INTRODUÇÃO
Minha negritude não é uma pedra surdez que é lançada contra o clamor do dia minha negritude não é uma catarata de água morta sobre o olhar morto da terra minha negritude não é nem torre nem catedral ela mergulha na carne rubra da terra ela mergulha na ardente carne do céu ela perfura o opaco desânimo com sua precisa paciência.
Aimée Césaire
Quando o atabaque começa a tocar num terreiro de candomblé, é chegada a hora de iniciar o xirê, a cerimônia pública em que os adeptos dançam em volta dos elementos centrais da casa, ao som dos atabaques, sempre no sentido anti-horário, como forma de reverência à ancestralidade e ao seu sagrado. O artigo que apresentamos é um encontro de duas pesquisas de Doutorado em Educação, que se ocupam em estudar as “crianças de terreiros” (CAPUTO, 2012, 2018) nos cotidianos dos candomblés1, destacando o empoderamento feminino na religião através do cargo hierárquico das Makotas nos terreiros de Angola2, e os métodos que estas mesmas meninas vivenciam no contexto escolar, bem como os processos de discriminação e racismo religioso que tais crianças passam em seus cotidianos. Procuramos também compartilhar, para fora dos muros dos ilês axé3, pautados nos conhecimentos que os estudos dos cotidianos e as redes educativas (ALVES, 2010) nos ensinaram, o quanto de riqueza, sabedoria, maestria, força e empoderamento circulam nesses lugares, atravessando o tempo e o espaço, auxiliando, assim, na construção identitária de diversas crianças e jovens pertencentes a esses espaços.
Adotamos, como referencial teórico, autores e pesquisadores que, em seus estudos, se ocupam a olhar as religiões de matriz africana e as relações destas com a sociedade, inclusive, a educação e a infância (CAPUTO, 2012, 2018, 2020; SANTOS, 2010). Aliado a isso, trabalhamos com o que os estudos com crianças de terreiros (CAPUTO, 2012, 2020) chamam de fotoetnografia miúda (CAPUTO, 2020), ou seja, o uso de fotografias como elemento metodológico integrador das narrativas em que as crianças são os principais sujeitos das imagens e participam diretamente na construção do texto.
Esse movimento nos coloca em diálogo constante com propostas cotidianistas e decoloniais, ao nos fazer pensar em epistemologias a partir de vivências e práticas subalternizadas pela colonialidade. Tomamos essa postura como forma de resistência, enfrentamento e insurgência de saberes que, por muito tempo, foram inferiorizados, quando não, negados.
Os estudos desenvolvidos com essa perspectiva teórico-metodológica apontam para uma proposta contra-hegemônica, que rompe com a perspectiva adultocêntrica, que não enxerga a criança como sujeito ativo e construtor da comunidade onde está inserida. Nesse percurso de superação da ordem dominante, defendemos uma metodologia em que a infância deixa de ser apenas objeto de estudo observável, ganhando protagonismo e coautoria. As crianças, para nós, são percebidas como agentes de práticas e transformações nos âmbitos espacial, interpessoal e religioso.
Outra superação da ordem dominante e que nos aproxima aos estudos decoloniais, se dá a partir das insurgências que atravessam o tempo e marcam a história de vida de homens e mulheres, vítimas do sequestro negreiro, e que, até hoje, compõem as bases da tradição das religiões e suas comunidades de terreiros. Essa tradição, ainda hoje professada no interior dos terreiros de candomblé, sobreviveu e subverteu uma lógica dominante, reconfigurando-se, quando necessário, e reinventando seus modos de vida nas “brechas” (WALSH, 2016) do poder colonial.
Estivemos sempre em diálogo com a nova sociologia da infância (SARMENTO, GOUVEA, 2008; FERREIRA, 2010), que entende as crianças como sujeitos de criação ativos da pesquisa e não somente como objetos desta. Por isso, acreditamos que nossos estudos se inscrevem numa proposta intercultural, decolonial e antirracista por romper com dogmas estabelecidos pela colonialidade.
Dessa forma, em consonância com a Lei n. 10.639/2003, que alterou a LDB4 nacional, tornando obrigatória a inclusão nos currículos oficiais, de todas as redes de ensino, da temática História e Cultura Afro-Brasileira, propomo-nos compartilhar alguns saberes oriundos do terreiro pesquisado. Nosso desejo é que o texto produzido seja mais um instrumento de combate e enfrentamento ao machismo e racismo estruturais existentes em nossa sociedade, em suas mais variadas faces, inclusive o racismo religioso e epistêmico, que encontram lugar de vantagem em nossas escolas.
A INDICAÇÃO: QUANDO NASCE UMA MAKOTA
Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados.
Quem é do candomblé sabe o que é, quem não é não precisa saber.
Makota Valdina
É dia de kizomba5 no Kanzo Mwona Dandalunda, terreiro de candomblé de Angola, localizado na Vila da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, onde uma das pesquisas acontece. Já podemos ouvir o som forte dos atabaques; o canto uníssono dos filhos de santo e a roda, em sentido anti-horário, vão se formando, com os corpos em dança: é o início do xirê. A partir desse momento, todos aguardam a chegada dos Nkisis, divindades sagradas da cultura Bantu / Angola.
Terreiros são espaços sacralizados onde grupos de pessoas, de relação consanguínea ou não, se encontram e realizam seus rituais religiosos; são exemplos de coletividade e lutas. Foi nesses espaços que nossos ancestrais africanos resistiram e se reinventaram. Nos espaços de terreiros, as culturas trazidas à força da África foram perpassadas e mantidas. Por isso, a foto (Figura 1) acima, tem muito a nos dizer.
A menina na foto (Figura 1) é Maria Luiza Araújo, um ano e oito meses, conhecida por todos como Maria, a única criança presente neste dia. Ela veste sua roupa ritualística simples, chamada de ração, assim como as demais filhas de santo. Sua cabeça está coberta por um ojá, pano utilizado pelas mulheres, em forma de turbante, que nos ajuda a entender, na estética dos terreiros, os cargos hierárquicos, como veremos mais à frente. O que Maria está usando não é diferente das demais filhas de santo, assim como o fio de contas que ela traz em si. No entanto, três coisas nos fazem olhar mais atentamente para essa criança, pois Maria, mesmo sem saber falar, nos mostra, com simples detalhes em sua indumentária, que ela não é igual a outras mulheres no xirê: o fio de contas transpassando seu corpo; seus pés calçados, diferente das irmãs de santo, que estão descalças; e o objeto sonoro na mão, que é um caxixi, feito de palha e sementes, nos mostram que Maria é uma Makota.
Makotas são cargos exclusivamente femininos, das religiões de matrizes africanas Bantu6, nesse caso, o candomblé Angola. São mulheres que, independentemente da idade, como nos mostra Maria, são escolhidas pelo sagrado dessas culturas, denominado de Nkisis, para serem responsáveis pelos seus pertences, assim como por ele próprio enquanto estiver em terra. O que nos inquieta e nos faz indagar ao ver um corpo tão miúdo em meio a todos os adultos ali presentes, é: como crianças, tão pequenas, assumem papéis tão importantes? Como em culturas tão tradicionais, como são as culturas dos candomblés no Brasil7, rompe-se com visões adultocêntricas, tão fortes, cunhadas pela modernidade?
A pequena Maria, manuseando o seu caxixi, está trazendo e cuidando do sagrado. É, ao som dele, que a criança Makota conduzirá, no futuro, o Nkisi para sua dança no salão festivo e cuidará dos seus passos enquanto, assim, ele quiser e permanecer entre nós, como bem elucida Beniste (2006) ao explicar a importância da dança num terreiro de tradição yorubá: “[...] é mais do que uma questão de forma, é algo sagrado. Por esse motivo, nunca um Òrisà dança sozinho. Tem sempre alguém ao seu lado para acompanhá-lo [...]. Esta pode ser a tarefa de uma Ekedi8 ” (BENISTE, 2006, p. 73). Ressaltamos que, independentemente de sua estatura, idade cronológica ou maturidade predeterminada pela visão ocidental, nesse momento Maria é, ao mesmo tempo, serva e zeladora.
Segundo Caputo (2018), em diálogo com autores atuais dos estudos sociais da infância (SARMENTO, GOUVEA, 2008; FERREIRA, 2010), a subalternização da infância na produção de conhecimento vem sendo questionada e, gradativamente, substituída por propostas que levam em conta a perspectiva e interpretações das próprias crianças a partir de seus modos de vida. O mesmo acontece com o estudo com crianças de terreiros, campo em que essa pesquisa se inscreve.
Na literatura produzida pelo Grupo Kékeré9 (pequeno, em yorubá) em dissertações, teses e artigos, percebemos as crianças participantes de nossas pesquisas como sujeitos sociais, construtores de saberes próprios, inclusive das próprias pesquisas, o que nos ajuda a responder aos questionamentos feitos acima. Nas culturas dos candomblés, a criança aprende e, também, pode ensinar porque os processos de ensino-aprendizagem, num cotidiano de terreiro, acontecem pela prática. Caputo (2018), em diálogo com Mene Viana Cardoso, de três anos de idade (interlocutora da pesquisa da autora), narra quando a criança a questiona sobre saber ou não cantar a sua folha, ritual praticado nos candomblés de Ketu, ao qual as duas pertencem. Se essa situação tivesse acontecido com um de nós, pesquisadores, nossa resposta seria uma negativa e, nesse momento, Mene, aos três anos de idade, estaria nos ensinando.
Outro dado relevante, apontado por Caputo (2012) e que vem ao encontro da reflexão em tela, é a ruptura com o pensamento adultocêntrico cunhado pela modernidade, que aponta a criança como indivíduo em construção e sempre em escala de inferioridade a um adulto. Na lógica dos candomblés, a idade civil não corresponde à idade iniciática. Uma criança pode ser mais velha que um adulto, uma vez sendo ela iniciada antes deste ou ter sido escolhida e confirmada pelo sagrado a ocupar um cargo, como é o caso das Makotas.
Quando um Nkisi se deita aos pés de uma pessoa ou a suspende acima dele, está depositando toda sua confiança a ela. Nas religiões de matrizes africanas, a hierarquia é um componente fundamental da tradição, e ocupar o cargo de Makota é parte estrutural dessa hierarquia.
Salas (2017, p. 65), em seus estudos sobre ekedis que, como dito anteriormente, corresponde ao cargo de Makota, se refere a esses cargos hierárquicos como “mães do cuidado”. Segundo sua pesquisa, realizada em uma tradicional casa da nação de Ketu, no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, a pesquisadora conta que assim são chamadas porque já nascem com a responsabilidade de cuidar dos orixás10 .
Ao serem consideradas mães, essas meninas, ou mulheres, acompanham todos os processos da feitura de santo dos demais membros daquela comunidade. A feitura de santo é o processo iniciático no candomblé, que se desdobrará em obrigações de tempo que obedecem a uma temporalidade de 3, 7, 14 e 21 anos e seriam a continuidade do processo pelo qual todos os filhos de santo iniciados precisam passar. O cumprimento de cada etapa dessa faz com que o filho de santo amadureça na religião e atinja posições hierárquicas dentro daquela família / terreiro. Nas casas mais tradicionais, será essa contagem de tempo que permitirá ao adepto participar e conhecer todos os rituais praticados. A senioridade é um dos pilares da religião.
Diferente das pessoas que manifestam o Nkisi, ou seja, que entram em transe e passam por todo o processo descrito acima, Makotas têm livre acesso a todos esses rituais antes de completarem seus sete anos de iniciadas, idade de “maioridade” no candomblé, o que as coloca em alto posto na hierarquia da religião e detona, muitas vezes, competições e vaidades na harmonia do terreiro. Ainda segundo Salas (2017, p. 79), essas mulheres “nascem de pé”.
Maria foi apontada, ou seja, escolhida em julho de 2019, por Zazi, Nkisi do fogo e da justiça de Tat’etu Zazemavuloya, zelador da casa. No dia 3 de agosto, Maria era apresentada a toda a comunidade do terreiro já como Mukindalu, nome que ganhou do sagrado e que será reconhecido daqui em diante na religião, sua dijina11 . Mukindalu, a partir de agora, acompanhará Zazi em cada dança, em cada passo dele em Terra, assim como ele a acompanhará em seu crescimento e amadurecimento dentro e fora da religião. Ela, a partir de agora, será os olhos do rei enquanto os de seu filho estiverem cerrados para lhe referenciar.
A confirmação: é preciso conhecer e respeitar
Na foto (Figura 2) que ora trazemos, Maria surge no sambilè, salão público de um terreiro de Angola, com sua indumentária de festa. Sobre suas roupas, já em renda de qualidade, está sua faixa com os dizeres que tornam público que, a partir de agora, ela é uma Makota confirmada. Quem a tira do indemburo - quarto onde são feitos os rituais de feitura e que não são públicos, comparados metaforicamente, por muitos, ao útero materno, pois ali se nasce para uma nova vida - é Zazi, Nkisi masculino, ligado ao fogo, à justiça e aos trovões, como já mencionamos — o mesmo que a apontou e escolheu. A menina que, antes era conhecida apenas como Maria, está com sua cabeça nua por baixo de seu ojá que, agora, é de renda e, desde esse dia, ela será chamada de Munkidalu. A menina, tão pequena, se tornou mãe. Todos os presentes, no terreiro, com exceção dos pais de santo, se ajoelham perante ela.
O candomblé, independente da nação à que pertença, é uma religião de tradição iniciática. Só após o processo de iniciação, a pessoa poderá acompanhar e vivenciar determinados rituais e preceitos. Isso vale para todos, até para os escolhidos. Após a suspensão numa cadeira, ato descrito acima como forma de predileção, a Makota passa pelo mesmo processo ritualístico de iniciação, que culminará também numa festa pública, mas entre uma festa e outra, há a obrigação.
Uma pessoa, quando começa a frequentar um terreiro de candomblé de Angola, é chamada de Ndumbi12 . Essa denominação significa aquele que não foi iniciado. Após a iniciação na religião, processo litúrgico que perdura semanas, o iniciado deixa de ser Ndumbi e passa a ser conhecido como Muzenza até completar as obrigações de sete anos, quando será denominado como kota que, numa tradução literal, seria irmão/a mais velho/a, conforme explicou Mametu Kiamucongo, uma das mães de santo, à pesquisa. Para que esse processo aconteça, existe todo um conjunto de práticas e ritualística, que só acontecem devido ao modelo de organização que a tradição da religião impõe.
Nessa tradição, a hierarquia é um dos eixos estruturantes, assim como o respeito à ancestralidade e à noção de família. Partindo dessa premissa, encontramos na estrutura hierárquica de uma família / terreiro, pessoas que ocupam cargos e funções tais como os Mametu Nkisi e Tata Nkisi, que são as lideranças do núcleo familiar, popularmente conhecidos por mãe de santo e pai de santo. Estes, para conseguirem dar conta de toda a responsabilidade e organização que demanda o cotidiano de um terreiro, dividem as obrigações de comando com outros cargos, entre eles, as kotas.
As responsabilidades de ocupar um cargo numa família de terreiro são grandes e algumas diferenciações também são expostas. Pessoas que ocupam cargos, como o das Makotas, para mulheres, ou Kambondos, para homens, recebem destaque e tratamento diferenciado, por isso, todos se ajoelharam para Maria. Essa diferença pode ser percebida, também, na indumentária e no tratamento que recebem. Enquanto um recém-iniciado precisa se sentar no chão, como forma de respeito aos mais velhos, Makotas e Kambondos sentam-se em cadeiras; seus pés nunca estão descalços, como os demais filhos de santo novatos; na hora das refeições, eles se sentam à mesa, junto aos mais velhos.
O mesmo pode ser percebido a partir da indumentária. Makotas são liberadas a usar rendas e tecidos que, para os demais iniciados na religião, só serão permitidos a partir de um tempo após a feitura do santo, assim como sapatos (salto alto) e adornos. A exemplo, as vestimentas de um outro recém-iniciado são as mais simples possíveis, chamadas de roupas de ração ou roupa de crioula. Com o passar do tempo e, também, dos anos dentro da feitura, as indumentárias vão mudando, ganhando cor e volume. Isso é simbólico na tradição da religião, como ensina Mãe Stela de Oxóssi, ialorixá do Ilê Axé Opô Afojá, de Salvador: “Vestir-se adequadamente, com boa aparência e sem afetação, faz parte do aprendizado desde o recém-iniciado [...]. As roupas, independente da condição hierárquica, devem estar em bom estado: bem lavadas, bem passadas e conservadas” (SANTOS, 2010, p. 43).
No entanto, Makotas assumem outra postura: por já terem nascido mães, elas são liberadas ao uso de vestimentas diferenciadas, que as distinguem dos demais integrantes. Também faz parte da tradição dos candomblés, a diferenciação das vestimentas de homens e mulheres. Homens usam calças e batas; mulheres usam baianas, um conjunto de roupas que somam, no mínimo, cinco peças: saia, calça (a ser vestida por baixo da saia), camisu (um tipo de bata curta), pano da costa (pano a ser amarrado na altura dos seios ou na cintura, dependendo do cargo ou tempo de iniciação) e ojá. Makotas conseguem romper a tradição do binarismo homem x mulher na tradição das roupas que, devido às suas reponsabilidades e à necessidade de agilidade no seu fazer, podem usar Alakás, que são túnicas compridas que chegam aos joelhos, e substituem saias e anáguas, facilitando e agilizando a organização do trabalho.
A epígrafe que abre essa Seção do nosso artigo, traz frases de Makota Valdina, mulher negra, educadora e feminista. Em sua fala, retirada de um documentário sobre gênero no candomblé, disponibilizado na internet, ela faz uma defesa da tradição na religião. Usando as vestimentas como exemplo, relata que, no candomblé, existem funções e roupas próprias para homens e mulheres. Quando questionada quais seriam as funções próprias das mulheres, ela responde: “Tem muitas; quem é de candomblé sabe, quem não é, não precisa saber”.
Será que não precisa mesmo? Maria, uma criança negra, filha de pais negros, candomblecistas, Makota confirmada, com menos de dois anos de idade, crescerá numa família (carnal e de santo), cercada por alguns privilégios que seu cargo lhe dá, como descrevemos acima. Mas, como ela vai lidar com isso fora dos muros de seu terreiro? Como ela vai lidar com o racismo existente em nossa sociedade intolerante que, provavelmente, lhe discriminará duplamente: por ser negra e por ser candomblecista?
Mignolo (2017) nos mostra que, desde a colonização, a cor da pele foi entendida como marcador da raça e, consequentemente, usada como justificativa para expropriar, quando não, aniquilar povos tradicionais e suas culturas nas Américas e na África. A ação que nega os conhecimentos oriundos dos terreiros está diretamente associada com os componentes de classificação e exclusão cunhados nesse período e perpetuados pela colonialidade, e trazem, em si, outras dimensões do racismo, entre elas, o epistemológico e o religioso.
Pensar uma proposta de educação que vise romper com o pensamento eurocêntrico, branco, hegemônico, ditado pela modernidade, é permitir a percepção de que existem formas outras de entender o mundo e que estas sobreviveram às inúmeras tentativas de ataque e aniquilação, o que Walsh (2016) chamará de “brechas” da colonialidade do poder.
Acreditamos, alinhado ao que Alves (2010) chama de redes educativas, cuja ideia de aprendizagem está além dos múltiplos espaçostempos13 que, mesmo quem não “é do santo” precise, sim, conhecer nossas histórias, nossas culturas, nossos saberes. Defendemos que uma proposta decolonial de educação necessita romper com as gramáticas normativas, desconstruindo ideias e posturas sacralizadas, apontando novos caminhos, num movimento de desconstrução / construção também de saberes. Os estudos decoloniais nos ensinam que a “[...] colonialidade é o lado sombrio da modernidade” (MIGNOLO, 2017, s. p.) e que, para romper com a lógica desintegradora da colonialidade do poder (QUIJANO, 2014), da colonialidade do ser (MIGNOLO, 2000) e da colonialidade do saber (LANDER, 2005), é preciso romper com o paradigma hegemônico moderno e buscar, nos movimentos e expressões de povos subalternizados, novas agendas e modelos outros de configuração societal.
Pelas questões históricas que nos formaram enquanto sociedade e, também, como estratégia de luta antirracista, as gramáticas dos terreiros precisam ir além dos seus muros, sim e, cada vez mais, ocupar os diferentes espaços do saber.
UM MURO QUE SEPARA E O LADO PERVERSO DA INTOLERÂNCIA: OUTRAS EXPERIÊNCIAS SÃO POSSÍVEIS?
Se a escola excluir os alunos de candomblé, a escola não merece nenhum respeito!
Mãe Beata de Yemojá
Sabemos que os processos diaspóricos são processos de desintegração, de afastamentos e de perdas. No caso da diáspora africana, engendrada por uma agenda de colonização, temos o agravante da escravização. Com isso, a morte e a degradação de tudo que remete à cultura originária dos povos africanos, que deram origem aos candomblés no Brasil, passaram por inúmeras tentativas de apagamento e de marginalização. Mas, o que encontramos do lado de cá do Atlântico é uma experiência de luta, resistência, (re)existência e insurgência. O negro escravizado, que não sucumbiu, se reinventou e se reinventa até hoje.
A crescente onda de racismo e intolerância religiosa, já denominados, por alguns, de terrorismo religioso, nos leva a crer que precisamos seguir em luta. E um dos espaços onde mais vemos esse tipo de situação acontecer é a escola.
Nos últimos anos, muitos casos de intolerância religiosa e, consequentemente, racismo religioso, têm sido denunciados nos órgãos competentes e compartilhados nas redes sociais da internet e mídias, em geral. Segundo fontes do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e mostrados em reportagem no Jornal O Globo14, os números de casos de intolerância religiosa, de forma geral, têm diminuído no nosso país, mas, por outro lado, os casos de intolerância contra religiões de matriz africana aumentaram de forma significativa (cerca de 47%), nos últimos tempos.
Além dos dados estatísticos oficiais, muitas dessas denúncias têm circulado nos meios de comunicação, impressos ou digitais, comprovando essa crescente onda de ataques às religiões de matriz africana, especialmente no Rio de Janeiro, que se configura como o terceiro estado do Brasil com maior número de casos de intolerância religiosa.
Caputo (2012) já denunciava o racismo religioso, que afeta fortemente os praticantes das religiões de matriz africana. Os saberes e cultura ancestrais que, nos terreiros, são motivo de orgulho, na escola são desvalorizados e alimentam o preconceito e a intolerância.
[...] nas comunidades de terreiros existem inúmeras crianças e adolescentes. Elas ou são da família do pai ou mãe de santo ou estão ligadas aos filhos e filhas de santo dos terreiros. Assim como os adultos, essas crianças são iniciadas no candomblé, desempenham funções específicas, recebem cargos na hierarquia dos terreiros e manifestam orgulho de sua religião. Na escola, porém, essas crianças e adolescentes são invisibilizadas, silenciadas e discriminadas. Com a aprovação da lei de Ensino Religioso a situação se agravou ainda mais. A invisibilidade e o silêncio a que submetem essas crianças e adolescentes aumentaram (CAPUTO, 2012, p. 33).
Nesse contexto, acreditamos que a crescente onda conservadora, em nosso país, alicerçada em pilares religiosos cristãos, pentecostais ou neopentecostais, tem favorecido o acirramento das diferenças religiosas e contribuído no aumento do número de ataques aos praticantes das religiões de matriz africana. No entanto, outras experiências são possíveis.
Maria, nossa Kotinha, como é chamada, carinhosamente, por todos no terreiro, frequenta a creche num Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) da rede municipal do Rio de Janeiro15 . Em contato e conversas com a equipe diretiva da unidade, tivemos acesso a relatos do quadro docente e pedagógico sobre o retorno da pequena Makota ao seu ambiente formativo, após seu período de recolhimento. Por se tratar de crianças muito pequenas, que dificilmente saberiam distinguir ou fazer qualquer juízo de valor do pano de cabeça que Maria estava utilizando, na época, ocupamo-nos em olhar o comportamento dos adultos que interagiram com ela nesse período.
Qualquer pessoa, tendo cargo ou não, após o processo de iniciação precisa passar por um período de preceitos a que chamamos de resguardo. Esse tempo varia de 21 dias a um ano, conforme a determinação do Nkisi, quando a pessoa terá, como nos ensina Beniste (2006, p. 173), “[...] um mínimo de direitos e muitas obrigações”. Dormir na esteira, não tomar chuva, não ir à praia, não frequentar lugares públicos com muitas pessoas são algumas das restrições desse período. Associado a isso, temos também as chamadas kizilas, que seriam proibições próprias de cada um, determinada pela divindade na qual foi iniciado. Com Maria não foi diferente: mesmo como Makota, ela precisou passar por algumas dessas restrições, inclusive alimentares, o que necessitou ser comunicado e explicado à instituição de ensino.
Quando questionadas a respeito do retorno de Maria e das peculiaridades daquele momento da criança, tais como o uso do ojá na cabeça, não poder participar da hora do sono sem uma luz acesa próxima a ela, restrições alimentares, entre outros, as diretora e diretora-adjunta se mostraram muito confortáveis e confessaram suas religiões: umbanda e candomblé. A diretora-adjunta, inclusive, é ekedi, o que a fez ficar muito à vontade com Maria. As duas, também, contaram que nunca haviam vivido uma situação como essa e que, na escola, que atende em média 250 crianças, apenas Maria foi declarada pela mãe como candomblecista.
A professora, ateia, mas que respondeu conhecer um pouco da religião por causa de amigos, se mostrou atenciosa em explicar para as demais crianças que Maria não poderia ficar sem o “seu paninho de cabeça”, o que pareceu despertar mais curiosidade entre os pequenos. Sua preocupação maior foi com a reação das professoras auxiliares. Com essas, a professora foi bem incisiva, o que minimizou um pouco das possíveis reações de intolerância. O mesmo não aconteceu com as manipuladoras de alimentos, que se mostraram temerosas em errar na alimentação da menina com medo de “serem castigadas”. A professora, ao ser questionada por nós sobre intolerância religiosa e sobre o trabalho desenvolvido com Maria nesse período, respondeu: “É respeito pelo outro”.
Podemos destacar que, infelizmente, a experiência de Maria, em seu cotidiano de aprendizagem no EDI, quando analisada ao longo do histórico de nossas pesquisas, é considerada minoria perto de diversos relatos a respeito de ações discriminatórias e de intolerância em diferentes ambientes formais de educação, independentemente do nível de escolarização. Raíssa Teixeira, Makota Kupapa Unsaba, relata no vídeo Folhas Miúdas: infâncias em terreiros16, que “[...] para ela, não há nenhum lugar tão cruel quanto a escola para crianças e jovens de terreiros, por causa do racismo e da discriminação”, e vai além quando a jovem diz que “[...] a sociedade poderia aprender muito com crianças e jovens de terreiros, ao ouvi-los”. Por isso, experiências, como essa, precisam ser destacadas.
Acreditamos que o conhecimento é uma ferramenta importante para que haja o respeito. Diretoras e professora conheciam a religião e seus preceitos, o que pode ter sido fundamental na construção de uma rede de acolhimento e proteção contra possíveis reações intolerantes. Entendemos a urgência em romper com a ideia que limita os espaços do saber aos espaços formais de educação, de creches, escolas até a academia, e aproximar o conceito de espaçotempo em educação de Alves (2010), que Simas e Rufino (2018) nomeiam de gramática dos tambores. Devemos, por isso, seguir estudando e pesquisando.
Entendemos também que, para além do conhecimento e do reconhecimento dos saberes que mencionamos acima, numa proposta decolonial a aplicação da Lei n. 10.639/2003 também se faz necessária para que, no diálogo de diferentes redes e culturas, se constitua um conhecimento plural e mais democrático na formação do povo brasileiro. Nesse sentido, “[...] promover a reflexão sobre a imagem de criança que dá suporte às práticas dos(as) educadores/as possibilita a compreensão das singularidades e potencialidades de cada criança, podendo contribuir para promover condições de igualdade” (BRASIL, 2006, p. 32).
Historicamente, fomos o país com maior quantitativo de negros escravizados no processo de diáspora africana e o último do mundo a abolir o trabalho escravo na economia. Somos considerados, também, a maior nação negra fora da África. Mesmo com todas essas evidências, nosso país vive o mito da democracia racial e a luta antirracista, pelo Movimento Negro ao longo dos anos, culminou na criação da referida Lei.
A aplicação da Lei n. 10.639/2003, nos diferentes cotidianos escolares e, em toda a educação básica, incluindo a Educação Infantil, efetiva o combate ao preconceito racial e ao racismo religioso já que “[...] o acolhimento da criança implica o respeito à sua cultura, corporeidade, estética e presença no mundo” (BRASIL, 2006, p. 39).
A referida Lei desestabiliza e enfrenta o silêncio que o colonialismo impôs e, muitas vezes, continua impondo na preservação e valorização de uma cultura eurocentrada. Nessa conformidade, pensamos que, na Educação Infantil:
Independentemente do grupo social e/ou étnico-racial a que atendem, é importante que as instituições de Educação Infantil reconheçam o seu papel e função social de atender as necessidades das crianças constituindo-se em espaço de socialização, de convivência entre iguais e diferentes e suas formas de pertencimento, como espaços de cuidar e educar, que permite às crianças explorar o mundo, novas vivências e experiências, ter acesso a diversos materiais como livros, brinquedos, jogos, assim como momentos para o lúdico, permitindo uma inserção e uma interação com o mundo e com as pessoas presentes nessa socialização de forma ampla e formadora (BRASIL, 2006, p. 37).
Embora passados 132 anos da abolição da escravatura, feita no século XIX, e estarmos vivenciando o século XXI, muitas crianças, jovens e adultos ainda continuam sofrendo preconceito racial. Esse preconceito, muito embora não tenha sido criado nas creches ou escolas, na maioria das vezes, de forma perversa, é nesses espaços que se ratifica:
[...] No interior das instituições de Educação Infantil, são inúmeras as situações nas quais as crianças negras, desde pequenas são alvo de atitudes preconceituosas e racistas por parte tanto dos profissionais da educação quanto dos próprios colegas e seus familiares. A discriminação vivenciada cotidianamente compromete a socialização e interação tanto das crianças negras quanto das brancas, mas produz desigualdades para as crianças negras, à medida que interfere nos seus processos de constituição de identidade, de socialização e de aprendizagem (BRASIL, 2006, p. 38).
Práticas educacionais que privilegiem as relações étnico-raciais se fazem latentes na busca de uma sociedade mais justa e igualitária, promovendo, nesses espaços, a sociabilização e o diálogo de diferentes cotidianos para o reconhecimento do plural, onde crianças, brancas e negras, praticantes das religiões de matriz africana, ou não, possam conviver em harmonia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de o projeto colonizador ter dizimado milhões de pessoas e seus conhecimentos, os terreiros seguem, ainda hoje, como espaços de resistência nas culturas vividas e recriadas. Enquanto a sociedade moderna, eurocentrada, branca e machista, tentou suprimir, em seu sistema colonizador, culturas e povos inteiros, nos terreiros, homens e mulheres, adultos e crianças seguem cultuando suas divindades, dançando e cantando, no sentido anti-horário, mirando o futuro sem perder a conexão com seu passado.
O outro lado do muro ameaça, viola e mata: do lado de dentro, meninas e mulheres se empoderam, crianças e homens crescem orgulhosos de suas vidas, famílias inteiras ganham sentidos de pertencimento. Cabe à escola entender que não é o único lugar de conhecimento; outros saberes, outros cotidianos nos ensinam tanto ou mais que ela. A escola não pode perder a chance de potencializar conhecimentos com as diferenças trazidas por crianças que vivenciam esses múltiplos espaçostempos. Professores e professoras, preocupados e preocupadas com uma educação menos racista e mais plural podem sempre assumir novas posturas.
É preciso enfrentar o racismo que ainda assola a sociedade, compreendendo-o como resultado do colonialismo. O resgate da cultura negra possibilita um “nós”, uma identidade relevante na sua história e na sua ancestralidade.
Não podemos permitir que esses saberes ancestrais não sejam valorizados em decorrência do racismo estrutural e estruturante de nossa sociedade que, como exposto por Almeida (2018, p. 25), “[...] é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”, e que são tecidas pelo colonialismo e, mais ainda, que se mantêm na nossa contemporaneidade. O autor vai além:
O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção (ALMEIDA, 2018, p. 38).
Precisamos olhar para essas crianças, ouvir o que elas têm a nos dizer e ensinar. É imperativo o entendimento que as mesmas crianças que cantam, dançam, brincam, crescem e se empoderam nos terreiros estão, também, muitas vezes, no interior das escolas sofrendo discriminações de diferentes ordens, principalmente, o racismo religioso. É necessário ensiná-las a se defender da intolerância e do racismo que atravessam sua religiosidade. É compromisso de educadores/as ensinar a todos a respeitar o que lhes é diferente e, acima de tudo, aceitar, de vez, que a história de homens e mulheres africanos nos constituiu como sociedade.
Assim como num xirê, o novo buscará o passado para construir um novo futuro, porque esse modelo, que está posto, não mais contempla; pelo contrário: só destrói. Os terreiros de candomblés, exemplos de luta e resistência, têm muito a nos ensinar.