PRIMEIRAS PALAVRAS
Nesta pesquisa, pretende-se aprofundar os conceitos de interculturalidade apresentados por alguns estudiosos do campo, bem como analisar o lugar que ocupa a interculturalidade em uma proposta curricular de formação docente.
Na América Latina, no campo da educação, de acordo com Candau (2012b), o termo ‘interculturalidade’ surgiu no século XX, inicialmente relacionado a movimentos indígenas. Neste mesmo século, as lutas visavam universalizar a escolarização, pois não havia uma escola para todos. A autora destaca que este artifício de afirmação do direito à educação escolar acabou por homogeneizar o processo educativo, “[...] tendo por função difundir e consolidar uma cultura comum de base eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades” (Candau, 2011, p. 242).
Ainda no século XX, algumas lutas pelo direito à educação tiveram como objetivo a inclusão de todas as culturas e a preservação de suas singularidades. Diante disso, a interculturalidade passou a assumir a responsabilidade, juntamente com outras dimensões políticas e sociais, de transformar e reconstruir estruturas epistêmicas fortemente engessadas pelo poder colonial. A concepção de interculturalidade, portanto, busca superar um tipo de escola que, historicamente, promoveu uma única forma de educar os povos e nações, ignorando as suas diferenças culturais e sociais.
Para Candau (2010), durante o processo de reinventar a escola, pode-se considerar a interculturalidade como uma peça-chave para debates em que se articulam diferenças e igualdades, a fim de contribuir para a formação de seres humanos que respeitem o diferente. Práticas que vão além da tolerância, a fim de promoverem um espaço de trocas e relações de respeito aos direitos fundamentais de todos.
A interculturalidade se constitui, portanto, em um campo de debate aberto e filosófico, que faz com que as pessoas pensem em suas relações com o diferente. Do ponto de vista conceitual, encontram-se questões e reflexões em que o respeito as diferenças as integram no meio social sem anular suas singularidades, a fim de valorizar o potencial criativo (Fleuri, 2014).
Esta investigação, portanto, nasce diante da complexidade de temas emergentes, como a interculturalidade na formação inicial docente. Sendo assim, a pesquisa tem como pergunta norteadora: que lugar ocupa a interculturalidade na formação docente?
A escolha desta temática se faz necessária, por diversas razões: em primeiro lugar, que a temática ainda é incipiente no âmbito da educação brasileira de modo geral; e em segundo, porque vivemos em um país rico em diversidades, que precisam ser vistas, ouvidas e, acima de tudo, respeitadas. E ainda, considerando a inserção de crianças e adolescentes imigrantes de países latinoamericanos nas escolas brasileiras. Por fim, ressalta-se que por décadas, a educação e a sociedade tenderam a silenciar, homogeneizar e excluir as diferenças, afastando-se cada vez mais da realidade existente em nosso meio.
Dessa forma, no primeiro movimento desta pesquisa, foi investigar qual o lugar da interculturalidade no currículo de formação inicial dos pedagogos de uma instituição pública de Santa Catarina e como a Internacionalização do Currículo contribui com as práticas interculturais.
Neste trabalho, nos aproximamos dos conceitos de Buttimer (1985, p. 228) quando afirma que o lugar é “[...] qualificado pela experiência humana, que lhe confere significados particulares; é o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas”. Assim como o conceito de Tuan (1975) que define lugar como um aspecto tão somente locacional, uma via de referências do sujeito, suas intencionalidades. “É essa relação de intenção do indivíduo com o lugar, que lhe confere identidade e significado. Assim, o lugar serve para conferir noção de ‘pertencimento’ ao indivíduo” (Leite; Barbato, 2011, p. 235).
Assim sendo, esta pesquisa assume o conceito de lugar como um facilitador e promotor de vivências e experiências em meio às quais os sujeitos criam e desenvolvem seus pontos de vista e seus saberes. Dessa forma, determinadas abordagens temáticas podem ocupar ou não lugar no currículo, podem ou não permitir que se estruturem situações de ensino-aprendizagem atribuindo sentidos aos sujeitos. Pois, “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo.” (Silva, 1999, p.15).
Para atender ao objetivo que busca analisar o lugar que ocupa a interculturalidade em uma proposta curricular, empreendemos uma pesquisa qualitativa de caráter documental. Para isso, foram analisadas a matriz curricular do curso de Pedagogia, e Projeto Pedagógico de Curso da instituição analisada. Como aporte teórico, a fim de fundamentar tais análises, apoiamo-nos em autores como Candau (2008, 2010, 2011, 2012b, 2016); Fleuri (2003, 2014, 2018); Walsh (2001, 2005, 2009), entre outros.
INTERCULTURALIDADE: CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS
A perspectiva intercultural, de acordo com Candau (2008), possui algumas características comuns com os autores Caterine Walsh e Renato Matias Fleuri que discutem esta temática. A primeira “[...] é a promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade” (Candau, 2008, p. 22). Ou seja, vai contra toda forma de exigência e rigidez no que tange aos processos de afirmação identitária.
Outra característica digna de nota é que a interculturalidade “[...] rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Concebe as culturas em contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução” (Candau, 2008, p. 22). Tal concepção não tem por objetivo estabelecer padrões culturais engessados para que sejam seguidos.
A terceira característica apontada pelos autores ressalta que, “[...] nas sociedades em que vivemos, os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente, o que supõe que as culturas não são puras” (Candau, 2008, p. 22).
De acordo com Candau (2008, p. 23), “A consciência dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais constitui outra característica desta perspectiva”. As relações que se estabelecem entre culturas, em sua maioria, são relações conflituosas, marcadas por disputas e poder, fortemente atreladas à discriminação e ao preconceito.
Por fim, a última característica apresentada pelos autores procura “[...] não desvincular as questões da diferença e da desigualdade presentes hoje de modo particularmente conflitivo, tanto no plano mundial quando em cada sociedade” (Candau, 2008, p. 23).
Candau (2008), defende uma perspectiva intercultural calçada no respeito, na valorização e no reconhecimento do ‘outro’, a fim de que o diálogo e as interações entre diferentes grupos culturais e sociais ocorram de forma respeitosa.
Para Walsh (2001, p. 12), apesar de diversos países latino-americanos terem incluído a perspectiva da interculturalidade em seus currículos escolares e nas reformas educacionais, “[...] não há um entendimento comum sobre as implicações pedagógicas da interculturalidade, nem até que ponto nelas se articulam as dimensões cognitiva, procedimental e atitudinal; ou o próprio, o dos outros e o social”.
Walsh (2005) separa a interculturalidade em crítica e não crítica, caracterizando a interculturalidade crítica como uma ferramenta que aponta as transformações necessárias, ao passo que a não crítica corresponderia a certos programas implementados por alguns governos neoliberais, que respeitam a particularidade cultural.
Entre os pensadores que abordam a temática, Becka (2010), em seu livro Interculturalidade no pensamento de Raúl Fornet-Betancourt, apresenta o pensamento de Fornet-Betancourt no que se refere à interculturalidade e à filosofia intercultural. A partir disso, aborda as discussões sobre a definição de interculturalidade, que o autor considera um dilema a ser explorado, visto que, segundo ele, esbarramos em diversas questões quando buscamos compreender o tema.
Dentre as principais dificuldades levantadas por Fornet-Betancourt, a primeira que Becka (2010) menciona é a relação em que nos encontramos quando buscamos questionar a interculturalidade. Este autor identifica a interrogação, de certo modo violenta, no que se refere às demais culturas, considerando que temos uma visão ocidental sobre o termo, o que caracteriza, nesse sentido, uma certa centralidade nas culturas ocidentais e a exclusão das demais.
Seguida do eurocentrismo e da busca pela definição do que é interculturalidade, FornetBetancourt (apudBecka,2010) destaca uma segunda problemática. De acordo com o autor, definir um conceito implica sempre uma delimitação, uma divisão, uma fragmentação. Dessa forma, afirma que a pergunta por uma definição se reveste de certa complexidade, porque pode levar a uma fragmentação do campo intercultural.
Vinculada à questão anterior, o autor apresenta uma terceira razão, a saber, que as definições buscam por objetivar o que já está definido (Becka, 2010). Acompanhada desta lógica, supondo que o intercultural está relacionado com os modos de vida e as práticas de seres humanos concretos, a definição nos impede de observar o aspecto central da interculturalidade, voltando seu olhar para dentro e se esquecendo de olhar para fora, para a vida que se leva.
O autor ainda descreve uma quarta e última razão, que se refere às definições voltadas para a teoria, as quais, no fundo, representam peças-chave, especialmente quando a teoria busca sua consolidação em si mesma. Fornet-Betancourt (apudBecka, 2010) complementa seu pensando afirmando que esta é mais uma das sérias dificuldades que encontramos na tentativa de nos aproximar do intercultural, já que esta compreensão estaria envolvida com uma construção teórica e sistemática. Contudo, conclui que o problema acerca da definição do que seria intercultural é um desafio, em vista do qual cumpre reformular a questão. O autor cita que o ideal é nos questionarmos não sobre a definição que podemos dar à palavra, mas sim sobre os recursos culturais e conceituais que essas definições nos permitem.
Após esse breve recorte sobre algumas características ao definirmos a interculturalidade, compreendemos, que o conceito de interculturalidade é amplo já que cada autor apresenta uma definição diferente, porém todas essas definições perpassam por uma mesma raiz teórica e características comuns.
TIPOLOGIA DA PESQUISA
Esta pesquisa de abordagem qualitativa teve como geração de dados a análise da proposta curricular do curso de Pedagogia de uma instituição pública de Santa Catarina. A análise se deu com base nos preceitos de Cellard (2008), para quem os documentos escritos são fontes indispensáveis e preciosas para o pesquisador, pois, “o documento permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social.” (Cellard, 2008, p. 295). Nessa perspectiva, os documentos dão acesso a informações de várias épocas, permitindo análises e reflexões acerca dos acontecimentos.
Nesta pesquisa a geração de dados se deu a partir de arquivos públicos, sendo a matriz curricular do curso de Pedagogia, e Projeto Pedagógico de Curso da instituição analisada. Como aporte teórico, a fim de fundamentar tais análises, apoiamo-nos em autores como Candau (2008, 2010, 2011, 2012b, 2016); Fleuri (2003, 2014, 2018); Walsh (2001, 2005, 2009), entre outros.
Dimensões preliminares do PPC de Pedagogia
O Curso de Pedagogia analisado nesta pesquisa, inicialmente fazia parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e ao longo de seu processo histórico, ocorreram várias mudanças. Inicialmente, o curso habilitava especialistas em educação, profissionais que podiam atuar na administração escolar, no ensino de disciplinas e em atividades dos cursos normais (PPC, 2017). Assim que iniciou suas atividades, a Universidade atendia somente no período matutino, mas, na década de 1970, com o aumento dos estudantes trabalhadores, passou a ofertar seus cursos também no período noturno.
Ao longo do tempo, discussões referentes à reestruturação do documento foram motivadas por avaliações internas, realizadas com professores, egressos e concluintes do curso, bem como pelos resultados das avaliações externas do Conselho Estadual de Educação e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade).
A necessidade de mudanças na matriz curricular surgiu após a realização de um estudo que buscou compreender as demandas necessárias para o desenvolvimento profissional de futuros educadores no curso de Pedagogia, o qual atingiu os níveis institucional, nacional e internacional. A partir disso, buscou-se “[...] garantir um encadeamento epistemológico e pedagógico que atenda às demandas do contexto brasileiro e regional no desenvolvimento profissional do futuro docente de Pedagogia” (PPC, 2017, p. 101).
Diante das demandas e exigências legais da formação inicial, os autores do PPC idealizaram um currículo “[...] mais inovador e articulado com as reais necessidades do contexto educacional” (PPC, 2017, p. 16). O currículo do PPC (2017) está pautado, portanto, nas DCNs do Curso de Pedagogia e em pareceres legais vigentes no ano de sua construção. Os documentos oficiais serviram de base para que o currículo pudesse atender às necessidades da atualidade.
No que se refere à natureza do PPC, trata-se de um documento descritivo e pedagógicocurricular, que tem como objetivo geral, formar profissionais da educação com base teórico-prática, reflexão crítica e autonomia intelectual, promovendo um processo educativo democrático para atuarem na docência da Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental, bem como na
Gestão Educacional e em diferentes Contextos e Modalidades da Educação Básica (PPC, 2017, p. 17).
Os dados foram gerados a partir do PPC do curso analisado, dos quais emergiram duas categorias: a) Interculturalidade como eixo estruturante; b) Internacionalização do currículo como enriquecimento intercultural que dialogaremos a seguir.
INTERCULTURALIDADE COMO EIXO ESTRUTURANTE NO CURRÍCULO
A concepção de formação inicial apresentada no PPC (2017 p. 10) de Pedagogia afirma que a formação “[...] fundamenta-se nos princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética”. O curso visa, portanto, oferecer uma formação inovadora, que articule as necessidades reais do contexto educacional atual.
A proposta visa ainda uma formação sensível, de modo que o profissional possa ser capaz de perceber as singularidades e necessidades de seus estudantes, além de abrir espaço de diálogo para debates a respeito da educação intercultural. Para Fleuri (2003), formar o educador para atuar na educação intercultural exige atenção para com todo seu percurso curricular e conhecimento acerca dos conceitos que elabora, do modo como se dá seu relacionamento com seus estudantes e demais agentes educacionais e qual seu posicionamento diante de acontecimentos e fatos sociais.
Do ponto de vista quantitativo o PPC de Pedagogia analisado, o termo ‘interculturalidade’ aparece seis vezes, das quais quatro estão relacionadas aos conceitos que devem ser desenvolvidos ao longo do currículo.
Vale ressaltar que o curso se organiza por meio de eixos estruturantes, que integram e se conectam aos componentes curriculares, de forma a fazer com que não haja hierarquia entre os conceitos dados ao longo da formação, pois, de acordo com o documento, todos os conceitos perpassam os diferentes semestres, mas sem sistematização e fragmentação definidas. Os eixos estruturantes também colaboram para que sejam cumpridas as especificidades dos núcleos estruturantes, que garantem o cumprimento legal das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial Docente (PPC, 2017).
Os outros dois, termos interculturalidade, constam nas referências bibliográficas do documento (PPC, 2017). Já o termo ‘intercultural’ aparece uma única vez, em referência à alteração da nomenclatura de uma disciplina.
O termo interculturalidade se dá como um dos conceitos a ser abordado no eixo estruturante Sociedade, Culturas e Educação. O termo reaparece na organização curricular, na parte dos conceitos essenciais na formação do pedagogo. Destacamos que há uma descrição conceitual deste eixo do currículo, definindo a diversidade cultural como “um dos grandes desafios da humanidade” (PPC, 2017, p. 24) reconhecendo que o professor exerce um papel fundamental no contexto desta diversidade.
Em relação a matriz curricular do curso de pedagogia constam 49 disciplinas, divididas em 9 fases, com carga horária total de 3.870 horas. Na análise das ementas destas disciplinas, foi possível identificar aproximações com os sentidos atribuídos à interculturalidade, diversidades culturais, sociais relacionados às questões étnico-raciais culturas infantis, aos direitos humanos, binômio à inclusão e exclusão, entre outras. Nessa concepção, “[...] a educação intercultural focaliza os problemas de relação, integração e conflito entre diferentes culturas a partir de enfoques de gênero, etnia, classe, gerações, religiões e outros no processo de globalização contemporâneo” (Fleuri, 2018, p. 66).
A perspectiva da educação intercultural para a formação de professores se configura em novos posicionamentos por parte do educador para com os saberes de seus estudantes. Consequentemente, abre caminhos para que o diálogo seja exercido e, por meio deste experiências vividas possam ser compartilhadas (Santiago et al., 2013).
O curso de Pedagogia analisado, por meio da oferta de algumas disciplinas, permite pequenas abertura de espaço para discussões e debates sobre a diversidade cultural, de acordo com Villela (2000), a formação inicial, ao longo de sua constituição, sofreu e ainda sofre com avanços e retrocessos de diversas formas de organização. Os profissionais de educação, normalmente, encontram formas de organizar seus próprios discursos e assim defender seus ideias e interesses.
É ainda nesses pequenos espaços de discussão e debates que está o lugar da interculturalidade, mas que se abrem possibilidades de diálogos acerca das diversidades. Ao longo do desenvolvimento do currículo, é possível que os professores busquem meios para abordar a interculturalidade e instigar os estudantes, permitindo reflexões e compreensões a respeito desta temática.
A interculturalidade como eixo estruturante permitiria uma educação baseada na ética e no respeito mútuo, uma formação voltada para o outro, reconhecendo as diferenças existentes. De acordo com Pereira (2009, p. 92), “[...] formar educadores para atender às necessidades educacionais do momento requer uma superação das tendências monoculturais e etnocêntricas que caracterizam os modelos tradicionais e consolidados de educar”.
Assim sendo, é importante que os educadores desenvolvam um olhar sensível, a fim de que possam repensar suas práticas educativas e de que estas tenham o reconhecimento das diferenças como base para romper a homogeneização que há anos carregamos em nossa história, que, por vezes, oculta e exclui as diferenças, reforçando o caráter monocultural.
INTERNACIONALIZAÇÃO DO CURRÍCULO COMO ENRIQUECIMENTO INTERCULTURAL
No PPC analisado consta um subcapítulo, intitulado Internacionalização e mobilidade, cujo texto afirma que os “[...] estudantes e professores estrangeiros trazem elementos culturais, econômicos, linguísticos, comportamentais e geográficos que enriquecem a sala de aula” (PPC, 2017, p. 33). Mesmo reconhecendo a riqueza cultural que estudantes e educadores estrangeiros oferecem, o documento não menciona, experiências internacionais na formação inicial, nem dá orientações para atender às demandas de possíveis estudantes estrangeiros no curso ou mesmo no contexto escolar.
É valido salientar a preocupação do curso com a internacionalização e a mobilidade acadêmica, visto que a globalização avança nesta perspectiva educacional, contudo chamamos atenção para a fragilidade linguística. O aprendizado de uma língua estrangeira se configura como um ponto relevante para a mobilidade, no entanto na formação inicial do curso analisado, não há indicação nesse sentido.
Entende-se que é possível que mobilidade estrangeira contribua com a formação inicial de professores, entretanto, esta possibilidade ainda não é acessível para todos. Mas para além da mobilidade, há possibilidades de enriquecimento curricular na perspectiva da Internacionalização do Currículo em direção aos princípios de interculturalidade e solidariedade. Há inúmeras justificativas teóricas que abordam essas preposições que necessitaria de um estudo mais aprofundado.
A partir dos estudos de (Abba; Streck, 2019), os autores entendem que há três semelhanças entre interculturalidade e internacionalização que merecem ser destacadas no campo educacional. A primeira diz respeito ao que os autores Walsh (2010, 2012) e Perrota (2016) discorrem a respeito dos termos, quando reconhecem que internacionalização e interculturalidade podem se dar de forma hibrida, variando de acordo com o contexto. “Por exemplo, um projeto educacional pode adotar certos aspectos da interculturalidade crítica e, ao mesmo tempo, apresentam traços de interculturalidade funcional. O mesmo vale para internacionalização.” (Abba; Streck, 2019, p. 117, tradução nossa).
O segundo aspecto semelhante é que “ambas as propostas apresentam três possibilidades que poderiam emergir de sua implementação em relação ao atual contexto social, cultural, educacional, político e modelo econômico hegemônico.” (Abba; Streck, 2019, p. 117, tradução nossa). De acordo com os autores há diversas possibilidades de integrar a internacionalização e a interculturalidade.
Por fim, “a terceira semelhança entre essas abordagens é o fato de que todas elas se originam no latim América [...] no caso da América Latina, é o primeiro espaço onde surge um horizonte não etnocêntrico e alternativo”. (Abba; Streck, 2019, p. 118, tradução nossa).
Nesta perspectiva, os professores encontram-se cada dia mais próximos das crescentes e diferentes demandas trazidas pela internacionalização. A esse respeito, Canan e Sudbrack (2018, p. 339) questionam: “[...] para que mundo estamos preparando os professores?”. Formar professores que consigam olhar para o ambiente escolar com novas perspectivas, que vão além do local e nacional, é essencial para que a escola possa começar a se preparar para receber estudantes de diversas regiões do país (ou do mundo) de maneira adequada, a fim de que sua cultura e seus costumes sejam valorizados e respeitados.
Desenvolver a internacionalização na e para a Educação Superior permite momentos de discussão e trocas de conhecimentos, diferentes formas de vivências e experiencias, estabelecidas em outros contextos, principalmente internacionais, o que contribui para o processo de formação de professores, além de permitir que as potencialidades do espaço ou das práticas, as quais podem passar despercebidas, sejam notadas durante as trocas interculturais com outros agentes sociais. As diversas reflexões proporcionadas pela internacionalização conferem um movimento positivo para a Educação Superior.
Enfatizamos que a interculturalidade está presente em todos os ambientes educativos e não educativos, e é fundamental que o educador esteja apto a discutir com seus estudantes questões relacionadas às diversidades culturais. Sendo assim, chamamos a atenção para a Internacionalização do Currículo (IoC).
A IoC desenrola-se a partir de propostas de práticas interculturais que interrogam a monocultura do saber e a concepção de que o conhecimento científico deve seguir um tempo único e linear, por meio de questionamentos e da curiosidade em volta dos paradigmas ausentes, além da procura e da identificação de paradigmas emergentes que possam contribuir com o currículo.
No que diz respeito à internacionalização, Luna (2016) observa que, nos últimos anos, o currículo vem sendo definido como foco do processo nas Instituições de Ensino Superior (IES). Esse movimento acontece porque, não obstante o crescimento da mobilidade internacional de docentes e discentes, ainda assim não é possível atingir todos os estudantes. A IoC está aí para questionar, instigar, criticar e desestruturar os paradigmas que influenciam a sociedade. Dessa forma, com essas características, aproxima-se de concepções que a educação intercultural define como desafios.
Retomando, o objetivo desta pesquisa, é identificar o lugar da interculturalidade na proposta curricular da formação inicial do pedagogo, por meio das reflexões apresentadas, podemos perceber que o currículo analisado apresenta algumas perspectivas para discussões a respeito do tema, contudo notamos um grande potencial curricular, que qualificaria muito a formação inicial destes estudantes, que é a IoC relacionada à interculturalidade.
De acordo com Abba e Streck (2019), internacionalização e interculturalidade andam de mãos dadas. Para os autores, em todo processo que há a internacionalização da educação, há algum tipo de interculturalidade. “No entanto, ambos devem ser vistos no contexto de relações de poder e valores éticos que lhes conferem significados específicos” (Abba; Streck, 2019, p. 121, tradução nossa).
Por fim, a interculturalidade crítica, permite que a internacionalização seja concebida como uma possiblidade de diálogo com o outro, aquele outro que quando está diante de nós nos permite uma melhor compreensão de nós mesmos, além de uma melhor significação do outro com o mundo em que estamos inseridos (Abba; Streck, 2019).
CONSIDERAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES PARA UM CURRÍCULO INTERCULTURAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Partimos do pressuposto de que a temática interculturalidade ainda é pouco explorada durante o processo de formação inicial e de que o cenário educativo se encontra repleto de desafios relacionados à diversidade, em virtude da globalização e dos movimentos sociais migratórios, que contribuem para um contexto híbrido e heterogêneo. Neste sentido, seria possível afirmar que a interculturalidade ocupasse um lugar de destaque na formação de professores numa perspectiva de educação intercultural.
Assim, o objetivo desta pesquisa foi identificar o lugar da interculturalidade em uma proposta curricular de formação inicial para o pedagogo. Os dados foram gerados a partir do PPC do curso analisado, que emergiram duas categorias: a) Interculturalidade como eixo estruturante; b) Internacionalização do currículo como enriquecimento intercultural.
Ao analisar a primeira categoria, podemos perceber que a concepção de interculturalidade é pouco explorada no PPC analisado, assim sendo, se faz necessário explicitar o seu entendimento, sua perspectiva e ou vertente teórica, considerando as diversidades culturais presente nas escolas e comunidades. Isso pode incluir ensinar habilidades para compreender e valorizar diferenças culturais, bem como desenvolver estratégias para promover a inclusão e equidade. Em suma, a educação intercultural pode ajudar a garantir que a educação seja mais inclusiva e responsiva às necessidades de todos os estudantes.
Embora tenhamos percebido um certo silenciamento da interculturalidade nos documentos analisados, identificamos que a interculturalidade faz parte de um dos eixos estruturantes do currículo que poderia a incluir temas relacionados às diferentes culturas e realidades existentes no mundo. Além do mais, a interculturalidade também pode ser incorporada ao currículo por meio de metodologias que promovam a reflexão crítica e a tomada de consciência sobre as desigualdades sociais e culturais existentes, além de fomentar a educação para a cidadania global.
A outra categoria, interculturalidade e a internacionalização do currículo, entendemos que ambas envolvem a promoção de uma cidadania global. A interculturalidade enfatiza a necessidade de reconhecer e valorizar as diferenças culturais e de promover uma maior compreensão entre as culturas, enquanto a internacionalização do currículo enfatiza a necessidade de incorporar perspectivas internacionais no processo ensino aprendizagem. Em resumo, a interculturalidade e a internacionalização do currículo são conceitos inter-relacionados que compartilham o objetivo de promover uma perspectiva global e intercultural na educação.
Embora a interculturalidade e a internacionalização do currículo busquem atingir grandes objetivos na educação, elas também podem gerar tensões e conflitos. A IoC pode gerar tensões quando há uma falta de reconhecimento e valorização da cultura local em favor de perspectivas internacionais. O que pode levar a um sentimento de que as culturas locais são inferiores ou menos importantes em relação às culturas internacionais. A IoC pode gerar conflitos quando há uma expectativa de que os estudantes assimilem a cultura estrangeira, em vez de valorizarem suas próprias identidades culturais. Levando a uma perda de identidade cultural e a um sentimento de alienação por parte dos estudantes.
Já a interculturalidade pode gerar tensões quando há preconceitos culturais enraizados que impedem a compreensão e a aceitação de outras culturas. Isso pode levar a conflitos entre estudantes e educadores com diferentes origens culturais. Assim quando falta de compreensão e comunicação entre estudantes e educadores com diferentes origens culturais, pode levar a malentendidos e conflitos culturais.
Assim entendemos que a interculturalidade e a IoC podem ser implementadas de forma adequada e sensível, pois é considerável que as escolas trabalhem para promover uma compreensão e respeito mútuos entre as culturas, garantindo que a as perspectivas internacionais e locais sejam valorizadas.
Quanto a interculturalidade na formação inicial de pedagogos pode contribuir de diversas maneiras como: ajudar os educadores a desenvolver habilidades para trabalhar com estudantes de diferentes culturas, incluindo a comunicação eficaz com esses estudantes; compreender suas necessidades e perspectivas; e adaptar suas práticas de ensino para atender às necessidades deles. A interculturalidade pode ainda ajudar os educadores a entender as desigualdades e as diferenças de oportunidades que os estudantes enfrentam, a desenvolver estratégias para eliminar essas desigualdades. Ainda, pode promover a igualdade de oportunidades para todos, bem como a entender as diferenças nas habilidades e nos estilos de aprendizado dos estudantes, a fim de que possam adaptar suas práticas de ensino para atender às necessidades de cada indivíduo ou grupo. Além disso, permite que os educadores desenvolvam habilidades para trabalhar com outros educadores e profissionais, independentemente de sua cultura.
Os dados gerados a partir dos documentos analisados ainda têm muito a nos dizer. A perspectiva da educação intercultural nos traz também a necessidade de repensar e ressignificar a concepção de ser educador neste mundo intercultural.