INTRODUÇÃO
O conceito de currículo modifica-se historicamente de acordo com realidades sociais, tempos e espaços específicos, e, como consequência, precisa ser compreendido no contexto em que está inserido. Ao longo dos anos, as estruturas curriculares são adaptadas de acordo com as mudanças que ocorrem no mundo. Como parte dessas mudanças, a teoria curricular tradicional cedeu gradualmente lugar à teoria crítica e pós-crítica durante a segunda metade do século XX1)-(3.
As mudanças na sociedade ocorridas no Brasil, durante o período supracitado, trouxeram críticas ao modelo de formação médica adotado à época, o qual se baseava no relatório de Abraham Flexner2)-(5. Entre os aspectos que foram alvo de críticas, destacam-se: a falta de abordagem do compromisso social; a formação excessivamente teórica; a ênfase nas especialidades médicas, nas tecnologias de tratamento e na investigação diagnóstica de doenças; o descaso com a necessidade de capacitação dos professores de Medicina; a fragmentação da matéria médica em disciplinas; a carga horária excessiva; e, por fim, a dissociação entre ciclo básico e clínico5),(6.
Simultaneamente, no Canadá, estavam sendo desenvolvidas metodologias ativas de ensino-aprendizagem, com o objetivo de situar os estudantes no centro do processo de construção do conhecimento, tornando-os protagonistas de sua própria formação e aumentando assim sua capacidade reflexiva. Esse trabalho, desenvolvido por professores da McMaster University School of Medicine, deu origem ao método de ensino conhecido como Problem-Based Learning (PBL), instituído oficialmente na Universidade de McMaster, em 1969. Outras escolas, incluindo a Universidade de Maastricht na Holanda, a Universidade de Harvard nos Estados Unidos e a Universidade de Sherbrook no Canadá, passaram a adotar o PBL, parcial ou integralmente, como método de ensino nos cursos de graduação em Medicina7.
O PBL se popularizou no Brasil a partir de 2001, com a criação e implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Medicina, que demandavam, por parte das escolas médicas, a elaboração de um projeto pedagógico centrado no estudante7.
A definição de currículo é abrangente e possui diferentes significados, dependendo da finalidade com que está sendo empregada. Neste estudo, consideramos três tipos de currículo:
Currículo prescrito: representa o currículo idealizado, documental. Elaborado com base nas DCN, compartilha parte de seu conteúdo com outras escolas brasileiras e objetiva orientar o ensino.
Currículo real: resulta das práticas cotidianas e é mais amplo do que qualquer tipo de documento no qual se reflitam os objetivos e planos, pois integra o que é prescrito com o contexto local em que é aplicado, ou seja, não é imutável, mas construído a partir da avaliação e reflexão crítica de professores e outros atores do processo de ensino-aprendizagem, como os preceptores, os diretores de escolas e, principalmente, os próprios estudantes1),(8.
Currículo oculto: compreende o conjunto de experiências e estímulos que o estudante recebe sem que eles tenham sido previstos nem planejados. Essa característica torna o currículo oculto imensurável8.
O desenvolvimento de currículos baseados em resultado (CBR), também chamados de currículos por competência, cuja ênfase se dá na aplicação e não apenas na aquisição de conhecimentos teóricos, no aprendizado e não no ensino, na organização não hierárquica, na definição do conteúdo com participação do aluno, na avaliação formativa e critério referenciada, vai ao encontro do modelo PBL7. O currículo do curso de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) foi construído nessa perspectiva, incluindo a participação de diferentes atores (estudantes, docentes, médicos, população, gestores), com o objetivo de dialogar sobre o que é ser competente, considerando aspectos cognitivos, afetivos e psicomotores, de modo a elaborar e validar, coletivamente, esse conceito. A competência, assim definida e desenvolvida durante os anos de graduação, permitiria qualificar as ações dos futuros profissionais médicos, segundo o contexto em que seriam aplicadas, levando-se em consideração critérios de excelência para a prática médica. Dessa forma, os alunos seriam preparados para agir de forma ativa, articulada, crítica e contextualizada9.
O intuito da proposta curricular do curso de Medicina da UFSCar, fundado em 2006, no interior do estado de São Paulo, era sanar, ou ao menos minimizar, aspectos que foram alvo de críticas da formação médica no século passado9. Para atingir os resultados previstos, desde a sua implantação, adotou-se uma abordagem educacional orientada por competência, construtivista, com metodologias ativas de ensino-aprendizagem e integração teórico-prática, permitindo o resgate de conhecimentos prévios e a construção de novos saberes, de modo a valorizar a ideia de que o conhecimento não é estanque e precisa sempre ser revisitado e reconstruído, isto é, a ideia de que aprender a aprender é mais importante do que o aprender em si10. Assim, as atividades do curso foram estruturadas em: unidades de simulação da prática profissional, incluindo situações-problema e estações de simulação; prática profissional, com inserção precoce dos alunos no cenário real de atenção à saúde local, principalmente nos ambientes de atenção primária à saúde (APS); e unidade educacional eletiva, com o propósito de incluir o olhar do estudante na construção do seu próprio currículo10.
O projeto político-pedagógico do curso de Medicina da UFSCar desde o início se propôs a formar profissionais generalistas, capazes de atender à demanda de reestruturação do modelo de assistência proposta pelo Sistema Único de Saúde (SUS), voltada ao fortalecimento da APS, tendo na Estratégia Saúde da Família sua principal ferramenta. Para cumprir esse objetivo, optou-se por um currículo com inserção longitudinal dos estudantes de graduação em cenários assistenciais da APS, do primeiro ao sexto ano, com carga horária aproximada de 20% em relação à carga horária total do curso10.
Este estudo foi realizado com o intuito de avaliar em que medida o curso de Medicina implantado na UFSCar, considerando seus aspectos didáticos e organizacionais, resultou na formação de profissionais generalistas voltados à atuação na APS.
MÉTODOS
Esta é uma pesquisa descritiva e transversal sobre uma amostra de conveniência composta por 77 médicos, egressos das turmas I a V (2011-2015) do curso de Medicina da UFSCar. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e aprovado sob o número 2.251.242. Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Para coleta de dados, de agosto de 2017 a agosto de 2018, os pesquisadores elaboraram um questionário inédito (https://doi.org/10.6084/m9.figshare.14251040.v3)11, em formato misto, baseado em diferentes estudos10)-(20. O questionário era dividido em quatro partes: 1. identificação (gênero, idade e ano de conclusão do curso); 2. análise do perfil profissional (especialização, sim ou não; formato, quantidade, área da especialização e duração; razões para não ter feito especialização, se fosse o caso; título, sim ou não e qual, caso aplicável; e questões relativas ao momento da escolha da especialidade); 3. análise dos fatores que influenciaram a escolha da especialidade de forma positiva ou negativa (profissional médico; membro da família; professor; aspecto financeiro; mercado de trabalho; contato com a área durante a graduação; ligas acadêmicas; congressos, simpósios, workshops, palestras e oficinas; iniciação científica; Projeto Jovens Talentos; unidades educacionais do curso; e outros que os respondentes puderam elencar); e 4. análise dos fatores que contribuíram ou não para a aproximação e interesse pela APS, graduados em escala Likert, da seguinte forma: não despertou nenhum interesse, despertou pouco interesse, despertou um interesse razoável, despertou muito interesse e despertou total interesse (facilitador ou preceptor ou médico de família e comunidade, contato com médico de família e comunidade fora do curso, ganho financeiro, oportunidade no mercado de trabalho, inserção na atenção primária desde o primeiro ano, realização de visitas domiciliares, acolhimentos nas unidades de saúde da família, estágio de medicina da família no internato, estilo de vida, flexibilidade de atuação, utilização de diversos conteúdos na prática, currículo, centralização do aprendizado no aluno, relação aluno-professor horizontal e relação teoria-prática do curso).
Todos os médicos egressos das turmas I a V do curso de Medicina da UFSCar foram convidados a participar da pesquisa. Essas turmas eram compostas por 32, 42, 37, 38 e 40 estudantes, respectivamente. Mediante aceite, foi enviado o link do questionário a ser preenchido virtualmente. O programa utilizado para preenchimento do questionário dispunha de um recurso que obrigava os respondentes a preencher todas as questões antes de passarem à seção de perguntas seguinte. Foi concedido prazo de cinco meses para os participantes responderem. Durante esse período, encaminharam-se três lembretes de preenchimento, com intervalo de aproximadamente 50 dias entre eles.
Os dados coletados foram tabulados e submetidos à análise estatística descritiva. Os resultados foram apresentados como média ± DP ou frequência absoluta (porcentagem), conforme o tipo de variável.
RESULTADOS
Dos 183 ex-alunos contatados, 77 (42,1%) responderam à pesquisa, sendo 63,6% (49) do sexo feminino e 36,4% (28) do sexo masculino. A média de idade dos respondentes foi de 29,75 ± 2,6 anos, sendo a média de idade no momento de conclusão do curso de 24,98 ± 2,2 anos. Com relação ao ano de formatura, a distribuição dos participantes se deu da seguinte forma: nove eram da turma I (formados em 2011), 19 da turma II (formados em 2012), 15 da turma III (formados em 2013), 17 da turma IV (formados em 2014) e 17 da turma V (16 formados em 2015 e um formado em 2016).
Dos 77 participantes, 73 (94,8%) optaram por fazer alguma especialização após a graduação. Daqueles que optaram por se especializar, 66 já haviam feito ou estavam fazendo especialização no formato de residência médica, um em formato não especificado, um em formato e área não especificados e cinco ainda não estavam fazendo especialização por um ou mais dos seguintes motivos: questão financeira, familiar, pessoal, dúvida na escolha da área e não aprovação nos processos seletivos.
Quanto às áreas de especialização, dos que optaram por fazer residência médica, as escolhas se concentraram nas quatro grandes áreas (clínica médica, pediatria, cirurgia e ginecologia e obstetrícia) e de forma pulverizada entre as especialidades de acesso direto. Apenas um egresso optou por fazer medicina de família e comunidade (MFC) como especialidade. A Tabela 1 apresenta o formato e as áreas de especialização.
Formato | Área | Frequência |
---|---|---|
Residência médica | Clínica médica | 14 |
Pediatria | 11 | |
Cirurgia geral | 7 | |
Ginecologia e obstetrícia | 4 | |
Áreas de acesso direto | 29 | |
Medicina de família e comunidade | 1 | |
Não especificado | Medicina do trabalho | 1 |
Não especificado | Não especificada | 1 |
Total | 68 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Entre os fatores que influenciaram positivamente a escolha por determinada área, destacaram-se: contato com a área durante a graduação, apontado por 46, e contato com profissional médico específico, mencionado por 45 participantes. Já entre os fatores que influenciaram negativamente a escolha de determinada especialidade, destacaram-se: contato com a área durante a graduação, referido por 23, e aspecto financeiro, referido por 22 participantes. A Tabela 2 sintetiza os fatores que influenciaram positiva e negativamente a escolha das áreas de especialização.
Influência positiva | Frequência | Influência negativa | Frequência |
---|---|---|---|
Contato com a área durante a graduação | 46 | Contato com a área durante a graduação | 23 |
Profissional médico | 45 | Aspecto financeiro | 22 |
Mercado de trabalho | 25 | Mercado de trabalho | 19 |
Professor | 23 | Professor | 11 |
Aspecto financeiro | 15 | Profissional médico | 8 |
Membro da família | 8 | Membro da família | 3 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Atividades acadêmicas como congressos, simpósios, workshops, palestras e oficinas, ligas acadêmicas e iniciação científica influenciaram positiva e negativamente a escolha da especialidade, embora tenham tido influência mais positiva que negativa, em razão aproximada de 2:1.
Quanto à estrutura do curso, 54 participantes acreditaram que alguma ou algumas unidades educacionais influenciaram na escolha da área de especialização. Entre as unidades que influenciaram positivamente a decisão, destacaram-se: a unidade eletiva, para 42, e a unidade de prática profissional do quinto e sexto anos, para 33 ex-alunos. Já entre as que influenciaram negativamente a escolha, destacaram-se: a unidade de prática profissional do primeiro e segundo anos, para 23, seguida da unidade de simulação da prática profissional, para 15. Na Tabela 3, visualiza-se a influência das unidades educacionais na escolha da especialidade, e a Tabela 4 apresenta os elementos despertaram e não despertaram o interesse dos participantes em atuar na APS.
Influência positiva | Frequência | Influência negativa | Frequência |
---|---|---|---|
Unidade educacional eletiva | 42 | Unidade de prática profissional do ciclo I (1º e 2º anos) | 23 |
Unidade de prática profissional do ciclo III (5º e 6º anos) | 33 | Unidade de prática profissional do ciclo III (5º e 6º anos) | 14 |
Unidade de prática profissional do ciclo II (3º e 4º anos) | 15 | Unidade de prática profissional do ciclo II (3º e 4º ano) | 13 |
Situação-problema | 6 | Situação-problema | 10 |
Estação de simulação | 6 | Estação de simulação | 5 |
Unidade de prática profissional do ciclo I (1º e 2º anos) | 3 | Unidade educacional eletiva | 4 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Elemento | Não despertou interesse | Despertou pouco interesse | Despertou razoável interesse | Despertou muito interesse | Despertou total interesse | Total (%) |
---|---|---|---|---|---|---|
Facilitador(a) ou preceptor(a) médico(a) de família | 18 (23,3%) | 21 (27,3%) | 17 (22,1%) | 17 (22,1%) | 4 (5,2%) | 77 (100%) |
Contato com um(a) médico(a) de família fora do curso | 42 (54,5%) | 14 (18,2%) | 13 (16,9%) | 7 (9,1%) | 1 (1,3%) | 77 (100%) |
Ganho financeiro | 33 (42,8%) | 29 (37,7%) | 13 (16,9%) | 2 (2,6%) | 0 | 77 (100%) |
Oportunidade no mercado de trabalho | 30 (39%) | 21 (27,3%) | 18 (23,3%) | 5 (6,5%) | 3 (3,9%) | 77 (100%) |
Inserção na atenção primária desde o 1º ano | 22 (28,6%) | 16 (20,8%) | 18 (23,3%) | 15 (19,5%) | 6 (7,8%) | 77 (100%) |
Realizar visitas domiciliares | 33 (42,8%) | 20 (26%) | 11 (4,3%) | 9 (11,7%) | 4 (5,2%) | 77 (100%) |
Realizar acolhimento nas unidades de saúde da família | 38 (49,4%) | 16 (20,8%) | 18 (23,3%) | 3 (3,9%) | 2 (2,6%) | 77 (100%) |
Estágio de medicina de família no internato | 31 (40,2%) | 16 (20,8%) | 16 (20,8%) | 12 (15,6%) | 2 (2,6%) | 77 (100%) |
Estilo de vida profissional | 28 (36,3%) | 13 (16,9%) | 14 (18,2%) | 16 (20,8%) | 6 (7,8%) | 77 (100%) |
Prestígio da especialidade | 40 (51,9%) | 21 (27,3%) | 12 (15,6%) | 4 (5,2%) | 0 | 77 (100%) |
Flexibilidade de atuação na área médica | 20 (26%) | 24 (31,1%) | 19 (24,7%) | 10 (13%) | 4 (5,2%) | 77 (100%) |
Utilização de diversos conteúdos na prática | 16 (20,8%) | 18 (23,3%) | 19 (24,7%) | 19 (24,7%) | 5 (6,5%) | 77 (100%) |
Currículo | 31 (40,3%) | 18 (23,3%) | 16 (20,8%) | 10 (13%) | 2 (2,6%) | 77 (100%) |
Aprendizado centrado no aluno | 19 (24,7%) | 18 (23,3%) | 20 (26%) | 17 (22,1%) | 3 (3,9%) | 77 (100%) |
Relação aluno-professor horizontal | 20 (26%) | 17 (22%) | 15 (29,5%) | 20 (26%) | 5 (6,5%) | 77 (100%) |
Relação teoria-prática do curso | 19 (24,7%) | 16 (20,8%) | 15 (29,5%) | 18 (23,3) | 9 (11,7%) | 77 (100%) |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
DISCUSSÃO
De acordo com o estudo de Marconi et al.21, a média de devolução de questionários em pesquisas é de 25% (12-25%), e, nesse sentido, nosso estudo obteve um número de respondentes acima da média, com um índice de participação de 42,1%. A receptividade ao questionário pode ser um reflexo do meio de aplicação (virtual), no qual os participantes puderam responder de qualquer lugar, a qualquer hora e com maior comodidade, quando comparado a questionários enviados por correios ou respondidos pessoalmente22. Além de ter sido um possível fator para maior adesão dos estudantes, outro benefício do questionário eletrônico foi a obrigatoriedade de preenchimento completo dele, o que não ocorre frequentemente em questionários enviados por correios23.
Embora a proporção de estudantes de ambos os sexo convidados a participar da pesquisa tenha sido semelhante, a quantidade de mulheres que responderam à pesquisa foi maior que a de homens, o que vai ao encontro do que acontece na maioria das pesquisas, em que geralmente há a prevalência de um dos sexos, sem uma razão que justifique o fato24),(25.
O estudo realizado por Belarmino et al.24 verificou que 100% dos estudantes de Medicina da Universidade do Estado do Pará (Uepa) desejavam se especializar após a graduação. Em pesquisas realizadas na Faculdade de Medicina de Marília (Famema) e na Universidade Estadual de Londrina (UEL), que também adotam metodologias ativas de aprendizagem, a porcentagem de egressos que optaram por fazer residência após a graduação foi de 92,7% e 73,6%, respectivamente, e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 97,3%. No nosso estudo, 94,8% dos estudantes optaram por fazer especialização após o curso, resultado semelhante aos encontrados na Famema e UFMG25)-(27, o que, de acordo om Girardi28, representa um meio de fragmentar e aprofundar o conhecimento, em resposta ao incremento exponencial de novos conhecimentos. Nesse sentido, hipotetizamos que a MFC pode ter sido pouco considerada como escolha de especialização devido à amplitude de conhecimentos necessários para exercê-la.
O formato de especialização mais escolhido ao fim da graduação foi a residência médica, à semelhança do que foi apontado no estudo de Belarmino et al.24, no qual 85,9% dos estudantes de instituições privadas e 76,5% de instituições públicas optaram por fazer residência médica logo após o término da graduação. Um estudo realizado na UEL também apontou predominância por especialização por meio de residência médica (73,6%), seguida por especialização (33,8%), estágio (26,1%), aperfeiçoamento (14,7%), mestrado (9,4%) e doutorado (2%)26. Isso mostra que, via de regra, os egressos optam preferencialmente por uma especialização do tipo lato sensu no formato de residência médica.
No nosso estudo, a principal justificativa para não especialização foi a não aprovação em processos seletivos. Essa razão também foi referida no estudo de Feitosa-Filho et al.29. Entretanto, nesse estudo, a principal razão da não especialização foi financeira, para sustento próprio, para quitar dívidas ou ajudar a família. Outras razões citadas no estudo de Feitosa-Filho et al.29 para os participantes não fazerem especialização também foram identificadas na nossa pesquisa, como questões pessoais e familiares.
Segundo o levantamento Demografia médica no Brasil, realizado pelo Conselho Federal de Medicina em 2018, o total de egressos de cursos de Medicina no país, no período de um ano (agosto de 2014 a agosto de 2015), foi de 16.323, e, em 2017, ofertaram-se 16.499 vagas de residência médica, o que seria suficiente para alocar todos os médicos recém-formados. Entretanto, a distribuição dessas vagas não se dá de forma equânime no país. Por exemplo, o estado de São Paulo ofertou 5.019 vagas de residência médica, enquanto o Amapá ofereceu apenas 24 vagas. Podemos considerar que alguns aspectos contribuem para isso, como a maior concentração de escolas médicas na Região Sudeste e a procura por especialização em grandes centros que, por sua vez, possibilitam uma atuação profissional com disponibilidade de recursos tecnológicos, tanto diagnósticos quanto terapêuticos, e com perspectiva de retorno financeiro mais rápido, em consonância com expectativas individuais30.
A distribuição dos graduados pelas especialidades não foi uniforme, e as quatro grandes áreas de residência médica (pediatria, clínica médica, cirurgia e ginecologia e obstetrícia) concentraram as escolhas. Esse dado assemelha-se ao apresentado no levantamento Demografia médica no Brasil, que mostrou uma concentração de 40% de vagas de residência médica nessas quatro especialidades21. Além disso, 18 das especialidades médicas mencionadas nos questionários têm como pré-requisito uma dessas quatro grandes áreas. Outro dado significativo em relação à especialidade é que, no Brasil, o número de residentes cursando R1 em MFC em 2017 ocupou o quinto lugar no ranking de residências médicas, e em nossa pesquisa encontramos apenas um egresso que escolheu essa área para se especializar, ou seja, a escolha por essa área, em nosso estudo, está aparentemente aquém da apresentada no levantamento Demografia médica no Brasil30. Esse dado aponta a possibilidade de existirem fatores relacionados ao curso de Medicina da UFSCar, incluindo cenários de prática profissional, que levaram os alunos a não optar pela especialização em MFC. Adicionalmente, a grande oferta de vagas de residência médica em diferentes especialidades na região em que o curso está inserido pode ter contribuído para diminuir a procura pela área de MFC.
Entre os fatores que influenciaram a escolha da especialidade no nosso estudo, destacaram-se os componentes relacionados à experiência positiva com a exposição à área e o profissional médico. Yoon et al.31 ressaltam a importância de modelos positivos no momento da escolha, pois estes conseguem estimular os estudantes por meio de entusiasmo pessoal, satisfação profissional, forte poder de convencimento e treinamento atrativo. Por sua vez, Avidan et al.32 consideram que a exposição a determinada área durante o curso consegue despertar o interesse do estudante e desafiá-lo, mas os interesses pessoais, as aptidões, as habilidades e a personalidade são os quesitos mais importantes na escolha. Assim como em nosso estudo, Sakai et al.26 revelaram que a influência de amigos e família é menos significante nessa decisão. O segundo fator que mais influenciou negativamente a escolha da especialidade foi a questão financeira, ou seja, excluíram-se como opções as áreas com baixas perspectivas de remuneração. Hafner25 ressalta que todos os médicos são influenciados pelas perspectivas financeiras, e isso ocorre pelo medo de um futuro econômico desfavorável, uma vez que a maioria dos médicos almeja salários maiores que a média da renda per capita nacional.
Por sua vez, a exposição a uma área específica durante o curso também influenciou negativamente a escolha por determinada especialidade. Yoon et al.31 citam o estilo de vida profissional desgastante, bem como o rendimento do estudante em determinada área durante a graduação, como fortes influências negativas para a escolha.
O contato com professor ou profissional especialista em MFC foi um dos fatores que mais despertaram o interesse pela atuação na APS. No estudo de Gaspar33, também foi apontada a relevância do papel dos professores como modelo para que os alunos seguissem carreiras generalistas. Os participantes da nossa pesquisa (51,9%) também referiram que o modelo de relação aluno-professor horizontalizada despertou o interesse pela APS, dado que carece de embasamento na literatura para comparação. Apesar desses achados, tais fatores não foram suficientes para que um número representativo de egressos do curso de Medicina da UFSCar optasse por essa área de atuação.
A perspectiva de retorno financeiro não foi um atrativo para atuação na APS. Esse fato foi considerado no trabalho de Nóbrega-Therrien et al.34, que mencionaram que um dos fatores que afastam os profissionais da APS é o baixo salário. Cavalcante Neto et al.35 afirmaram que o médico de família até recebe bons salários, mas, no final, acabam sendo menores que o de outros especialistas35.
Para a maior parte dos participantes, a oportunidade no mercado de trabalho não despertou ou despertou pouco o interesse pela APS (66,2%), apesar de a área ser uma das que mais necessitam de mão de obra36.
Quanto aos aspectos relacionados à estrutura do curso, como inserção do aluno na APS desde o primeiro ano, realização de visitas domiciliares, realização de acolhimentos nas unidades de saúde da família, estágio de MFC no internato e estrutura curricular, nenhum despertou interesse pela especialização na APS, o que contradiz os achados de Tandeter et al.20, Reid et al.37, Tinoco et al.36, Nóbrega-Therrien et al.34 e Gomes38, que exaltam a importância do contato com a área durante o curso para despertar o interesse do aluno. Por sua vez, Nóbrega-Therrien et al.34 apontam também que contato com médico de família desmotivado e frustrado, condições inadequadas de trabalho, baixa cobertura da Estratégia Saúde da Família, equipes de trabalho incompletas, demanda excessiva, falta de estímulo ao crescimento profissional e falta de reconhecimento profissional pela população podem constituir fatores desestimulantes para a escolha da especialidade. O estudo de Restom et al.39 considera dois aspectos distintos do contato dos estudantes com a MFC durante o curso: pode servir tanto como uma fonte de motivação por permitir conhecer realidades distintas e situações novas ou como uma obrigação curricular, baseada em repetição de atividades e cansaço, o que poderia causar repulsa nos alunos. Destacamos que os alunos que responderam ao questionário são egressos das primeiras turmas do curso e experienciaram a prática profissional da MFC em cenários ainda pouco estruturados, considerando aspectos físicos, materiais e humanos, o que pode explicar nossos resultados.
A possibilidade de aplicação de diferentes conteúdos na prática da APS despertou um interesse mediano. No estudo de Tinoco et al.36, o olhar médico ampliado, que vai além do olhar biomédico, a oportunidade de trabalho em qualquer região e a atuação ampla em diversas disciplinas médicas foram apontados como fatores que aproximaram os estudantes da APS. Como motivos bastante citados na escolha, Gomes38 ressalta o fato de a MFC ser uma especialidade que abrange grande variedade de patologias, além da possibilidade de o médico atuar na prevenção da doença e na promoção de saúde, e de valorizar a continuidade de cuidados, o que não foi corroborado por nossos achados.
O estudo de Tinoco et al.36 mencionou que os formandos elegeram como um dos motivos que os atraíram para a MFC a carga horária relativamente baixa, com horários definidos, ou seja, a importância do estilo e da qualidade de vida que a área possibilita, o que, em nosso estudo, não foi apontado como suficiente para despertar interesse na área.
O prestígio da APS foi um dos motivos que menos despertaram interesse dos ex-alunos pela atuação nessa área. Hafner25 relata que práticas generalistas geralmente têm menos prestígio, menos possibilidade de sucesso, menos respeito e não são valorizadas quando comparadas a especialidades hospitalares. Magalhães et al.40 também citaram a visão de que o médico generalista tem menor valor, o que desperta desconfiança e resulta em menor interesse pela área. Esse aspecto é também corroborado por nossos resultados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na implantação do curso de Medicina da UFSCar, optou-se por um currículo baseado em competência, construtivista, com metodologias ativas de ensino-aprendizagem e organização da grade curricular com foco na prática, principalmente na APS, com vistas a formar médicos generalistas.
Observamos que o currículo do curso em contexto distanciou-se progressivamente do currículo prescrito, o que pode ter determinado o pouco interesse dos egressos em atuar na APS, em especial devido à discrepância entre o cenário de prática idealizado e o real. Soma-se a isso o currículo oculto, que de forma implícita influencia atitudes, valores e orientações nas escolhas das especialidades.
Por meio deste estudo, explicitou-se que não houve um número significativo de alunos egressos do curso de Medicina da UFSCar que optou por atuar na APS. A estrutura de organização do curso parece que não só não despertou o interesse dos alunos pela área, como também muitas vezes os afastou dessa opção.
Ressaltamos que a escolha da especialidade é multifatorial e não há obrigatoriedade de o profissional ser especialista ou ter título em MFC para atuar na APS. Nos últimos anos, estratégias como o Programa Mais Médicos têm atraído mais profissionais, inclusive recém-formados, para a APS.
O presente estudo apresenta limitações. A primeira diz respeito às pesquisas conduzidas com amostras de conveniência, que por si sós representam um viés amostral; a segunda limitação é a impossibilidade de caracterização da amostra em relação ao local de origem e atuação dos egressos. Além disso, há limitação para generalizar os resultados, circunscritos ao cenário investigado.
Por fim, sugerimos novos estudos para explorar o tema em outros contextos, bem como analisar a evolução desses achados ao longo do tempo, considerando as mudanças das condições de exercício profissional no cenário da APS.