INTRODUÇÃO
Como vivem as crianças indígenas do que brincam? Quais são seus interesses? Sobre o que aprendem e como o fazem? Como ocupam seu tempo? Como se pode conhecê-las? Há pesquisas sobre elas? De que perspectivas é possível realizá-las? Qual a contribuição que os estudos sobre a infância nas sociedades indígenas podem trazer à etnologia brasileira e que impacto provocarão na produção de conhecimento antropológico? E por fim, mas não menos importante, que relevância esses estudos terão para a vida das crianças, nos vários grupos societários em que se inserem, nos aspectos que mais diretamente afetam, nomeadamente, nutrição, saúde, educação, integração familiar e social, identidade, produção econômica...? (Silva, Nunes, 2002, p. 11).
Anunciar e reforçar os dados, bem como os campos de investigação que envolvem populações indígenas brasileiras se torna imprescindível para destacar que o modo como a temática vem sendo discutida ainda é insuficiente para que se possa compreender de maneira aprofundada os processos históricos e sociais (Pereira, 2021, 2019).
Corroboramos Silva, Nunes e Macedo (2002) quando afirmam, na orelha do livro:
A infância nas sociedades indígenas brasileiras tem sido um tema apenas ocasional e secundariamente presente nas pesquisas em etnologia. [...] aliando-se à reação crítica que a ausência das crianças nos estudos e reflexões no âmbito das ciências sociais tem mobilizado, e que somente na última década tem captado atenções científicas mais contínuas e sistemáticas. Partindo da necessidade de identificar os conceitos que haviam dominado o pensamento sobre a infância desde o início do século XX, os estudos realizados pelos cientistas sociais europeus revelam quanto esses conceitos são problemáticos para perceber a criança no seu contexto social e histórico, e inadequados ao exercício comparativo. Começa, então a ser questionada a hegemonia do padrão criança ocidental e etnocêntrico, a partir do qual se pensava a infância em todas as sociedades. Fica urgente a urgência em empreender uma revisão epistemológica, sem a qual não adiantaria multiplicar as pesquisas centradas nas crianças. Mais do que aumentar a quantidade de dados etnográficos, seria preciso, sim, melhorar sua qualidade.
A partir do que as autoras enunciam, enfatizamos que há necessidade de avançar sobre o assunto, mas nos questionamos sobre: o que está sendo produzido nas pesquisas científicas acerca das crianças indígenas brasileiras? Desse modo, com o presente texto, a partir de uma revisão do tipo estado do conhecimento, objetivamos mapear e discutir a produção acadêmica sobre os estudos com crianças indígenas brasileiras.
Os estudos de Prado (2017) e Libardi e Silva (2021) constataram a escassez de estudos acerca das crianças indígenas brasileiras. Assim, justificamos a importância desse estudo, para que se possa, a partir dos dados levantados, subsidiar futuras contribuições e discussões na construção de um referencial teórico acerca da infância indígena em seus mais diversos âmbitos.
As buscas realizaram-se nas seguintes bases: Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, portal de periódicos da Capes e Scientific Eletronic Library Online (SciELO), utilizando os filtros dos anos 2018-2022, e aplicados alguns refinamentos, como foco nas áreas das ciências humanas e sociais. Assim, procuramos trabalhos cujas temáticas englobassem estudos sobre a infância indígena com relação à ludicidade, corporeidade, desenvolvimento motor/cognitivo, área educativa ou, ainda, sobre a compreensão e representação da criança.
No que se refere à estrutura do manuscrito, este está dividido em cinco seções, sendo a primeira a introdução, quando foram abordados os principais elementos de uma pesquisa científica; na seção acerca dos estudos sobre crianças indígenas, apresentamos um referencial sobre crianças indígenas; em aspectos metodológicos tratamos da metodologia utilizada nas buscas das bases de dados para fomentar uma pesquisa do tipo estado do conhecimento; a seção resultados e discussão descreve os principais achados, organizados em três categorias, quais sejam: cultura, ensinamentos e ludicidade indígenas; educação escolar indígena; e formação de professores indígenas; por fim, nas considerações finais, retomamos o objetivo do estudo e tecemos as principais reflexões sobre a temática em tela.
ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE CRIANÇAS INDÍGENAS
As pesquisas acerca da temática da criança nos remetem a um tema sempre em construção, por diferentes vias epistemológicas, e com algumas pesquisas já bastante avançadas e despertando interesses diversos.
Para iniciar a investigação direcionada à criança, devemos entender que a individualidade é um quesito importante, pois não podemos entender a consciência infantil a partir da consciência do adulto. Sabemos que a consciência do adulto difere da consciência da criança em termos de estrutura e organização e isso ocorre pelo fato de a criança não ser um adulto em miniatura. Esse mito é uma compreensão repulsiva, a criança possui outro equilíbrio, outras peculiaridades e devemos desvelar a consciência infantil como fenômeno positivo (Merleau-Ponty, 2006).
Diversas pesquisas sobre a infância indígena demonstram que as crianças têm responsabilidades, autonomia e liberdade próprias. Porém, ainda têm dificuldade no acesso à educação e à equidade de direitos (Pereira, Gomes, Castro, 2019), frente a crianças não indígenas. Além da falta de reconhecimento dos povos indígenas, são poucas as políticas de assistência e proteção (Pereira, Souza, Fialho, 2021).
A partir do estudo de Pereira, Caminha e Silva (2019) verificamos que, apesar da quantidade de trabalhos que versam sobre a criança, poucas são as produções acadêmicas que apontam seus olhares para a temática das crianças indígenas. Quando direcionamos tal olhar vemos uma lacuna extensa pela ausência de trabalhos com relação à temática, que pode estar associada a nossos aspectos histórico-culturais de pressupostos colonizadores e exclusão desses povos, bem como à regulação epistemológica que vai determinando nossas vias conceituais, ou ainda o fato de haver uma rasa discussão nos cursos de graduação, em programas de pós-graduação e até mesmo nas escolas do país.
No que se refere às crianças indígenas, podemos citar alguns trabalhos que marcaram esses estudos como a dissertação de mestrado A sociedade das crianças A´uwê-Xavante - por uma antropologia da criança (1997) e a tese de doutoramento Brincando de ser criança: contribuições da etnologia indígena brasileira à antropologia da infância (2003), bem como o artigo O lugar da criança nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras (2002), da autora Ângela Nunes; o livro Crianças indígenas: ensaios antropológicos, de Aracy Lopes da Silva, Ana Vera Macedo e Ângela Nunes (2002). Ainda citamos o artigo de Antonella Tassinari (2007) com o título Concepções indígenas de infância no Brasil, a dissertação de mestrado de Clarice Cohn (2000) intitulada A criança indígena: a concepção Xikrin de infância e aprendizado, o artigo de Myriam Alvarez com o título Kitoko Maxakali: a criança indígena e os processos de formação (2004) e o artigo de Iara Tassinari: Concepções indígenas de infância no Brasil (2007).
Todos os trabalhos anteriormente referidos nos direcionam à transgressão da ideia adultocêntrica, ou seja, de culminar na representação de que crianças são adultos em miniaturas, além de serem valiosas contribuições para se pensar infâncias em suas multiplicidades.
O artigo de Nunes (2002), supracitado, realiza um estado da arte sobre os estudos acerca das crianças indígenas brasileiras até o corrente ano, discutindo também um enfoque sobre os estudos pioneiros, além de percorrer pesquisas das décadas de 1930 a 1990 sobre as crianças Xavante. O estudo finaliza com a conclusão da ausência de reflexões sobre limites e amplitudes próprias a essas crianças, não sendo versões reduzidas ou reproduções ampliadas dos adultos.
Introduzimos essa ideia anteriormente no texto quando inserimos o autor Merleau-Ponty (2006) para o debate sobre os estudos da criança:
Maurice Merleau-Ponty aponta aqui alguns problemas relativos ao pensar realista nas pesquisas de psicologia infantil (2006, p. 476). Interessamo-nos especificamente que não percebem que a criança tem a noção de corpo fenomênico indiviso entre pensamento e extensão; que a percepção da criança e do adulto não são iguais; que compreender a criança e sua percepção implica em estabelecer uma ordem que não é representacional, e que nem por isso é o caos (Lisboa, 2012, p. 122).
Como vemos, Lisboa (2012) nos mostra que Merleau-Ponty (2006) já anunciava a habitual perspectiva adultocêntrica que incide sobre a criança, rompendo com os modelos de conhecimento por representação nos cursos da Sorbonne sobre psicologia e pedagogia da criança, nos quais expressou o ser-no-mundo infantil contra a tradição do ocidente.
As crianças indígenas têm seus próprios processos de aprendizagem e técnicas corporais - manifestações que se revelam e registram valores com padrões de identificação do indivíduo diante de si mesmo e dos outros (Mauss, 1974). Porém, identificava-se o não reconhecimento da criança como “[...] um objeto legítimo de estudo”, por entender que elas eram “[...] seres incompletos a serem formados e socializados” (Cohn, 2005, p. 10).
Mesmo sendo estudos muito recentes no espaço acadêmico, entendemos a criança agregada a quesitos de liberdade e cultura, assimilando que vivencia relações no mundo, espontaneamente. Crianças não seriam, portanto, pequenos adultos e mereceriam estudos específicos, já que o saber adquire sentido para a criança quando constitui situação (Merleau-Ponty, 2006).
Isso que tem exigido dos pesquisadores muita disciplina e dedicação na busca de novas metodologias e abordagens epistemológicas pós-coloniais que superem não só o dualismo adulto/criança, mas também a relação hierárquica entre os conhecimentos legitimados em uma base eurocêntrica e os conhecimentos produzidos e ressignificados tendo como base outras lógicas, outros saberes e leituras de mundo (Vieira, 2015, p. 33).
A imersão nessa leitura de mundo posta por Vieira (2015) sobre as pesquisas com crianças indígenas nos faz compreender que produções estão sendo realizadas e corrobora para a identificação de seus perfis. França (2002, p. 1), quando à época se referia aos estudos de Ângela Nunes sobre crianças indígenas, menciona que isso:
[traz] à tona, por intermédio de exemplos de estudos promovidos por antropólogos e etnólogos, a escassez de investigação e estudos da antropologia sobre a criança, acrescentando a esse reconhecimento, a sugestão de adotar a nomeação deste campo de investigação específico, de Antropologia da Infância, ou da Criança. Essa falta de estudos voltados para esse período da vida não parece claro, segundo a autora.
Entretanto, a partir do reconhecimento da criança como um ser social, pertencente a uma etapa do ciclo da vida com traços próprios e que possui tal importância como as demais, uma vez que se cumpre em si mesma, novos estudos dotados de novas concepções devem ser produzidos para que a sociabilidade da criança, ao ser desvendada possa ser considerada como plena.
A partir da afirmação de França (2002), quando defende novos estudos a serem produzidos sobre as crianças, passaremos agora a nuances desse campo de investigação, por meio do mapeamento e discussão da produção acadêmica sobre estudos com crianças indígenas brasileiras, revelando suas peculiaridades.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Buscamos realizar uma pesquisa bibliográfica, quando recorremos à metodologia do estado do conhecimento, que de acordo com Pereira, Sousa e Ferreira (2021) é uma metodologia que como o próprio nome já diz, analisa o estado de determinado campo do conhecimento, sendo utilizada para consultar e sistematizar a análise do que foi produzido, sendo importante para a fundamentação do que será produzido em uma pesquisa. E ainda se constitui como fonte para a produção acadêmica. Tem como finalidade a ordenação de um conjunto de informações e resultados já obtidos, que permitem a indicação de possibilidades de integração sob diferentes perspectivas, sendo autônomas e com a identificação de lacunas ou vieses.
A presente pesquisa foi realizada no dia 3 de agosto de 2023 e ocorreu em duas fases. A primeira, quando realizadas buscas nas seguintes bases de dados: Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, portal de periódicos da Capes e SciELO, utilizando-se os descritores: criança indígena e infância indígena e aplicando o filtro últimos 5 anos, o que resultou em 22 trabalhos. A segunda etapa seguiu-se com a leitura flutuante dos títulos e resumos das pesquisas encontradas para selecionar estudos que dizem respeito à temática em apreciação, o que resultou na exclusão de 7 trabalhos, tendo, como resultado final, 15 trabalhos para a referida discussão.
Em síntese, a presente investigação adota abordagem qualitativa, sendo esta escolha fundamentada na natureza intrínseca de uma análise que permitiu a seleção de estudos pertinentes à temática em estudo e os quais serão discutidos a seguir.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A busca no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes foi realizada utilizando os descritores: criança indígena e infância indígena separadamente. Obedecendo alguns critérios de inclusão e exclusão, fizemos uso dos seguintes filtros: pesquisas realizadas nos últimos cinco anos (2018-2022); grande área de conhecimento: ciências humanas e área de educação.
A partir da busca tivemos como resultado 11 pesquisas, sendo estas dissertações de mestrado e teses de doutorado. Após a leitura dos títulos e dos resumos, excluímos 4 por não terem relação com a temática em estudo. Posteriormente, foi selecionado um total de 7 achados, como encontra-se descrito na Tabela 1.
Ano | Autoria | Título |
---|---|---|
2018 | RODRIGUES, E. M. | A criança Guarani Nandeva na Tekoha Porto Lindo/Japorã-MS |
2018 | NASCIMENTO, D. L. |
Índios no Distrito Federal? A educação de crianças indígenas na capital do país |
2018 | SALMAZIO, L. G. de M. |
Crianças indígenas na educação infantil: percepções e olhares outros de uma educadora |
2022 | OLIVEIRA, C. H. C. | As crianças do Morro Branco: uma etnografia da infância TenteharGuajajara |
2020 | SALVADOR. N. P. | O movimento corporal e as brincadeiras infantis no cotidiano da Aldeia Vendaval: contribuição à educação infantil indígena Ticuna |
2022 | SOUZA, J. V. F de. | Crianças Huni Kuin e suas redes de interdependências: tensões e negociações nas configurações da infância indígena |
2019 | JARDIM, M. J. B. | A educação escolar e a identidade cultural da infância indígena Gavião na Aldeia Ikólóehj (Terra indígena Igarapé Lourdes) JiParaná-RO |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023).
Já no portal de periódicos da Capes fizemos a busca com os descritores separados e o resultado apresentado foi um quantitativo de trabalhos que não seria viável de análise, visto o grande volume encontrado. Sendo assim, resolvemos refinar a busca utilizando os dois descritores conjugados criança indígena x infância indígena, bem como utilizando alguns filtros como: o período dos últimos cinco anos e selecionando o campo título.
Com esse procedimento obtivemos um total de 8 resultados, e 2 pesquisas foram excluídas, após realizada a leitura dos títulos. Uma por estar repetida e a outra por não contribuir com a temática em estudo resultando, assim, em um total de 6 achados, como podemos observar na Tabela 2.
Ano | Autoria | Título | Periódico |
---|---|---|---|
2018 | AMORIM, L. C. dos S. CRUZ, M. M. A | Crianças indígenas e os saberes de infância entre os Tenetehara | Nova Revista Amazônica |
2019 | GRANDO, B. S. PINHO, V. A. PINHO, A. M. |
As concepções de professoras e professores indígenas das etnias (Bororo, Nambikwara, Paresi, Chiquitano e Umutina) sobre crianças e infâncias indígenas | Revista Cocar |
2020 | GRANDO, B. S. RODRIGUES, E. S. P. PINHO, V. |
Crianças e infâncias indígenas: questões pertinentes para a educação infantil e a escola | Revista Poiéses Pedagógica |
2022 | SILVA, L, D. SILVA, D. M. |
O que pode a educação das crianças indígenas ensinar para as escolas voltadas para a educação das infâncias? | Revista Inter- Ação |
2020 | MARQUI, A. R. MIRANDA, X. B. |
Perspectivas etnográficas e infâncias indígenas: modos de ser das crianças Asuriní e Baniwa | Revista da Fundarte |
2021 | MAIA, L. O. | Política pombalina e educação escolar de crianças indígenas no mundo colonial: uma contribuição à historiografia na infância no Brasil | Revista Brasileira de História e Ciências Sociais |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023).
Em relação ao portal da SciELO, fizemos a busca com os descritores separados, utilizando apenas o filtro dos últimos cinco anos e obtivemos 3 resultados. Dessas 3 pesquisas encontradas, excluímos uma, pelo fato de destoar da temática pesquisada.
Na Tabela 3 podemos vislumbrar as pesquisas encontradas no portal citado.
Ano | Autoria | Título | Periódico |
---|---|---|---|
2021 | COHN, C. | O que as crianças indígenas têm a nos ensinar? O encontro da etnologia indígena e da antropologia da criança | Revista Horizontes Antropológicos |
2021 | SANTINO, F. S.; CIRÍACO, K. T.; PRADO, J.H. | Interculturalidade e infância indígena no contexto urbano: concepções de um grupo de professoras da educação infantil | Revista Inter-Ações |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023).
Após a análise dos 15 achados citados nas tabelas anteriores - categorizados como teses de doutoramento, dissertações de mestrado e artigos científicos -, chamamos a atenção pelo tipo de estudos realizados pelas pesquisas - a maioria delas é do tipo etnográfico, uma vez que por essa metodologia os pesquisadores testemunhavam de perto a realidade de seus objetos de estudo (Cohn, 2021).
Outro ponto que julgamos pertinente a ser destacado é o fato de a maioria dos artigos encontrados no portal de periódicos da Capes e no portal SciELO ser de revistas científicas das regiões Centro-Oeste e Norte, haja vista que nesta última concentra-se o maior número de povos indígenas do país, na chamada Amazônia Legal.
Considerando que o campo de conhecimentos acerca dos estudos sobre a criança indígena / infância indígena é vasto, das pesquisas encontradas e analisadas notamos algumas temáticas recorrentes que categorizamos da seguinte forma: cultura indígena, ensinamentos e ludicidade (8 trabalhos); educação escolar indígena (7 trabalhos); e formação de professores indígenas (1 trabalho).
CULTURA, ENSINAMENTOS E LUDICIDADE INDÍGENAS
Desse amplo campo do saber emergiu o maior número de pesquisas (um total de 8), em que as quatro primeiras valem-se da etnografia junto às crianças. Como a dissertação de mestrado de Cynthia Helena Chaves Oliveira, As crianças do Morro Branco: uma etnografia da infância TenteharGuajajara (2022), que pesquisou, pela etnografia, a infância Tentehar-Guajajara da Aldeia Morro Branco em Grajaú, estado do Maranhão, quando pôde perceber inicialmente uma lacuna sobre tal temática. Assim, a autora se debruçou sobre concepção de infância, analisando como essa era vivenciada no cotidiano da própria Aldeia e particularidades da organização comunitária. Com isso, identificou quatro elementos marcadores dessa infância: os rituais; o sistema de crenças; a aprendizagem; e a ludicidade. Além disso, dos quatro elementos citados, o que recebeu mais destaque ao longo da escrita da pesquisa foi o contraste entre a ludicidade das infâncias vividas nas aldeias e na agitada vida urbana.
O artigo Perspectivas etnográficas e infâncias indígenas: modos de ser das crianças Asuriní e Baniwa (2020) das autoras Amanda Rodrigues e Xanda de Biase Miranda descreve uma pesquisa com crianças Asuriní e Baniwa, também a partir do método etnográfico, e sob o conceito de antropologia da criança. Marqui e Miranda (2020) dialogam com a noção de pessoa e arqui-categoria e discutem sobre indagações acerca do parentesco e da organização social. As autoras ainda destacam os diferentes tipos de ser criança, especificamente, ser criança indígena, passando a observá-las em espaços físicos semelhantes, como rios e pátios, assim como em cenários que evidenciam a cultura indígena.
Clarice Cohn é a autora do artigo O que as crianças indígenas têm a nos ensinar? O encontro da etnologia indígena e da antropologia da criança publicado em 2021. Cohn (2021) discute um encontro da antropologia da criança, afirmando que este campo já é bastante consolidado na área da antropologia, alicerçado na etnologia indígena. Porém, a autora afirma que apesar desta consolidação, tais estudos têm falhado na incorporação das crianças. Destarte, vemos que a autora propõe tal incorporação discutindo a revisão de conceitos que banalizam a área, mencionando exemplos de etnografias com crianças indígenas.
Na tese de doutorado Crianças Huni Kuin e suas redes de interdependências: tensões e negociações nas configurações na infância indígena de José Valderi Farias de Souza (2022) são analisadas as redes de interdependência de 16 crianças da etnia Huni Kuin, no estado do Acre. A partir disso, o autor revela as relações de poder e tensões vivenciadas por essas crianças nos espaços nos quais interagem com atividades como o plantio, a colheita e organização de festividades culturais, enquanto sujeitos capazes de significar as peculiaridades de seus territórios, ou seja, em que buscam circular e participar das experiências ensejadas em seus territórios, contribuindo nos afazes individuais e coletivos que existem na Aldeia.
Os próximos quatro estudos contemplam os conhecimentos acerca do movimento corporal, da ludicidade, das brincadeiras e dos jogos e dos cotidianos das crianças indígenas, tanto na história do tempo passado como na história do tempo presente.
A dissertação de mestrado O movimento corporal e as brincadeiras infantis no cotidiano da Aldeia Vendaval: contribuição à educação infantil indígena Ticuna (2020), de Nailson Pissango Salvador, desvela as brincadeiras indígenas de uma Aldeia Ticuna no município de São Paulo de Olivença no estado do Amazonas. O autor parte da morfologia da palavra brincadeira na língua Ticuna que quer dizer querer ficar agitado de / por fazer algo e indaga sobre o cotidiano da Aldeia e sua contribuição para a educação infantil. Conclui que as brincadeiras perpassam a vida Ticuna e, também, fazem parte de um ritual específico.
No artigo Crianças indígenas e os saberes de infância entre os Tenetehara (2018), os autores Lena Cláudia dos Santos Amorim e Marcos Murelle Azevedo Cruz exibem a infância indígena do povo Tenetehara, na terra indígena Alto Rio Guamá, no estado do Pará. Os pesquisadores apresentam a dinâmica cultural do processo educativo dessas crianças e nos fazem refletir sobre a Aldeia como um espaço diferenciado, revelando que as crianças são envoltas nos processos sociais, e que determinadas atividades se fazem de acordo com suas faixas etárias e com saberes repassados pela oralidade. Os autores ainda destacam que a participação das crianças na cultura indígena acontece, principalmente, por meio de festas e rituais, e que a pintura corporal é um tipo de aprendizagem não só durante os períodos festivos ou ritualísticos, mas também em toda a vida cotidiana.
A pesquisa de mestrado de Eliezer Martins Rodrigues, A criança Guarani Nandeva na Tekoha Porto Lindo/Japorã-MS (2018), objetiva a identificação da aprendizagem das crianças Guarani Tekoha da Aldeia Porto Lindo no município de Japorã do estado do Mato Grosso do Sul. A pesquisa etnográfica detalha como os indígenas concebem a infância e desenvolvem seus próprios processos de aprendizagem no seio familiar. O autor ainda ressalta que a realização da pesquisa teria extrema relevância para a reorganização do projeto político-pedagógico da escola de educação infantil indígena da Tekoha Porto Lindo.
Lígio Oliveira Maia escreveu o artigo Políticas pombalina e educação escolar de crianças indígenas no mundo colonial: uma contribuição à historiografia da infância no Brasil (2021), que contribuiu com a historiografia das crianças indígenas no país. Maia (2021) objetivou discutir a educação escolar de crianças indígenas, parte imprescindível da infância no período do Diretório pombalino. Maia (2021) menciona que o Diretório pombalino foi uma política indigenista na América em meados do século XVIII, cujo objetivo era substituir missões religiosas pela secularização do ensino. O autor se utilizou de fontes documentais das escolas de Vila Viçosa Real, uma Aldeia de Ibiapaba, na Capitania do Ceará, entre os anos de 1700 a 1759, elevada posteriormente à categoria de vila de índios.
A partir da análise dos 8 trabalhos encontrados e elencados na categoria cultura, ensinamentos e ludicidade indígenas impõe-se a correlação da ludicidade com processos próprios de aprendizagem dos povos indígenas, os quais corroboram construções coletivas de determinados contextos, que vão sendo criados e recriados em formatos dinâmicos.
Percebemos, também, que os textos descrevem um movimento lúdico consistente sobre crianças indígenas.
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Ao que concerne à segunda temática que resultou em 6 trabalhos, os 2 primeiros debruçaram seus estudos quanto à inserção de crianças indígenas em escolas regulares.
Para iniciar, temos a dissertação de mestrado de Daniela Lobato do Nascimento, intitulada Índios no Distrito Federal? A educação de crianças indígenas na capital do país (2018), que investigou a educação escolar de crianças indígenas de uma reserva em um bairro do Noroeste de Brasília, no Distrito Federal. A autora explicita que, pelo fato de a Aldeia estar localizada em reserva indígena que não possuía escola, as crianças estudavam em escolas regulares. A partir de uma pesquisa etnográfica e utilizando um questionário semiestruturado, são tecidos desdobramentos e questionada a garantia da especificidade da educação indígena pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Crianças indígenas na educação infantil: percepções e olhares outros de uma educadora (2018) é a dissertação de mestrado de Lúcia Guedes e Melo Salmazio. A autora descreve as interações que crianças indígenas realizam no Centro de Educação Infantil Nilda de Almeida Coelho, localizado na cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Levanta questionamentos que julga serem inacabados para refletir se as crianças indígenas constroem ações de interação no espaço institucional, e se tais ações resultam na produção de sua identidade. É pertinente destacar que os resultados dessa pesquisa apontam que crianças indígenas constituem sua visão de mundo e ações interativas sobre experiências que as circundam; além disso, conseguem ressignificar seus conhecimentos por meio de manifestações individuais e coletivas.
Os 4 últimos trabalhos desse bloco discorrem sobre processos educativos em escolas indígenas, projetos de extensão voltados à educação e reflexões sobre aspectos pedagógicos.
Maxson José Barzani Jardim é o autor da dissertação A educação escolar e a identidade cultural da infância indígena Gavião na Aldeia Ikólóéhj (Terra indígena Igarapé Lourdes) Ji-Paraná-RO (2019). O autor objetivou compreender diferenças entre educação escolar indígena e educação regular valendose de pesquisa etnográfica. Entende-se que o autor, ao apontar desafios da educação, elenca o empenho do Estado em homogeneizar processos educativos e, por consequência, o ensino nas escolas indígenas.
Beleni Saléte Grando, Eglen Silvia Pipi Rodrigues e Vilma Aparecida de Pinho, autoras do artigo Crianças e infâncias indígenas: questões pertinentes para a educação infantil e a escola (2020), articularam o entendimento da educação como ação política das sociedades e como garantia de resguardar as crianças como possuidoras de conhecimentos ancestrais. Dessa forma, o texto problematiza a educação indígena e suas contradições no contexto do estado do Mato Grosso. É importante destacar que entendemos que as autoras consideram que a educação escolar indígena ainda é tratada a partir de princípios coloniais, o que traz vários tipos de violência para as crianças, o que precisa ser revisto, para que pensemos na ideia de pluralidades das infâncias.
Fernando Schlindwein Santino, Klinger Teodoro Ciríaco e José Henrique Padro relatam experiências do projeto de extensão Infância, interculturalidade e etnomatemática na educação infantil: o atendimento à criança indígena, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul no texto Interculturalidade e infância indígena no contexto urbano: concepções de um grupo de professoras da educação infantil (2021). Os autores empreenderam, a partir de um questionário aplicado com professoras da rede municipal de educação, compreender os processos comportamentais e relacionais entre docentes e crianças indígenas na educação infantil. Como resultado, especificaram um ambiente intercultural e práticas reflexivas. Podemos concluir, a partir disso, que são necessários investimentos e estudos aprofundados no que concerne a uma cultura híbrida, como meio de não chegarmos à aculturação da infância indígena.
O último trabalho analisado foi o artigo O que pode a educação das crianças indígenas ensinar para as escolas voltadas para a educação das infâncias? (2022) de Leiliane Domingues Silva e Dagmar de Melo Silva. O texto é uma reflexão teórica com base nos referenciais da sociologia e da filosofia, e discorre sobre a escolarização de crianças indígenas, problematizando concepções múltiplas e singularidades culturais acerca dos tempos e espaços das infâncias. As autoras sugerem, no texto, uma pedagogia indígena que possa reorientar a educação escolar infantil. Outrossim, vemos que há defesa pela inserção da criança indígena na educação infantil, mas que esta não pode ser oferecida como um processo colonizador, mas sim a partir da problematização a respeito das necessidades das crianças.
Sobre os textos acima, vemos que os autores enunciam a diversidade sobre a educação indígena em diferentes nuances. Desse modo, observamos olhares únicos sobre as infâncias e a necessidade de pensar a individualidade nesse âmbito, e as múltiplas dimensões de saberes.
FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
A terceira temática que destacamos apresenta apenas um trabalho que versa sobre a formação de professores para crianças indígenas, partindo das perspectivas de projetos que englobam a dinâmica da educação escolar indígena diferenciada. O artigo é de autoria de Beleni Saléte Grando, Vilma Aparecida de Pinho e Arlete Márcia de Pinho, intitulado As concepções de professoras e professores indígenas das etnias (Bororo, Nambikwara, Paresi, Chiquitano e Umutina) sobre crianças e infâncias indígenas (2019). As pesquisadoras apresentam discussões de uma dissertação de mestrado que buscou entender a identidade de professores indígenas, na interface de outros papéis exercidos no âmbito familiar. Como resultado, encontram nas percepções das professoras três tipos de crianças indígenas que manifestam seus modos de ver essas crianças como seres de complexidade sociocultural e de múltiplas identidades.
Percebemos que o debate avança para a discussão sobre três tipos de crianças indígenas, distintas na diversidade de povos, quais sejam: criança sendo criança; criança no povo; e criança na escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente texto apresentamos o estado do conhecimento de estudos sobre crianças indígenas. Diante das análises realizadas sobre o cenário de estudos envolvendo a temática crianças indígenas foi possível observar a relevância e o alcance das investigações empreendidas. A pesquisa foi conduzida de maneira abrangente, utilizando critérios rigorosos de inclusão e exclusão para garantir a pertinência dos resultados. A busca nos Catálogos de Teses e Dissertações da Capes, no portal de periódicos da Capes e no portal da SciELO trouxe luz a um conjunto diversificado de pesquisas, refletindo a crescente atenção dada à temática nos últimos anos.
A seleção final de 15 achados, entre teses de doutoramento, dissertações de mestrado e artigos científicos, proporcionou visão panorâmica das abordagens cultivadas no campo da investigação. É notável a prevalência de estudos etnográficos, nos quais os pesquisadores se envolvem profundamente com as comunidades indígenas, proporcionando compreensões detalhadas e contextualizadas das realidades das crianças e da infância indígena.
Um aspecto de destaque é a concentração de artigos em periódicos das regiões CentroOeste e Norte nas fontes analisadas. Indicativo, em especial, da última região em se concentra a maior parte das populações indígenas do país.
A categorização das temáticas em cultura, ensinamentos e ludicidade indígenas; educação escolar indígena; e formação de professores indígenas oferece visão clara das áreas de foco. As temáticas abordadas nas pesquisas refletem a diversidade das questões envolvendo a criança indígena, englobando aspectos culturais, educacionais e a formação de professores indígenas. Os estudos sobre a vivência das crianças indígenas, incluindo seus hábitos, costumes, brincadeiras e jogos cotidianos, enriquecem a compreensão da infância nesse contexto. A educação escolar indígena é outra área relevante, abordando desafios desse âmbito educacional tão específico, o que nos permitiu observar que mesmo sendo garantida a educação indígena diferenciada pela Constituição Federal e pela LBD, políticas com esse foco ainda não se efetivam totalmente. Para além disso, a formação de professores para atender necessidades específicas das crianças indígenas se destaca como preocupação educacional crucial.
Podemos denotar, ainda, que estudos sobre populações indígenas tomam como referência tradições e significações culturais e simbólicas visando a abertura de saberes (Pereira, Gomes, 2018), a partir das análises realizadas ao longo dos trabalhos encontrados e discutidos neste texto.
Por fim, as pesquisas reunidas oferecem visão abrangente e enriquecedora da criança indígena e da infância indígena. As abordagens etnográficas aprofundaram a compreensão das realidades locais, enquanto as diferentes temáticas exploradas contribuíram para o enriquecimento do campo de conhecimento. À medida que a sociedade busca compreensões mais sensíveis das questões indígenas, esses estudos desempenham papéis fundamentais na promoção de diálogos interculturais, produzindo informações a partir de dados científicos que discutem nuances culturais.