004 | 2 | |||
2005-2009 | 4 | |||
2010-2015 | 11 | 10 |
Fonte: Elaborada pelos autores com dados extraídos da pesquisa.
A maioria dos residentes fez a graduação em faculdade pública, onde o curso de Medicina tem seu conteúdo programático dividido em módulos integrados e os estudantes têm, somente durante o quarto semestre, contato com as metodologias ativas, como a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Nas instituições privadas, as metodologias ativas são amplamente utilizadas e a ABP é predominante ao longo do curso. Todos os residentes concluíram a graduação entre 2013 e 2015. Os preceptores fizeram a graduação em faculdade pública, três não vivenciaram o novo currículo.
Após a categorização do discurso dos participantes, o conteúdo analisado foi agrupado em temas. Neste artigo, abordaremos o tema “RBP e o desenvolvimento de competências”, que foi dividido em categorias e subcategorias, conforme o Quadro 1.
Tema | Categorias | Subcategorias |
---|---|---|
RBP e o desenvolvimento de competências | Dimensão das competências | Cognitiva |
Integrativa | ||
Contextual | ||
Relacional | ||
Hábitos da mente | ||
Componentes que influenciam na aprendizagem das competências | Aplicabilidade dos conhecimentos | |
Ativação dos conhecimentos prévios | ||
Conflito cognitivo | ||
Contexto | ||
Desenvolvimento cognitivo | ||
Entendimento | ||
Funcionalidade | ||
Metacognição | ||
Motivação | ||
Organização do conhecimento | ||
Postura ativa | ||
Reflexão | ||
Tomada de conduta |
Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos da pesquisa.
O Quadro 2 aponta a visão dos residentes e preceptores sobre essa relação.
Dimensão das competências versus componentes que influenciam a aprendizagem | ||
---|---|---|
Visão dos residentes | Preceptores | |
Cognitiva | Aplicabilidade dos conhecimentos | Desenvolvimento cognitivo |
Conflito cognitivo | Organização do conhecimento | |
Ativação dos conhecimentos prévios | Motivação | |
Desenvolvimento cognitivo | Reflexão | |
Entendimento | ||
Organização do conhecimento | ||
Funcionalidade | ||
Reflexão e metacognição | ||
Motivação e postura ativa | ||
Integrativa | Aplicabilidade dos conhecimentos | Entendimento |
Entendimento | Organização do conhecimento | |
Organização do conhecimento | Motivação e postura ativa | |
Metacognição | Reflexão | |
Motivação e postura ativa | Tomar conduta | |
Tomar conduta | ||
Contextual | Contexto | Contexto |
Postura ativa | Postura ativa | |
Reflexão | ||
Relacional | Organização do conhecimento | Organização do conhecimento |
Reflexão | Reflexão | |
Hábitos da mente | Metacognição | |
Motivação |
Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos da pesquisa.
O papel do instrumento no desenvolvimento de competências de dimensão cognitiva foi relatado pelos residentes:
A própria estruturação do registro [...] ele exige que você tenha algum conhecimento realmente da patologia, porque você vai ter que estruturar os tópicos de problemas mais importantes, o que é que você vai ter que pedir de exames relacionados àquela patologia, o que você foca de mais importante. Então, vai ser bom pra dar uma ideia na vida real do que é mais importante relacionado à patologia. Você conseguir entender “na sua cabeça” quais são os problemas, às vezes quando você está lendo sobre um assunto, das várias “coisas” que tem, você não consegue identificar bem como aquilo se colocaria no seu dia a dia, e quando você destrincha o problema, destrincha a patologia, é... Dentro do registro, você consegue identificar melhor os pontos mais cruciais dentro daquela doença, então ajuda nesse sentido (G2, residente 2).
Na visão dos residentes sobre a organização do conhecimento, o RBP teve influência neste processo:
É uma mudança de abordagem na forma que a gente costuma estudar. Na faculdade a gente estuda muito por doenças... A gente vai estudar “tais, tais, tais” doenças. O que a gente vê no nosso dia a dia é que os pacientes não se apresentam como uma doença fechada... Se apresentam com síndromes e isso muda um pouco o jeito de a gente estudar (G1, residente 7).
A motivação para buscar novos conhecimentos, continuar aprendendo e promover o desenvolvimento cognitivo foi estimulada pelo RBP na percepção dos residentes. Tal motivação também se relaciona com uma maior preocupação com o paciente, em um processo de reflexão e metacognição, conforme indicam os seguintes depoimentos:
O RBP, ele ajuda porque a partir do momento que eu faço uma lista de problema dos meus pacientes, eu tenho um “empoderamento” maior dele. Então eu vou saber qual é o maior problema dele, eu vou poder estudar mais sobre aquilo, “tá” entendendo? Quando eu listo o problema, eu consigo listar também o que eu vou estudar e sabendo mais o caso do paciente, eu vou poder dar um cuidado melhor pra ele (G2, residente 3).
E, às vezes, assim, gerar até uma mudança de alguma “coisa” que está sendo feita e que na hora você percebe que poderia fazer outra determinada “coisa”. Então, senta, discute, rediscute (G2, residente 9).
Na visão dos preceptores, o instrumento possui atuação, principalmente, sobre o entendimento necessário para registrar o raciocínio acerca do caso e, a partir daí, direcionar os estudos, organizar o pensamento e ter motivação para estudar. Os outros componentes que atuam no desenvolvimento da dimensão cognitiva e que, na visão dos residentes, foram influenciados pelo RBP (a ativação dos conhecimentos prévios, conflito cognitivo, aplicabilidade dos conhecimentos, reflexão e metacognição) não estiveram presentes no discurso dos preceptores.
A dimensão integrativa das competências foi a mais citada pelos participantes. O RBP, ao levar a uma reflexão e estruturação do raciocínio por problemas, atuou positivamente na organização do conhecimento:
Ele ajuda bastante em automatizar aquele raciocínio sobre a doença. Quanto mais você vai vendo uma determinada patologia e os problemas relacionados a elas vão se repetindo, é... Aquilo ali, quando você coloca aquilo no papel, quando você destrincha os problemas, é... Isso aí com o passar do tempo, vai se tornando mais rápido, mais natural, mais “extra-piramidal” (G2, residente 2).
O RBP também incentivou os residentes a definir que problemas tinham mais relevância para o cuidado de seus pacientes. Esse processo desperta o interesse, a motivação e a postura ativa do residente, conforme relatado:
O registro ajuda a tomar condutas, porque ele me ajuda a identificar quais os problemas que são prioritários para o meu paciente, me obriga a colocar naquele espaço qual conduta que eu vou tomar diante daquele problema, então, nem que a conduta seja observar, que seja ver o que vai acontecer, que seja aguardar mais um exame, mas que me obriga a ter alguma conduta, ter alguma atitude mais ativa diante daquele problema (G2, residente 6).
Os preceptores, apesar de acreditarem na problematização como metodologia eficaz para o ensino, não perceberam mudança no desenvolvimento da dimensão integrativa após o RBP:
No nosso serviço, já existe mais ou menos um direcionamento pra pensar, pra ter esse tipo de pensamento, de estruturar mais a resolução dos problemas, então acaba que o registro clínico... Ele acaba sendo mais uma forma de documentação, ele é mais uma consequência do que ele gera atitudes (G3, preceptor 5).
Considerando a dimensão contextual das competências, observamos, no discurso de uma parte dos residentes, que o RBP, a partir da reflexão do residente sobre o paciente, fez com que os conhecimentos adquiridos na literatura médica fossem contextualizados por eles nas condições específicas de cada caso, estimulando uma postura ativa e buscando a solicitação racional dos exames. Entretanto, outra parcela dos residentes não associou o instrumento à racionalização na solicitação dos exames: “Cada problema está relacionado a vários exames, e, posteriormente, se descobre que os problemas eram relacionados, levando a desperdício de recursos” (G1, residente 11).
Os preceptores fizeram algumas considerações sobre o potencial do RBP em desenvolver a percepção do residente sobre o contexto. O instrumento registraria as dificuldades estruturais e financeiras do hospital, facilitaria a comunicação ao registrar todos os exames solicitados e, assim, evitaria que esses exames fossem repetidos, principalmente na troca dos rodízios, quando novos residentes assumem o caso, e aos fins de semana, quando a equipe está reduzida. Porém, eles não identificaram que a ferramenta, por si, levou à solicitação de exames de forma racional.
Os preceptores relacionaram sua visão da falta de impacto do RBP na solicitação racional de exames à falta de feedback e ao pouco uso da ferramenta por eles.
Na dimensão relacional, os residentes relataram que o RPB, por ser uma forma de registro, poderia agir no aprendizado do médico residente, principalmente por meio da organização do conhecimento e reflexão sobre o caso, para que o pensamento seja expresso, mesmo que esse pensamento já tivesse sido elaborado em outro momento. Nesse aspecto, o discurso dos preceptores foi concordante com o dos residentes, pois ambos tiveram a percepção de que o RBP, ao ser uma forma de registro, trabalha quesitos como capacidade de síntese e organização do pensamento.
Outra dimensão das competências que surgiu no discurso dos residentes foi o desenvolvimento de hábitos da mente, relacionados à capacidade do médico de autoavaliação, buscando refletir sobre sua prática e melhorá-la. Podemos observar que o RBP propiciou uma sensação de segurança para os residentes:
Eu estou rodando em outro serviço, que depois que eu terminei o meu rodízio na enfermaria de Clínica Médica mesmo, e estou sentindo falta dessa contextualização do paciente, porque você fica com o paciente na sua mão, você se sente mais seguro[...]. Cada passo que o paciente der, você está à frente e já está prevendo aquilo... então, é, realmente, eu considero muito importante (G1, residente 8).
A percepção de que o RBP possa influenciar o desenvolvimento de hábitos da mente não foi mencionado no discurso dos preceptores.
DISCUSSÃO
No discurso dos participantes, o RBP atua como um instrumento que interage com o residente, podendo influenciar no desenvolvimento de competências e no despertar de componentes que atuam na aprendizagem. Os componentes que atuam na aprendizagem estimulam o desenvolvimento das competências, que, por sua vez, tornam o médico residente capacitado a aprender ainda mais e desenvolver novas competências para exercer sua profissão. (Figura 2).
No discurso dos residentes, o RBP se relacionou a vários componentes que atuam na aprendizagem da dimensão cognitiva, como a ativação e aplicabilidade do conhecimento, organização do conhecimento, motivação e reflexão. Réa-Neto21 ressalta que, para solucionar problemas, é necessário avaliar dois componentes que ocorrem de forma simultânea e inseparável: o conteúdo científico adquirido, constituindo o conhecimento médico, e o método de aplicação desse conhecimento utilizado na prática. A interligação dos conhecimentos com dados clínicos é importante, pois isso forma um conhecimento tácito, presente em médicos experientes, proveniente da prática profissional e de tarefas práticas regulares. Esses conhecimentos começam a aparecer quando os estudantes são confrontados com seus primeiros casos e serão desenvolvidos e lapidados com o tempo22.
Ainda no que se refere a essa questão, Bransford, Brown e Cocking1 comentam, ao diferenciarem especialistas de principiantes fora do contexto médico, que os especialistas tendem a organizar seus conhecimentos em conceitos centrais ou ideias maiores, capazes de guiar seu pensamento. Essa organização do conhecimento, na prática médica, pode ser centrada em patologias, síndromes ou até mesmo problemas.
A motivação na busca de novos conhecimentos relatada pelos residentes também se relaciona com uma maior preocupação com o paciente, em um processo de reflexão e metacognição, buscando aprimorar sua prática. Ribeiro et al.23, em um estudo com estudantes brasileiros de Medicina do quarto ano, concluíram que a reflexão melhorou o interesse imediato dos discentes no momento da discussão dos casos. Os autores afirmam também que, entre a consciência das lacunas de conhecimento e o engajamento em uma atividade de aprendizagem, deve haver o interesse pelo tópico e por sua consequente motivação para buscar conhecimento.
O potencial do instrumento de hierarquizar problemas não dominados pelos residentes traz uma situação desafiadora. A introdução de problemas provocadores mobiliza o estudante, expandindo seus horizontes e contribuindo para a aprendizagem24. Além disso, é necessário que esses desafios para a aquisição de novos conhecimentos sejam oferecidos periodicamente, de modo a gerar um ambiente motivador25.
A dimensão integrativa das competências, presente no entendimento global do paciente, no raciocínio clínico, na resolução de problemas e na tomada de conduta, foi a mais citada pelos participantes. Carvalho et al.26, em uma revisão sobre andragogia, ressaltam que a aprendizagem dos adultos é orientada para a resolução de problemas e tarefas de seu dia a dia. Bransford, Brown e Cocking1 explanaram sobre a habilidade dos especialistas em resolver problemas fora do contexto médico, evocando conhecimentos, identificando as nuances dos casos e formando gatilhos para o rápido resgate do conhecimento.
Na fala dos residentes, o RBP influenciou positivamente na tomada de conduta. Réa-Neto21 comenta que o processo de tomada de decisão médica é necessário, porém frequentemente repleto de dados inconsistentes e conflituosos, e que é importante exercitar essa tomada de decisão, sem sofrimento associado.
Houve discordância da relevância do instrumento entre os residentes e preceptores na dimensão integrativa. Skare27 destaca que existem diferenças na percepção dos preceptores em relação ao que é necessário ser aprendido pelo residente, quando comparadas às percepções dos residentes do que deve ser aprendido. Os adultos tendem a aprender com os problemas que lhes interessam, em vez de aprenderem com os problemas definidos pelos professores28.
Ao discutir o desenvolvimento de atitudes e de profissionalismo na formação médica, Stern29 relata como o profissionalismo é aprendido a partir da observação das ações de mentores ou modelos a serem seguidos (role models). Entretanto, o autor ressalta que ensinar não significa, necessariamente, aprender, e, muitas vezes, preceptores que acreditam estar ensinando atitudes profissionais não estão ensinando, enquanto outros preceptores não percebem que representam modelos de atitudes para os estudantes, pois a seleção de que profissional deve ser seguido como modelo é feita pelos alunos. A subjetividade do desenvolvimento de atitudes pode ter influenciado na diferença de percepção dos residentes e preceptores acerca do papel do RBP no desenvolvimento da dimensão integrativa.
Estudantes aprendem cuidando de pacientes em cenários realísticos, com aumento gradativo da responsabilidade clínica e por meio da participação ativa no cuidado28. A dimensão contextual esteve presente no estudo, entretanto a percepção dos residentes não foi unânime e os preceptores perceberam dificuldades, que precisam ser superadas para permitir a obtenção de maiores benefícios do uso dessa ferramenta de aprendizagem prática, acreditando eles que a falta de feedback teve um papel fundamental.
A importância do feedback é um tema amplamente discutido, pois permite aos alunos reestruturar suas compreensões e suas habilidades e criar ideias e capacidades mais poderosas30. A ausência do feedback na educação médica gera incertezas nos estudantes, insegurança e inadequação no serviço, além da possibilidade de o estudante interpretar de forma errônea suas atitudes, criando um excesso de confiança ou medo exacerbado de errar31. Watling et al.32 estudaram o papel do feedback na música, na formação de professores e na medicina, e constataram que, na cultura médica, o feedback possui atuação limitada quando comparado aos demais. Os autores relacionaram esse achado a questões operacionais, como falta de tempo, falta de reconhecimento, compensações e incentivos insuficientes para o ensino e habilidades instrucionais subdesenvolvidas do corpo docente, além de questões culturais, como a valorização da autonomia e da independência médica, levando a uma vulnerabilidade em torno da credibilidade e da construtividade do feedback. Associamos a falta de uma cultura institucionalizada de feedback estruturado no serviço de clínica médica com as dificuldades apresentadas pelos preceptores em fornecer uma devolutiva ao RBP.
A dimensão relacional engloba a capacidade de se comunicar, inclusive na forma escrita, por meio do registro em prontuário, havendo concordância entre residentes e preceptores. Ao registrarem em prontuário, os médicos devem estar refletindo sobre o paciente, e essa escrita deve moldar os processos de cuidado e as conclusões finais que eles alcançam com o diagnóstico, além de servir como oportunidade de aprendizado de casos clínicos, tanto de uma forma retrospectiva de revisão como pelas conclusões que o registro evoca33.
Os hábitos da mente surgiram no discurso relacionados à capacidade do médico de se autoavaliar, buscando refletir sobre sua prática e melhorá-la. Berbel34 comenta a possibilidade de a metodologia da problematização, ao elaborar hipóteses e solucionar problemas, transformar a realidade em que está inserida. Dessa forma, a autora aproxima a metodologia do conceito de práxis, uma atividade transformadora, consciente e realizada de forma intencional, sustentada na reflexão, contrastando com uma atividade meramente prática, que possui sentido de utilidade.
Epstein35 explana sobre o desenvolvimento da capacidade de ser mais atento em relação à sua prática (mindful practice), cujos objetivos são ter mais consciência de seus processos mentais, escutar de forma mais atenta, ser mais flexível, reconhecer vieses e julgamentos e agir com princípios e compaixão. Esse desenvolvimento vem sendo estimulado por programas de residência médica e faculdades de Medicina, pois torna os médicos mais aptos a lidar com sentimentos, tomar decisões difíceis e resolver conflitos pessoais. Essa consciência influencia também no processo metacognitivo de o residente ter mais conhecimento sobre a forma como ele aprende e, consequentemente, poder melhorar a sua capacidade de aprendizagem.
No presente estudo, o RBP propiciou uma sensação de segurança para os residentes. Sacristán et al.24 ressaltam que o desejo de aprender é potencializado pela confiança pessoal e pela sensação de segurança. Essas emoções influenciam a motivação do estudante, assim como suas crenças, seus valores e interesses pessoais. Esses autores afirmam que a aprendizagem relevante se instala por meio de uma complexa rede de intercâmbios relacionados a todas as dimensões da personalidade humana e que são importantes a compreensão e a estimulação de seus diversos modos de construção.
Houve diferença da percepção dos residentes e dos preceptores acerca do potencial do RBP em desenvolver competências de dimensões cognitivas, integrativas e de hábitos da mente. Na visão dos preceptores, o instrumento teria um papel secundário quando comparado às outras atividades do serviço. Alguns fatores podem estar envolvidos nessa percepção, como a falta de acesso às metodologias ativas durante a graduação em grande parte dos casos. No que concerne à pós-graduação, a formação de todos os preceptores durante a residência médica não ocorreu dentro de um modelo bem estabelecido de ensino baseado em competências, que é relativamente recente. Já existem iniciativas3,36 que buscam melhorias na educação médica, entretanto o processo é permeado de incertezas e dificuldades. A maioria dos preceptores é escolhida pela sua capacidade de atuação profissional médica, e muitos deles possuem preparo pedagógico insuficiente27.
No contexto cearense, Fernandes et al.37 relataram a organização e a implementação de um currículo baseado em competências na residência de anestesiologia do Hospital Universitário Walter Cantídio. Os autores teceram comentários sobre a falta de preparo dos preceptores para o novo formato e, para o melhor desenvolvimento dos preceptores, estabeleceram uma reunião semanal para discutir temas docentes atuais e atualizações da especialidade.
O objetivo do ensino na residência é a aprendizagem dos residentes, e é fundamental dar a devida importância à visão dos sujeitos da aprendizagem acerca do seu próprio aprendizado. No contexto desta pesquisa, o discurso dos residentes corroborou o papel do RBP como instrumento de aprendizagem e como facilitador no desenvolvimento de competências, conforme discutido anteriormente.
O presente estudo apresentou limitações, como o número pequeno de participantes. Quando se adota o grupo focal como instrumento de coleta de dados, os próprios participantes podem influenciar na opinião dos outros participantes, alterando o conteúdo das respostas.
Esta pesquisa possui relevância por ser o primeiro estudo nacional a trabalhar com a metodologia do RMOP de Lawrence Weed, num modelo mais adaptado às tecnologias atuais, utilizando o RBP, contribuindo para a aprendizagem no período da residência, a principal modalidade de pós-graduação médica. Acreditamos que a metodologia qualitativa, com seu conteúdo subjetivo, permitiu a abordagem da percepção dessa aprendizagem, que é um tema relevante e de difícil mensuração.
CONCLUSÃO
A partir do discurso dos residentes e preceptores, concluímos que o RBP atuou como instrumento de aprendizagem na residência de clínica médica do HGF, principalmente por estar associado a fatores psicopedagógicos relacionados à facilitação da aprendizagem. As dimensões de competências desenvolvidas pelo RBP foram: cognitiva, integrativa, contextual, relacional e hábitos da mente.
A visão dos participantes sobre a relevância do instrumento para a aprendizagem de competências foi divergente. Os residentes identificam o RBP como um importante elemento facilitador da aprendizagem. Os preceptores acreditam que o instrumento possui papel secundário, diante das outras atividades do serviço. Esse fato também esteve relacionado ao uso limitado do instrumento pelos preceptores. As dimensões de competência com maior diferença entre os discursos foram as competências cognitivas, integrativas e de hábitos da mente.
Portanto, podemos concluir que na visão dos participantes, principalmente dos residentes, o RBP é um instrumento capaz de atuar de forma positiva no desenvolvimento de competências. Entretanto, para que seu potencial gere um aprendizado mais eficaz, os preceptores precisam interagir mais com o instrumento e realizar regularmente o feedback com os residentes.