1 Considerações iniciais
Compreender as políticas para a Alfabetização e a formação de professores alfabetizadores é o tema proposto nesse texto. Pesquisas já demostraram que por volta da década de 1980 a 1990 obtivemos um amplo debate acerca do tema, após esse período diminuiu-se os estudos no campo das políticas para a alfabetização no país. Recentemente com a ampliação de novos programas e com a denominada “Década das Nações Unidas para a Alfabetização" (2003-2012), o debate acerca das políticas para a alfabetização voltou a ampliar-se no Brasil (MORTATTI, 2010; MORTATTI 2013). Nesse sentido, pode-se perceber que foi a partir do desenvolvimento de programas de formação continuada para professores alfabetizadores no país, em meados de 2005 com o Pró-Letramento, que os estudos e pesquisas sobre essa temática aumentaram.
O texto tem como objetivo analisar quais concepções e referenciais teóricos estão presentes nas orientações dos cadernos de formação em Alfabetização em Língua Portuguesa, do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), no que tange o processo de desenvolvimento e aprendizagem no campo da alfabetização, denominada, nesta investigação, como processo de aquisição da língua portuguesa escrita. Parte-se da premissa que o PNAIC é uma política em ação desenvolvida por meio de um programa forjado em um contexto social, no qual as políticas de ajustes estruturais neoliberais conduziram as determinações das políticas educacionais aos seus moldes. Sendo assim, o programa PNAIC é produto das definições, enfrentamentos e interferências das políticas educacionais nacionais e internacionais, articulado a objetivos e fundamentos de diversas instituições1.
Justifica-se que seria errôneo asseverar que apenas uma concepção e referencial teórico estariam presentes nos cadernos de Alfabetização em Língua Portuguesa, destinados à formação de professores, pois a elaboração e implementação do PNAIC apresentaram múltiplas dimensões e interferências de âmbitos que não estão apenas ligados à educação, mas também aos interesses distintos de classes. Com base nessas afirmações iniciaram-se alguns questionamentos: a) Quais os referenciais teóricos são citados nos cadernos de formação para a Alfabetização em Língua Portuguesa no PNAIC? b) Como são apresentados os referenciais teóricos? Para responder aos questionamentos levantados realizou-se uma análise documental pautada em uma concepção crítica e contextualizada, na medida em que se buscou a compreensão da categoria marxista da totalidade, a fim de evidenciar as contradições existentes no contexto histórico e no modo como são definidas as políticas para a alfabetização e suas definições teóricas e conceituais.
Para dar conta do proposto, inicialmente intentamos compreender a formação continuada desenvolvida para os professores alfabetizadores do programa PNAIC em sua composição, seguida da apresentação da estruturação dos vinte quatro cadernos de formação em Língua Portuguesa. Posteriormente, estes cadernos foram analisados com o intuito de compreender quais são as concepções e referenciais teóricos concernentes ao processo de desenvolvimento e aprendizagem no campo da alfabetização da língua portuguesa escrita.
Por último, organizamos sinteticamente as conclusões e resultados da pesquisa, com o propósito em contribuir para a reflexão e propor novas formas de pensar o desafio das políticas para a alfabetização e formação de professores alfabetizadores no Brasil. Além de colaborar, também, com a avaliação do programa PNAIC, uma vez que evidenciamos contradições na forma apresentada dos referenciais teóricos.
2 Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC): apresentação e organização dos cadernos de formação em Língua Portuguesa
O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) é um programa de formação continuada para professores alfabetizadores da Educação básica, lançado em 2012, e uma ação que visa contribuir para o atendimento da meta 52 para alfabetização do Plano Nacional da Educação (PNE), segundo a Lei nº 13.005/2014 (BRASIL, 2014a). É um compromisso assumido pelo Governo Federal, dos Estados, Distrito Federal e Municípios e o objetivo principal do PNAIC seria garantir a alfabetização em língua portuguesa e em matemática até o final do terceiro ano do Ensino Fundamental de todos os alunos do sistema público de ensino (BRASIL, 2012a, p. 5).
Este programa se denomina como sendo uma política em ação composta por ampla rede de profissionais que tem o objetivo de “[...] planejar, monitorar e realizar ações no âmbito do ciclo da alfabetização” (BRASIL, 2012a, p. 9), além de fornecer materiais e referências pedagógicas, coordenadas e disponibilizadas pelo MEC. Dentre os materiais, destacam-se os cadernos de formação para professores alfabetizadores em Língua Portuguesa, que
[...] foram elaborados por professores universitários, pesquisadores com experiência em formação de professores e professores da Educação Básica. Todos trabalharam juntos para inserir, nos textos, sugestões de atividades e reflexões sobre o que pode ser feito em uma sala de aula de alfabetização para que os alunos aprendam a ler e escrever dentro de uma perspectiva social de inclusão e participação
(BRASIL, 2012a, p. 34).
Os cadernos em Língua Portuguesa3, destinados para a formação dos professores alfabetizadores, estão divididos em oito unidades para cada ano do ciclo de alfabetização, além de mais oito unidades para os professores das turmas multisseriadas, existindo, portanto, ao todo, trinta e dois cadernos de formação em Língua Portuguesa. Esse texto analisará apenas vinte e quatro cadernos, pois o enfoque da pesquisa realizada não abrange os professores das turmas multisseriadas.
As oito unidades para cada ano do ciclo de alfabetização dos cadernos de formação em Língua portuguesa têm os conteúdos centrados na seguinte ordem: 1) Currículo; 2) Planejamento; 3) Escrita; 4) Lúdico; 5) Textos; 6) Didática e diferentes áreas de conhecimento; 7) Alfabetização e heterogeneidade; e 8) Avaliação. Os cadernos foram divididos da seguinte forma:
Unidade dos cadernos | Ano escolar do Ensino Fundamental | Títulos dos cadernos do Programa de Formação Continuada do PNAIC (2012) | Códigos4 |
---|---|---|---|
1 | 1º | Currículo na alfabetização: concepções e princípios | Caderno A |
2º | Currículo no ciclo de alfabetização: consolidação e monitoramento do processo de ensino e de aprendizagem | Caderno B | |
3º | Currículo inclusivo: o direito de ser alfabetizado | Caderno C | |
2 | 1º | Planejamento escolar: alfabetização e ensino da Língua Portuguesa | Caderno D |
2º | A organização do planejamento e da rotina no ciclo de alfabetização na perspectiva do letramento | Caderno E | |
3º | Planejamento e organização da rotina na alfabetização | Caderno F | |
3 | 1º | A aprendizagem do Sistema de Escrita Alfabética | Caderno G |
2º | A apropriação do Sistema de Escrita Alfabética e a consolidação do processo de alfabetização | Caderno H | |
3º | O último ano do ciclo de alfabetização: consolidando os conhecimentos | Caderno I | |
4 | 1º | Ludicidade na sala de aula | Caderno J |
2º | Vamos brincar de construir as nossas e outras histórias | Caderno K | |
3º | Vamos brincar de reinventar histórias | Caderno L | |
5 | 1º | Os diferentes textos em salas de alfabetização | Caderno M |
2º | O trabalho com gêneros textuais na sala de aula | Caderno N | |
3º | O trabalho com os diferentes gêneros textuais em sala de aula: diversidade e progressão escolar andando juntas | Caderno O | |
6 | 1º | Planejando a alfabetização; integrando diferentes áreas do conhecimento: projetos didáticos e sequências didáticas | Caderno P |
2º | Planejando a alfabetização e dialogando com diferentes áreas do conhecimento | Caderno Q | |
3º | Alfabetização em foco: projetos didáticos e sequências didáticas em diálogo com os diferentes componentes curriculares | Caderno R | |
7 | 1º | Alfabetização para todos: diferentes percursos, direitos iguais | Caderno S |
2º | A heterogeneidade em sala de aula e os direitos de aprendizagem no ciclo de alfabetização | Caderno T | |
3º | A heterogeneidade em sala de aula e a diversificação das atividades | Caderno U | |
8 | 1º | Organização do trabalho docente para promoção da aprendizagem | Caderno V |
2º | Reflexões sobre a prática do professor no ciclo de alfabetização: progressão e continuidade das aprendizagens para a construção do conhecimento por todas as crianças | Caderno X | |
3º | Progressão escolar e avaliação: o registro e a garantia de continuidade das aprendizagens no ciclo de alfabetização | Caderno Z |
Fonte: Organizado pela autora com dados extraídos de BRASIL (2012a).
Ao elucidar sobre os cadernos é necessário explicitar que as orientações contidas neles afirmam que eles não devem ser os únicos utilizados na formação, pois:
[...] o principal objetivo dessa proposição é que tal exemplo possa servir de ponto de partida para a discussão, em cada município, acerca de conhecimentos e capacidades que possam ser propostos nos documentos oficiais que orientam o trabalho nas escolas
(BRASIL, 2012r, p. 22).
Na análise realizada salienta-se que, para essa formação continuada ocorrer de forma satisfatória, é necessário que os professores estejam preparados, motivados e comprometidos, acompanhando o progresso da aprendizagem das crianças, pois o programa PNAIC considera que o professor é a peça fundamental para o desenvolvimento do conhecimento do aluno, sendo ele quem favorece a aprendizagem e “organiza um determinado conhecimento e dispõe, de uma certa maneira, de propiciar boas condições de aprendizagem” (BRASIL, 2012a, p. 6). Observa-se aqui uma centralidade no protagonismo e na responsabilização docente, pois se atribui ao professor o sucesso ou fracasso das ações desenvolvidas no programa e também os resultados esperados pelo investimento que se executa. Nesse aspecto, salienta Evangelista (2016, p. 10) sobre as falsas interpretações de cunho ideológico que estão subjacentes às atribuições de responsabilização:
[…] Embora o slogan responsabilização docente aposte no “empoderamento” docente, o que esconde, justamente, é um profundo processo de fazer o professor arcar com consequências escolares, econômicas, sociais que não são de sua alçada. Esse deslocamento perverso imputa as condições de existência da população brasileira ao professor; os problemas sociais e econômicos não derivam das negociações da burguesia interna, ao sabor dos interesses de suas várias frações, com o Capital internacional; não derivam de suas opções econômicas e políticas. Derivam do fato de que o professor não é responsabilizado por sua formação, pelo investimento em sala de aula, pelo empenho na aprendizagem do aluno, pelo interesse na mudança de conteúdos e métodos pedagógicos, pelo respeito às tecnologias. Se os problemas socioeconômicos nascem no campo da educação, se nele devem encontrar a solução, se o professor – embora responsabilizado – não tem competência para tal solução, temos aqui um falso dilema, consequência do movimento ideológico burguês dominante.
Ao analisar essas questões presentes e subjacentes na composição dos cadernos de formação do PNAIC em Língua Portuguesa, acredita-se na importância de uma análise minuciosa sobre os mesmos, a fim de compreender quais as concepções e referenciais teóricos são citados nos mesmos e como estes são definidos quanto ao entendimento sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem no campo da alfabetização.
3 Os Cadernos de Formação do PNAIC em Língua Portuguesa e sua articulação com referenciais teóricos
Para compreender quais referenciais teóricos estão presentes nos cadernos de formação do PNAIC, no que tange ao processo de desenvolvimento e aprendizagem no campo da alfabetização, é necessário, primeiramente, elucidar o conceito de alfabetização e letramento para os mesmos, seguida de uma análise de cunho crítico e contextualizado dos referenciais teóricos presentes a fim de perceber as coerências e incoerências no processo de formação continuada.
Ao tratar sobre alfabetização, o Caderno C enfatiza que uma criança está alfabetizada quando possui a “[...] capacidade de ler e escrever (ainda que apresentem dificuldades) e, às vezes, frases e pequenos textos” (BRASIL, 2012c, p. 14). Já estar letrada, segundo o Caderno N, é quando a criança faz “ [...] uso efetivo e competente desta tecnologia da escrita em situações reais de leitura e produção de texto” (BRASIL, 2012n, p. 8).
Ao apresentar o processo do ensino da alfabetização e letramento, os cadernos A, B, F, G, H, I, M e U dão ênfase para a Psicogênese da Escrita, elaborada por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1985), que teve sua disseminação a partir dos anos de 19805, orientando fortemente as políticas de alfabetização no Brasil. Esse referencial teórico tem como embasamento o construtivismo, em que Ferreiro destaca “[...] que a teoria de Piaget foi minha principal fonte de inspiração para a pesquisa sobre leitura e escrita” (FERREIRO, 1989, p. 9).
Segundo o caderno com o código T, o processo de evolução da Psicogênese da Escrita, baseando-se no referencial “[...] construtivista se afirmava, portanto, com a lógica de um ensino que respeita os alfabetizandos, porque demonstra que precisamos ver em que o aluno já avançou, diagnosticar o que já aprendeu, para decidir o que precisa aprender” (BRASIL, 2012u, p. 9).
Esse mesmo caderno enfatiza que no processo de alfabetização e letramento é necessário que o professor respeite as necessidades específicas de cada aluno.
Numa perspectiva construtivista, para ser mais eficiente, o ensino deve, como já dito, levar em conta o que os alunos já sabem e o que precisam ser ajudados a aprender. Esse princípio de ‘ensino ajustado’ (ONRUBIA, 1996) pressupõe, então, que os professores diagnostiquem os conhecimentos prévios dos alunos e formulem atividades que constituam desafios adequados. Isto é, no caso da alfabetização, para poder avançar no domínio da língua escrita ou de suas convenções, uma atividade não deve ser “fácil” ao ponto de o aluno poder resolvê-la, sem ter que reconstruir seus saberes prévios. Por outro lado, não pode ser tão complexo que se torne um desafio impossível
(BRASIL, 2012u, p. 12).
Ao analisar essas questões e concepções, recorreu-se a compreensão de que para a aprendizagem ocorrer, na concepção do construtivismo, segundo Facci (2014), os professores devem criar um ambiente de aprendizagem em que os alunos possam ter a oportunidade de refletir sobre os desafios e dúvidas, sendo instigados a querer aprender.
Pautado nessa perspectiva, o professor torna-se o facilitador, sendo que a ênfase não está no conteúdo, mas sim no “aprender a aprender”6. Segundo Duarte (2000, p. 35), um dos posicionamentos contido nesse lema é que “[...] é mais importante o aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração, descoberta, construção de conhecimentos, do que aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras pessoas”, sendo assim, os conhecimentos clássicos, que fariam com que o aluno refletisse, analisasse e reconsiderasse um saber prévio para um novo conhecimento e que “[...] se firme como os mais representativos para o desenvolvimento do indivíduo” (MARTINS; MARSIGLIA, 2015, p. 83), não se fazem presentes.
O Caderno D explicita a importância das práticas de letramento fora da escola:
[...] têm objetivos sociais relevantes para os participantes da situação. As práticas de letramento escolares visam ao desenvolvimento de habilidade e competências no aluno e isso pode, ou não, ser relevante para o estudante. Essa diferença afeta a relação com a língua escrita e é uma das razões pelas quais a língua escrita é uma das barreiras mais difíceis de serem transportas por pessoas que vem de comunidades em que a escrita é pouco ou nada usada
(KELIMAN, 2005, p. 33 apud BRASIL 2012d, p. 7).
Ao falar sobre os gêneros textuais, presentes no letramento, o Caderno N cita Lev Semionovich Vygotski (1896-1934).7, relacionando-o com o sociointeracionismo, que se pode observar na seguinte citação:
[...] ao discutir o papel social dos gêneros nos atos interlocutivos, Schneuwly (2004) apresenta a noção de gênero como instrumento, utilizando/tomando pelo sujeito para agir linguisticamente. Nesse sentido, o autor, baseando-se no conceito de instrumento psicológico vygotskyano, ressalta que, na perspectiva do interacionismo social: ‘a atividade é necessariamente concebida como tripolar: a ação é mediada por objetos específicos, socialmente elaborados, frutos das experiências das gerações precedentes, através dos quais se transmitem e se alargam as experiências possíveis’
(SCHNEUWLY, 2004, p. 21 apud BRASIL, 2012o, p. 8).
É interessante pontuar que, no trecho citado acima, Vygotski é relacionado ao sociointeracionismo, porém, segundo Tukesli (2008, p. 51), “Vygotski nunca se intitulou interacionista ou sociointeracionista. Essa é uma classificação que ‘atualiza’ sua teoria, deformando-a”. Diferentemente da Teoria Histórico-Cultural (THC), o interacionismo – ou construtivismo, dois temos utilizados alternadamente por Piaget – é um modelo biológico de análise das relações entre organismos e meio ambiente, modelo esse empregado por Piaget ao analisar desde o desenvolvimento da inteligência até as formações sociais. Na visão de Duarte (2000) essa questão é evidenciada da seguinte forma:
[...] Piaget naturaliza o social, isto é, trata o social com o mesmo aparato teórico com o qual analisa, como biólogo, as interações entre os moluscos e seu habitat. Por essa razão, constitui-se num equívoco a denominação ‘sociointeracionismo’ dada por psicólogos e educadores brasileiros à teoria de Vigotski. Não existe um interacionismo ‘menos social’ e um interacionismo ‘mais social. A verdade é que, sendo o modelo interacionista um modelo biologizante, naturalizante, não permite uma abordagem realmente historicizadora do ser humano, isto é, não permite uma abordagem que leve à compreensão do homem como um ser histórico e social. Olhando-se essa questão pelo prisma do caráter historicizador versus caráter naturalizante das teorias psicológicas, consideramos que a teoria de Piaget encontra-se muito mais próxima ao behaviorismo do que à teoria de Vigotski, por mais que tal afirmação possa causar estranheza aos piagetianos
(DUARTE, 2000, p. 222).
Cabe ressaltar que muitos autores trazem o conceito de social para o interacionismo, porém esse social acaba por se restringir a interações individuais em pequenos grupos, e desconsideram “[...] as relações sociais, no sentido dado por Marx e adotado por Vygotski, como produtoras e transformadoras do comportamento, conduta e formas de pensar humanos no decorrer da história, acabam por limitar-se a relações interpessoais” (TULESKI, 2008, p. 56). Além do mais, deve-se considerar que o social de Vygostki, segundo Tuleski (2008), é a transformação coletiva do homem que visa abandonar o modo capitalista de produzir a vida e deseja construir uma sociedade comunista.
Ao elucidar sobre planejamento no processo de aquisição do Sistema de Escrita Alfabético (SEA), o Caderno E enfatiza a importância de referenciais teóricos no trabalho docente, que são resultados de concepções curriculares, estudos, textos, participações em eventos, experiências, conteúdos escolares e, principalmente, concepções teóricas sobre as quais as melhores estratégias de ensino o professor se baseia (BRASIL, 2012f). Assim,
Tais concepções influenciam os planejamentos e os processos de mediação dos professores. Esses, por seu turno, constituem-se a partir de princípios didáticos. No entanto, o que se percebe muitas vezes é que nem sempre o docente tem consciência acerca dos princípios que regem seu trabalho pedagógico. Acreditando que, quanto mais consciência o professor tiver acerca dos princípios que regem sua prática, maior autonomia terá no processo de planejamento e realização da ação didática
(BRASIL, 2012f, p. 7).
Com intuito de melhor exemplificar a importância das concepções teóricas no planejamento docente, o Caderno E apresenta um estudo realizado com duas professoras do quinto ano do Ensino Fundamental de escolas municipais do Recife, que tinham uma “dinâmica centrada em uma perspectiva sociointeracionista de ensino” (BRASIL, 2012f, p. 7) e que obtiveram êxitos no processo de alfabetização por seguirem, mesmo sem saber, um modelo de referencial, além de suas práticas pedagógicas serem realizadas de modo planejado, o que era, consequentemente, reflexo de um referencial teórico, ou seja, o sociointeracionismo.
Percebe-se, novamente, a importância dada para o sociointeracionismo. Pois, o êxito para alfabetização dos alunos é relacionado a esse referencial, sem o aprofundamento de discussões que expliquem o motivo e as condições que confirmem os resultados satisfatórios no processo da alfabetização dos alunos, como consequências somente desse referencial. Visto que, nas práticas educativas das professoras, outros referenciais podem estar incumbidos. Portanto, como afirmar que o êxito no processo de alfabetização é somente resultado do sociointeracionismo? Em suas práticas diárias, não poderiam ter outros referenciais presentes? Ademais, não são elaboradas discussões sobre o que é o “sócio” ou a “interação”. Nesse sentido, esses dois termos são “[...] compreendidos, a priori, ao curso, e a ênfase no ‘social’ ou na ‘interação’ justifica o termo favorecer a aprendizagem em detrimento de criar condições objetivas para que a criança aprenda” (SOUZA, 2014, p. 219).
Os cadernos, ao apresentarem sobre a heterogeneidade em sala de aula, salientam que ela é posta como natural, pois uns chegam à escola com uma bagagem, e outros já não possuem determinados conhecimentos, porém cabe à escola criar diferentes oportunidades de aprendizagem para aquisição da SEA, em que “[...] os diferentes saberes podem ser construídos por meio de atividades também diferentes” (BRASIL, 2012t, p. 8). Nesse sentido,
Para conduzir os estudantes de modo a promover situações que propiciem aprendizagens a todos por meio de diferentes tipos de atividades, o docente precisa conhecer bem o objeto de ensino, saber o que seus alunos sabem ou não sabem sobre esse objeto, e quais atividades podem ajudar os estudantes a construir diferentes conhecimentos sobre eles
(BRASIL, 2012t, p. 9).
Segundo o Caderno S, o professor deve criar estratégias que possibilitem a aprendizagem das crianças com diferentes repertórios de conhecimentos em diversas situações. Essas estratégias docentes envolvem não apenas a realização de atividades “[...] únicas e padronizadas, que são realizadas simultaneamente por todos os alunos, mas também atividades diferenciadas ou que possam ser respondidas de modos distintos por alunos com diferentes níveis de conhecimento” (BRASIL, 2012u, p. 11).
Outra estratégia é a realização de atividades em pequenos grupos ou em duplas, considerando o conhecimento de cada aluno, pois
Inspirado em Vygotsky (1984) e nos teóricos de cognição social, sabemos que as crianças se beneficiam quando desenvolvem, conjuntamente, uma atividade com alguém que sabe mais que elas e que o fato de poder compartilhar com seus pares pontos de vista e soluções diferentes (das que adotariam sozinhas) é um grande motor de desenvolvimento
(BRASIL, 2012v, p. 13).
Além do mais, a interação com o outro, segundo o Caderno T, é uma “[...] fonte potencial de criação e avanços de zonas de desenvolvimento proximal” (BRASIL, 2012u, p. 13). Sendo a zona de desenvolvimento proximal um
Conceito desenvolvido pelo psicólogo bielo-russo Lev. S Vygotsky (1896- 1934), que se refere à distância entre o nível de desenvolvimento real (representado pelo que a criança consegue fazer de forma independente) e o nível de desenvolvimento potencial (relativo ao que a criança consegue fazer com a ajuda de um adulto ou de outro parceiro mais experiente)
(Brasil, 2012u, p. 13).
Percebe-se que a ênfase na interação de pequenos grupos, na relação de aprendizagem e desenvolvimento, com enfoque na zona de desenvolvimento proximal, é destacada, “[...] sem que se avance para o significado que assumem em uma sociedade capitalista, quando o próprio Vygotski estava empenhado na destruição dessa forma de sociedade” (TULESKI, 2008, p. 49-50).
Ao analisar os cadernos de Alfabetização em Língua Portuguesa de formação do PNAIC, percebe-se que foi citado Vygotski e, consequentemente, a THC, articulando-se às ideias do sociointeracionismo – que, como pôde-se observar de forma breve, está articulada às teorias de Piaget –, fazendo um “casamento” entre os dois autores. Importante destacar que essa mistura de ideias justapostas, mediante Facci (2004, p. 141), “[...] leva a caminhos que podem cair no esvaziamento, pois ambos não partem da mesma base teórico-metodológica”.
Constata-se que, nos cadernos de Alfabetização em Língua Portuguesa do PNAIC, tem-se uma miscelânea8 de teorias em que Vygotski é utilizado sem distinção de sua corrente teórica, juntamente ao construtivismo defendido por Piaget. A aproximação entre os dois teóricos é realizada por diversos autores, dizendo que são complementares ou similares, porém acabam por excluir a base filosófica dos dois ou “[...] o método que os guiou na análise dos fenômenos psicológicos” (TUKESKI, 2008, p. 54).
É possível destacar que a perspectiva teórica dos cadernos está pautada no sociointeracionismo e no construtivismo. Mesmo apresentando a THC, essa acaba sendo exposta de forma distorcida, pois, para entender a THC, especificamente os postulados de Vygotski, deve-se levar em conta a sua totalidade, buscando responder a concepção de homem, conhecimento e mundo. Nos cadernos não é abordada nem citada a necessidade de compreender essas concepções, o que compromete a realização da alfabetização e de um ensino que desenvolva, de forma aprofundada, a aquisição dos conhecimentos no aluno.
4 Considerações Finais
O artigo em questão não tem sua finitude aqui. A proposta desse estudo visou responder aos seguintes questionamentos: a) Quais os referenciais teóricos são citados nos cadernos de formação para a Alfabetização em Língua Portuguesa do PNAIC? b) Como são apresentados os referenciais teóricos? Com o intuito de responder tais questões, observou-se que a alfabetização nos cadernos de Língua Portuguesa do programa PNAIC é difundida na perspectiva do letramento, relacionando-a com diferentes teorias, sendo elas o Construtivismo e o Sociointeracionismo, indistintamente. Deixando de lado os aspectos sociais e históricos da alfabetização e limitando-se à técnica de ler e escrever, defendida pela Psicogênese da Linguagem. Todavia, mesmo que os cadernos e o desenvolvimento da formação continuada dos professores apresentem pressupostos de diversas concepções, sabe-se que “o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” é um dos princípios do ensino instituídos no Brasil (BRASIL, 1988).
Uma das conjecturas para esse pluralismo de teorias se respalda na concepção de gestão democrática para as escolas. O MEC não direcionou os cadernos de alfabetização em Língua Portuguesa apenas para um referencial teórico. Pode-se inquirir que se assim o fizesse, consideraria que a formação continuada poderia se tornar ortodoxa e os Municípios e Estados não teriam autonomia para definir o seu referencial teórico e suas concepções, em consonância com às suas propostas pedagógicas e realidade. Assim, constatou-se a miscelânea com a presença de um pouco de cada teoria, naquilo que os autores dos cadernos acreditavam que melhor contribuiria para a interpretação dos fenômenos educativos no campo da alfabetização, visando que os Municípios e os próprios professores pudessem escolher e se basear naquela que lhe despertasse maior interesse e aproximações.
Destarte, em nome de uma gestão democrática na escola, o poder público exime-se de suas incumbências, elegendo que o Município se responsabilize por escolher o melhor referencial teórico e, aos professores, a atribuição pelas mudanças educacionais necessárias e pelo desempenho da alfabetização dos alunos.
Além do mais, esse pluralismo de teorias acabou por apresentar, de forma equivocada, o Sociointeracionismo e o Construtivismo, ambos defendidos por Piaget, a Vygotski, o que pode fazer com que um leitor inexperiente acredite que Piaget e Vygotski expressaram ideias de uma mesma vertente teórica, o que não procede, como apresentado no segundo tópico.
É possível afirmar, que, nos cadernos de formação em Língua Portuguesa do PNAIC, existem algumas limitações nos aspectos conceituais, de interpretações das teorias apresentadas. Esse aspecto pode acarretar diversas interpretações errôneas que se refletem em uma prática pedagógica desconectada das teorias, como também propicia a ausência de planos de aula em harmonia com as propostas pedagógicas das escolas, levando a miscelânea de métodos e a atividades sem propósito algum na alfabetização das crianças.
Por fim, salienta-se que por mais que se considere o PNAIC como uma política conquistada para formação de professores do ciclo de alfabetização brasileira, ao oferecer formação continuada, momentos de reflexão e formação em serviço remunerada, ainda se faz necessário avaliar os seus aspectos frágeis, a fim de obter mudanças efetivas no processo de formação continuada e na alfabetização. Observa-se que os resultados esperados nas avaliações podem responsabilizar o professor pela não aquisição da leitura e escrita dos alunos, ou seja, pelo não cumprimento do direito à aprendizagem. O PNAIC, enquanto uma política educacional que visa responder aos interesses da sociedade vigente, deve ir além de formar bons leitores e produtores de textos, mas também alfabetizar visando à tomada de consciência, proporcionando a formação de leitores e produtores de textos pautados na sua realidade social.